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quarta-feira, 5 de março de 2025

Rubens Paiva continua aqui – Elio Gaspari (O Globo)

 quarta-feira, 5 de março de 2025

Rubens Paiva continua aqui – Elio Gaspari

O Globo, 5/03/2025


Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”

 

Os oficiais que, em janeiro de 1971, prenderam, espancaram e mataram Rubens Paiva podiam tudo. Tanto podiam que empulharam o país por décadas, impingindo-lhe uma patranha, segundo a qual ele havia sido resgatado por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos do domingo, “Ainda estou aqui” levou o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho, Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo — e perderam.

Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar, num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.

Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em 1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente ao Country Club.

Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos econômicos da embaixada. Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: “Eu respondi que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela. Eu não podia fazer outra coisa”.

Mas fez. No dia seguinte, procurou o chefe da estação da CIA no Rio e contou-lhe o caso. “É tarde”, ouviu. A CIA sabia que Rubens Paiva estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num memorando ao embaixador William Rountree.

Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice, Mowinckel escreveu a Rountree dizendo que “algo deve ser feito para punir ao menos alguns desses responsáveis — punir por julgamento público”. Pelo lado americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.

Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o constrangimento imposto ao general reformado José Antônio Belham. Como major, ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana, militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a palavra de ordem “Ainda Estamos Aqui”.

Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais com a tigrada, valendo-se de seu braço militar. Tão fraternais que, em dezembro de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único pedido ao colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”.


sábado, 18 de janeiro de 2025

Rússia e China prosseguem ampliando o Brics - Eliane Oliveira (O Globo)

Nigéria entra no Brics como 'parceiro', ao lado de Cuba e outros sete países 

Por  — Brasília

 O Globo

O governo brasileiro anunciou, nesta sexta-feira, o ingresso formal da Nigéria como parceiro do Brics. O país africano se junta a Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão, que foram aprovados nessa categoria em outubro de 2024, na cúpula de líderes de Kazan, na Rússia. 

Na condição de parceiros, esses países têm um status diferente dos membros do Brics. Por exemplo, participam dos eventos e das discussões, mas não têm direito a voto. A Venezuela tentou entrar no grupo como parceira, mas foi barrada pelo Brasil, que não reconhece o resultado da eleição no país vizinho, realizada em meados de 2024, porque não foram apresentadas provas de que o presidente Nicolás Maduro, que tomou posse na última sexta-feira, de fato se reelegeu. Maduro chegou a ir a Kazan, mas voltou a Caracas de mãos vazias. 

A Nigéria tem a sexta maior população do mundo e a primeira do continente africano. É, ainda, uma das maiores economias da África. Segundo o Itamaraty, o país atua ativamente no fortalecimento da cooperação do Sul Global e na reforma da governança global, temas prioritários para a atual presidência brasileira.

Até 2023, o Brics era formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em uma reunião de cúpula na cidade sul-africana de Joanesburgo, foram aprovados como membros Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Indonésia. Neste ano, o Brics é presidido pelo Brasil. No próximo mês de julho, haverá uma reunião de líderes do bloco, no Rio de Janeiro.


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

IBGE: decisões Marcio Pochmann provocam saída de diretores (O Globo)

 Diretores do IBGE entregam cargos insatisfeitos com Pochmann: entenda a crise no instituto

Criação de fundação, mudança de local de trabalho e até cobrança a sindicato foram decididas sem consulta ao Conselho Diretor, apontam críticos, que se queixam de falta de interlocução

Por Mayra Castro e Cássia Almeida

O Globo, 14/01/2025 

 

Após Elizabeth Hypolito e João Hallak Neto, diretora e diretor-adjunto de Pesquisas do IBGE, deixarem seus cargos na última semana, o colunista do GLOBO Lauro Jardim informou ontem que, até o fim do mês, devem sair Ivone Batista e Patrícia Costa, diretora e diretora-adjunta de Geociências. Fontes indicam que faltaria apenas a designação dos substitutos para a saída das diretoras.

Em reunião dos diretores que pediram exoneração com os coordenadores para explicar a decisão, na semana passada, a falta de interlocução com a presidência do órgão, nas mãos do economista Marcio Pochmann, seria o principal motivo para o afastamento. A criação da Fundação IBGE+ nem chegou a passar pelo Conselho Diretor.

Os afastamentos acontecem em meio a uma crise interna do órgão oficial de estatística. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística (Assibge), em nota, disse que, embora os diretores tenham optado por não expor publicamente o que os levaram a essas decisões, a entrega dos cargos “mostra o agravamento da crise no IBGE”, e que eles teriam entregado seus cargos por um “desgaste” com a gestão atual.


Clima tenso

Para Paulo Lindesay, diretor da executiva nacional da Assibge, o clima no ambiente de trabalho está tenso desde que algumas mudanças foram anunciadas, como a transferência dos servidores que trabalhavam no Centro do Rio de Janeiro para o Horto Florestal, local considerado pelos servidores como de difícil acesso, e a criação da Fundação IBGE+:

— A gente entende essa fundação como uma forma de fragilizar o próprio IBGE. A argumentação foi que o instituto não teria um orçamento suficiente para gerir seu próprio plano de trabalho, mas o certo seria o presidente lutar para o governo federal colocar mais recursos, e não criar uma outra fundação para captar dinheiro público e privado.

Na reunião dos diretores com os coordenadores, segundo fontes, outro fator citado teria sido a decisão da direção de cobrar aluguel do sindicato pela sala que eles ocupam em um prédio da Avenida Chile (Centro do Rio), onde funciona boa parte dos núcleos do IBGE. A medida teria sido tomada logo após a audiência pública na Câmara dos Deputados com a participação do Sindicato para debater a Fundação IBGE+.

Em carta aberta divulgada ontem, o sindicato alerta que “decisões recentes da atual direção do IBGE colocam em risco a soberania geoestatística brasileira”, referindo-se à Fundação IBGE+.

