O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador entrevista. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador entrevista. Mostrar todas as postagens

domingo, 27 de outubro de 2024

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial : entrevista com Jairo Nicolau - Hugo Henud (Estadão)

 Dica de leitura : "A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial"( Jairo Nicolau, FGV/Rio)

Entrevista | Jairo Nicolau, cientista político: ‘Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual’

Por Hugo Henud 

 O Estado de S. Paulo, domingo, 27 de outubro de 2024


Para Jairo Nicolau, professor da FGV, a ausência de novas lideranças na esquerda capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado explica o desempenho eleitoral aquém do esperado desse campo político: ‘Eleitor vota em líderes, não em partidos’

 

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial: a falta de renovação de lideranças capazes de dialogar com o novo perfil do eleitorado, especialmente em um País onde as personalidades políticas têm mais peso que os programas partidários. A avaliação é do cientista político e professor da FGV, Jairo Nicolau, que aponta que o eleitor se conecta mais com figuras carismáticas capazes de traduzir seus anseios do que com ideias ou plataformas de governo. ‘O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas’, afirma Nicolau, destacando que, enquanto nomes à direita ocupam esse espaço, partidos como PT e PSOL vêm perdendo terreno em segmentos nos quais antes tinham força, como periferias, jovens e evangélicos — o que explica o desempenho eleitoral aquém do esperado dessas siglas nas eleições municipais.

Em entrevista ao Estadão, Nicolau avalia que, embora o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), saia fortalecido destas eleições, esse desempenho não garante, necessariamente, sucesso nas eleições majoritárias de 2026. Como exemplo, o cientista político cita João Doria, que governou São Paulo de 2019 a 2022 e chegou a lançar sua pré-candidatura à Presidência naquele ano, mas não conseguiu viabilizar-se na disputa. “Prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam preditores de sucesso nas eleições seguintes”, pontua.

Quanto à projeção para 2026 e aos “recados” das urnas nestas eleições, Nicolau ressalta que o alto volume de recursos destinados por meio de emendas parlamentares, direcionadas por deputados federais e senadores a seus redutos eleitorais, representa um obstáculo à renovação política, ao colocar esses políticos em vantagem competitiva para a reeleição daqui a dois anos. “Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases”, completa.

Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:

 

A esquerda enfrentou dificuldades em várias capitais e grandes centros urbanos. Na sua avaliação, o que explica essa perda de terreno, especialmente em regiões que antes eram redutos tradicionais desse campo político?

Vou trazer um elemento que me parece crucial para a esquerda hoje: a ausência de lideranças. O que está faltando à esquerda são justamente novas lideranças, mais do que ideias, porque o Brasil não é um país onde as pessoas votam em partidos pelas ideias. Um exemplo disso são as novas lideranças da direita, como Nikolas Ferreira. São muitas lideranças de direita que estão surgindo nos últimos anos. Por outro lado, quantos jovens com menos de 40 anos existem entre as lideranças de esquerda? Quase nenhum. Veja as eleições em São Paulo: a discussão na capital paulista gira em torno de três personagens – NunesBoulos Marçal. Quer dizer, quem falou em partido, quem falou em doutrina em São Paulo? Ninguém. No caso de Marçal, não é sobre suas ideias, mas sim sobre ele como figura, como pessoa física, que atraiu o eleitorado. Quem fala em partido? Quem fala em programa? São os nomes que se destacam: LulaJair Bolsonaro, Pablo Marçal, Ricardo Nunes, Guilherme Boulos, Nikolas. Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual.

E quanto ao desempenho do PT nessas eleições? Há uma percepção de que políticas públicas assistencialistas, por exemplo, já não são suficientes para assegurar a adesão eleitoral.

Os partidos de esquerda, diante do insucesso em algumas cidades e de certo cansaço com políticas públicas do governo Lula, precisam fazer um balanço. Mas, se me perguntassem o que eu sugeriria para um partido de esquerda formar novos quadros ou discutir propostas para o Brasil, eu diria: formar novas lideranças. O eleitor vota em líderes, não em partidos.

Quem são, hoje, os nomes do PT? Faltam às siglas de esquerda lideranças emergentes que possam se comunicar, nas cidades e nas câmaras, com um Brasil que mudou. Um país onde as pessoas são mais escolarizadas, mais religiosas; onde a elite é menos homogênea racialmente — ainda majoritariamente branca, mas em transformação. Um Brasil em que as pessoas se conectam pelas redes sociais e por novos meios. Esse novo Brasil demanda novas lideranças. Aqui, os partidos dependem de líderes mais do que em outros países, e o que falta à esquerda, mais que programas, são lideranças capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado. O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas.

Qual partido conseguiu, de fato, dialogar melhor com os eleitores evangélicos nessas eleições? Os resultados mostram que partidos de centro e direita tiveram mais sucesso nesse público. Quais fatores ajudam a explicar esse desempenho?

Esse é um fenômeno recente. Nem sempre a esquerda teve dificuldades. Lula já foi eleito presidente com o apoio das principais denominações evangélicas, em 2002 e 2006. O que aconteceu é que parte da agenda comportamental, antes pouco politizada, foi politizada e atraiu os evangélicos para a direita. E isso ocorreu porque a direita apresentou líderes que dialogam diretamente com esse segmento, enquanto a esquerda não apresentou quase nenhum representante no segmento. Sabe como os partidos de esquerda vão se aproximar dos evangélicos? Quando tiverem um dirigente do PT, por exemplo, que seja evangélico, carismático e que as pessoas realmente gostem. Assim, eles chegam aos evangélicos. O Brasil funciona em função de nomes.

Como o senhor avalia a atuação do governador Tarcísio de Freitas nestas eleições? Ele sai politicamente fortalecido para 2026?

O Republicanos, partido de Tarcísio, teve um bom desempenho, o que, sem dúvida, o fortalece como uma liderança importante no Estado. No entanto, prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam, necessariamente, preditores de sucesso nas eleições seguintes. Veja o caso de Doria: enquanto prefeito e, depois, governador, muitos analistas o apontavam como um dos principais nomes para a eleição presidencial de 2022, mas isso não se concretizou. O mesmo vale para Serra, Cabral, Alckmin... Portanto, não é tão simples assim.

Olhando para o cenário nacional, os resultados municipais podem influenciar as eleições de 2026?

Os resultados municipais nunca influenciaram resultados nacionais. Resultados municipais servem para uma reconfiguração da distribuição dos partidos como as câmaras municipais, prefeitura, e essa mudança acontece de maneira tênue. Mas mostra padrões, tendências...

Existe um “recado” das urnas que já sinaliza tendências?

Com esses resultados, acho que dificilmente a direita deixará de dominar a Câmara dos Deputados, com cerca de 60% a 70% dos assentos. Posso dizer isso com certa segurança. A direita, provavelmente, será majoritária no Senado e elegerá muitos nomes. Também está ocorrendo uma clara compactação do sistema partidário brasileiro e uma redução da dispersão, tornando a vida muito difícil para os pequenos partidos devido à reforma política e à cláusula de desempenho [medida que limita o acesso de partidos com pouca votação ao fundo partidário e tempo de propaganda em rádio e TV]. Outro ponto: um partido central da política brasileira até 2016 está em um processo contínuo de declínio preocupante, que é o PSDB. Eu diria que, se o PSDB não tivesse dois governos de Estado, hoje três, estaria uma situação ainda mais complicada. Já os partidos da esquerda precisam se movimentar.

O senhor avalia que as emendas parlamentares tiveram um papel decisivo no apoio de lideranças locais nas campanhas municipais? Até que ponto essas emendas podem influenciar os resultados das eleições e o processo de renovação política?

O que vai começar a atrapalhar a renovação é a combinação dos recursos de financiamento público com as emendas parlamentares, que subiram a valores astronômicos. Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases. Quando chegarmos a 2026, com as redes que esses políticos montaram — que já apareceram nas eleições municipais em algumas cidades — será muito difícil que um deputado ou senador não seja reeleito. Hoje, um deputado está em uma posição muito melhor do que seus colegas de 10 ou 20 anos atrás, quando as emendas ainda não eram obrigatórias. Agora, são valores de milhões, que superam até o orçamento de pequenas cidades no Brasil. Esses recursos são distribuídos a cidades, organizações da sociedade civil e entidades estatais; ou seja, todos os aliados do político. Em 2026, provavelmente veremos uma redução na renovação, porque os políticos que já ocupam cargos estão em uma situação muito mais favorável do que seus desafiadores.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito mais que a renovação de líder à esquerda se afastou do eleitor pela sua origem marxista que separa O capital e o trabalho sendo os dois um dependente do outro e inerente da vida
Acrescentando isso ao valor e a importância que a esquerda dá asfalta dente áreas completamente fora da média do eleitor brasileiro que é conservador cristão e preza pela família
Para acabar com o prestígio que ainda tinha , ao assumir esse viés autoritário do. PT apoio do STF censurando, perseguindo e prendendo a oposição está afastando mais ainda o eleitor

27/10/24 11:00

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Ricupero resenhado e entrevistado por Guilherme Evelin

Resenhei para o Estadão o livro de memórias do embaixador Rubens Ricupero. Além de ter sido um grande diplomata, da velha estirpe dos formados na escola do barão do Rio Branco, e de ser um grande humanista, Ricupero é um fino historiador. Em 2017, publicou "A Diplomacia na Construção do Brasil", um clássico, que conta a história do Brasil desde os tempos coloniais a partir do ponto de vista das relações do País com o mundo. Agora, Ricupero conta a trajetória de sua vida de 87 anos, entremeando com fatos históricos que ele testemunhou e vivenciou. Apesar de o livro ter 700 páginas, ninguém deve se assustar com o seu tamanho. Ele está à altura das obras de outros grandes memorialistas brasileiros - e a leitura é um deleite, que pode se fazer com poucas "sentadas". Minha resenha se ateve a um ângulo político, a partir de alguns episódios cruciais vividos pelo embaixador, como o golpe de 1964 e o lançamento do Real, há 30 anos, no qual foi um dos protagonistas. A partir desses episódios, Ricupero, sempre com um olhar voltado para o Brasil, lança algumas perguntas (inquietantes) sobre o que pode nos reservar o futuro, com a ressalva de que vivemos tempos em que a melhor atitude é dizer que "sabemos que não sabemos". Mas o livro vai muito além das histórias do Itamaraty e do poder no Brasil. Traz reminiscências deliciosas da infância de Ricupero, com evocações de uma São Paulo que falava italiano e deixou de existir, e de encontros com personagens como Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto e Clarice Lispector, entre muitos outros. Tudo isso para dizer que recomendo vivamente a leitura. A seguir, os links da matéria com a resenha e da entrevista que eu fiz com o embaixador por ocasião do lançamento do livro. https://lnkd.in/dq9m-D6r https://lnkd.in/dZfzbkYT

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, Entrevista Paulo Kramer, por José Fucs (O Estado de S. Paulo)

 Se há experimento, quem participa dele, o executa? Todos os políticos ou só alguns, militares,  judiciário ? Faltaram perguntas. O Brasil sempre foi país autoritário de povo passivo demais, vide o confisco da poupança por collor (meu vizinho morreu) .

