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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lincoln Gordon pode ter sido o embaixador do golpe, mas para isso teve a ajuda do coronel Vernon Walters - Elio Gaspari (Globo, FSP)

O americano esteve em todas

Elio Gaspari


O Globo, domingo, 31 de março de 2024


Na manhã de hoje, há 60 anos, o embaixador americano Lincoln Gordon chegou à sua sala por volta das 9h15m. Ele sabia que o golpe estava por dias, mas não sabia que o general Olímpio Mourão Filho, comandante da Região Militar com sede em Juiz de Fora (MG), havia resolvido se rebelar. Quem o avisou que a coisa havia começado foi seu adido militar, o coronel Vernon Walters, um homem corpulento, amigo de militares brasileiros desde a Segunda Guerra Mundial.

Walters ralou durante esse dia. No fim da tarde achava-se que o general Castello Branco, seu colega de barraca na Itália e chefe do Estado-Maior do Exército, estava encurralado no Ministério da Guerra. (Falso, ele estava num aparelho na Zona Sul.) Um marechal avisou-o de que uma tropa legalista da Vila Militar marchava para Minas Gerais. Às 19h05m seu prognóstico era sombrio: “A rebelião parece estar perdendo ímpeto.”

Naqueles dias o Rio de Janeiro penava um racionamento de energia e bairros inteiros ficavam sem luz à noite. Perto das 23h, o marechal Lima Brayner, chefe do Estado-Maior da Força Expedicionária Brasileira durante a guerra, ouviu pancadas na entrada de serviço do seu apartamento de Copacabana, abriu a portinhola e viu, iluminado por uma vela, o coronel Walters. Brayner disse-lhe: “O Kruel acaba de lançar um manifesto.” “Graças a Deus”, respondeu Walters, um católico devoto.

A adesão do general Amaury Kruel, comandante da guarnição de São Paulo, havia decidido a parada. O marechal Cordeiro de Farias, patriarca de todas as sublevações militares do período resumiria a questão: “O Exército foi dormir janguista a acordou revolucionário.”

No dia 2 de abril, Walters passou pela casa de Castello Branco, em Ipanema. No dia 4, de novo, e também na do ex-presidente, marechal Eurico Dutra (1946-1950).

Eleito presidente, no primeiro dia de serviço, Castello convidou-o para um almoço no Palácio do Planalto. Walters presenteou-o com um abacaxi.

O coronel Walters entrou na mitologia das intervenções militares americanas como se, com seus seu pés enormes, esmagasse governos. Teria ajudado a derrubar o rei Farouk no Egito (1954), o premier Mossadegh no Irã (1953), os presidentes Manuel Prado no Peru e Arturo Frondizi na Argentina (1962), noves fora Jango. É um exagero.

Na vida real ele foi mais que isso. Onde houve encrenca ou mistério, lá está ele. Conversas secretas com chineses e vietnamitas? Foi Walters quem bateu à porta de embaixada chinesa em Paris com um recado do presidente americano Richard Nixon. Era em sua casa que Henry Kissinger se escondia para negociar com os vietnamitas do Norte. Escândalo do Watergate, que derrubou o presidente dos Estados Unidos? Ele era o vice-diretor da Central Intelligence Agency em 1972, quando a Casa Branca concebeu um estratagema para congelar as investigações do FBI. Walters e o diretor da CIA, Richard Helms, barraram a manobra.

Walters alistou-se no Exército para derrotar o nazismo e continuou na carreira para derrotar o comunismo. Em 1989, ele era embaixador na Alemanha e de sua janela viu o fim do Muro de Berlim. Morreu em 2002, aos 85 anos.

O homem que falava oito línguas

Walters era um interlocutor direto, dotado de um humor sarcástico. Costumava dizer que falava outras sete línguas (francês, italiano, espanhol, português, alemão, russo e holandês) mas não pensava em nenhuma. Seu português tinha pouco sotaque, como o de Roberto Campos.

Quando Fidel Castro lhe disse que estudou com padres, cortou:

— Yo también, pero me quedé fidel.

Quando era acusado de saber tudo sobre o Brasil, respondia.

— Se eu fosse isso tudo, não teria comprado um apartamento no Panorama Palace Hotel. (Lançado no Rio nos anos 1960, o Panorama foi um mico e hoje é chamado de Favela Hub.)

Walters alistou-se no Exército em 1941 antes mesmo que os Estados Unidos entrassem na guerra. Seu pai teve algum dinheiro, mas perdeu-o na Depressão dos anos 1930. Tinha talento para idiomas e lapidou-o na adolescência, como mensageiro de uma companhia de seguros da Babel de Nova York. Achou que com isso teria uma boa posição mas, de saída, virou soldado raso.

Um ano depois era tenente, na área de informações, e um coronel mandou que aprendesse português. Em 1943 foi designado para acompanhar oficiais brasileiros nos Estados Unidos e, mais tarde, na Itália. Daí em diante foi interprete das conversas de presidentes americanos com brasileiros, de Dutra a Médici, de Harry Truman a Richard Nixon. Teve dois padrinhos, o presidente Eisenhower e Averell Harriman, milionário, diplomata, ex-governador de Nova York grão-duque do partido democrata.

Depois de ter vivido alguns anos no Rio (e virar flamenguista), era adido militar em Roma em 1962, quando o embaixador Lincoln Gordon pediu ao presidente Kennedy que o removesse para o Rio, reforçando o dispositivo militar da embaixada. Walters moveu céus e terra para não sair de Roma, pensou em pedir passagem para a reserva. Em outubro o coronel desceu no Rio e teve 13 generais para recebê-lo no aeroporto.

Na noite de 13 de março de 1964 ele viu o discurso de João Goulart na casa do general Castello Branco. (O alto da testa de Castello batia abaixo da base do queixo de Walters, que o descreveria assim: “Baixo, robusto. O pescoço muito curto e a grande cabeça dão a impressão de que é corcunda”.)

Walters deixou o Brasil em 1967 como general. Uma semana depois da edição do AI-5, quando havia pressão para que os EUA se afastassem da ditadura, ele escreveu ao secretário de Estado Henry Kissinger defendendo a aliança:

“Se o Brasil se perder, não será outra Cuba. Será outra China”.

Walters foi adido militar em Paris, vice-diretor da CIA, embaixador nas Nações Unidas e em Berlim. Lá, pelo seu jeitão loquaz, o secretário de Estado James Baker evitava-o.

Washington manda, e Walters cumpre

Em 1966 a Polícia Federal prendeu dois americanos com contrabando de minérios na Amazônia. Um poderoso senador foi ao secretário de Defesa e pediu por eles. Walters recebeu o seguinte telegrama:

“Apreciamos seus francos comentários se há algo que possa ser feito nesse caso através de seus bons contatos com seus interlocutores militares brasileiros.”

Walters foi a Castello Branco dizendo-se envergonhado por encaminhar a gestão. Dias depois, as celas dos americanos amanheceram com as portas abertas e eles fugiram.

Missão impossível, Resgatar Kissinger

Quando: 1970.

Onde: Paris

O general Walters está no seu gabinete de adido militar na França e recebe uma mensagem de Washington informando que o avião que conduz do secretário de Estado Henry Kissinger para mais um encontro secreto com vietnamitas está sobre o Atlântico e será obrigado a descer no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha.