“Essa medida foi implementada sem consulta aos quadros técnicos, à comunidade científica e à sociedade civil, configurando um precedente perigoso para a interferência de interesses privados no sistema geoestatístico nacional.”

Segundo fontes do instituto, havia a impressão de que o Conselho Diretor não era considerado. As deliberações que deveriam sair das reuniões eram publicadas quase que imediatamente após o fim da reunião, dizem essas fontes.

Outra questão é o uso da intranet do instituto. Antes usada apenas para troca de dados técnicos, agora está mais voltada para propaganda institucional da presidência, dizem fontes próximas ao caso.

A notícia da saída dos núcleos do instituto do prédio da Avenida Chile foi dada ao Conselho Diretor no mesmo dia no qual o aviso ao locador foi feito.

A ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar chamou atenção para o fato de os diretores terem sido escolhidos pelo próprio presidente atual:

— Eu imagino que uma ação coletiva dos diretores da casa saindo é uma manifestação de insatisfação com a gestão. Da mesma maneira como, até agora, o presidente continua tendo dificuldades de ouvir os técnicos, isso também deve ter chegado na direção. Eu, pelo menos, não acredito que o IBGE precisa da Fundação IBGE+. Ele precisa de outras coisas — afirmou.

O IBGE publicou nota em seu site divulgando que o servidor Gustavo Junger da Silva irá substituir Elizabeth Hypolito, e que Vladimir Gonçalves Miranda vai assumir o cargo de João Hallak Neto.

O IBGE, procurado, não respondeu sobre a saída dos diretores.


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

To be or not to be, member of China’s BRI: "Vale a pena o Brasil ficar de fora da Nova Rota da Seda?" - Vinicius Neder (O Globo)

O assunto é por demais importante para eu deixar de dar a minha opinião. Já estou elaborando. (PRA)

Vale a pena o Brasil ficar de fora da Nova Rota da Seda?*

_Marca da política externa e comercial chinesa já conta com cerca de 150 nações. País levou em conta relação com os EUA_

Vinicius Neder 

O Globo, 22/11/2024

 https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/11/22/vale-a-pena-o-brasil-ficar-de-fora-da-nova-rota-da-seda.ghtml 

Após a visita oficial a Brasília do presidente da China, Xi Jinping, ter terminado sem adesão formal do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), foi reaberta discussão que se arrasta há alguns anos: afinal, o país deveria ou não aderir ao programa chinês de investimentos no exterior? Afinal, já foram investidos mais de US$ 1 trilhão. E o Brasil tem, ao mesmo tempo, infraestrutura carente e escassez de recursos para investir.

Nos bastidores, a diplomacia brasileira sugeriu cautela, diante do risco de uma adesão pegar mal com aliados ocidentais, sobretudo os EUA, enquanto analistas reconheceram que, mesmo fora da BRI, o Brasil recebe investimentos bilionários do gigante asiático.

Outros especialistas ouvidos pelo GLOBO explicaram que as parcerias no âmbito do programa têm nuances e seria possível ganhar com a adesão.

A BRI foi lançada em 2013, início do mandato de Xi. É a principal marca da política externa e comercial da China. O nome do programa é a abreviação de outras iniciativas — Cinturão Econômico da Rota da Seda e Rota da Seda Marítima do Século XXI.

A referência é a Rota da Seda, como ficaram conhecidas as estradas que, há cerca de 2 mil anos, conectavam o Império Romano à China — o tecido valorizado foi inventado pelos chineses e atraiu o desejo dos europeus quando chegou por lá.

O governo chinês não divulga números oficiais consolidados, mas, segundo o Centro de Finanças Verdes e Desenvolvimento da Universidade Fudan, em Xangai, de 146 a 151 países, dependendo do estágio do processo de adesão, já fazem parte. Segundo o Monitor do Investimento Global da China, do Instituto da Empresa Americana, o programa já investiu US$ 1,029 trilhão.

O lançamento e o crescimento da BRI devem ser entendidos no contexto do processo de desenvolvimento econômico e projeção geopolítica da China, disse Larissa Wachholz, sócia da consultoria Vallya Participações e pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), que é especialista nas relações sino-brasileiras. No processo, que ocorreu nas economias hoje ricas, investir no exterior é uma etapa.

No caso da China, o crescimento econômico dos últimos 40 anos teve como motores a construção de infraestrutura e a produção manufatureira para exportação. Hoje, a China é a fábrica do mundo, tem procurado posicionar sua produção no sentido da alta tecnologia, mas segue de olho na demanda externa.

Na infraestrutura, após construir rodovias, ferrovias, trens de alta velocidade, metrôs, portos e aeroportos, primeiro no território chinês, chega o momento em que é preciso buscar demanda no exterior.

— Chega um ponto em que a economia é muito grande, e as empresas de um país buscam contratos no exterior — disse Larissa.

*Abertura de mercados*

Assim, a BRI serve, inicialmente, para fomentar e abrir mercados a operadoras e construtoras chinesas de infraestrutura. E faz sentido que as operações sejam voltadas para conectar logisticamente a China a outros países — como a Rota da Seda da Antiguidade fazia —, facilitando o escoamento da produção industrial chinesa, motor da economia.

*Os países da Nova Rota da Seda*

Um exemplo da BRI é a construção do Porto de Chancay, no Peru. Antes de vir ao Brasil para a cúpula do G20, no Rio, e da visita a Brasília, Xi passou por lá para inaugurar o terminal, que permitirá a conexão da América do Sul com a China, via Pacífico, em 23 dias e a um custo 20% menor, segundo a agência de notícias Xinhua.

O projeto é da chinesa Cosco, gigante do transporte marítimo, e já recebeu US$ 1,3 bilhão de um total de US$ 3,5 bilhões de investimentos.

Nos cerca de 150 integrantes da BRI, estão praticamente todos os países da América do Sul — só Brasil, Colômbia e Paraguai (este último não tem relação diplomática com a China) estão de fora. A Índia está de fora, mas tem fronteira com a China e as relações têm tensões específicas, disse Larissa.