Entrevista hoje na coluna do José Fucs :

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, diz cientista político

Para Paulo Kramer, País passa por um ‘experimento pavloviano’, em que a tolerância da sociedade a ‘expedientes menos democráticos’ está sendo testada, para ver se há alguma reação, mas o ‘ponto de virada’ está próximo.

19/09/2024 | 09h30 Atualização: 19/09/2024 | 16h49

Entrevista com Paulo Kramer

Cientista político, consultor, assessor parlamentar na Câmara dos Deputados e professor aposentado da Universidade de Brasília

O cientista político Paulo Kramer, de 67 anos, faz parte de um grupo restrito de profissionais da área, dominada por uma visão marxista da realidade, que se autodefine como um “liberal”. Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), consultor de riscos políticos e assessor parlamentar da liderança da minoria na Câmara dos Deputados, ele diz que o papel de “Poder Moderador” desempenhado hoje pelo STF (Supremo Tribunal Federal), com ações que vão além de seu papel constitucional, é “o problema número um” que a gente vive no País.

“Nós estamos vivendo o que eu chamo de golpe em câmera lenta. O Supremo hoje pode tudo, porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele”, afirma. Segundo Kramer, porém, o “ponto de virada” está próximo e deve resgatar o equilíbrio entre os Poderes da República. “Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica.”

Nesta entrevista ao Estadão, Kramer fala também sobre o fim do “presidencialismo de coalizão”, com a perda de poder do Executivo para o Legislativo na gestão do orçamento federal, a partir da aprovação das emendas parlamentares de execução obrigatória em 2015. Ele comenta, ainda, os projetos de impeachment do ministro Alexandre de Moraes e de anistia aos presos de 8 de janeiro que tramitam no Congresso e analisa as eleições municipais e o impacto do “fenômeno” Pablo Marçal, candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo, na direita e no bolsonarismo. “Provavelmente, a direita não marchará unida nas eleições de 2026″, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo o cenário político hoje no País?

O que está ocorrendo no País hoje tem relação com o patrimonialismo que predomina na política brasileira, essa tendência que nós temos de confundir o público com o privado. Isso acaba condicionando a visão que os políticos e o povo têm, de forma geral, sobre o que significa exercer um cargo público. Aqui, as pessoas, quando alçadas a uma posição de poder qualquer, acabam se achando maiores e mais importantes do que os cargos. Elas exercem o poder de maneira imoderada e é provavelmente por isso que nós estamos sempre clamando pela intervenção de um Poder Moderador.

Oficialmente, nós tivemos um Poder Moderador no Império, na Constituição de 1824. De lá para cá, na República, a figura do Poder Moderador deixou de existir na Constituição. Mas, na prática, desde o tenentismo (movimento político-militar que surgiu no fim da República Velha para tentar derrubar as oligarquias rurais que governavam o País), a gente está sempre à espera de um general, de um Sergio Moro, de um Deltan Dallagnol, para combater os efeitos nocivos desse exercício imoderado do poder. Isso é o contrário do que acontece em outros países, de tradição republicana mais sólida, onde o sujeito em geral tem consciência de que ele é menor do que o cargo, de que o cargo é mais importante do que ele, e de que, portanto, ele deve agir de forma decente no exercício de suas funções.

O que isso tem a ver com o atual quadro político do País?

No momento, essa busca pela ação de um Poder Moderador voltou a assombrar o Brasil e se tornou um componente crucial do nosso jogo político. Hoje, boa parte da esquerda vê no STF, particularmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, esse poder “providencial”, acima da mecânica rotineira da convivência institucional entre os Poderes. O Supremo hoje pode tudo. Pode tudo porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele. Para mim, este é o problema número um que a gente vive hoje no Brasil.

Enquanto a esquerda era hegemônica na nossa cultura política, seja na forma da social-democracia “perfumada” dos tucanos, seja no formato mais “botocudo” da tigrada lulopetista, isso não acontecia. Agora, com o crescimento de uma faixa de opinião de direita, conservadora, na sociedade brasileira – e pelo mundo afora – o STF vem assumindo este papel. Um lado reluta, quando não se recusa simplesmente a reconhecer, a legitimidade do outro. É por isso que cada eleição presidencial brasileira é encarada como uma crise e não como um desenvolvimento institucional periódico, previsível e normal numa sociedade democrática.

Em sua opinião, como isso está afetando o País?

Nós estamos vivendo um problema que eu chamo de golpe em câmara lenta. Este processo começou quando o ministro (Dias) Toffoli (então presidente do STF) se sentiu ameaçado pelas investigações da Lava Jato e designou seu colega, o ministro Alexandre de Moraes, para promover esse verdadeiro inquérito do fim do mundo, que não tem fim – o inquérito das fake news, que acaba incluindo tudo que ele considera prejudicial à sua visão de democracia. A partir daí, uma série de medidas foi tomada para beneficiar o lado do (hoje presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) e prejudicar o lado do (hoje ex-presidente Jair) Bolsonaro.

Houve a “descondenação” do Lula, que havia sido condenado em três instâncias, justamente com a intenção de permitir que ele disputasse a Presidência de novo. Depois, isso ficou mais patente ainda durante a eleição de 2022, quando o senhor Alexandre Moraes exerceu a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). É só comparar as ações que ele determinou contra um dos lados e quase não determinou contra o outro que você vê que não houve equilíbrio nas decisões em relação aos dois principais concorrentes. Desde então, esse processo vem tendo desdobramentos em série e é isso que eu chamo de um golpe em câmara lenta.

Quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado

Como a gente chegou a este ponto?

A gente pode comparar isso com um experimento diabólico, pavloviano, de reflexo condicionado, em que a tolerância do povo, da opinião pública, em relação a esses expedientes menos democráticos, menos republicanos, vai sendo testada passo a passo, para ver se há alguma reação. Na medida em que boa parte da população se mostrava indiferente ao que estava ocorrendo, os executores dessas medidas se sentiram cada vez mais à vontade para ir avançando. Com isso, eu acho que quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado.

Dentro disso que o sr. está falando, desse quadro do golpe em câmera lenta, dessa tentativa de ir testando a sociedade, em que estágio o sr. acredita que estamos hoje?

Olha, eu acredito que nós estamos nos aproximando de um ponto de virada. Ou vai ou racha. Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, aliado ao lulopetismo, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado constitucional, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica. Senão, nós vamos ficar sempre naquele subdesenvolvimento político de achar que precisamos de uma força de fora, um Deus ex-machina que salve a situação, quando na verdade é a vontade organizada e legal dos cidadãos que fará com que as coisas aconteçam.

No sistema representativo, isso ocorre com a sociedade exercendo pressão para que seus representantes eleitos no Congresso façam alguma coisa para mudar a situação. É assim que funciona numa democracia. As pessoas enchem as ruas, protestam, se manifestam, não para ganhar no grito, mas para sensibilizar seus representantes eleitos, seus congressistas, deputados e senadores, para que façam aquilo que elas estão querendo.

Como o sr. você viu a manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, no dia 7 de setembro? Até que ponto ela refletiu esta maior conscientização da sociedade, se havia menos gente nas ruas do que em manifestações anteriores?

O governo e a esquerda tentaram pintar a última manifestação na Paulista como um grande fracasso, já que em manifestações anteriores havia trezentas mil pessoas nas ruas e dessa vez havia algo em torno de cinquenta, sessenta mil. Agora, como tudo é relativo em política, quando você compara essas cinquenta e poucas mil pessoas que estavam na Paulista com o ato esvaziado que foi realizado no mesmo dia na Esplanada dos Ministérios, com a presença do Lula e de ministros do STF, você consegue ter uma ideia mais precisa da dimensão da manifestação que ocorreu em São Paulo.

Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares

Até pouco tempo atrás, havia uma percepção de que essas bandeiras relacionadas ao STF e ao impeachment do ministro Alexandre de Moraes estavam mais ligadas aos bolsonaristas e a grupos de direita e hoje parece que elas ganharam apoio das forças de centro e até de centro-esquerda. Qual a sua visão desta questão?

A minha visão se baseia naquele famoso ditado “pau que dá em Chico dá em Francisco”. Quer dizer, um poder ilimitado ou que se sente ilimitado é sempre perigoso para todos os players do jogo. É por isso que, no longo prazo, o que interessa é que o equilíbrio entre os Poderes seja reestabelecido, para que no futuro isso não ameace mais ninguém, nem a esquerda nem a direita.