Missão: Trazer Kissinger, incógnito, a Paris.

Walters desceu, caminhou até o palácio presidencial e pediu para ser recebido imediatamente pelo presidente francês Georges Pompidou. Expôs o seu caso: precisava de um avião para buscar o secretário.

Quando Pompidou perguntou-lhe o que Kissinger vinha fazer em Paris, respondeu que a viagem envolvia uma senhora.

Pompidou emprestou-lhe um jato militar, ele desceu em Frankfurt, atravessou a pista, mandou apagar os refletores e resgatou Kissinger. Seguindo a rotina, levou-o para seu apartamento, onde a empregada jamais soube quem era o hóspede.

Serviço:

Walters escreveu dois livros de memórias, o primeiro, “Missões silenciosas”, muito bom, tem edição em português.

 

terça-feira, 26 de março de 2024

Acabou o “milagre” chinês? Assim é, se lhe parece… - Carlos Góes (O Globo)

 Não há “milagre” que dure para sempre; ou melhor, o ritmo do crescimento econômico é sempre mais alto em economias que saem de muito baixo (mas com politicas corretas); depois fica mais difícil. Mas tem muito país pobre que permanece estagnado na pobreza, alguns até recuam, pois são ditaduras predatórias. Acontece até com quem era rico. Venezuela, por exemplo!

Carlos Góes - O fim do milagre chinês?

O Globo, 23/03/2024

Talvez você tenha lido alguma notícia sobre a crise migratória na fronteira dos Estados Unidos com o México. Mas eu duvido que o leitor consiga adivinhar a nacionalidade que teve mais crescimento no número de detenções migratórias: os chineses.

Ao fim de 2023, o número de imigrantes chineses detidos na fronteira era quase 600% maior do que no mesmo período do ano anterior. Mas como há um crescimento percentual tão forte no número de pessoas que estão saindo de um país que está a 11 mil quilômetros para imigrar por terra? Eu, que moro nesta fronteira, também me fiz essa pergunta.

Quase todos eles, ao cruzar, pedem asilo político — e vão ter seu caso julgado pelas autoridades migratórias. Mas os chineses, vindo de uma ditadura, têm uma probabilidade muito maior de sucesso em seus casos. Em 2021, 17% dos pedidos de asilo de mexicanos foram aceitos. Entre os salvadorenhos, o percentual sobe para 28%. Entre chineses a taxa foi de 81%.

A probabilidade de sucesso torna a arriscada viagem um pouco mais atrativa. Para muitos deles, ela começa no Equador (país que não exige visto para chineses) e segue por terra cruzando Colômbia, América Central, até a fronteira Norte do México.

Existem fatores políticos e tecnológicos que podem ajudar a explicar esse incremento no fluxo.

Há um aumento na repressão política. Políticas recentes incluem interferências sem precedentes em universidades, prisão de advogados de defesa e repressão a protestos em províncias como Hong Kong. Ao mesmo tempo, à medida que as tensões entre EUA e China têm aumentado nos últimos anos, o acesso a vistos de turismo para chineses tem se tornado mais limitado.

Na esfera tecnológica, a conhecida censura do governo hoje tem implementação mais difícil. Com o uso de softwares de redirecionamento de rede, muitos chineses têm acesso à mídia social ocidental. Entre aqueles que chegaram nos Estados Unidos, muitos relataram ter aprendido sobre o trajeto da viagem no Instagram e no TikTok (ou seus equivalentes chineses).

Igualmente importante, há muitos fatores econômicos que ajudam a explicar esse tipo de fluxo migratório. Durante décadas, nos acostumamos a ver a economia chinesa crescendo a 10%. Mas a partir da década passada, a trajetória começou a arrefecer, com taxas rondando os 6%. Recentemente, o crescimento chegou a ficar abaixo dos 3% e o FMI prevê que nos próximos anos deve ficar entre 3-4%.

Como consequência, as projeções futuras de quando a economia chinesa ultrapassará a americana têm sido revisadas para o futuro. Por exemplo, em 2021 o FMI previa que a economia chinesa seria, no ano passado, 76% do tamanho da economia americana. Na verdade, com o crescimento mais baixo, ela chegou em 2023 com 65% da economia americana.

A previsão mais recente é que nem mesmo em 2028 vá se alcançar os 72% citados anteriormente. Alguns institutos privados já preveem que a economia chinesa nunca vá alcançar o tamanho da economia americana!

Em parte, a explicação é demográfica. A população americana continua expandindo, por causa do fluxo constante de imigrantes. Já a população chinesa tem envelhecido e estagnado em tamanho, muito em função da política de filho único ali existente.

Mas também há uma desaceleração no crescimento da produtividade do trabalho na China.

Isso não deveria ser uma surpresa tão grande. Um dos mais influentes economistas do século passado, Robert Solow, ganhou o Nobel principalmente por uma teoria do crescimento que previa que países mais pobres (com menos capital acumulado) tenderiam a crescer mais rápido do que aqueles com muito capital.

O Brasil também passou por seu milagre do crescimento. Hoje a China tem uma renda per capita próxima ao brasileiro. A dúvida que fica é se, como nós, eles também vão cair na “armadilha da renda média” — quando um país sai da pobreza e em seguida para de crescer. Num país em que tem taxas de poupança muito altas, infraestrutura bem melhor que a nossa e excesso de estoque de imóveis, é difícil pensar em avenidas tradicionais para estimular o crescimento.

E isso se reflete do outro lado do mundo. Muitos dos jovens chineses que cruzaram a fronteira falaram a repórteres que saíram da China porque hoje está muito mais difícil encontrar emprego. Para eles, chegou ao fim o milagre chinês. A pergunta mais importante é: e para os chineses, muito mais numerosos, que ficaram em casa? O que o futuro reserva?

domingo, 24 de março de 2024

Dois diplomatas americanos tiveram papel relevante em 1964: Thomas Mann e Lincoln Gordon - Elio Gaspari (FSP, O Globo)

Antes de transcrever o artigo abaixo, de Elio Gaspari, agradecendo a Maurício David a gentileza da transcrição, permito-me indicar que convivi com Lincoln Gordon, durante minha estada na embaixada em Washington (1999-2003), incentivando-o a publicar um livro sobre o Brasil. Quando saiu, providenciei uma edição brasileira, mas cobrando um capítulo extra sobre o golpe de 1964. Ele o fez. Está aqui a ficha do livro, do qual fiz primeiro uma resenha da edição americana, depois a da edição brasileira: 

788. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 3 mai. 2001, 5 p. Resenha do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001). Publicado na Revista Eletrônica de História do Brasil, Dep. de História e Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 4, n. 2, jul/dez. 2000.  Divulgado no blog Diplomatizzando (17/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/lincoln-gordon-o-embaixador-do-golpe.html).


894. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 22 abr. 2002, 8 p. Apresentação à edição brasileira do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p.; ISBN 0-8157-0032-6); A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo (São Paulo: Editora Senac, 2002). Divulgado no blog Diplomatizzando (17/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/lincoln-gordon-o-embaixador-do-golpe.html). Relação de Publicados n. 384. 