Embora os países mais ricos, em geral, estejam de fora, 17 membros da União Europeia fazem parte, como Portugal e Luxemburgo, segundo a Universidade Fudan. A Itália chegou a aderir, mas deixou a iniciativa em 2023.

Isso deve ser entendido no contexto geopolítico, segundo Evandro Carvalho, especialista nas relações Brasil-China, professor da FGV Direito Rio e da UFF. É normal as potências vigentes resistirem à ascensão de mais um país no clube dos grandes.

— Parece que os EUA adotam política de contenção econômica da China em todas as frentes — disse Carvalho.

Apesar da postura diplomática e comercial dos EUA, o professor viu com desconfiança a argumentação da diplomacia brasileira, de que foi melhor não aderir à BRI para evitar indisposição com americanos.

Se o objetivo maior da política externa do Brasil fosse esse, não deveria dar aval à ampliação do Brics, com direito à adesão do Irã, o que tende a ser visto como mais grave do que aderir ao programa chinês.

Tanto Carvalho quanto Larissa, do Cebri, ressaltaram uma característica da BRI: a flexibilidade. O programa abrange um largo espectro de projetos, de infraestrutura tecnológica à saúde. E o tipo de acordo que cada país firma com a China costuma variar.

Para Larissa, a adesão à BRI poderia ter poucos resultados para o Brasil. Dependeria dos termos dessa entrada e de que projetos seriam financiados.

Já Carvalho considera um erro olhar para a BRI apenas pela ótica do financiamento à infraestrutura. Para ele, o Brasil poderia atuar como coordenador regional, na América do Sul ou na comunidade de países de língua portuguesa, dos investimentos chineses:

— Perdeu-se uma oportunidade de o Brasil abrir um ramo na política externa, para projetar o interesse brasileiro no cenário internacional.


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger (O Globo)

 Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger

Estudo estima as despesas dela em 3,1% do PIB e as dele em 0,2% — mas ambos recorreram a gastos ocultos

O Globo, 11/11/2024

 

O Brasil tem um longo e problemático histórico de incúria fiscal em anos eleitorais. Tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro, apesar das diferenças ideológicas, recorreram a gastos eleitoreiros em suas respectivas tentativas de reeleição. Ambos adotaram mecanismos de contabilidade criativa para ocultar despesas. Mas um olhar atento revela diferenças, constata um novo estudo dos economistas Alexandre Manoel, Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Samuel Pessôa, recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Para comparar os gastos, eles estimaram a variação entre os dois primeiros e os dois últimos anos de cada mandato. Constataram que, na tentativa de reeleição de Dilma em 2014, sua administração aumentara as despesas primárias em 1,4% do PIB. A maior extensão da prodigalidade fiscal, porém, ficou oculta. Pelos cálculos dos economistas, Dilma ainda acumulou 1,7% adicional do PIB em “gastos encobertos”, como adiamento de despesas para o próximo governo (restos a pagar) e manipulação da contabilidade das empresas estatais. Ao todo, entre o visível e o oculto, Dilma gastou 3,1% do PIB para se reeleger.

Bolsonaro adotou estratégia diferente em 2022. Em sua gestão, houve redução de 0,7% nos gastos primários visíveis, comparando o biênio 2021-2022 ao 2019-2020. Em contrapartida, ele também recorreu a “gastos encobertos” estimados em 0,9% do PIB. Isso inclui o atraso de pagamentos de precatórios no valor de R$ 27,2 bilhões ao longo de quatro anos e o aumento do estoque de contas não pagas em R$ 65,5 bilhões. Uma diferença crucial emerge na comparação: enquanto, sob Dilma, as despesas adicionais visíveis e ocultas atingiram 3,1% do PIB, sob Bolsonaro ficaram em apenas 0,2%.

Houve outra diferença crítica: a intervenção no mercado de câmbio. O governo Dilma, sem Banco Central (BC) independente, sustentou artificialmente o real antes da eleição de 2014, aumentando o estoque de contratos cambiais de zero para 4% do PIB entre 2013 e o terceiro trimestre de 2014, quando o déficit em conta-corrente comprovava a necessidade de desvalorização. Essa intervenção se revelou insustentável e prejudicou a economia. Em contraste, Bolsonaro se beneficiou da independência do BC, aprovada em 2021. Seu governo não se envolveu em manipulação cambial. A evolução institucional impôs uma restrição crucial ao populismo em ano eleitoral.

É verdade que é difícil definir com precisão gastos eleitorais. Para garantir uma comparação justa, os economistas exploraram vários ajustes nos cálculos, considerando fatores como subsídios aos combustíveis, incentivos fiscais, o ciclo econômico e diferentes classificações para as contas não pagas. Mesmo após aplicar os ajustes mais favoráveis a Dilma, concluem que os gastos dela antes da eleição superaram os de Bolsonaro.

Ambas as gestões priorizaram ganhos políticos de curto prazo em detrimento da estabilidade no longo prazo. Tanto Dilma quanto Bolsonaro exploraram fraquezas institucionais para manipular a política fiscal. O estudo revela a necessidade de maior transparência e de mecanismos de supervisão mais fortes para evitar a exploração de “gastos encobertos” à margem das regras fiscais, também frequentes agora, no governo Luiz Inácio Lula da Silva.

 

domingo, 29 de setembro de 2024

Liderança global de Lula entrou em declínio - Opinião, Editorial O Globo

 Opinião / Editorial  O Globo, 29/09/2024

Liderança global de Lula entrou em declínio

Passagem por Nova York mostra que passou o tempo em que o presidente encantava as plateias

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez o possível na semana passada para se projetar como liderança global em Nova York. Discursou na abertura da Assembleia Geral da ONU, participou de reunião do G20, disparou críticas contra seus desafetos Benjamin Netanyahu e Volodymyr Zelensky, manteve encontros bilaterais com Pedro Sánchez, Cyril Ramaphosa e Gustavo Petro, defendeu reformas na governança global e foi conversar até com representantes de agências de risco, na tentativa de melhorar a nota do Brasil. 