Agora, como o sr. afirmou há pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e boa parte da esquerda, que representam uma parcela significativa da sociedade, estão a favor desta atuação do STF e particularmente do ministro Alexandre de Moraes. O que está levando a esse apoio do Lula e da esquerda ao STF e ao ministro?

A gente tem de levar em conta que o Lula não é mais aquele e que o famoso “presidencialismo de coalizão” também não é. O “presidencialismo de coalizão”, hoje, não funciona mais. Aquela história de o Poder Executivo usar as verbas do Orçamento para formar uma base parlamentar e aprovar suas medidas no Congresso mudou de forma considerável nos últimos anos. Desde 2015, quando o Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, se aborreceu com a então presidente da República Dilma Rousseff, porque achou que ela não tinha se empenhado o suficiente para garantir que o PT não votaria contra ele no Conselho de Ética por “quebra de decoro parlamentar”, o jogo virou. A partir daí, com a aprovação das emendas de execução obrigatória, os parlamentares foram avançando sobre aquela já diminuta parcela discricionária do Orçamento, que permite ao Executivo gastar onde quiser. Hoje, nós temos as emendas individuais dos parlamentares, as emendas de bancada e uma série de emendas de execução obrigatória que realmente dão uma independência muito grande aos parlamentares, sejam de que partido forem.

Atualmente, o Parlamento não está mais obrigado a se submeter aos desejos do Executivo. O Congresso já não depende mais do presidente, como nos primeiros mandatos do Lula e nos tempos do Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares. Neste sentido, o Congresso pode criar mais dificuldades para o Executivo. Isso alterou a correlação de forças entre os Poderes. Então, além de o Lula 3 estar mais velho, visivelmente mais debilitado do ponto de vista do seu vigor físico, ainda sofre essa limitação. O governo Bolsonaro já pegou essa conjuntura de maior independência orçamentária dos parlamentares e meio que se conformou com o novo desenho. Mas parece que o governo Lula 3 está tentando rodar um software já vencido.

"Eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar. É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder."

Recentemente, o STF determinou que houvesse um acerto entre o Legislativo e o Executivo e até estabeleceu um prazo para isso acontecer. No fim, chegou-se a uma fórmula, que, pelo que entendi, deve dar mais poder ao governo na gestão do Orçamento. É isso mesmo? Como o sr. analisa esta questão?

O que se combinou, o que ficou mais ou menos garantido a partir de agora, foi a chamada rastreabilidade da origem das emendas, que é uma coisa positiva, na minha opinião. Isso vai permitir que se saiba quem pediu aquela emenda, em todos os seus passos: empenho da verba, se ela efetivamente aplicada, executada. Agora, tem uma questão em aberto aí. O senador Davi Alcolumbre (União-AP), que é candidato à sucessão do Rodrigo Pacheco na presidência do Senado, já está dizendo que a solução é transformar as emendas de bancada em emendas individuais.

De qualquer forma, essa ação do governo mostra que há uma tentativa do Executivo de recuperar o poder do passado em relação ao Orçamento. O sr. acredita que isso é possível?

É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder. O Congresso sentiu o gostinho dessas emendas de execução obrigatória e agora, obviamente, não quer devolver esse poder para o Executivo. Então, eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar.

É isso que explicaria, na sua visão, a dependência do governo em relação ao STF, para conseguir implementar suas políticas?

Exatamente. Ele precisa dessa muleta. Eu vou te dar um exemplo bem recente. Há poucos dias, outro ministro do STF, o Flávio Dino, autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para combater os incêndios florestais, fora do arcabouço fiscal, que, cá para nós, já está avacalhadíssimo, desacreditadíssimo, embora o governo Lula e sobretudo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, procurem manter uma aparência de normalidade nas contas públicas perante o mercado.

A rigor, tendo em vista a urgência de se combater esses incêndios que estão consumindo o Brasil, o Lula não precisaria da autorização do Flávio Dino para conseguir esse crédito junto ao Congresso. Mas, hoje, o governo se escuda atrás do STF mesmo quando não precisa. Agora, isso também tem uma explicação: para o Lula, para quem “gasto é vida”, o arcabouço fiscal impõe limites que ele e seus companheiros não suportam. Então, é como se o Lula dissesse “olha, não sou eu que estou pedindo para abrir o crédito. Estou pedindo porque o Flávio Dino determinou” – por sinal, em mais uma decisão monocrática de um ministro do Supremo.

Considerando todo esse quadro que o sr. traçou, o que a eleição do novo comando da Câmara e do Senado pode mudar na relação do governo com o Congresso?

Eu acredito que a próxima eleição para a presidência da Câmara e do Senado vai colocar nestes dois postos estratégicos representantes do chamado Centrão, que é aquela geleia, uma hora está de um lado, outra hora está do outro. Usa, muitas vezes, o ímpeto das bancadas de direita para pressionar o Executivo em questões paroquiais, de interesse dos políticos do grupo. Eu acredito que não vai dar para escapar disso. É claro que a direita está tentando comprometer os futuros presidentes das duas Casas, sejam eles quem forem, com a sua pauta. Agora, a gente sabe, por experiências anteriores, que essas promessas podem ou não ser cumpridas, dependendo da conveniência desses políticos, desses ocupantes de altos cargos do Congresso.

Acho muito difícil, pelo menos até onde a vista alcança, que haja uma mudança significativa nas posições do Congresso. Isso não quer dizer que, no futuro, não será possível, mas no momento acho pouco provável os futuros presidentes do Senado e da Câmara, sejam eles quem forem, concordarem com a diminuição do seu poder. Tem um postulado básico da ciência política segundo o qual quem tem poder não quer dividi-lo com ninguém. A não ser que seja forçado a isso por um poder maior. Agora, mesmo com as emendas de execução obrigatória, tem sempre um carguinho público que pode ser ocupado por alguém ligado a um deputado, a um senador, em troca de apoio no Congresso.

Como o sr. analisa as iniciativas do governo para interferir nas eleições do comando do Congresso, apesar dos desmentidos oficiais?

Eu acredito que o Executivo está se movimentando e vai se movimentar, sim, para ter o resultado mais favorável possível na composição das mesas do Senado e da Câmara. Agora, o que a gente percebe é que há alguns pontos que se tornaram cláusula pétrea para o Congresso e dos quais ele não vai abrir mão. Por exemplo, qualquer medida hoje que interfira negativamente nessa chamada pauta moral, na pauta dos costumes, na pauta da segurança pública, não tem muita chance de passar, porque quem se opõe a isso hoje está em franca minoria.

O impeachment do ministro Alexandre de Moraes não é tão simples quanto pode parecer

Na sua avaliação, qual a viabilidade de o pedido do impeachment do ministro Alexandre de Moraes que está sendo apresentado no Senado ser levado adiante?

Na verdade, a coisa não é tão simples quanto pode parecer, porque os regimentos internos, tanto do Senado quanto na Câmara dos Deputados dão uma latitude de decisão muito grande para os presidentes das duas Casas. Seria necessário futuramente modificar os dois regimentos, para que uma vez estabelecida uma maioria considerável, uma maioria robusta, pelo menos uma maioria absoluta de parlamentares favoráveis a um determinado curso de ação, que o presidente da Câmara ou do Senado tivesse de dar continuidade ao processo. Hoje, os presidentes têm poder demais, tanto na Câmara quanto no Senado, sendo que, no caso de processo de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal, cabe ao Senado conduzir, por maioria de dois terços.

O sr. acredita, então, que isso não deve caminhar no Senado?

Eu acredito que as cinco assinaturas que estão faltando para atingir mais da metade dos senadores vão ser mais difíceis de obter do que as 36 já obtidas no pedido de impeachment. Em quantos pedidos de impeachment do Alexandre de Moraes o Rodrigo Pacheco já sentou literalmente em cima? De qualquer forma, os senadores que apoiam o impeachment pretendem constranger o Pacheco com esse pedido, aproveitando que as eleições municipais armam o palanque para as eleições gerais de 2026. Para um partido se posicionar bem nas eleições gerais, é muito importante que ele tenha conseguido um bom resultado nas eleições municipais.

Outro dia, eu me deparei com o início de uma articulação para que os candidatos municipais do PSD, que é o partido do Pacheco, comecem a pressionar seus senadores mais ou menos nos seguintes termos: “Nós vamos perder as eleições aqui no nosso município, porque vocês são contra a assinatura do pedido de impeachment do Alexandre de Moraes”. Agora, ainda que isso não vá adiante, eu espero que a mera ameaça de abertura do processo de impeachment tenha, digamos assim, “capacidade de dissuasão”, para que os senhores ministros do Supremo caiam na real e retornem ao seu quadrado constitucional.

Além do impeachment, tem também o projeto de anistia aos presos dos atos de 8 de janeiro para o Congresso avaliar. Embora a narrativa dominante seja de que houve uma tentativa de golpe, muitos juristas, políticos e analistas que não têm nada de bolsonaristas dizem que, para eles, o que houve foi uma depredação de prédios públicos, como outras que ocorreram no passado, envolvendo o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Qual a probabilidade, na sua opinião, de essa anistia sair?

Eu acredito que o avanço mais rápido ou mais lento desse movimento pela anistia vai depender, mais uma vez, dos vasos comunicantes entre a opinião pública e seus representantes eleitos, porque a anistia é uma lei votada pelo Congresso. A esquerda está se manifestando contra a anistia porque, em sua visão, os manifestantes cometeram crimes como depredação, vandalismo etc. Agora, alguns juristas afirmam que a anistia é para isso mesmo, é para perdoar crimes. A anistia tecnicamente falando, é um perdão, um esquecimento em relação aos crimes cometidos por qualquer das pessoas envolvidas naqueles atos.