 Duas dicas de leitura : "Lincoln Gordon", de Bruce Smith e "Thomas C. Mann", de Thomas Allcock (ambos podem ser encomendados pela internet, via a Amazon Books)

Via Maurício David: 

Elio Gaspari ( O Globo e Folha de São Paulo, domingo 24 de março de 2004)

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada

 

Dois diplomatas americanos tiveram papel relevante em 1964 

Thomas Mann foi um conservador resolvido e Lincoln Gordon, um liberal atormentado 

Os 60 anos da deposição do presidente João Goulart são um bom pretexto para lembrar de dois diplomatas americanos que tiveram papel relevante naqueles dias.

Um é Lincoln Gordon, o professor de Harvard que o presidente John Kennedy mandou para o Brasil em 1961 como seu embaixador. Falava muito, sempre. Adquiriu tamanha proeminência que o jornalista Otto Lara Resende propôs: "Chega de intermediários, Gordon para presidente".

O outro é Thomas C. Mann, ex-embaixador no México e secretário de Estado adjunto a partir de dezembro de 1963. Esteve em todas: na armação do golpe que derrubou o presidente da Guatemala em 1954, foi uma das molas do desembarque de tropas americanas na República Dominicana, em 1965, e deixou digitais nos golpes do Brasil e da Bolívia. Atribui-se a ele o que seria a doutrina Mann de apoio a governos militares na América Latina. Falava pouco.

Mann era um texano conservador e resolvido. Os liberais detestavam-no e a recíproca era verdadeira. Gordon era um liberal atormentado e os dias de 1964 fizeram dele uma figura trágica. Morreu em 2009, aos 96 anos, repetindo que, ao colaborar com a queda de Jango, não preconizava a ditadura. De fato, condenou-a, mas ninguém o ouvia.

Na sua cerimônia fúnebre, a filha Anne lembrou: "Apesar de ter sido um democrata progressista que apoiou o New Deal de Franklin Roosevelt, (....) na minha opinião seu antagonismo diante dos movimentos reformistas de esquerda foi imediatista e acabou prejudicando o povo da região".

Gordon, o liberal trágico

Gordon saiu da cepa de liberais da Costa Leste dos Estados Unidos. Seu nome completo era Abraham Lincoln Gordon, marca da origem judaica da família de imigrantes russos. Aluno brilhante de Harvard, ganhou bolsas para temporadas na Europa. Em 1941, com a entrada dos Estados Unidos na guerra, colaborou na adoção de um novo veículo militar, o jipe.

Terminada a guerra, Gordon esteve no coração do Plano Marshall, que ajudaria a recuperação econômica da Europa. Era o maior time de craques que a elite americana produziu. Todos bem-educados, autoconfiantes e liberais.

Em 1961, eles voltaram ao poder com o presidente John Kennedy, e Gordon ganhou embaixada no Brasil. Com a memória do Plano Marshall, ele ajudou a conceber a Aliança para o Progresso, um programa de ajuda a reformas sociais na América Latina. Elas seriam uma resposta ao fascínio gerado pela revolução cubana do guerrilheiro Fidel Castro.

Ia tudo muito bem, até que Gordon passou a desconfiar do presidente João Goulart. Temia que Jango marchasse para a esquerda e para um golpe.

No dia 30 de julho de 1962, quando o presidente Kennedy começou a operar o grampo das conversas em sua sala de trabalho, Gordon foi a primeira vítima. Pediu que fosse reforçada sua equipe militar e recomendou que se jogassem alguns milhões de dólares para influenciar as eleições brasileiras.

Nessa conversa de meia hora, pela primeira vez, falou-se na deposição de Jango. Ela veio de Richard Goodwin, jovem assessor de Kennedy: "É bem provável que tenhamos de pedir a eles [os militares brasileiros] que tomem o poder lá pelo fim do ano".

O tema não prosperou, mas Gordon alarmava-se com Jango. Em agosto de 1963, Thomas Hughes, o diretor de pesquisas do Departamento de Estado, condenou seu alarmismo, sustentando que Goulart era um reformista.

Em outubro, o Brasil caiu de novo na roda e Kennedy levantou a possibilidade de uma ação direta dos Estados Unidos, mas Gordon a descartou. Contudo, dias depois, o embaixador pediu um plano de contingência militar para o Brasil. Ele resultaria mais tarde na Operação Brother Sam. Incluiu o porta-aviões Forrestal e petroleiros, sem tropa de desembarque. Tratava-se de "mostrar a bandeira", mas não foi necessário, e o Forrestal voltou para o alto mar no dia 3 de abril. 

Jango, seu dispositivo militar e suas bases sindicais ruíram como um castelo de cartas.

Gordon sustentou por décadas que chegou à embaixada pouco depois das 9h do dia 31 de março, sem saber do levante do general Mourão Filho. Vá lá.

Quatro dias antes, ele pediu que a frota fosse colocada de prontidão porque Jango radicalizava e, "se ele for bem-sucedido, é mais do que provável que o Brasil caia sob pleno controle comunista".

Um telegrama da CIA, do dia 30 de março, avisou que o golpe viria nos próximos dias. À noite, o secretário de Estado, Dean Rusk, avisou ao presidente Lyndon Johnson, que estava no Texas:

"Tive uma reunião com Tom Mann e um grupo daqui, incluindo a CIA (Agência Central de Inteligência), sobre a situação brasileira. A crise vai chegar ao auge nos próximos um ou dois dias, talvez até mesmo de hoje para amanhã."

Pouco depois, Johnson avisou ao secretário de imprensa que deveriam voltar para Washington.

Thomas Mann, o conservador resolvido

Tom Mann, um texano de Laredo, tinha 52 anos. Era o embaixador no México no dia 22 de novembro de 1963, quando o presidente John Kennedy foi assassinado e assumiu o vice Lyndon Johnson, também texano e seu amigo.

Johnson resolveu colocá-lo na chefia da diplomacia americana para a América Latina. Essa escolha marcou o primeiro racha com a equipe deixada por Kennedy. Tentaram barrá-lo, em vão.

Quando os militares brasileiros se rebelaram, o governo de Johnson abriu a pasta e seguiu o roteiro pedido por Gordon e deixado por Kennedy.

Mann fez isso com fé. Em março ele já havia reunido os embaixadores americanos da região, dizendo-lhes que deviam parar de maltratar os militares, pois as prioridades da Casa Branca deviam ser a defesa do patrimônio das empresas americanas e o combate ao comunismo. Mann já havia dito a Johnson que Jango era "um irresponsável".

Às 11h46 do dia 31 de março, a pouca tropa do general Mourão Filho continuava no quartel e ele se preparava para almoçar e dormir a sesta. Em Washington, Dean Rusk discutia com Mann o apoio americano e a formação de uma equipe para trabalhar num apoio de emergência ao Brasil depois do golpe.

Com Jango deposto, Mann ligou para Johnson: "Espero que o senhor esteja tão feliz como eu a respeito do Brasil".

"Estou", respondeu o presidente. "Eu acho que foi a coisa mais importante que aconteceu no hemisfério em três anos", acrescentou Mann.

Em tempo: Johnson nunca acreditou que Lee Oswald tivesse sido o assassino solitário de Kennedy. Em pelo menos duas ocasiões, disse que "ele tentou pegar Fidel e Fidel pegou-o".