Não dá para negar seus esforços. Mas Lula está longe de alcançar os resultados que gostaria. A verdade é que, em seu terceiro mandato, ele é conhecido no exterior, mas não é mais o líder popular que já foi um dia. Um termômetro disso é uma pesquisa recente do Pew Research Center, com dados recolhidos entre janeiro e abril em cinco países da América Latina: Argentina, Chile, Colômbia, México e Peru. Os resultados mostram que é baixa a confiança latino-americana em Lula fazer o que é certo em termos de política externa. Nem no próprio continente ele consegue atrair a simpatia da maioria. 

Os que mais confiam em Lula são os argentinos (das respostas, 40% foram positivas e 49% negativas). Os mais críticos são os chilenos (62% de respostas negativas), seguidos de mexicanos (60%), peruanos (55%) e colombianos (53%). As respostas são coerentes com a inclinação recente à direita na América do Sul, marcada pela ascensão do argentino Javier Milei à Casa Rosada. Em relação ao Brasil, em contraste, a percepção é positiva. Os argentinos têm a visão mais favorável do país (59% de respostas positivas), seguidos de peruanos (58%) e colombianos (55%) A pesquisa também foi feita nos Estados Unidos. Os americanos são mais reticentes com relação ao Brasil que os latino-americanos: 47% têm imagem favorável e 46% desfavorável. 

Sobre as pretensões de liderança global brasileira, os americanos são céticos: a maioria dos entrevistados (64%) acha que a influência do país no mundo se manteve a mesma nos últimos anos, e 16% acham que ela enfraqueceu. O Brasil está mais fraco no cenário internacional para 33% dos chilenos, 20% dos argentinos, 25% dos colombianos e 23% dos peruanos. 

É provável que haja nas respostas um reflexo dos quatro anos do governo Jair Bolsonaro, cuja política externa transformou o Brasil em “pária internacional”. Mas são evidentes também os efeitos das trapalhadas diplomáticas de Lula na reação às guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. O sonho de ser um líder global, mais uma vez manifestado na ONU, leva Lula a se lançar em missões impossíveis diante da projeção do Brasil no mundo, com evidentes limitações na sua influência externa. 

Tampouco na América Latina Lula tem obtido resultados dignos de nota. Sua deferência inexplicável à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela fez fracassar a tentativa de mediar uma saída para a crise desencadeada pela fraude nas eleições de julho. Até a Argentina de Milei, importante parceiro comercial do Brasil e segunda economia do Mercosul, ele tem procurado manter à distância, apesar da integração entre as duas economias. A passagem de Lula por Nova York deixou evidente aquilo que a pesquisa já mostrava: passou o tempo em que Barack Obama chamava Lula de “o cara” e ele despertava a simpatia de todos como liderança global.


sábado, 21 de setembro de 2024

A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: postura de embaixadores brasileiros ao ínício da invasão (março de 2022)

 Agora que o Brasil se dispõe a apresentar, com a China, um "plano de paz" sobre a guerra de agressão da Rússua contra a Ucrânia, totalmente enviesado em favor do agressor, reproduzo abaixo postagem refletindo comentários de embaixadores brasileiros no início da insana guerra: 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Brasil condena invasão russa, mas teme guerra econômica: ex-chanceleres e embaixadores opinam sobre a posição do Itamaraty - Janaína Figueiredo (O Globo)

 Brasil condena invasão russa, mas teme guerra econômica: ex-chanceleres e embaixadores opinam sobre a posição do Itamaraty


BUENOS AIRES 

Depois de ter acompanhado o voto de condenação da Rússia pela invasão da Ucrânia na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em sintonia com a posição dos Estados Unidos e dos países da União Europeia (UE), entre muitos outros, o Brasil . Gera tensão, também, afirmaram fontes diplomáticas, o que alguns têm chamado de politização pelos principais adversários do governo de Vladimir Putin de organismos multilaterais, para acuar ainda mais a Rússia.

Na semana passada, depois de ter proibido a importação de vodca, caviar e diamantes russos e solicitado ao Congresso americano que interrompa o livre comércio com a Rússia, o governo de Joe Biden e seus aliados europeus começaram a articular uma jogada que visa suspender os direitos de voto de Moscou no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Bando Mundial (Bird).

A outra guerra:

O objetivo dos EUA e da União Europeia é cortar todo o acesso da Rússia a fontes de financiamento externo. Em palavras da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, vamos nos assegurar de que a Rússia não possa obter créditos ou qualquer outro tipo de benefícios nestas instituições. O objetivo final, caso um acordo que permita alcançar um cessar fogo seja alcançado nas próximas semanas, seria expulsar a Rússia da ordem econômica internacional. Nas sanções mais duras já aplicadas contra uma potência, o país que é a 11ª economia do mundo já teve muitos de seus bancos suspensos do sistema de transações internacionais Swift e as reservas de seu Banco Central depositadas nos EUA, na Europa e no Japão foram congeladas.

Limitações:

A ofensiva anti-Rússia em organismos internacionais deve avançar em âmbitos como a Organização Mundial de Comércio (OMC), onde os países do G-7 Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Japão e EUA pedirão que seja revogado seu status de nação mais favorecida (MFN, na sigla em inglês). Este estatuto é concedido aos 164 integrantes da OMC, para garantir a igualdade de condições a todos os países-membros cujos governos se comprometem a tratar uns aos outros em pé de igualdade e sem qualquer tipo de discriminação. Dessa forma, eles têm acesso a tarifas mais baixas, menos barreiras comerciais e cotas de importação mais elevadas.

Os EUA, a UE e outros aliados da Ucrânia no conflito estão, com essa atitude, afirmou uma fonte do Itamaraty, minando o funcionamento de organismos essenciais na governança econômica global e o avanço de processos considerados importantes para o Brasil em âmbitos como a OMC, FMI, Bird e G-20, entre outros. Essa ofensiva, ressaltou a fonte, vai trazer graves consequências não somente para Putin, mas para muitos outros países.