Eu tenho conversado de vez em quando com o desembargador aposentado Sebastião Coelho, que patrocina várias causas daquelas famílias, daqueles presos do 8 de janeiro. O Sebastião diz o seguinte para os seus clientes: “Se eu fosse vocês, não aceitaria nenhum acordo com o Ministério Público, pela simples razão de que a experiência histórica do Brasil nos mostra que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudam e você vai perder o direito de reclamar depois”. E o Sebastião Coelho não é o único a reconhecer a precariedade jurídica dessas ordens inconstitucionais. Agora, o que vai definir isso é o que antigamente os comunistas chamavam de “correlação de forças”. Vai depender de um Congresso que se sinta mais independente para tomar as medidas necessárias, entre elas, a abertura de um processo contra o ministro Alexandre de Moraes e a própria anistia.

Essa briga do Elon Musk com o Alexandre de Moraes ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil

Na semana passada, houve até uma tentativa na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de levar isso adiante, mas em princípio a decisão foi adiada para depois das eleições municipais por uma intervenção do governo e do Arthur Lira, presidente da Câmara. O sr. acredita que isso vai voltar mesmo à pauta?

Eu acho que vai depender sobretudo do resultado das eleições. Eu vi o Bolsonaro falando outro dia que o futuro do Brasil passa pelos municípios. Isso quer dizer que o PL e os bolsonaristas vão batalhar para fazer o maior número possível de prefeituras ou o maior número possível de prefeituras importantes, em cidades grandes, para provar sua força e garantir que, na eleição geral de 2026, mais bolsonaristas, mais representantes da direita entrem para o Congresso e possam efetivamente virar o jogo.

Muitos analistas consideram que a ação do ministro Alexandre de Moraes contra o X (antigo Twitter) e o empresário Elon Musk foi emblemática das restrições impostas hoje à liberdade de expressão no Brasil, de uma volta da censura. O que o sr. pensa sobre isso? O sr. concorda com esta visão?

Eu concordo. Acredito que a reação do Elon Musk foi um game changer, como dizem os americanos. Foi um fator que ajudou a virar o jogo. Essa briga do Alexandre de Moraes com o Elon Musk teve o resultado positivo de desacreditar a narrativa de que a direita é antidemocrática, a direita é fascista, a direita é isso, a direita é aquilo. Pelo menos a briga do Elon Musk com o Xandão ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que estava acontecendo e que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil.

Para finalizar, gostaria de voltar às eleições municipais. De acordo com as pesquisas, a esquerda está se mostrando competitiva, se não me engano, em quatro capitais, na disputa pelas prefeituras. Como isso se insere no contexto que a gente está vivendo? O sr. acredita isso reflete uma mudança de mentalidade na sociedade ou acha que as eleições municipais são definidas por questões locais mesmo e que o resultado se deve muito aos nomes que estão envolvidos na disputa?

A minha avaliação é que nas cidades pequenas realmente o local tende a prevalecer. Agora, nas cidades maiores, nas metrópoles, é inevitável que essa disputa municipal seja nacionalizada. Basta ver o exemplo de São Paulo. Hoje, as pessoas e a mídia só falam de duas coisas: Pablo Marçal e os incêndios. É o que está na pauta. É como se o Pablo Marçal já estivesse ensaiando uma candidatura presidencial, porque no Brasil inteiro se fala disso. Muitos candidatos em outras capitais já reclamam, falam assim: “Estão cobrindo pouco a gente e muito o Estado de São Paulo, a cidade de São Paulo”.

Para a direita se viabilizar em 2026, precisa conquistar uma parcela importante do centro político

Qual a sua avaliação do fenômeno Marçal? O sr. acredita que a disputa entre ele e a família Bolsonaro e a crítica que muitos bolsonaristas fazem a ele colocaram a liderança do ex-presidente na direita em xeque?

Diante do fenômeno do Pablo Marçal, o que eu acho que o Bolsonaro deveria fazer e não está fazendo é explicar por que a direita que ele representa depende de uma guinada ao centro para se viabilizar politicamente nas próximas eleições. Porque é justamente por isso que ele está apoiando o Ricardo Nunes, que não tem nada a ver com ele. O Nunes tem mais a ver com o presidente do PL, que é o Valdemar Costa Neto, do que com o presidente de honra, que é o Bolsonaro. De qualquer maneira, para a direita se viabilizar em 2026 precisa conquistar uma parcela importante do centro político. E justamente quando o Bolsonaro fez esse movimento surgiu o Pablo Marçal denunciando essa aliança.

Para o Marçal, é todo mundo comunista, aquele exagero todo. Agora, se o Pablo Marçal ganhar esta eleição, ele sem dúvida alguma se fortalece muito caso queira disputar a Presidência da República em 2026, embora isso ainda não esteja claro para mim. Mas, caso ele queira disputar a Presidência, uma vitória em São Paulo vai dar uma força enorme para ele. E, mesmo que ele não ganhe, eu acredito que o estrago já está feito.

Em que sentido o sr. diz que o estrago está feito?

No sentido da direita se dividir e, portanto, se enfraquecer. Porque o Bolsonaro, que até este momento é o grande líder nacional da direita, está apoiando um candidato de centro em São Paulo. E, se esse candidato de centro perder, isso vai mostrar uma dúvida. E se o Pablo Marçal ganhar? Vai mostrar uma divisão significativa da direita. Quer dizer, provavelmente a direita não marchará unida para 2026. Isso deve contagiar bastante o quadro. A esquerda está batendo palma.

Eu não aqui vou julgar das intenções do Marçal, até porque eu não as conheço, mas ele sem dúvida alguma neste momento representa um setor mais intransigente da direita e que vai buscar sua justificação lá atrás nas raízes do próprio Bolsonaro. Só que o Bolsonaro e seus colaboradores mais próximos já perceberam que, para se viabilizar eleitoralmente, a direita precisa do centro. O Pablo Marçal recusa isso. Então, não sei. Vamos aguardar.

Última pergunta: deixando de lado um pouco esse fenômeno do Marçal, se é possível fazer isso, quem deverá ser na sua percepção o herdeiro do Bolsonaro em 2026?

O bolsonarismo, quer o Bolsonaro tenha planejado isso ou não, permitiu o surgimento de um monte de outras lideranças de direita, ao contrário do que aconteceu com Lula, no PT. O próprio Pablo Marçal é uma delas. Agora, essa multiplicidade de lideranças talvez tenha que ser administrada, se a direita quiser realmente ter chances nas próximas eleições. Eu acredito que a eleição deste ano, a eleição municipal, ela vai fortalecer a direita. Agora, os líderes da direita precisam tirar as conclusões desse fortalecimento, fazer uma leitura correta dessa conjuntura, para que a direita não marche enfraquecida e dividida para as próximas eleições."

Entrevista por José Fucs

Foto: Elza Fiuza/Agencia Brasil

domingo, 1 de setembro de 2024

Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008 - Diego Viana (Valor Econômico)

 Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008

 

O melhor e o pior dos tempos

Entrevista /  Nouriel Roubini destaca como avanços tecnológicos podem melhorar nossas vidas, mas comportamento humano pode pôr tudo a perder.

Por Diego Viana, para o Valor, de São Paulo

31/08/2924

 

Nouriel Roubini se expressa como Charles Dickens (1812-1870) para falar do mundo atual: é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Se o romancista inglês se referia ao século XVIII da Revolução Francesa, o economista ítalo-iraniano-americano está falando de uma era marcada por automação e inteligência artificial, situação geopolítica fragmentada, mudança climática, extremismo político e protecionismo comercial.

Roubini veio ao Brasil neste mês para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Neste ano, o evento sugere aos participantes que respondam à seguinte pergunta: "Quem está no controle"? A incerteza sobre a capacidade de comando em escala mundial é uma das maiores preocupações do economista. A falta de uma potência hegemônica neste século, afíima, reduz o incentivo para ofertar bens públicos globais, principalmente a segurança. Como consequência, o perigo de conflitos internacionais se amplifica.

Ainda assim, pelo menos no curto prazo, o autor do livro "Mega-ameaças" (2022, ed. Crítica), que ficou conhecido como "Dr. Catástrofe" por prever a crise de 2008, enxerga um cenário benigno. Apesar do recente solavanco nos mercados, a economia americana segue crescendo, com reflexos no resto do planeta. Mas a expansão também envolve perigos: se o Federal Reserve contrariar as expectativas e se vir obrigado a manter os juros altos por mais tempo, empresas podem começar a quebrar, provocando uma recessão. 

 

Trechos da entrevista de Roubini ao Valor:

Valor: A pergunta "Quem está no controle?" sugere que rumamos para um mundo anárquico. É o caso?

Nouriel Roubini: É uma pergunta importante. A estabilidade da ordem geopolítica requer a hegemonia de um poder que esteja, de fato, no comando do mundo. Esse poder provê bens públicos globais, porque seus interesses são tais que está disposto a fornecer segurança, livre comércio, coisas assim. O século XIX foi do Império Britânico, com a Pax Britannica. O século XX foi, em grande parte, o século da Pax Americana. Tivemos a Guerra Fria, claro, com a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, mas a URSS estava desconectada da economia global. O colapso soviético levou a um momento unipolar. Parecia que os EUA seriam o único país hegemônico. Hoje, a ascensão da China sugere a vinda de um mundo bipolar, mas tudo aponta, na verdade, para a multipolaridade. Há outras potências, como a União Europeia, que é fragmentada, mas ainda um importante ator econômico global. Existem novas potências emergentes, como a índia. Há também os Estados médios do Sul global, importantes tanto regionalmente quanto, até certo ponto, para os assuntos globais. O poder dos EUA está reduzido, então fornecer bens públicos globais talvez não seja tão fácil.

Valor: É um estado transitório, rumo à "Pax Sinica"? Ou a ausência de hegemonia será prolongada?