Em novembro de 1963, Mann era o embaixador no México, por onde Oswald havia passado, tentando conseguir um visto para Havana. Ele acreditava na conexão cubana e incentivou a investigação, até que o Departamento de Estado disse-lhe que abandonasse o caso: "Foi a experiência mais estranha da minha vida", disse a um senador que era grande amigo de Johnson, havia sido membro da comissão que investigara o crime e também não acreditava no atirador solitário.

Serviço: Estão na rede, em inglês, dois livros. Um, rico, com a vida de Gordon, e outro sobre um aspecto lateral de Mann. Um é "Lincoln Gordon", de Bruce Smith, e o outro é "Thomas C. Mann", de Thomas Allcock.


segunda-feira, 18 de março de 2024

Venezuelanos lideram ranking global de asilados - Janaina Figueiredo O Globo

Trata-se da maior proporção de refugiados do mundo. 

Mas, como disse Lula, tudo é relativo, e depende da narrativa...


Venezuelanos lideram ranking global de asilados


Janaina Figueiredo - BUENOS AIRES

O Globo, 18 de março de 2024

 

Estima-se que 7,7 milhões de cidadãos saíram do país nos últimos anos, provocando o maior deslocamento forçado do mundo; Brasil é a terceira nação que mais recebe migrantes na região, com 128.551 refugiados, e é visto como exemplo.

 

Entre meados de 2018 e meados de 2023, dados da Agência da ONU para os Refugiados, a Acnur, indicam que 1,18 milhão de venezuelanos solicitaram asilo em outros países, superando amplamente os 324.529 afegãos, 319.170 cubanos, 217.740 nicaraguenses, 223.834 iraquianos e 160.209 sírios. Somente no ano passado, 161.700 venezuelanos pediram asilo em algum país, um crescimento de 51% em relação aos 106.900 do ano anterior. A Venezuela não está em guerra, seu governo se diz democrático e nega ter cometido ou continuar cometendo violações dos direitos políticos e humanos. Porém, 7,7 milhões de venezuelanos abandonaram sua terra natal nos últimos anos, e muitos deles recorreram a um pedido de asilo para contar com proteção internacional.

 

PROTEÇÃO INTERNACIONAL

O tema é tratado no filme Simón, lançado recentemente na plataforma Netflix e baseado na história real de um estudante venezuelano que esteve preso e foi torturado em 2014, após participar de protestos contra o governo de Nicolás Maduro. Depois de ser liberado, o personagem principal foge para os Estados Unidos, onde lida com o dilema de pedir asilo ou programar um retorno a seu país, onde ficaram vários companheiros de luta.

O direito ao asilo foi estabelecido pela Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra, aprovada em 1951. O texto estabelece que o refugiado é "toda pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar".

Na América Latina, a Convenção foi reforçada em 1984 pela Declaração de Cartagena, que amplia o significado internacional de refugiado. Há 40 anos, foram incluídas na definição pessoas que fugiram de seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violações em massa dos direitos humanos ou outras circunstâncias perturbadoras.

- Não estamos em guerra, mas é como se uma bomba tivesse destruído nosso país. Na Venezuela as pessoas morrem por desnutrição, falta de medicamentos ou de recursos para pagar tratamentos. Os jovens vão embora e ficam os mais velhos e as crianças conta a advogada e defensora dos direitos humanos Lublanc Pietro, diretora da Fundação Refugiados Unidos.

 

PAÍS DESTRUÍDO

Há nove anos, Lublanc migrou para a Colômbia, onde ajuda outros compatriotas a se integrarem e conseguirem a documentação necessária para começarem uma nova vida. Alguns pedem asilo, outros, como ela, preferem uma brecha na legislação local e tramitam um documento chamado Proteção Temporária, que tem vigência de dez anos e permite que as pessoas tenham um trabalho formal. Isso porque, no país que mais recebe venezuelanos na América Latina, refugiados não podem ser contratados.

 

- Saí da Venezuela porque sou diabética e não conseguia medicamentos. Há um ano, meu irmão morreu por negligência médica num hospital público conta a advogada, que lamenta não poder solicitar refúgio, já que a Proteção Temporária não garante proteção internacional e ela poderia, eventualmente, ser deportada.

- Muitos venezuelanos, apesar de sentirem pânico pelo que viveram e terem decidido não voltar para a Venezuela, não pedem asilo aqui pois não conseguem trabalhar. Nossa luta é melhorar as condições para refugiados.

 

7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos cinco anos. Número supera o de refugiados de países em guerra.

 

Segundo uma fonte da Acnur, a proteção temporária, considerada complementar, "é eficiente em contextos de deslocamentos em grande escala". No primeiro semestre de 2023, quase meio milhão de ucranianos receberam proteção temporária, por exemplo.

O Brasil, que hoje ocupa o terceiro lugar no ranking de países para onde emigram os venezuelanos - superado só por Colômbia e Peru - , é considerado, diz a advogada, um exemplo a seguir em matéria de acolhida a refugiados. Sua opinião é compartilhada por William Clavijo, presidente da ONG Venezuela Global, com sede no Rio, que promove a integração de migrantes.

 

Entre janeiro de 2017 e o mesmo mês deste ano, 1.044.293 venezuelanos entraram no Brasil, dos quais 548.579 permaneceram no país, de acordo com dados da Operação Acolhida, implementada em 2018 pelo governo federal, em parceria com ONGs locais e internacionais, entre elas a Acnur. Do total de venezuelanos que ficaram no Brasil, 128.551 foram reconhecidos como refugiados.

 

- Sofremos a maior crise de deslocamento forçado do mundo, isso é inegável. Alguns especialistas calculam que o número de venezuelanos que saíram do país nos últimos anos já chega a quase 10 milhões - aponta Clavijo, presidente da ONG e que mora há vários anos no Rio. Muitos países se negam a criar mecanismos para regularizar a situação dessas pessoas. Mas o Brasil é um exemplo. O que faltam são políticas de apoio à integração social dessas pessoas.

 

SÓ ASILO NÃO BASTA

Quando um venezuelano solicita asilo no Brasil seu pedido é analisado pela Comissão Nacional para os Refugiados (Conare). ONGs estimam que 98% dos cidadãos que residem no Brasil estão nessa situação, sejam com residência aprovada ou status de refugiado. O problema, insiste o presidente da Venezuela Global, "é a vulnerabilidade dessas pessoas".

 

- Muitos passam fome, e há discriminação, sobretudo contra mulheres e negros.

 

Para o jovem venezuelano, que há anos promove ações para ajudar compatriotas no Rio e em outros estados, "é preciso que o mundo entenda que a situação na Venezuela não melhorou, e que por isso as pessoas não voltam".

 

- Não é suficiente estabilizar a economia, as pessoas querem poder exercer direitos políticos e ter liberdade para opinar e pensar. Existe muito temor - assegura Clavijo.

 

O país terá eleições em julho, mas a candidata favorita para enfrentar o presidente Nicolás Maduro que anunciou oficialmente sua candidatura no sábado - , é Maria Corina Machado, política conservadora que aparece à frente nas pesquisas e foi eleita de forma avassaladora nas primárias opositoras. Ela, no entanto, foi inabilitada e não poderá disputar o pleito.

 

 

domingo, 10 de março de 2024

Presidente do Chile condena violações dos DH e da democracia na Venezuela - O Globo

POR QUE LULA NÃO É BORIC!

