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sexta-feira, 14 de março de 2025

Armínio Fraga: ‘Como o governo não plantou, não vai colher. Ou vai colher problema’ - Entrevista: Sheila D'Amorim (Valor) (via Mauricio David)

... “profissionalmente” a  equipe econômica está “funcionando mal”...

... se forem medidas que desincentivam o investimento é um desastre...

... A palavra adequada é colheita, de fato. Só que a colheita não vai ser boa, vai colher problema. Se plantou desequilíbrio, vai colher problema. É basicamente isso que está aí, mais ou menos encomendado...

... Não adianta a gente espernear, dizer “ah, não, não quero fazer a reforma”. Está bom, então vai pagar um preço. E o preço disso a gente já conhece. É incerteza, é volatilidade, é insegurança, é insegurança no emprego, é a frustração do crescimento baixo que o país tem tido há mais de 40 anos. Em 40 e poucos anos, o crescimento médio muito baixo, na média. Alguns anos foram bons. Alguns avanços importantes ocorreram na área social, na saúde… Tudo isso é verdade. Mas foi pouco. O Brasil cresceu muito pouco. Podia ter crescido muito mais. “

 

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Armínio Fraga: ‘Como o governo não plantou, não vai colher. Ou vai colher problema’

Para ex-presidente do Banco Central, a autoridade monetária precisa de ajuda. Ele diz que, sem ajuste fiscal adicional, Lula irá colher problema em 2025 e 2026. Ao Platô BR, ele falou ainda da irritação do presidente com o mercado financeiro e da avaliação de que Fernando Haddad é um ministro fraco

 

Repórter

12/03/2025 00:34

 

Armínio Fraga: ‘Como o governo não plantou, não vai colher. Ou vai colher problema’

Sem a disposição política do governo para encaminhar novas reformas ou propostas que reforcem o compromisso com o equilíbrio das contas públicas neste ano, o Banco Central está sozinho, com uma “batata quente na mão difícil de segurar”. A opinião é do economista e ex-presidente do BC Armínio Fraga, para quem a “colheita” que o presidente Lula espera ter em 2025 e 2026 “não vai ser boa”. “Vai colher problema”, afirmou Armínio em entrevista exclusiva ao Platô BR

Ele argumenta que, apesar de o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, e a nova diretoria da instituição terem um bom relacionamento pessoal com a equipe do ministro Fernando Haddad (Fazenda), “profissionalmente” a  equipe econômica está “funcionando mal”. E explica por que o BC precisa de ajuda.

Armínio, que comandou o Banco Central  em um dos períodos mais tensos da história econômica recente, com a mudança do regime cambial em 1999, também falou sobre o pacote do governo para tentar reduzir a inflação dos alimentos e defendeu a criação de uma “Bolsa Família Alimentação” voltada à população mais carente, em vez de medidas heterodoxas de controle de preços.

Ele se coloca ainda contra propostas de mudanca na meta de inflação no Brasil, atualmente em 3% ao ano, já defendidas no mercado e analisa as perspectiva de desempenho da economia brasileira nessa reta final do terceiro mandato do presidente Lula dizendo que há risco de recessão no final do ano.

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Sobre a  avaliação do governo de que o mercado financeiro não gosta de Lula, Armínio diz que o presidente “tem toda razão de ficar chateado” em situações como aquela em que parte da Faria Lima comemorou a queda de sua popularidade, mas “não deveria interpretar isso como uma coisa pessoal”. O motivo: o “mercado” que critica é o mesmo que adorou as medidas adotadas no primeiro mandato de Lula.

Indagado sobre as críticas recorrentes a Fernando Haddad  – o presidente do PSD, Gilberto Kassab, disse recentemente que ele é um ministro fraco -, Armínio Fraga tira o peso das costas do ministro e joga nas de Lula. Ele afirma que Haddad “faz o que o chefe dele manda” e que não sabe o que mais ele poderia fazer. “Talvez bater na mesa pontualmente e se posicionar, mas, no fundo, o maestro é presidente da República”.