Roubini: Por um tempo, pensou-se que o século XXI seria o século chinês. A China crescia a 10% e seu PIB parecia a caminho de ultrapassar o americano. Mas o motor de crescimento chinês estagnou. Estava em 7% antes da covid, depois passou a 5%. Estudos sugerem que, sem mudar suas políticas, a China pode chegar à taxa potencial de apenas 3% até o fim da década. Por outro lado, por causa da tecnologia, alguns argumentam que o crescimento potencial dos EUA, que anda em 1,8%, até o final da década pode ser de 3% ou mais. Acho que o século americano pode perdurar. O poder americano, seja comercial, financeiro, bancário, tecnológico, econômico, político, geopolítico ou militar, ainda é incomparável. Apesar do mau funcionamento de seu sistema político, o crescimento americano pode acelerar bastante. Já a China, com o capitalismo de Estado e o excesso de dívidas, com a crise no setor imobiliário e o estrangulamento do setor privado, pode acabar em uma armadilha de renda média.

Valor: Os mercados passaram por um solavanco recentemente, com começo no Japão e reflexos nos Estados Unidos. Depois, a situação se estabilizou. Ainda podemos classificar o cenário econômico global como benigno?

Roubini: O cenário é benigno, apesar de alguns riscos importantes.

Valor: Que riscos são esses?

Roubini: A desaceleração americana tem sido bem mais lenta do que o Fed previa. No momento, espera-se que sejam feitos cortes em setembro e dezembro, mas depois disso é possível que o afrouxamento não prossiga. Com isso, as condições financeiras continuariam apertadas. Dado o forte endividamento público e privado, altas taxas de jurospodem prejudicar as empresas que dependem de dinheiro barato. Paradoxalmente, passamos do risco de pouso forçado para o pouso suave, depois o não pouso, o que reintroduz o perigo de cair em recessão.

Valor: Sendo assim, o que é o mais importante a observar neste momento?

Roubini: O futuro da economia depende muito de quem será eleito em novembro. A política econômica seria bem diferente com Donald Trump ou Kamala Harris. Algumas políticas que Trump pretende implementar são inflacionárias, com protecionismo, enfraquecimento do dólar, interferência na política monetária, cortes permanentes de impostos. Isso aumentaria os déficits ainda mais, tornando-os menos sustentáveis, o que traz consigo o risco de que os juros sejam empurrados para cima. Não estamos fora de perigo. Primeiro, porque o Fed talvez não possa reduzir muito os juros. Segundo, porque, dependendo da política econômica do ano que vem, pode haver tormentas.

Valor: O sr. disse que o potencial de crescimento dos EUA será maior, graças à tecnologia. Mas a adoção de tecnologia tem sido bastante rápida. É possível que o crescimento esteja acontecendo com inflação em queda porque esse potencial maior já entrou em cena?

Roubini: É uma possibilidade. A empolgação com a inteligência artificial generativa levou a uma onda importante de investimentos nos EUA. Todo mundo está entrando na IA. Os produtores desses modelos estão comprando mais chips, mais bancos de dados, mais eletricidade. Além disso, nos EUA, as leis de infraestrutura, da indústria de chips e da redução da inflação (IRA) levaram a um boom de investimentos industriais, com centenas de bilhões de dólares em nova capacidade manufatureira prometidos para a próxima década. A antiga infraestrutura dos EUA começa a ser renovada e há incentivos à energia renovável. São coisas grandes, que provavelmente atuam tanto no lado da oferta quanto da demanda. Elas podem explicar por que o crescimento tem sido forte.

Valor: Pelo prisma do mundo em desenvolvimento, os juros altos nos EUA preocupam porque reduzem o fluxo de capital e desvalorizam as moedas. Como é o cenário para o Sul global?

Roubini: Se prevalecer o cenário benigno e o Fed mantiver os juros no nível atual, há problemas. Um país que tenha tomado emprestado em dólar vai ter um custo de serviço da dívida mais alto. Isso vale também para quem tomou emprestado em moeda local, porque quando os juros em dólar estão altos, os juros em moeda doméstica têm que ser ainda mais elevados, para evitar a depreciação. Essa depreciação de moedas pode ser útil para a exportação desses países, mas é inflacionária. Além disso, o câmbiotambém eleva o preço em dólar das commodities, o que é uma desvantagem para exportadores. Essa combinação de fatores implica ventos contrários significativos para muitos mercados emergentes.

Valor: Na reunião do G20, houve avanços na ideia da taxa global sobre os mais ricos. Impostos internacionais são discutidos desde a taxa Tobin. É uma ideia eficaz?

Roubini: As últimas décadas trouxeram um aumento na desigualdade ao redor do mundo. Isto provocou reações contra a democracia liberal e o capitalismo, porque muitas pessoas se sentem deixadas para trás. Há grande insegurança econômica. As reações são variadas, mas todas levam a algum grau de populismo. Por isso, precisamos fazer algo quanto à desigualdade. Aumentar o bolo econômico, dando mais oportunidades para as pessoas se educarem e desenvolverem habilidades, é sempre a melhor política. Mas faz sentido argumentar que é preciso taxar os vencedores, em termos de renda ou riqueza. É preciso chegar a um acordo global, assim como a OCDE obteve um acordo sobre o imposto corporativo mínimo. Só a cooperação internacional pode evitar esse problema.

Valor: A política americana tem tudo, menos tédio. Um candidato foi baleado, outro desistiu da corrida. Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Como um investidor navega essa situação?

Roubini: É difícil prever aonde essa eleição vai conduzir. Agora os democratas têm uma candidata jovem, uma mulher afro-americana que pode energizar a militância. Há o risco de que ambos os lados se declarem vencedores, levando a decisão até a Suprema Corte, mais ou menos como em 2000. Podemos até repetir janeiro de 2021, só que de um jeito ainda mais caótico, com violência nas ruas se Trump perder. Tudo pode acontecer. Os mercados sabem que haverá diferenças na política externa entre Trump e os democratas, mas tendem a desconsiderá-las, porque nesse campo as variações não costumam ser grandes. No Oriente Médio, Trump deve pressionar os palestinos por um acordo de paz com Israel. Há preocupação de que ele abandone a Ucrânia, mas se fizer isso, haverá um efeito dominó. A China se veria em condições de assumir Taiwan sem reação. Mas a relação com a China é um ponto de concordância entre republicanos e democratas, são ambos agressivos. Sabemos muito pouco do que virá. Há algumas ideias, mas é difícil precificá-las nos mercados.

Valor: Como alocar os investimentos perante esse quadro?

Roubini: Não é nada fácil. Esse ponto sobre a política externa ajuda, e algumas coisas são legíveis na política fiscal. O risco para a democracia é real, o que bagunça tudo. Acho que os mercados vão caminhar passo a passo, esperando para ver o que vem a cada momento. Há potenciais impactos ainda maiores, como a escalada da guerra no Oriente Médio ou na Ucrânia. Mas os mercados estão ignorando essas coisas, como se fossem um risco secundário. A melhor coisa é esperar para ver, em vez de se apressar em tomar alguma posição.

Valor: O sr. mencionou três iniciativas econômicas de Biden: leis de infraestrutura, de chips, de redução da inflação. Elas foram consideradas o retomo da política industrial ao centro da economia do planeta. Sem Biden, a política industrial permanece?

Roubini: A política industrial voltou de vez, não só nos EUA Os chineses a praticam há tempos, os europeus estão tentando. Em um mundo onde o crescimento é impulsionado pela tecnologia, dados, conhecimento e inovação, não posso deixar o mercado fazer tudo. Tenho que usar políticas industriais com inteligência para afetar a economia. Já nos afastamos do lais-sez-faire. Os governos estão pensando em como garantir a manufatura, como atrair ou resguardar empregos de qualidade. No processo, muitos erros podem ser cometidos, mas também há coisas boas que podem ser feitas. O resultado final pode ser bom ou ruim, ainda não sabemos. Mas todo mundo está fazendo.

Valor: O sr. citou a Europa como um dos polos do mundo fragmentado. Há debates na Europa sobre a derrocada do continente. Ela será ainda um grande ator na cena global?

Roubini: Isso depende de fazer as reformas estruturais e concluir o mercado único. Hoje, a perspectiva não está boa para a Europa. Há problemas na vizinhança, com ameaças vindas do Oriente Médio e da Rússia. Os EUA têm dois grandes oceanos e vizinhos amigáveis. Os EUA são independentes em energia, a Europa não. Os EUA são um mercado totalmente integrado, enquanto a Europa ainda não concluiu a união economicamente, nem politicamente. A Europa envelhece mais do que os EUA, que recebe mais imigrantes. A Europa está sujeita ao risco de que a Guerra Fria entre EUA e China piore. Ela exporta muito para a China e tem investimentos diretos lá. Está próxima do Oriente Médio, onde há turbulência, que pode levar a um choque energético como o da década de 1970, se houver guerra entre Israel e o Irã. Os desafios são todos solucionáveis, mas é preciso que a Comissão Europeia seja enérgica e aprove legislação para mudar os incentivos na direção de mais inovação, competitividade, dinamismo econômico e empreendedorismo. A Europa começa o jogo com grande capital humano, instituições fortes, renda alta. É rica, mas não se pode viver dos louros do passado.

Valor: Um ativo que a Europa preza muito é o "efeito Bruxelas", pelo qual as regulações europeias são adotadas no resto do mundo. Pode ser o caso da lei de IA recém-aprovada?

Roubini: Os europeus alegam que um dos seus papéis é fornecer parâmetros regulatórios, graças ao tamanho e importância de seu mercado. Mas é um comportamento complacente. Os grandes líderes em IA hoje são os EUA e a China, além de bolsões de excelência em Israel, Reino Unido e Japão. A Europa tem ambições nesse campo, mas não é tão forte. Mesmo antes da revolução da IA, os europeus não foram capazes de ocupar mercados com inovação. E se você não está inovando, tentar regular é ingênuo. Um: porque sua regulamentação pode ser demais e sufocar até mesmo o mínimo de investimento que você poderia obter. Dois: você pode errar. E três: não é óbvio que os outros vão adotar suas regras. Eu gastaria mais tempo tentando criar inovações em IA na Europa, em vez de regulá-la de uma forma que dá ainda menos incentivo para fazer parte dessa pesquisa.