Na  contramão de Lula, presidente do Chile volta a denunciar violações dos  direitos humanos na Venezuela: 'é um regime autoritário'

Gabriel  Boric diz que postura de seu país é 'coerente', e afirma que busca  colaborar para que 'um rumo democrático' seja recuperado em Caracas

O Globo, 09/03/2024

Poucos dias depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter expressado confiança em que a Venezuela terá eleições presidenciais democráticas este ano e, na mesma fala, ter afirmado que a oposição ao governo de Nicolás Maduro deveria deixar de "chorar", o presidente do Chile, Gabriel Boric, reiterou sua denúncia sobre violações dos direitos humanos e políticos na Venezuela.

Após reunir-se com o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, na  última sexta-feira, o chefe de Estado chileno foi enfático ao falar  sobre a Venezuela de Maduro, abordando temas que Lula evita mencionar,  especialmente a repressão a opositores do governo. Boric iniciou suas  declarações comentando o assassinato do ex-militar venezuelano Ronald Ojeda em  Santiago, recentemente, caso que causou enorme preocupação no Palácio  de la Moneda. Ojeda, que fugiu da Venezuela após ter estado preso e ter  sido acusado de traição à Pátria pelo governo Maduro, foi sequestrado no  apartamento onde morava na capital chilena e apareceu morto alguns dias  depois.

— Fui muito crítico, e não apenas crítico, denunciei em foros  internacionais as violações dos direitos humanos de um regime que, sem  dúvidas, tornou-se autoritário, como é o regime venezuelano — disse  Boric. — Nós, como governo, buscamos colaborar para que seja recuperado  um rumo democrático, e para que as eleições que devem ser realizadas  este ano cumpram com todas as garantias para todos os setores políticos  na Venezuela — continuou.

O presidente do Chile defendeu sua posição, que se contrapõe abertamente a de Lula:

— A posição do Estado chileno é coerente, tanto sobre o que acontece na  Venezuela, o que acontece na Ucrânia, ou o que acontece hoje em dia em  Gaza. Não tenho nenhum problema em continuar reafirmando isso, mesmo que  cause moléstia, mas a coerência é um valor fundamental nesses aspectos.

Na quarta-feira, Lula fez um paralelo entre a oposição venezuelana e as  eleições presidenciais brasileiras de 2018, quando foi impedido de  concorrer porque estava preso em decorrência da Operação Lava Jato. O  petista afirmou que, ao ter a candidatura vetada, “ao invés de ficar  chorando”, indicou outro candidato para a disputa (o atual ministro da  Fazenda, Fernando Haddad, que foi derrotado por Jair Bolsonaro).  Questionado se é possível ter uma eleição justa no contexto atual do  país, Lula ainda afirmou que olheiros do mundo inteiro foram convidados a  acompanhar o pleito, embora tenha ressaltado que, se a oposição na  Venezuela tiver o mesmo comportamento da brasileira, “nada vale”.

— Sabe que eu fiquei feliz que foi marcada eleição na Venezuela. O que disseram na reunião que tive na Guiana é que vão convidar olheiros do mundo inteiro. Mas se o candidato da  oposição tiver o mesmo comportamento da oposição daqui, nada vale —  afirmou Lula.

Principal opositora do presidente venezuelano e impedida de concorrer às eleições de julho, María Corina Machado rebateu as declarações de Lula e disse que o presidente brasileiro estava “validando os abusos de um autocrata que viola a Constituição”.

“Eu chorando, presidente Lula? Você está dizendo isso porque sou  mulher? Você não me conhece. Luto para fazer valer o direito de milhões  de venezuelanos que votaram em mim nas primárias e dos milhões que têm o direito de fazê-lo numa eleição presidencial  livre em que derrotarei Maduro”, respondeu María Corina no X (antigo  Twitter). “O senhor está validando os abusos de um autocrata que viola a  Constituição e o Acordo de Barbados, que o senhor afirma apoiar. A  única verdade é que Maduro tem medo de me confrontar porque sabe que o  povo venezuelano está hoje na rua comigo”.

A realização de eleições livres, justas e transparentes ainda este ano  fazia parte do acordo firmado em Barbados, no fim do ano passado, entre  governo e oposição venezuelana, com a presença de observadores  internacionais. Uma das cláusulas previstas no documento exigia que os  candidatos contrários a Maduro tivessem permissão para recorrer de  decisões judiciais que os desqualificassem para o cargo.

Em janeiro, no entanto, o Tribunal Supremo da Venezuela ratificou a  inabilitação da líder opositora por 15 anos, na prática impedindo que  ela concorra contra Maduro, que busca mais uma reeleição. Além de María  Corina, vencedora de primárias — que posteriormente foram anuladas — em  outubro, Henrique Capriles, que concorreu duas vezes à Presidência, também teve sua inabilitação confirmada.

Sequestro de ex-militar venezuelano no Chile é 'gravíssimo', diz Boric

No mesmo discurso feito nesta sexta-feira, Boric comentou pela primeira vez a morte de Ronald Ojeda,  ex-militar venezuelano e opositor de Maduro que vivia exilado no Chile,  afirmando que este era um caso “gravíssimo”. Na segunda-feira, o  Ministério Público chileno concluiu que a facção criminosa Trem de  Aragua, a maior da Venezuela, esteve por trás do assassinato.  Boric foi questionado sobre as declarações do presidente do Partido  Comunista do Chile, Lautaro Carmona, que evitou qualificar o governo de  Maduro como uma “ditadura”.

— A voz do governo e quem decide a política externa sou eu. E eu  estabeleci publicamente uma condenação clara às violações dos direitos  humanos e às restrições à liberdade de expressão que, do nosso ponto de  vista, existiram nos últimos anos na Venezuela — declarou.

Também nesta sexta-feira, María Corina recebeu o reconhecimento da  Comunidade de Madri, na Espanha, pelo Dia Internacional da Mulher. Após  receber a condecoração, entregue à sua filha na cidade espanhola, ela  pediu que o mundo fosse “a voz dos venezuelanos que nunca desistirão da  busca pela liberdade”, apontando que a Venezuela precisa “mais do que  nunca” das “vozes de todos os democratas do mundo”.

PRA: Grato a Augusto de Franco pela transcrição:

quinta-feira, 7 de março de 2024

Eleição na Venezuela expõe democracia de conveniência de Lula - Malu Gaspar (O Globo)

Grato a Augusto de Franco pela transcrição:

Eleição na Venezuela expõe democracia de conveniência de Lula

Malu Gaspar, O Globo (07/03/2024)

Imagine o que seria o cenário político do Brasil hoje se a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo Tribunal Federal (STF), controlados por Jair Bolsonaro, tivessem com uma canetada cassado os direitos políticos de Lula e de Simone Tebet por 15 anos e impedido os dois de disputar as eleições de 2022. Ou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tivesse trocado a data da votação para 31 de março só para render homenagem à ditadura militar.

Daria para acreditar que uma eleição nessas condições teria um  resultado justo? A pergunta é obviamente retórica e um tanto absurda, já  que tal situação seria impensável no Brasil — onde, apesar da onda  golpista dos últimos anos, ainda temos uma democracia.