Por enquanto, o Brasil não expressou publicamente seus temores pela politização de organismos internacionais. Até agora, a delegação brasileira na ONU expressou questionamentos à dimensão das sanções econômicas anunciadas e, também, ao envio de armas à Ucrânia. Ou seja, houve aval à condenação, mas, também, críticas à frente contra Moscou liderada por EUA e UE.

Ciberguerra:

Ouvidos pelo GLOBO, os ex-chanceleres Celso Amorim e Celso Lafer e os embaixadores Rubens Ricupero e Marcos Azambuja avaliaram as posições adotadas até agora pelo Brasil e pelas partes envolvidas no conflito.

Na visão de Amorim, o ataque da Rússia à Ucrânia é uma ação condenável, além de um erro político. No entanto, se o Brasil quisesse ter alguma participação em esforços pela paz, seria melhor se abster nas votações, como fizeram os demais países do Brics, incluindo a Índia, que é parte do Quarteto, fórum asiático liderado pelos EUA. O ex-chanceler e Azambuja destacaram a necessidade de levar em consideração as preocupações da Rússia por sua segurança.

Já Lafer defendeu uma posição mais incisiva do Brasil, sem abrir espaço para a neutralidade abdicante que ele identifica nas declarações do presidente Jair Bolsonaro. Já Ricupero foi o mais crítico em relação à atuação da missão brasileira na ONU: Em termos concretos, ela equivale a condenar a vítima a ser massacrada.

Conheça as opiniões de Amorim, Lafer, Ricupero e Azambuja

 Celso Amorim: Invasão é condenável, mas em outro momento Brasil teria condições de mediação

"É uma situação muito complexa. A Rússia sempre se preocupou com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que também foi criticada, mesmo condenada, por pensadores americanos. A Ucrânia não era apenas um país da Europa Oriental, era parte da antiga União Soviética e do Império Czarista. Diferentemente de outros países e regiões, tem um componente emocional muito forte para os russos.Mas isso não justifica a guerra, sou contra a ação militar unilateral. Fui embaixador na ONU e prezo especialmente por suas normas. A Carta da ONU foi construída em torno do não recurso à guerra para resolver problemas. Só admite o uso da força quando autorizada pelo Conselho de Segurança ou em legítima defesa. Diferentemente do que pregavam os EUA antes da Guerra do Iraque, não existe legítima defesa preventiva. Não tenho dúvida de que a ação é condenável, além de um erro político.

Como deveria ser a ação do Brasil? Não tenho certeza. Havia duas posições possíveis. A que foi adotada, votar a favor da condenação, mas dando uma explicação de que se é contra as sanções, defender uma solução pacífica, o que, devo admitir, é razoável. Mas, numa outra situação, em que o Brasil estivesse mais ativo internacionalmente, com a mesma justificação você poderia conceber um voto de abstenção. Continuaria condenando, mas considerando que há preocupações de segurança que são legítimas. Se o Brasil, de alguma maneira, quiser participar de algum esforço em favor da paz, é melhor se abster. Se fosse um governo que conversasse com todos, talvez tivesse sugerido uma abstenção. Na situação atual, não poderíamos esperar isso, até porque uma abstenção de Bolsonaro ficaria sob suspeita."

Celso Lafer: Posição deve ser mais incisiva ao condenar guerra de conquista

"A Rússia faz uso da força contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia. Desrespeita o Artigo 2, parágrafo 4 da Carta da ONU e põe em questão um dos princípios básicos do direito internacional: o do respeito à soberania territorial dos Estados. A guerra resultou de uma decisão militar para alcançar fins políticos unilateralmente definidos por Putin: pôr termo à Ucrânia como país independente para alcançar a sua incorporação a uma expressão eslava da Rússia e atender preocupações de segurança. Ela denega aspirações majoritárias da população ucraniana a uma identidade nacional própria. A Assembleia Geral da ONU expressou em resolução a condenação da comunidade internacional à agressão da Rússia.

Brasil votou a favor da resolução. Seguiu a tradição diplomática brasileira em consonância com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do país. O Brasil é um país de escala continental que, em contraste com outros, definiu todas as suas fronteiras por arbitragem e negociações. É o que faz da defesa da integridade territorial e da condenação da guerra de conquista parte integrante do capital diplomático do Brasil. Rui Barbosa realçou que entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. (...) Não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Na sua lição, quando existem normas internacionais, como as da Carta da ONU, pugnar pela observância das normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la. Por isso, creio que a posição brasileira deve ser mais incisiva. Não cabe abrir espaço para a impassibilidade de uma neutralidade abdicante que identifico nas manifestações do presidente da República."

Rubens Ricupero: Criticar entrega de armas é deixar Ucrânia à mercê da Rússia

"Primeiro é preciso saber qual é a posição brasileira, se é a do Bolsonar ou se é a da missão do Brasil na ONU. A segunda questão é, se chegarmos à conclusão de que quem representa o Brasil é a missão, temos de analisar o conteúdo dessa posição. A posição que o governo tem expressado na ONU é oposta à de Bolsonaro. A posição do Brasil é de concordar e aprovar as duas resoluções que condenaram a invasão russa em todos os sentidos. O que se pode dizer dessa posição é que ela rigorosamente é correta. Mas, a partir daí, é preciso indagar sobre as consequências dessa posição. A delegação brasileira concordou em que a Rússia agrediu a Ucrânia sem provocação, atuando contra os princípios da Carta da ONU, ou seja, uma agressão indiscutível. Ao se declarar contrária ao fornecimento de armas, ela mostra uma incoerência. Se não se quiser o envolvimento direto, só há uma maneira, que é fornecer à vítima meios para se defender.