Valor: Em resumo, que falta faz ter alguém "no controle"?

Roubini: Remeto ao título de um artigo que escrevi: "Inteligência artificial vs. estupidez humana". Se bem usada, a IA pode aumentar o crescimento, a produtividade, o bolo econômico. Mesmo se a maior parte da renda gerada for para poucos, sempre se pode taxá-los e redistribuir. O problema é a estupidez: não vivemos no mundo das máquinas inteligentes, mas de conflitos geopolíticos, reação contra a democracia e a globalização, relocalização da manufatura, nacionalismo econômico e mudanças climáticas. Essa mesma tecnologia pode ser usada para criar falsificações profundas, aumentar a desigualdade, aprofundar o desemprego e inclusive construir mais armas, para lutar guerras maiores. Vivemos no melhor dos tempos, porque a tecnologia pode nos fazer viver mais, melhor e com mais renda. E vivemos no pior dos tempos, com as mega-ameaças impulsionadas pelo comportamento humano. Podemos sobreviver aos próximos 20 anos sem guerra global, sem outra pandemia, sem catástrofe climática, sem crises financeiras? Se conseguirmos, o futuro será brilhante, usando a tecnologia para melhorar a situação de todos. 

 

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Zelensky critica a aliança de Lula com países autocráticos (247)

 “ Em uma entrevista concedida ao apresentador da Luciano Huck, da Globo, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, atacou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Zelensky questionou a neutralidade brasileira, alegando que o país, sob liderança do presidente Lula, deveria aderir à posição ucraniana e do bloco da OTAN.

Zelensky criticou também as relações do Brasil com países do Sul Global. "Ele pensa na Rússia como se hoje ainda existisse a União Soviética. A China é um país democrático? Não. E o que dizer sobre o Irã? É um país democrático? Não. E o que dizer da Coreia do Norte? Eles não são países democráticos. Então, o que o Brasil, um grande país democrático, faz nessa companhia?", perguntou o ucraniano. "Eu não consigo entender esse círculo de países. É normal quando você tem relações econômicas, mas estamos falando sobre uma guerra, não é sobre relações econômicas. É sobre geopolítica, é sobre valores, é sobre pessoas. É sobre democracia, propósito e liberdade. O que um país democrático e livre como o Brasil está fazendo junto com países que não respeitam estes valores? Quem vai ganhar essa queda de braço? O Brasil vai engolir esses quatro aliados ou esses quatro aliados vão engolir o Brasil?", indagou.

Ele também afirmou que irá apresentar um plano de paz ao presidente russo Vladimir Putin, em que a Rússia devolveria as terras que Zelensky considera ucranianas.”

(247)

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

O Naufrágio das Civilizações - Amin Maalouf, entrevista

 O Naufrágio das Civilizações 

Amin Maalouf

Dois livros de Amin Maalouf, O naufrágio das civilizações e O labirinto dos desgarrados, ambos lançados pela editora Vestígio, compõem um fascinante painel histórico dos dramas e dilemas do mundo contemporâneo e das relações entre Ocidente e Oriente, entre tradição e modernidade.

Eis uma entrevista com o autor publicada pela Lire la Société.

Vocês podem encomendar os dois livros no site da Trabalhar Cansa ou pelo WhatsApp (11) 97860-6565

P - Qual é o propósito do seu trabalho?

Amin Maalouf - O naufrágio das civilizações começa como memórias íntimas. Depois, aos poucos, evolui para algo diferente. É como se eu olhasse para o mundo da minha infância e depois me mudasse, e, ao me afastar, tivesse uma visão um pouco mais ampla. E aí, principalmente a partir dos meus vinte anos, comecei a observar o mundo de uma forma um pouco mais ampla e a tentar entender o que aconteceu, como chegamos lá.

P - Qual é a sua definição de civilização e como ela “cimenta” as sociedades humanas?

AM - A noção de civilização tal como a utilizo neste livro é bastante simples. É uma referência à ideia que desenvolvemos, especialmente no final do século XX, de um choque entre civilizações. O título do livro desenvolve esta mensagem que diz que, em última análise, são todas as civilizações que naufragam.

Não é uma civilização que está simplesmente lutando contra a outra, todas estão em dificuldades, estão todas desmoronando e, se naufragarem, naufragarão juntas. Tomo a noção de civilização num sentido empírico, não estou tentando voltar à antiga e mais clássica distinção entre civilização, cultura... Diria que é um uso mais comum do termo civilização.

P - Como a herança que você adquiriu ao crescer no Líbano determinou o rumo da sua história?

AM - Acredito que quando você cresce em uma região onde há divergências e conflitos constantes... Você adquire o hábito de observar o mundo de uma determinada maneira. Nascer em uma sociedade já dividida em comunidades, cada uma com sua trajetória, sua história, confere certos hábitos de pensamento, e o fato de vivenciar acontecimentos, também violentos, afeta a forma como vemos as coisas. Não sei dizer exatamente como ter nascido no Líbano afetou a minha visão, mas tenho certeza de que sim.


domingo, 18 de agosto de 2024

Plano Real, 30 anos: entrevista com Pedro Malan - Nara Boechat (Veja)

 Como Pedro Malan vê o Plano Real trinta anos depois da sua criação

Economista lançou recentemente ‘30 anos do Real: crônicas no calor do momento’

 

Por Nara Boechat

Revista Veja, 18/08/2024

 

No fim do primeiro mandato do presidente Lula, em 2004, Pedro Malan fez uma crônica avaliando o aniversário de dez anos do Plano Real e a conquista da estabilidade da moeda ao longo dos governos, “independentemente de sua ideologia ou coloração político-partidária”. Esta história é uma das reunidas no livro 30 anos do Real: Crônicas no Calor do Momento (ed. Intrínseca) escrito em parceria com Gustavo Franco e Edmar Bacha. Em conversa com a coluna GENTE, o economista, que foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e presidente do Banco Central na implementação do Real, avalia as mudanças nos últimos 30 anos, analisa o impacto da inflação na sociedade e opina sobre o atual momento da economia brasileira.

 

CONSEQUÊNCIAS DO REAL. “O Plano Real foi um divisor de águas, se estabeleceu num curto período de tempo. Foram 500 dias desde que Fernando Henrique (Cardoso) assumiu como quarto ministro da Fazenda do governo Itamar Franco até o lançamento do Real. E nesses 500 dias, o Brasil mudou, a inflação foi derrotada. A derrota da hiperinflação não significa que não exista inúmeros outros problemas, existia à época e continuam existindo hoje. O problema é que agora, ao longo dos últimos 30 anos, é possível tentar enfrentar esses problemas sem uma inflação alta, crônica e crescente, que foi a insensatez que tivemos durante décadas”.


EXIGÊNCIA DA SOCIEDADE. “O Brasil foi o recordista mundial de inflação entre o início dos anos 1960 e o início dos anos 90. Éramos vistos como uma coisa peculiar pelo mundo, mas voltamos a ser considerados um país mais normal, que vive com inflação civilizada. Teve muito trabalho ali para sanear o sistema financeiro, lidar com questões de bancos comerciais, fazer a renegociação de dívida de estados e municípios, a lei de responsabilidade fiscal. A tarefa é preservar a inflação sob o controle, que passou a ser exigência da sociedade”.


NEVOEIRO DA HIPERINFLAÇÃO.  “Costumo dizer que nenhum governante hoje no Brasil pode se permitir ser percebido tendo uma atitude excessivamente complacente em relação à inflação ou achando que a inflação não tem importância, porque ela come o salário do trabalhador. Ela come o valor dessas transferências de renda que são tão importantes. O significado do Real foi esse. O país pôde vislumbrar melhor os seus inúmeros desafios e oportunidades do que antes, quando ainda vivia sob o espesso nevoeiro da hiperinflação. A tarefa continua”.


DÓLAR ACIMA DE 5 REAIS. “Já chegou a cinco e oitenta e seis, baixou agora. Ah, mas temos o sistema de um regime de taxa de câmbio flutuante. Então flutua ao sabor de eventos internacionais e percepções domésticas. O Brasil é uma economia integrada no mundo nessa dimensão financeira. Essas situações são algumas vezes excessivas, parcialmente corrigíveis, mas expressam coisas que estão acontecendo no Brasil e nas interações do Brasil com o mundo”.


INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL. “Sempre usei a expressão ‘autonomia operacional do Banco Central’. Temos um regime que é definido politicamente, o regime de meta de inflação. É o governo que decide isso, não é o Banco Central. E o Banco Central tem autonomia operacional para dado regime, operacionalizar a política monetária. Não é o Banco Central que estabelece a meta de inflação, é o governo legitimamente eleito, é um comitê de três pessoas, duas são indicadas pelo presidente da república. Por isso prefiro o termo ‘autonomia’ do que independência. É autonomia operacional para implementar uma política definida pelo governo”.


sábado, 3 de agosto de 2024

Direito ao Ponto: eleições na Venezuela - Max Telesca entrevista Rubens Barbosa

Programa Direito ao Ponto com Max Telesca - 03/08/2024

Entrevista: Embaixador Rubens Barbosa

Tema: Venezuela. 

Vamos falar do tema mais comentado: eleições na Venezuela e a posição do Brasil, com a opinião do Embaixador Rubens Barbosa, especialista em relações internacionais, convidado especial que trará sua visão para todo este cenário.