Não é o caso da Venezuela, onde a Controladoria-Geral e o Supremo, dominados por Nicolás Maduro,  retiraram da disputa deste ano seus dois principais opositores — e  ainda mudaram a data do pleito, que tradicionalmente ocorre em dezembro,  para 28 de julho, aniversário do falecido presidente Hugo Chávez.

Para Lula, porém, levantar qualquer dúvida sobre a lisura das eleições venezuelanas é prejulgamento.

— Não podemos jogar dúvida antes das eleições acontecerem, que aí  começa discurso de prever antecipadamente que vai ter problema — afirmou  o presidente brasileiro a jornalistas ontem no Palácio do Planalto. —  Temos que garantir a presunção de inocência, até que haja as eleições  para que a gente possa julgar se foi democrática ou decente.

O brasileiro ainda disse que Maduro lhe garantiu que vai “convocar  todos os olheiros internacionais do mundo que quiserem acompanhar as  eleições”.

Lula não é bobo nem mal informado, conhece Maduro de outros carnavais e  tem à disposição um corpo diplomático plenamente capaz de informá-lo de  que a Venezuela mantém cerca de 300 presos políticos e protagoniza a  maior crise humanitária do planeta, com quase 8 milhões de exilados.

A perseguição a opositores, com desaparecimentos e torturas, é uma das  razões por que o governo venezuelano é alvo de uma investigação no  Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Na semana passada, Maduro ainda expulsou do país integrantes do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos porque, entre outras razões, protestaram  contra a prisão da ativista Rocío San Miguel, conhecida por denunciar  crimes militares.

Presa há um mês pela polícia de Maduro sob as acusações de “traição à  pátria”, “terrorismo” e “conspiração”, ela ficou semanas incomunicável,  com paradeiro desconhecido. Foi preciso a intermediação da embaixada da Espanha (ela é cidadã espanhola) para que fosse garantido seu direito a receber visitas da família e de um advogado.

Não há sinal, portanto, de que Maduro esteja realmente disposto a  receber olheiros para fiscalizar as eleições — a menos, talvez, que  venham da Nicarágua, da Rússia ou de Cuba.

Por essas e outras razões, não faz nenhum sentido comparar o cenário  político do Brasil ao da Venezuela. Lula, porém, arriscou. Aos  jornalistas, ele disse esperar que a oposição venezuelana não tenha o  mesmo comportamento da brasileira:

— Se o candidato da oposição tiver o mesmo comportamento da oposição daqui, nada vale.

E cutucou:

— Eu fui impedido de concorrer às eleições de 2018. Em vez de ficar  chorando, indiquei um outro candidato que disputou as eleições.

Pois a questão é justamente essa. A diferença entre Lula e a  oposicionista María Corina Machado, que aparecia na liderança das  pesquisas, mas foi sumariamente excluída de eleições na Venezuela pelos  próximos 15 anos, é que Lula não foi impedido de disputar por uma  ditadura, mas por decisão judicial. E, se o Brasil não fosse uma  democracia, nem o PT poderia ter indicado outro candidato para  substituí-lo, nem ele poderia voltar a disputar eleições em 2022 — e  ganhar.

Não chega a ser novo ver Lula fingir que não vê os crimes cometidos por  ditaduras amigas enquanto denuncia os perpetrados por inimigos  geopolíticos.

Mas continua sendo intrigante ver o tom e a ênfase com que defende  Nicolás Maduro. Parece que, quanto mais se acumulam evidências de  monstruosidades cometidas pelo venezuelano, mais o brasileiro se empenha  em absolvê-lo.

Tal postura fica ainda mais esdrúxula considerando que acabamos de  passar por um trauma que poderia ter nos lançado de novo sob uma  ditadura em que o petista certamente não seria o presidente — e que  apoiar Maduro só piora sua imagem diante dos eleitores que de fato  prezam a democracia como valor.

A única explicação possível é que Lula acredita mesmo no que diz e que,  para ele, democracia é um conceito relativo. Só é sagrada se for para  favorecê-lo. Senão, não faz mesmo diferença.

terça-feira, 5 de março de 2024

O lugar do Brasil, segundo Lula - Demétrio Magnoli (O GLobo)

A Doutrina Lula, em todo o seu esplendor... 

O lugar do Brasil, segundo Lula 

Demétrio Magnoli 

O Globo, segunda-feira, 4 de março de 2024

Uma política externa oscilante, inconsistente — eis o que pensa a revista The Economist. “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. O diagnóstico gira em falso, como refém da retórica ilusionista do governo. De fato, existe uma Doutrina Lula.

A orientação de política externa pode ser decifrada a partir de dois movimentos estratégicos. O primeiro renega o discurso oficial; o segundo elimina suas ambivalências.

1. O Novo PAC lançado pelo governo, no eixo consagrado à transição energética, prevê recursos de R$ 565,4 bilhões, dos quais 64% para óleo e gás e meros 12% para fontes limpas. Os investimentos em combustíveis fósseis fluirão principalmente do Estado, enquanto as fontes alternativas dependerão de financiamento privado.

2. O Brasil aumentou radicalmente seu intercâmbio com a Rússia desde a invasão da Ucrânia. O crescimento apoiou-se especialmente nas importações de petróleo, diesel e fertilizantes. As importações de diesel saltaram de 101 mil toneladas em 2022 para 6,1 milhões em 2023 — ou, em valores, de US$ 95 milhões para US$ 4,5 bilhões. No cenário do embargo europeu, o Brasil converteu-se no terceiro maior importador de hidrocarbonetos russos, atrás apenas da China e da Turquia.

O Acordo de Paris, a matriz baseada na fonte hídrica, a Amazônia e Marina Silva organizaram o discurso inaugural de política externa do governo Lula. Era ilusão: o Brasil chega às vésperas do G20, no Rio de Janeiro, e à antevéspera da COP30, em Belém, sem uma estratégia de transição energética. O discurso sobre a “liderança climática” funciona como rarefeita cortina de fumaça destinada a ocultar a Doutrina Lula.

As ambivalências sobre a guerra imperial russa circulam unicamente na superfície da retórica diplomática. Reiterando o gesto original de Bolsonaro, Lula oferece “solidariedade” à Rússia. A visita de Celso Amorim ao Kremlin e a visita de Lavrov a Brasília, logo após a ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin, evidenciam a direção para a qual aponta a bússola de política externa.

PT é parceiro do Rússia Unida, partido de Putin. Quase um ano atrás, à sombra da guerra de agressão na Ucrânia, participou de um fórum sobre “neocolonialismo” promovido pelo partido putinista. Logo mais, a convite do Rússia Unida, uma delegação oficial petista acompanhará a farsa eleitoral russa montada para simular legitimidade democrática a mais um mandato de Putin.

“Para que essa pressa de acusar alguém?”, indagou o presidente brasileiro, antes de criticar os governos que responsabilizam o regime russo pela morte de Navalny. Lula “compreende os interesses de quem acusa” e recomenda aguardar as conclusões dos legistas a serviço do Kremlin. A presença pessoal de Putin no G20 é uma meta difícil perseguida por Lula.

Cuba, Venezuela, Nicarágua. Aponta-se, desde o primeiro mandato lulista, a crônica inclinação à solidariedade com regimes ditatoriais de esquerda. A crítica não se aplica, porém, ao regime de Putin.