Por isso, eu chamaria a posição brasileira de ineficaz: ela equivale, no fundo, a deixar a Ucrânia à mercê da Rússia. Num caso como este, no qual mais de 140 países reconhecem que há uma agressão injusta, e, por outro lado, não se pode obter uma resolução do Conselho de Segurança porque a Rússia vai vetar, creio que a posição lógica e consequente seria aprovar as sanções e o fornecimento de armas. É a única maneira, embora insatisfatória, para ajudar o país agredido a se defender. Do ponto de vista legalista ao extremo, a posição brasileira é correta, mas é ineficaz. Em termos concretos, ela equivale a condenar a vítima a ser massacrada. No fundo, significa que perante a História estamos lavando as mãos."


Entrevista: 

Marcos Azambuja: O país tem que se equilibrar entre seus princípios e interesses

"O Brasil tem de ter em vista que essa guerra terá uma duração longa na vida internacional. O país deve fazer, e fez, a reafirmação dos seus princípios de convivência pacífica, de respeito à Carta das Nações Unidas, aos seus compromissos com a própria Constituição brasileira. O Brasil precisa dizer, e disse, que nos princípios e nos valores ele é fiel a sua tradição e a sua história. Mas ele também tem de cuidar dos seus interesses, que estão em jogo. Dos cinco países do Brics, China, Índia e África do Sul se abstiveram de votar na Assembleia Geral pela condenação da Rússia. Só o Brasil votou a favor. Minha preocupação é que o Brasil se reserve para ser valioso mais tarde, na procura de soluções.

Brasil deve manter suas posições de princípio e entender as razões que levaram a Rússia a fazer o que fez. A Guerra Fria terminou com uma derrota tão absoluta dos países do então socialismo real que os derrotados não tinham o que negociar. Agora, a Rússia voltou a ser uma grande potência que tem interesses estratégicos, políticos e econômicos. O Brasil é movido por duas forças que, de certa maneira, são contraditórias. Ao se separar dos Brics, mostrou que continua fiel a seus valores. Mas deve se reservar para um processo negociador que virá. Quem vai conduzir isso? Não podemos fazer nada que agrave mais ainda a situação. A Rússia tem de se dar conta que não pode pretender a recriação de um império. E a Ucrânia tem de se dar conta de que a Crimeia não voltará e a região de Donbass vai se separar. Diplomacia é negociação. O que vejo são gestos truculentos. A solução é que haja algum tipo de interlocução. A negociação, essência da diplomacia, é a procura por meios imperfeitos de soluções imperfeitas."


https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-condena-invasao-russa-mas-teme-guerra-economica-ex-chanceleres-embaixadores-opinam-sobre-posicao-do-itamaraty-25430976

domingo, 8 de setembro de 2024

A surpresa ucraniana - Demétrio Magnoli (O Globo)

A surpresa ucraniana 

Demétrio Magnoli

O Globo, 2/09/2024

Começou, à sombra da noite, nas primeiras horas de 6 de agosto. Ninguém sabia — nem as tropas mecanizadas envolvidas na operação, que receberam o aviso no último minuto, nem os Estados Unidos e os aliados europeus. As forças de elite da Ucrânia, cerca de 10 mil soldados, avançaram sobre a província russa de Kursk e, em duas semanas, ocuparam um saliente de mais de mil quilômetros quadrados e 92 povoados, inclusive a cidade de Sudja.

A ofensiva surpreendente foi descrita por analistas em termos que oscilam entre uma genial manobra tática e uma aventura desesperada. A operação tem uma série de objetivos que podem ser rotulados como propagandísticos, militares e diplomáticos.

Propaganda

Desde o fracasso da ofensiva ucraniana do verão de 2023, o conflito sedimentou-se como guerra de atrito ao longo de um extenso front no leste e no sul ucranianos. O atrito de artilharia pesada, com os incessantes bombardeios de mísseis e drones russos sobre cidades da Ucrânia, configurou uma narrativa de inevitabilidade de triunfo russo no horizonte de longo prazo. A ofensiva em Kursk desfigurou a narrativa predominante.

Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, forças militares estrangeiras invadiram território russo. O choque, expresso na evacuação de mais de 100 mil civis, desafia a retórica de Putin. O ditador proibiu o uso da palavra “guerra” na Rússia, substituída pelo eufemismo “operação militar especial”, e, temendo a quebra da coesão social no país, recusa-se até hoje a ordenar uma mobilização geral. A guerra, contudo, chegou a solo russo, expondo a fantasia do Kremlin.

Putin segue manufaturando eufemismos. A invasão ucraniana é descrita como “provocação” ou “atos de terrorismo”. Mas o rei, que ficou nu, foi obrigado a atribuir ao “Ocidente coletivo” a humilhação imposta pela Ucrânia.

Tática militar

São duas as metas militares da ofensiva em Kursk. De um lado, como mínimo, a Ucrânia almeja obrigar a Rússia a desviar suas forças que operam no Donbass para o novo front de Kursk. De outro, como máximo, imagina estabelecer uma zona-tampão dentro da Rússia, que protegeria a região ucraniana de Sumy.

A primeira meta ainda não foi alcançada. A Rússia enviou tropas secundárias para estabilizar o cenário no saliente invadido, sem comprometer suas melhores forças. O Kremlin faz de tudo para não desistir de seu esforço principal, o avanço acelerado na província de Donetsk antes da chegada do inverno.

A segunda meta depende da capacidade ucraniana de implantar linhas de defesa no saliente conquistado. Já existem sinais do estabelecimento de trincheiras e fortificações. A tentativa envolve riscos significativos, expondo as forças ucranianas à retaliação aérea russa. A distância entre manobra tática e aventura desesperada estreita-se com a passagem do tempo.

Desafio diplomático

O presidente ucraniano Zelensky aludiu à ideia de usar o saliente de Kursk como moeda de troca em hipotéticas negociações de paz. É pura especulação, destinada a ocultar uma operação diplomática sofisticada cujo alvo é o governo Biden.

Os Estados Unidos, principal fornecedor de equipamento bélico à Ucrânia, adotam uma política de “administração da guerra”, postergando a entrega de sistemas avançados de artilharia, mísseis antimísseis e aviões de combate. O blefe russo, expresso nas ameaças periódicas de escalada nuclear, definiu a hesitante postura estratégica do governo Biden.