Youtube: Max Telesca

Rádio: 100,5 FM Sucesso News

#eleiçoes #venezuela #notícias #Advocacia #Justiça #Direitointernacional

https://www.youtube.com/watch?v=c0B3D0Vpkqo 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

“Nenhum país é governável com a mentalidade gasto é vida" - Entrevista - Luis Stuhlberger (Valor Econômico)

 Introdução de Mauricio David:

Luis Stulberger é considerado por muitos o Warren Buffett ( o “mago” de Omaha...) brasileiro. É uma questão de opinião, mas algumas das coisas que ele diz são de gente, como ele, que conhece as condições de mercado. Algumas das suas previsões são complicadas (o governo Lula III seguindo os passos do desastre Dilma II, o dólar apontando para 7,0, o gasto previdenciário estourando, etc e tal). Um Deus nos acuda ! Mas que as suas previsões são realistas, lá isto são. O País está à beira do caos, com um presidente doidivanas que pensa que sabe economia e com um Ministro da Fazenda que entende um pouquinho – mas bem pouquinho mesmo...- de Sociologia e nada de Economia... Eh!, o futuro que se vislumbra não é nada otimista... Salve-se quem puder ! Ainda bem que 2026 está às portas, com novas eleições presidenciais... Mas falta ao Brasil um novo Fernando Henrique (o atual está fora de combate, preso ao leito), um novo Ricupero ( que se coloca fora de cogitação), quem nos sobrará ? O Malan não tem gosto pela política, o Bacha só pensa nas vaidades da Academia Brasileira de Letras, o Ciro rifou-se a si próprio, só sobra o Eduardo Paes que pensa que pode governar distribuíndo benesses e estádios às torcidas do Vasco e do Flamengo... Mas que país é esse ?, se perguntavam os roqueiros da Legião Urbana. Uma Pasárgada, como dizia Manuel Bandeira. Ou talvez a Maracangalha, do Dorival Caymmi...

MD

 

"Nenhum país é governável com a mentalidade gasto é vida"

 

VALOR ECONÔMICO - SP

24/07/2024

 

Entrevista - Para Stuhlberger, da Verde, câmbio depreciado veio para ficar e troca no BC preocupa

 

À frente do emblemático fundo Verde, um dos multimercados mais antigos da indústria de gestão de recursos no Brasil, Luis Stuhlberger mudou o posicionamento da carteira para um cenário mais pessimista a partir de abril. Foi quando o governo encaminhou a proposta do orçamento para 2025 que ficou claro que o arcabouço fiscal, desenhado no ano passado, não era crível. Com premissas de arrecadação extremamente agressivas, despesas subestimadas e um PIB projetado em 2%, a lógica do "gasto é vida" do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou à mesa.

O teto de gastos, diz, já tinha sido derrubado no final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Depois de Lula conseguir com o Congresso cerca de R$ 150 bilhões com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da transição, soma similar à obtida por Bolsonaro, o crescimento de gastos previdenciários e assistenciais mostra uma equação difícil de ser resolvida.

"A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar pagamentos para quem não trabalha", diz Stuhlberger, ao atualizar o seu diagnóstico macroeconômico e refletir sobre a indústria de multimercados.

No ajuste do timão, o gestor passou a comprar dólar, diminuiu a parcela em ações e trocou a histórica exposição em Notas do Tesouro Nacional série B (NTN-B) pela equivalente americana, a Treasury Inflation-Protected Securities (TIPS). Foi insuficiente para superar o CDI no ano, mas o Verde é um dos poucos multimercados tradicionais que numa janela de 2,5 anos ainda tem gordura em relação ao referencial.

"Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, tanto multimercados quanto de ações." A sucessão de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central é um fator de preocupação se o indicado for alguém que ceda a pressões políticas por corte de juros. "O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a [ex-presidente] Dilma [Rousseff] fez, colocando o [Alexandre] Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque ele vai pra R$ 7." Ele não vê, contudo, esse cenário se concretizando se Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária, for o escolhido, mas diz que o real mais depreciado veio para ficar.


A seguir, trechos da conversa com Stuhlberger, que recebeu o Valor na sede da gestora no fim da semana passada.

0 pé trocado dos multimercados Os multimercados, grandes e menores, operam bastante no exterior. Mas claro, têm o "edge" brasileiro. Dificilmente você vai ver um multimercado aqui que não tenha nenhuma posição no Brasil. E digamos assim que esses sete meses, seis meses mais um, o Brasil teve uma deterioração no preço dos ativos bastante significativa.

A gente pegou essa deterioração no começo. Fomos mal de janeiro a abril, mas de abril em diante, meio que virou. Eu já falei que me penitencio por ter acreditado que o PT teria alguma seriedade fiscal. Aí mudei de ideia, a gente passou a comprar dólar, diminuir a exposição a ações, trocamos as NTN-Bs por TIPS americanas, e aí melhoramos a performance. Não deu para compensar todas as perdas, que não foram enormes. Mas, pelo menos, eu acho que a gente agora está do lado certo do ciclo econômico.

Quebra de confiança 

O teto de gasto já levou um tiro no final do governo Bolsonaro. Aí vem uma fase de muita tensão no Brasil, no segundo semestre de 2022, que era política mesmo, tipo vamos ter um presidente? Bolsonaro falou que não ia aceitar o resultado das urnas. Foi extremamente sério. Estrangeiros dizendo assim: "não posso investir no Brasil porque não sei se vocês vão ter um presidente"; foi apavorante. Aí o Lula ganha por uma margem pequena, mas governa como se tivesse uma margem enorme. Esperava-se um Lula, digamos, mais parecido com o Lula 1 e Lula 2, vem aquela tensão de querer a PEC de transição, subindo já o gasto de 2022 para 2023 de maneira muito expressiva. Foi aprovada no Congresso que não é de esquerda, mas dá governabilidade. Deram uma quantia parecida àquela que deram para Bolsonaro, R$ 150 bilhões. E depois, com o passar do tempo, o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad foi reconstruindo a parte de tributos que o Bolsonaro excluiu.

"Gasto é vida" 

Essas mudanças abruptas econômicas começam naqueles primeiros meses de governo Lula com "gasto é vida, sou contra qualquer tipo de controle, sempre governei gastando muito, mas depois o PIB cresce e tudo se resolve". Até que depois de um certo tempo de debate sai o arcabouço, no começo de 2023. Houve um período de calmaria relativamente longo, quase um ano. Teve outras tensões, mas do ponto de vista fiscal, o mercado acabou comprando a ideia de que o arcabouço funcionaria. A premissa não era a ideal, mas as tensões vinham muito mais de fora do que de dentro, basicamente dos Estados Unidos.

Começou a ficar claro que o arcabouço era uma peça de ficção quando o governo mandou o orçamento do ano que vem. Veio com premissas de arrecadação extremamente agressivas, depois de tudo que subiu em 2023, subiu em 2025 sobre 2024, 3,5%. Com o PIB que a gente imagina, que vai subir um pouco mais de 2%, é impossível. E aí tem aquelas metas, vai fazer R$ 50 bilhões de acordos no Carf, premissas que não vão ocorrer. A Fazenda governa no estilo, "eu aumento, mas não invento". E isso, no final, acaba deixando o Congresso irritado.

O nó previdenciário 

No gasto do governo federal, que deve estar por volta R$ 3,4 trilhões, 20% do PIB, há um crescimento expressivo dos gastos previdenciários totalmente incompatível com a reforma. A reforma da Previdência mostraria agora uma curva de crescimento muito abaixo do que se vê. E ninguém tem uma explicação para isso.

Eu não sei exatamente onde passaria essa curva, mas acho que seria mais perto de 1% e está subindo 3%. Nos últimos 12 meses, o acumulado é de R$ 930 bilhões. Mas previdência é previdência, as pessoas ficam mais velhas, se aposentam. Agora, o que está subindo de maneira muito mais intensa é aquilo que chamo de assistência social, vista fiscal, o mercado acabou comprando a ideia de que o arcabouço funcionaria. A premissa não era a ideal, mas as tensões vinham muito mais de fora do que de dentro, basicamente dos Estados Unidos.

Começou a ficar claro que o arcabouço era uma peça de ficção quando o governo mandou o orçamento do ano que vem. Veio com premissas de arrecadação extremamente agressivas, depois de tudo que subiu em 2023, subiu em 2025 sobre 2024,3,5%. Com o PIBque a gente imagina, que vai subir um pouco mais de 2%, é impossível. E aí tem aquelas metas, vai fazer R$ 50 bilhões de acordos no Carf, premissas que não vão ocorrer. A Fazenda governa no estilo, "eu aumento, mas não invento". E isso, no final, acaba deixando o Congresso irritado.

O nó previdenciário 

No gasto do governo federal, que deve estar por volta R$ 3,4 trilhões, 20% do PIB, há um crescimento expressivo dos gastos previdenciários totalmente incompatível com a reforma. A reforma da Previdência mostraria agora uma curva de crescimento muito abaixo do que se vê. E ninguém tem uma explicação para isso.

Eu não sei exatamente onde passaria essa curva, mas acho que seria mais perto de 1% e está subindo 3%. Nos últimos 12 meses, o acumulado é de R$ 930 bilhões. Mas previdência é previdência, as pessoas ficam mais velhas, se aposentam. Agora, o que está subindo de maneira muito mais intensa é aquilo que chamo de assistência social, é uma quase previdência. As rubricas são imensas, esse número já é de mais de R$ 500 bilhões e está subindo. Coisas como o Bolsa Família, o BPC [Benefício de Prestação Continuada], que é o valor de uma previdência para quem não contribuiu, mas se aponta que tem qualquer doença que não te deixa trabalhar, você consegue.

Por isso que o Haddad fala, "deve ter fraude, vamos achar uns R$ 15 bilhões nisso, R$ 20 bilhões". O governo promete e não acha. E deu uma acelerada no governo Lula.

Quando se soma a previdência mais toda a assistência social, esse número já chega a R$ 1,7 trilhão. E para o ano que vem vai ser maior. Por isso que o mercado não se acalma com corte R$ 15 bilhões, porque isso sobe R$ 200 bilhões por ano. A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar quem não trabalha. Ainda assim, esses cheques não são grandes. Se tirar a fortuna de todos os brasileiros ricos juntos, você não paga um ano disso. O problema é que é o âmago do pensamento do Lula.