O governo russo, em aliança com o patriarcado ortodoxo de Moscou, combina o nacionalismo grão-russo com um conservadorismo extremo. O chefe do Kremlin conta com admiradores como Trump, Orbán e líderes da extrema direita europeia. Bolsonaro admirava Putin por compartilhar com o russo o conceito de uma ordem social baseada na família tradicional. Lula figura na lista, mas não por motivos ideológicos. Sua parceria com Putin deriva de uma visão estratégica.

A Doutrina Lula tem como norte o Sul Global, expressão altamente imprecisa que substitui o antigo conceito de Terceiro Mundo e atualiza a noção de anti-imperialismo. Em sua versão atual, adotada por uma esquerda irreformável, anti-imperialismo é, antes de tudo, hostilidade aos Estados Unidos e a seus aliados europeus. O Brasil de Lula almeja um lugar de destaque numa coalizão internacional anti-Ocidente. Nessa visão, China e Rússia emergem como parceiros privilegiados.

Lula tem rumo — eis aí o verdadeiro problema.


sábado, 2 de março de 2024

Lula quer todas as empresas - Carlos Alberto Sardenberg (O Globo)

Lula quer todas as empresas Carlos Alberto Sardenberg, O Globo (02/03/2024) O Estado regula a atividade econômica como um todo, não esta ou aquela empresa. Concede licenças, fiscaliza, cobra impostos Já aconteceu uma vez. Lula conseguiu derrubar um presidente da Vale, Roger Agnelli, porque ele cometera a ousadia de encomendar navios de grande porte na China. Isso foi em 2011, quando Dilma já estava no Planalto, mas Lula cultivava uma longa bronca com o executivo. Este tocava a Vale — imaginem! — como se fosse uma empresa privada. Como hoje, Lula queria uma companhia que se alinhasse com os planos do governo. Que comprasse insumos no mercado nacional, mesmo que fossem piores e mais caros, e que partisse para a produção de aço, o que desviaria recursos e energia do negócio principal, a mineração. Tem mais: o governo petista estava empenhado em mais uma tentativa de construir navios no Brasil e contava com a Vale como compradora fiel. E Agnelli adquiriu não um, mas três enormes navios em estaleiros chineses, de capacidade internacionalmente reconhecida. Se tivesse esperado pela indústria brasileira, a Vale estaria até hoje — desculpem — a ver navios. Na ocasião, Lula e Dilma apelaram para o então presidente do Bradesco, Lázaro Brandão, que indicara Agnelli. E assim caiu o executivo que, em dez anos, transformara a Vale numa multinacional, a segunda mineradora global, multiplicando o lucro por dez. A Vale estava privatizada desde 1997, mas, como se viu, ainda estava à mercê de ações oportunistas do governo de plantão. Por isso, em 2021, depois de um longo processo, os acionistas transformaram a Vale numa corporation — uma sociedade anônima genuína, sem blocos de controle. Para Lula, não mudou nada. Ele continua achando que a empresa precisa “estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro”. Não apenas a Vale, mas todas as empresas brasileiras, disse o presidente. Trata-se de uma barbaridade. As empresas se relacionam com o Estado, não com os governos. O Estado regula a atividade econômica como um todo, não esta ou aquela empresa. Concede licenças, fiscaliza, cobra impostos e royalties. Governos têm planos partidários, que mudam a cada eleição. Lula queria que a Vale fabricasse aço. Imaginem que a empresa topasse a determinação e investisse pesado nesse negócio. Aí troca o governo, e este decide que o investimento prioritário não é fabricar aço, mas produzir baterias de carros. A empresa teria de se desfazer das usinas e começar tudo de novo. Dirão: então para que serve ser governo, se não manda nada? Manda. O governo pode estimular um setor, concedendo subsídios para a indústria automobilística, mas não pode dizer às montadoras que carros devem produzir. Mais: nem pode obrigar as empresas a tomar os subsídios. Lembram a velha história? Você pode levar o cavalo até a beira do lago, mas não consegue obrigá-lo a beber água. As ações da Vale estão em queda desde o início do ano. As últimas declarações de Lula prejudicam não apenas a Vale — levando dúvidas sobre sua gestão —, mas geram desconfiança geral. A economia brasileira foi bem no ano passado, mas não nos investimentos. Se o PIB cresceu 2,9%, o investimento caiu expressivos 3% em relação a 2022, que já não tinha sido um bom ano. O consumo é PIB de hoje. O investimento é de hoje e amanhã. Como o governo está com as contas exauridas, o país necessita de investimento privado. Para isso, o governo deve oferecer um bom ambiente de negócios, de modo que as empresas se sintam confortáveis para aplicar aqui. Lula passa o recado contrário. A maioria dos acionistas da Vale está no exterior. E todos têm perspectiva desfavorável quando o presidente intervém numa companhia privada e anuncia que todas as empresas aqui instaladas têm de rezar pela sua cartilha. Sem contar que, com sua habitual desinformação, Lula passou uma série de fake news sobre a Vale. Disse, só em exemplo, que a empresa mais vende ativos do que produz minério. Errado: em 2023, a Vale produziu 321 milhões de toneladas de minério de ferro, quase 10% acima de ano anterior. Vendeu ativo, mas comprou outros.  

Mas quem se importa com fatos? 


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Política externa partidária - Fernando Gabeira (O Globo)

 

Opinião Fernando Gabeira

Foto em preto e branco de homem com óculos de grau

Descrição gerada automaticamente

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor

A guerra que mata e os jogos verbais

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta uma política bem mais próxima de uma visão partidária


O Globo, 26/02/2024 

 https://oglobo.globo.com/opiniao/fernando-gabeira/coluna/2024/02/a-guerra-que-mata-e-os-jogos-verbais.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria


A frase que Lula disse na Etiópia repercutiu fortemente durante toda a semana. Tão fortemente que não há muito mais o que falar, exceto extrair algumas lições sobre nossa pátria amada, salve, salve.

Ouvi um repórter anunciar que a reunião do G20 trataria de três temas: as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza e o embate diplomático entre Brasil e Israel. Meu Deus, pensei, como podem colocar no mesmo plano duas guerras reais, com gente morrendo ou sendo mutilada, com uma disputa verbal entre duas chancelarias?

Claro que o G20 não abordou o tema, mas o tom das reportagens deixa bem claro como superestimamos as situações em que o Brasil é protagonista.

Duas repercussões políticas também me impressionaram. De um lado, deputados propondo o impeachment de Lula por causa de sua frase. De outro, a declaração de Celso Amorim de que a fala de Lula sacudiu o mundo e potencialmente ajudaria a acabar com a guerra.

Há quem espere consenso a partir de uma discussão racional na política. Sou dos que acreditam que isso é impossível. A realidade é um conflito insolúvel entre valores, e só a aceitação da diversidade nos prepara, ainda assim modestamente, para a vida em comum.

Sinto que o Brasil polarizado está condenado a duas políticas externas radicais. No período Bolsonaro, havia uma crença de que o Ocidente estava ameaçado pelo marxismo cultural e de que era preciso seguir Donald Trump, o salvador dos valores ocidentais. Aquecimento global, feminismo, o que chamam de ideologia de gênero — tudo isso era arquitetado para destruir a civilização e desintegrar as famílias patriarcais.