Uma “linha vermelha” imposta por Washington é a proibição do uso de sistemas americanos contra alvos em território russo. O veto foi parcialmente flexibilizado diante da tática russa de usar o território do país como santuário para artilharia de longa distância e bombardeios de mísseis e drones. Hoje Washington permite atingir alvos na Rússia — mas apenas como “contrafogo”.

A invasão do saliente de Kursk, em que foram utilizadas armas americanas, ultrapassou a “linha vermelha” e criou um dilema para Biden. A Ucrânia está dizendo que a ofensiva é parte integral de uma guerra defensiva, algo óbvio para qualquer oficial militar. Como responderá o governo dos Estados Unidos?


terça-feira, 13 de agosto de 2024

Embaixador designado para Taiwan: Um deslize na lua de mel entre Brasil e China - Marcelo Ninio (O GLobo)

 O GLOBO, 13/08/2024

Um deslize na lua de mel entre Brasil e China

Brasília nomeou embaixador de mesmo nível hierárquico do chefe da missão em Pequim para atuar na capital de Taiwan

Por Marcelo Ninio

 — Pequim

O Globo, 13/08/2024 04h30  Atualizado há 5 horas


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A diplomacia é feita de sutilezas e simbolismos. Detalhes que podem parecer insignificantes exigem atenção redobrada, para evitar ruídos indesejados. Uma nomeação recente do Itamaraty tem nuances que passaram quase despercebidos, mas não escaparam de observadores mais argutos da relação Brasil-China, que completa 50 anos esta semana.

Trata-se da escolha do novo representante do Brasil em Taiwan. A ilha de 23 milhões de habitantes funciona de forma independente, mas o governo de Pequim a considera um território rebelde que deve ser reunificado com a China continental. É, sem dúvida, a questão mais sensível para a diplomacia chinesa. Tanto que a condição básica da China para manter relações oficiais com qualquer país é que ele não reconheça Taiwan como nação independente.

Desde que estabeleceu laços diplomáticos com a China em 1974, transferindo a embaixada de Taipé para Pequim, o Brasil segue esse princípio com rigor. Por isso, chamou a atenção a mudança observada num decreto do dia 14 de junho. Ele designa Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos “para exercer a função de Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Taipé”. Santos é “ministro de primeira classe”, o cargo mais elevado da carreira diplomática, também conhecido como “embaixador”.

Até agora, o Itamaraty buscava ocupar a chefia do escritório em Taipé com um profissional de nível hierárquico inferior, para deixar claro que o escritório não tem status de missão diplomática e evitar atritos com Pequim. É o caso de Miguel Magalhães, que voltou no domingo a Brasília após quatro anos no cargo. Embora tenha chefiado a embaixada do Brasil no Iraque, sua graduação é de “ministro de segunda classe”, uma abaixo da máxima.

Outra novidade no decreto é a omissão do consulado do Brasil em Tóquio, ao qual a representação em Taiwan é subordinada. O vínculo costumava aparecer nas nomeações anteriores, evidenciando que Taipé não é uma missão independente. As nuances foram notadas por diplomatas que conhecem bem o tema, causando inquietação entre eles.


sexta-feira, 12 de julho de 2024

Ex-chanceler virtual de Bolsonaro, chefe do chanceler acidental, permanece preso - Paolla Serra (O Globo)

 Operadora de telefonia envia a Moraes localização de aliado de Bolsonaro que tenta comprovar que não fugiu para os EUA

Investigado por elaborar uma suposta minuta golpista, Filipe Martins está preso preventivamente desde fevereiro

Por  — Brasília


A operadora de telefonia Tim encaminhou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a geolocalização de Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mostrando que ele esteve no Paraná e em Brasília, no final de 2022. Martins tenta provar ao magistrado que não viajou a bordo do avião do governo brasileiro, burlando o sistema migratório dos Estados Unidos, nesse mesmo período.

    O documento foi juntado na tarde desta quarta-feira ao inquérito em que Martins é investigado. O ex-assessor de Assuntos Internacionais foi preso preventivamente pela Polícia Federal, em 8 de fevereiro deste ano, durante a deflagração da Operação Tempus Veritatis, que apurava uma suposta organização criminosa que teria atuado para manter Bolsonaro no poder por meio de uma tentativa de golpe Estado e abolição do Estado Democrático de Direito. 

    A trama, segundo o inquérito, teria envolvido a entrega da minuta e a preparação para realizar um golpe de Estado “com apoio de militares com conhecimentos e táticas de forças especiais em ambiente politicamente sensível".

    De acordo com o relato da delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Martins elaborou uma suposta minuta golpista após o resultado das eleições em 2022 que previa a prisão de Moraes e uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De acordo com informações levantadas pela PF, o ex-assessor esteve no Alvorada nos dias 18 de novembro e 16, 20 e 21 de dezembro de 2022.


    quinta-feira, 4 de julho de 2024

    A volta do Ministério do Vai Dar M... - Paulo Celso Pereira (O Globo)

    A volta do Ministério do Vai Dar M...

    Episódios nebulosos têm provocado ‘déjà- vu’ em quem acompanhou de perto escândalos das últimas gestões petistas

    Paulo Celso Pereira

    O Globo, 03/07/2024 

    A ideia foi imortalizada no primeiro governo Lula, por sua pertinência e autoria: deveria ser criado um Ministério do “Vai dar Merda”. A proposta vinha de Chico Buarque, entusiasta da chegada do PT ao poder, temeroso do desgaste que os tropeços poderiam causar ao projeto de esquerda. Passados 18 meses de seu terceiro mandato, Lula deveria pensar seriamente na sugestão.

    Nos últimos meses, uma série de episódios nebulosos tem provocado déjà-vu em quem acompanhou de perto os escândalos das últimas gestões petistas. Primeiro, foram as acusações contra o ministro Juscelino Filho, indiciado por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Trata-se de um clássico do patrimonialismo nacional: quando era deputado, ele destinou emendas para construir estradas no Maranhão que beneficiaram propriedades suas e de sua família.