Nenhum país é governável com essa mentalidade, mas o Lula e a esquerda acreditam na teoria de que se distribuir esse dinheiro todo, essas pessoas vão consumir. Em consumindo, a indústria vende, o comércio vende, a economia gira, as empresas pagam impostos e no fim terá valido a pena, porque isso faz o PIB crescer. E quando o PIB cresce, a dívida/PIB não cresce. É um pensamento que deu errado, historicamente, em todos os lugares do mundo

Lá e em abril, maio, quando os agentes econômicos entendem isso, houve deterioração súbita dos ativos. Misteriosamente, mesmo antes da deterioração dos juros e do câmbio, a nossa bolsa já vinha mal. Os estrangeiros tiraram R$ 40 bilhões do Brasil até abril, maio.

Os brasileiros estavam otimistas e não entendendo por que o gringo estava tirando dinheiro. Mas era da bolsa. Em investimento direto, compra de participações de empresas, não é um dado dramático, está todo mundo feliz porque a conta corrente está boa, com o Brasil batendo recorde de exportações, com o pré-sal, a balança crescendo, são números bons. Então, de uma certa forma, essa situação cambial boa durante um bom tempo mitigou uma situação fiscal ruim, até o dia que não mais.

É um conceito muito simples, que é "quando a pasta de dente sai do tubo". Aí não adianta você falar, "não, mas eu vou contingenciar". Quando a pasta de dente sai do tubo, essa teoria da entropia, demora para ela voltar. Agora, se você me perguntar, o Brasil tem conserto? Tem. Mas você tem que modelar no preço dos ativos a equação: Qual a chance de o Lula ganhar a eleição em 2026? É no mínimo 50%. Então com esse tipo de política, por mais quatro anos, até 2030 o país vai piorar muito.

Eventualmente, neste ano, cumpre a meta. Mas a dívida/PIB não sobe só pelo arcabouço. As coisas fora do arcabouço não são pequenas. O que o mercado olha hoje? la bom, são R$ 15 bilhões [de contigenciamento], ok, mas a receita está superestimada, a despesa do ano que vem subestimada. Mesmo o governo fazendo com controle é um negócio que sobe R$ 200 bilhões por ano.

É claro que o governo quando se vê num "comer", dá um medo lá em Brasília. Se a bolsa cai, o juro sobe, eles não entendem muito bem; mas o dólar quando sobe é sério, porque pega a inflação na veia, vai afetar o preço de alimento, vai atingir a classe pobre. Estamos no meio disso e não vai melhorar muito.

Câmbio e efeito México

Quando se calcula o "fair value" [valor justo] do dólar no Brasil - vamos dizer que esteja por volta de R$ 5,20, R$ 5,25 -, entram várias coisas na conta: o CDS [prêmio de risco] do Brasil, o CRB [índice de commodities], a diferença da Selic para os Fed funds [juros dos EUA], Leva em conta o preço do dólar em relação ao euro, ao renminbi [chinês], e também a moedas de emergentes. E o México tem peso importante na cesta. A Claudia Scheinbaum [nova presidente do país] é uma pessoa surpreendentemente preparada, se comparar com o Lula. De esquerda, mas preparada. O problema é que fez um Congresso com dois terços de esquerda. Eu nem acho que a moeda [mexicana] tenha se depreciado muito. Mas isso pesou no real em 20 centavos. Se hoje o fair value é R$ 5,20, R$ 5,25, se não tivesse o efeito México, seria R$ 5,00.

Eu digo o México, mas o peso chileno também se depreciou, o colombiano, e agora com o [Donald] Trump [candidato republicano com chances de voltar à Casa Branca], há uma tendência negativa, com esse protecionismo, para as moedas da América Latina.

Esse dólar veio para ficar, a pasta de dente não vai voltar para o tubo. Na minha conta, está 6,5% acima do "fair value", se comparar o preço do dólar/real. No governo Dilma foi 20% acima, o que equivaleria hoje a R$ 6,10, R$ 6,20. Porém, por que isso não vai ocorrer? Porque naquela época a gente tinha um déficit em conta corrente muito alto, era 5%, hoje é 2%.

Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, multimercados e ações.

Juros

O mercado coloca um prêmio para o juro no Brasil de 2025 em relação à média da SOFR [a taxa do overnight publicada pelo Fed] de quase 750 pontos, enquanto hoje é 500. Quer dizer, está em 7,5%, tem um prêmio. Agora, você me pergunta: "Então o juro vai ficar em 10,5% até final deste ano e um Banco Central petista vai subir para 12%?" Não parece provável. Mas o mercado se equilibra nisso por uma razão de modelo. Então, você só vai ganhar essa diferença ficando até o fim.

A cada Copom que passa, sempre vai ter um prêmio grande. Eu fiquei muito surpreso quando isso aconteceu a partir de abril, porque imaginava que só ia aparecer no último ano de governo, quando poderia querer gastar mais e dar um pé no arcabouço. 

Reforma tributária

Tem o Congresso e os seus lobbies empresariais. Você não consegue tributar algo do agronegócio. O governo tem razão, a carga tributária brasileira é enorme, mas é muito mal distribuída. Esse é um ponto. O Brasil é o país emergente com maior carga. Não é fácil ser ministro da Fazenda. Agora, muita coisa foi mal feita. Você fica discutindo dois anos e enfia um monte de coisa na última meia hora. Então, por exemplo, eu já vi que a tributação do setor de construção está mal feita. Vai precisar de ajuste no Senado, vai ser uma briga. Mas é uma coisa boa, acho que essa reforma do IVA, apesar de estar longe do ideal, vai ser bem melhor do que a situação atual. 

Sucessão no BC

Preocupa todo mundo. Do mesmo jeito que o Lula pensa quanto mais gasto, melhor, o Brasil é um país que por conta disso tem um juro real de equilíbrio muito alto. E o Lula pensa assim: "E se esse juro fosse 2, 3% menor? Imagina esse dinheiro quanto faz falta no social..." Os governos do PT, todos eles, Lula 1, Lula 2, Dilma, eles têm uma equação muito simples: para a economia funcionar com o mínimo de equilíbrio, o governo acelera e o Banco Centralbreca. O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a Dilma fez colocando o Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque o dólar vai para R$ 7. Esse equilíbrio - o governo acelera e o Banco Central breca - não é bom, mas funcionou nos oito anos do governo Lula. O juro nos oito anos do governo era 15%, 16%, 17%. E o Brasil funcionava desse jeito.

Não acho que isso vá acontecer com o [Gabriel] Galípolo [diretor de política monetária, principal nome cotado para assumir o posto de Campos Neto]. As circunstâncias de mercado farão com que o Lula não coloque um novo Tombini, quando quem determinava taxa de juros supostamente era a Dilma.

Vai depender de quem vai estar no Banco Central, é muito sensível. Se cortar o juro de 10,50% para 9,50% num cenário desse, já é muita coisa. E o Lula, vamos dizer, ele fica possesso porque isso vai contra o bom senso econômico que entende que tem.

Eleições nos EUA 

Olhando para o futuro, acho que o que está em jogo é o que se chama de "Republican Sweep", que é o Tramp ganhar e levar o Senado e a Câmara. Ele vai ficar muito mais poderoso. E isso é muito importante. Tem coisas que o Trump pode fazer sozinho. Por exemplo, aumento de tarifas de importação. De fato, não acho que ele vá executar tudo que está falando, tipo, "vou expulsar 10 milhões de pessoas, vou deportar [imigrantes]". Isso não é viável, mas essa combinação de muito menos imigração com aumento de tarifas é muito inflacionária.

Tem uma dificuldade de dizer quanto isso está no preço, porque o que a gente chama de "rates" [juros], de Fed funds, para dezembro de 2025, está por volta de 3,70% e o juro de hoje está em 5,30%. Não acho isso suficiente para um Republican Sweep, vai ser mais que isso porque vai gerar uma inflação para 2025 de 1 % a 1,5% maior do que o mercado está marcando.

Essas coisas, às vezes, você não consegue fazer muito rápido. Então tem esse risco de o juro cair, depois eventualmente voltar a subir nos Estados Unidos. Esse risco está aí. A chance de o Trump fazer algo disso é razoável, é grande. Então isso vai gerar, pelo menos para os próximos meses, um fator de instabilidade para as moedas da América Latina.

A competição dos isentos 

Nem todos tiram dinheiro, especificamente do multimercado, mas falando de LCA, LCI, CRA, CRI, debênture incentivada, Fiagro, fundo imobiliário, HG, que são isentos [para a pessoa física], estamos falando de um estoque de quase R$ 1,8 trilhão. E tem aquela quantidade de CDBs de bancos muito pequenos que pagam lá 120% do CDI garantidos pelo FGC [Fundo Garantidor de Créditos], é também um competidor. Vai ter uma diminuição [dos incentivados] pelas medidas [de restrição de lastro] tomadas [pelo CMN], mas o estoque é imenso. No isento, tem risco de crédito privado e "duration". E tem muita coisa que tem risco de execução. Então, é aquela história do Brasil: tem o investimento que tem o come-cotas [o imposto semestral]. O multimercado [em fundo fechado exclusivo/restrito] pagava imposto quando resgatava. Mas era grande o estoque. 

Você pega uma performance sofrível, porque nenhum cliente tem um multimercado só, e junta com os isentos, aí tem uma tempestade perfeita.

Neste R$ 1,8 trilhão [em dívida], alguma coisa vai dar errado. Mas o atrativo da isenção é grande, porque você está falando de até 2% ao ano de vantagem. É óbvio que o principal problema da gente, nem vou dizer da "asset class", é performar melhor. Ano passado, a gente não foi mal, deu CDI mais 1,5% líquido e neste virou a chave de compreensão da complexidade séria do fiscal brasileiro. Não quero dar a impressão que a culpa é do Brasil, longe disso. A gente tem que melhorar, estamos trabalhando nisso.