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta, por seu lado, uma política bem mais próxima de uma visão partidária que uma perspectiva nacional. O mundo está dividido entre Sul Global e Norte rico, e o presidente precisa viajar incessantemente para defender os pobres.

O curioso é que o caminho do meio é cheio de saídas que as duas correntes desprezam. O Brasil é signatário de uma Declaração de Dublin em 2022, precisamente protegendo populações civis de bombardeios. A declaração é um avanço civilizatório. O país poderia, com base nisso, criticar tanto Israel quanto a Rússia.

Nesse universo político a que estamos condenados no Brasil, a Rússia está blindada. Putin é intocável para uma esquerda que o vê como adversário dos Estados Unidos e ainda encara a Rússia com a aura de uma revolução que aconteceu no início do século passado e não deixou vestígios, a não ser as atrocidades de Stálin e o corpo de Lênin no mausoléu.

Mas Putin é também admirado pela extrema direita, que o vê como defensor de valores tradicionais, inclusive um implacável perseguidor do povo gay na Rússia. Enfim, estamos condenados ao desequilíbrio, passando pano para autoritários como Putin, Viktor Orbán, Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Não há saída para isso num país polarizado, apesar dos acenos em tempos eleitorais. Ainda assim, precisamos garantir em nossa imagem internacional um respeito pelo sofrimento real que a guerra produz.

A guerra na Faixa de Gaza passa por um momento especial, a possibilidade de um ataque a Rafah. Mais de 1 milhão de civis estão concentrados ali. Não têm para onde fugir, pois o espaço que Israel propõe é muito pequeno para tanta gente.

Mais do que nunca, é preciso uma grande unidade entre as pessoas que querem a paz. Além de todas as críticas já repisadas por sua frase, Lula poderia pensar nisso. Ele provocou uma divisão entre as pessoas que criticam mortes de civis em Gaza, querem não só um cessar-fogo, mas também defendem a solução de dois Estados.

Precisamos de um consenso, ainda que pontual. A luta continua e, apesar dos excessos verbais, da batalha de postagens, das acusações mútuas e de toda essa agitação em redes sociais, a realidade continua áspera, e a guerra continua matando. Hora de olhar para a frente, direto no coração de tragédia.

 

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Crise entre Brasil e Israel é saldo da aposta do governo Lula na ‘doutrina Amorim’- Malu Gaspar (O Globo)

Parece que essa doutrina serviu sobretudo para criar atritos com os países ocidentais inutilmente...

Crise entre Brasil e Israel é saldo da aposta do governo Lula na ‘doutrina Amorim’

Por Malu Gaspar

O Globo, 22/02/2024 04h31

https://oglobo.globo.com/blogs/malu-gaspar/coluna/2024/02/crise-entre-brasil-e-israel-e-saldo-da-aposta-do-governo-lula-na-doutrina-amorim.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria

 

O governo Benjamin Netanyahu também errou ao tentar encurralar a diplomacia brasileira com uma emboscada diplomática e ataques destrambelhados — que podem até ter atraído algum dividendo político interno, mas não alteram o status de Israel no mundo. 

Dois erros não produzem um acerto, mas parece ser isso o que pretende fazer o assessor especial do Palácio do Planalto para questões internacionais, Celso Amorim. Na última terça-feira, ele declarou que a fala de Lula “sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções” que pode ajudar a solucionar o conflito em Gaza. 

Os fatos demonstram que ela sacudiu no máximo os dois países envolvidos — no Brasil, serviu para aliviar a pressão sobre Jair Bolsonaro e piorar a imagem de Lula junto aos evangélicos. 

Nenhum líder mundial relevante veio em auxílio de Lula, assim como nenhum presidente de potência aliada de Israel — nem Joe Biden — apoiou a ofensiva virtual e diplomática de Netanyahu. 

7 fotos 

Ainda assim, vale a pena analisar com lupa a declaração de Amorim, hoje a pessoa mais influente na política externa do governo. Ela reflete a visão de mundo segundo a qual o Brasil deve usar sua posição de liderança no eixo dos países em desenvolvimento para conquistar um lugar na geopolítica das grandes potências. 

Essa foi a tônica da atuação de Amorim quando chefiou o Itamaraty sob Lula 1 e 2, que vem expressando em entrevistas e declarações aqui e ali. 

No final de janeiro, o “chanceler informal” de Lula afirmou ao Valor que o Brics (bloco capitaneado por Brasil, RússiaÍndiaChina e África do Sul, de que ele é o principal articulador) foi “a transformação mais importante nas relações internacionais nos últimos tempos”. 

Para Amorim, a consolidação do Brics “alertou os próprios ocidentais para a necessidade de voltar a fortalecer o G20, que é o órgão principal”. “O polo pode estar se deslocando um pouco”, sugeriu, para dizer mais adiante que “todos percebem que no Brics está o futuro”, já que “o PIB do Brics é maior que o do G7”. 

O professor de relações internacionais da FGV Matias Spektor, autor de estudos fundamentais sobre nossa política externa, tem uma análise interessante a respeito de como essa filosofia influencia as falas de Lula sobre a guerra em Gaza ou sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. 

Para Spektor, elas obedecem a um padrão que pode ser assim traduzido: “Se o Brics é a melhor coisa que aconteceu nos últimos 20 anos, nada mais natural que usar essas alianças para esticar a corda e ser duro com o Ocidente, obrigá-lo a fazer concessões aos países em desenvolvimento. Porque, se o Ocidente não se sente pressionado, mantém o status quo, esse sistema internacional super-hierárquico onde o Norte manda e o Sul obedece. 

É como se não houvesse outra forma de “sacudir” as potências ocidentais a não ser criando impasses que afetem não propriamente as emoções, como disse Amorim, mas a economia e a geopolítica. 

Dessa constatação decorrem dois problemas e uma dúvida. 

O primeiro problema é que, em nome de usar as alianças antiocidentais para sacudir o Ocidente, a “doutrina Amorim” admite dar aval tácito a Vladimir PutinNicolás Maduro e outros autocratas para perseguir e matar opositores, censurar a imprensa e invadir territórios vizinhos, desprezando o valor da democracia e da própria autonomia dos povos. 

O segundo é que, ao usar sua posição no cenário internacional para defender aliados econômicos e ideológicos, e não princípios universais, Lula aprofunda uma linha desastrosa já traçada por Bolsonaro e vai aos poucos dilapidando o grande patrimônio de política externa do Brasil — ser um mediador equilibrado respeitável para disputas e conflitos. 

Por fim, mas não menos importante, a dúvida: qual o custo real dessa estratégia? O que temos a ganhar? O Brasil tem uma agenda ampla e ambiciosa a cumprir na economia, na saúde e no meio ambiente globais, expressa na pauta da reunião de cúpula do G20 que começou ontem no Rio de Janeiro. 

Entre os objetivos estão obter financiamento para a transição climática em países pobres e intermediários, conseguir doações para um fundo global contra a fome, incluir a África no G20 e, fora do G20, aprovar a reforma do Conselho de Segurança da ONU

Pode até ser que a “doutrina Amorim” ainda venha a produzir o efeito desejado e arranque concessões das potências globais. Por ora, tudo o que temos como saldo é um constrangimento diplomático e uma chuva de memes.