    No celular do empreiteiro responsável pela obra, a Polícia Federal identificou uma troca de mensagens em que Juscelino pede ao empresário que realize depósitos para terceiros, e este responde com os comprovantes dos repasses. Numa conversa paralela, o empreiteiro diz que o valor seria descontado da obra de pavimentação. Apesar dos indícios, Lula optou por não demitir o aliado.

    Para auxiliares, Lula espera que Juscelino tome a iniciativa de deixar o governo

    O caso de Juscelino é apenas o mais avançado. Em meio à tragédia do Rio Grande do Sul, o governo decidiu importar 263 mil toneladas de arroz. O leilão foi vencido por empresas que faziam de tudo, menos trabalhar com o cereal — eram de locação de veículos, produção de queijos e polpas de fruta. As vendas seriam parcialmente intermediadas por companhias de um ex-assessor do secretário de Política Agrícola do governo federal. Foi preciso o escândalo dominar as redes sociais para o Planalto cancelar a compra.

    Não foi a única movimentação nebulosa envolvendo a tragédia gaúcha. No último domingo, o colunista do GLOBO Lauro Jardim revelou que um grão-petista, o ex-presidente da Câmara Marco Maia, tem visitado prefeituras sugerindo a contratação de certas empresas para tocar obras emergenciais. Ele integra a equipe de Paulo Pimenta na Secretaria de Reconstrução do RS. Maia foi alvo de delações na Operação Lava-Jato, e seu processo foi arquivado por falta de provas.

    O grupo dos reabilitados da Lava-Jato que voltaram a flanar em Brasília é grande. Os irmãos Joesley e Wesley Batista, que de investigados se converteram em bombásticos delatores, estão com tudo. Semanas atrás, chamaram a atenção por um lance intrigante. Arremataram, por R$ 4,7 bilhões, 12 usinas térmicas da Eletrobras na região amazônica. Elas estavam à venda havia um ano, mas não despertavam interesse de nenhum grupo. O motivo: a principal cliente delas é a distribuidora Amazonas Energia, que está inadimplente, com dívida acumulada de R$ 9 bilhões. O mercado só compreendeu a decisão dois dias depois, quando o governo editou uma Medida Provisória para socorrer a Amazonas Energia, cobrindo os pagamentos que ela deveria fazer às usinas recém-compradas pelos Batistas. Os custos da operação serão pagos por todos os consumidores.

    Até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência, que deveria trabalhar para melhorar a imagem do governo, passou a desgastá-la. Na semana passada, o Tribunal de Contas da União identificou indícios de “graves irregularidades” na licitação que contratou quatro empresas de assessoria e gestão de redes sociais. O resultado do pregão, com gastos de até R$ 197,7 milhões, era conhecido antes da abertura dos envelopes.

    Os seguidos escândalos que atingiram os governos Lula e Dilma foram o principal motor do antipetismo que viceja no país. Ainda que Lula evite o tema, passar a impressão de que há preocupação com o combate à corrupção é importante para um pedaço do eleitorado que o apoiou em 2022 e foi determinante para derrotar Bolsonaro. A onda recente de casos heterodoxos mostra que, se nada for feito, o governo terá apostado mais na sorte que na sensatez para não ser atingido por um grave escândalo. Depois, não adianta culpar o juiz.


    terça-feira, 25 de junho de 2024

    Após voto em Lula, Joaquim Barbosa critica presidente 'omisso' e 'conservador à la carte' - Rodrigo Castro (O Globo)

     Lauro Jardim

    Após voto em Lula, Joaquim Barbosa critica presidente 'omisso' e 'conservador à la carte'

    Por Rodrigo Castro

    O Globo, 24/06/2024 

    Discreto, Joaquim Barbosa voltou às redes sociais com críticas a Lula, seu candidato nas últimas eleições. Em seu perfil no “X” – sem publicações desde 1º de maio – o ex-presidente do STF e algoz do PT no mensalão atacou o Congresso (“omisso, retrógrado, um horror”) e não poupou o presidente, a quem chamou de “omisso em muitas questões, em cima do muro em outras, conservador ‘à la carte’", quando o assunto são "questões de sociedade".

    Barbosa afirmou que Lula “é incapaz de liderar o país em várias áreas em que poderíamos avançar significativamente se o natural poder de liderança e persuasão conferido ao ocupante da cadeira presidencial fosse inteligentemente usado para fazer avançar certas pautas que nos colocam na ‘vanguarda do obscurantismo’”.

    A manifestação acontece em meio à turbulência na articulação política do governo e suas sucessivas derrotas no Congresso. Também, claro, durante discussões polarizadas, como a do PL Antiaborto Legal – sobre a qual Lula se manifestou somente após pesquisas de opinião.

    O último post explícito de Barbosa sobre Lula havia sido após sua vitória em 2022. Na ocasião, ao parabenizar o petista, disse que “venceram a Democracia, a civilidade, a reverência às normas consensualmente estabelecidas para reger o bom funcionamento da sociedade”.

    As palavras usadas agora ainda contrastam com uma entrevista de Barbosa ao “Valor”, em maio de 2023, na qual afirmou que Lula foi “ousado” quando o nomeou para o STF. O ex-ministro referia-se à expectativa para que o presidente nomeasse mais um negro à Corte, o que não ocorreu.

    Na mesma entrevista, elogiou que Lula vinha colocando em prática, a chamada “diplomacia presidencial”. 

    Mas não para por aí: questionado sobre as dificuldades de Lula com o Legislativo (na época pouco mais de quatro meses da posse), Barbosa respondeu que “presidencialismo é isso mesmo, um sistema de múltiplos terrenos de negociação” e emendou que, embora minoritário, Lula poderia governar. A receita? Eis suas palavras:

    “Basta que o presidente exerça a liderança e seus negociadores tenham boa interlocução”.

    Daquelas frases que envelhecem mal...