Ao falar de outro tema candente, as medidas de Donald Trump que têm mexido com a economia global, o ex-presidente do BC, também sócio-fundador da Gávea Investimentos se disse preocupado. Nesta terça-feira, 11, a Casa Branca confirmou a tarifa de 25% sobre aço e alumínio “sem exceções e sem isenções”, o que inclui o Brasil. “Eu estou, no momento, preocupado porque acho que a ideia de um mundo economicamente mais aberto é muito poderosa e ela está sendo radicalmente revertida.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Um tema que hoje faz parte da mesa, do bolso, da vida do brasileiro é a inflação dos alimentos. Essa questão da alta do preço nos supermercados é um problema de difícil condução? É possível reverter no curto prazo?
Esse é um tema muito quente e, de fato, é muito impactante porque, para a maioria da população que tem renda infelizmente baixa a alimentação tem um peso muito grande e o IPCA tem mais ou menos 21%, mas na cesta de consumo das pessoas mais pobres é mais. Não é um assunto fácil, tem várias origens. O preço internacional das commodities, as mais variadas… O que aconteceu com o preço do café, por exemplo, é muito impressionante. O câmbio também afeta e, às vezes, questões climáticas. E a resposta não é trivial. É muito importante o mercado funcionar. Se não, você transforma um problema tipicamente temporário num problema mais permanente, com controles e com subsídios. No cômputo geral, a inflação tem sido um problema não só aqui, mas no mundo inteiro. No limite, é melhor uma solução tipo Bolsa Família do que propriamente alguma heterodoxia que, em última instância, sai pela culatra.

O programa que o governo anunciou para tentar reduzir preços dos alimentos está nessa heterodoxia ou ele é factível? Consegue fazer a inflação ceder no curto prazo?
Eu nem gosto usar muito a palavra inflação, que denota uma coisa mais geral. Os próprios bancos centrais, o nosso inclusive, tratam essas alterações de preços de alimentos, de commodities em geral, frequentemente como um choque temporário. O próprio Banco Central não vai incluir esse aumento de maneira plena, na ideia básica de que isso não é para sempre. E na ideia, mais básica ainda, de que a inflação é uma coisa mais geral. Do ponto de vista social, acho que é disso que a gente está falando, algumas dessas medidas podem trazer algum alívio. Essa discussão vai além do que está acontecendo agora e que passa por cesta básica e a própria criação de um imposto novo, o imposto que foi aprovado, mas está ainda em fase de implantação. Também teve muito lobby para isentar alguns alimentos. Eu acho que, no geral, a melhor solução não é a intervenção direta, é uma intervenção que é da família do Bolsa Família. Essa seria a ideia, se for para fazer alguma coisa. E eu entendo que é um momento de enorme dor para as famílias mais pobres
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Mas seria o quê? Um auxílio cesta básica?
Algum auxílio, por exemplo, algum rebate. A discussão do rebate apareceu também. Acho que é de melhor qualidade econômica e permite com que o próprio mercado, com o tempo, funcione. É importante lembrar que o mercado tem duas dimensões e que, às vezes, uma delas fica esquecida. É sempre lembrar que, se controlar preço, não vai ter oferta. Isso é fundamental. Tem uma segunda que as pessoas têm no mercado uma forma de, no fundo, indicar quais são as suas preferências e isso é importante numa economia livre. Então, acho que essas respostas têm que ser muito cuidadosas, respeitando esse sofrimento das famílias. Mas é preciso pensar bastante. Eu não estou olhando todo o detalhe. Eu sou um pouquinho mais para cético, embora eu ache que a curto prazo alguma coisa pode ajudar, mas com cuidado. Se não houver esse cuidado, aí sai pela culatra. Lá na frente é até pior.

Por que seria até pior? Pelos gastos públicos?
Porque se forem medidas que desincentivam o investimento é um desastre.

Nos cálculos do governo para a redução da inflação no curto prazo há recuo da taxa de juros em relação ao final de 2024 e a não ocorrência de eventos naturais extremos, como seca ou chuva em excesso. Sobre isso o governo não tem controle. A super safra é o que está praticamente contratado, mas no dólar estamos vendo muita oscilação. A semana começou tensa. Como o senhor vê o comportamento dessas variáveis, considerando que 2025 e 2026?
Eu acredito que o que o Banco Central pode e deve fazer é buscar controlar a inflação e lidar, portanto, com todos os itens de consumo das pessoas. Os chamados choques de oferta podem e devem ser administrados pelo Banco Central, tendo como horizonte dois anos, o que se fala tipicamente… Mas pode ser mais, pode ser menos, dependendo do tamanho da encrenca. E o Banco Central pode suavizar esse movimento. Não é apertando demais, mas também do outro lado é simétrica a história. Não pode ser quando é para cima o Banco Central deixa correr, mas quando tem uma super safra e os preços vão lá embaixo ou alguma outra variação dos preços internacionais de commodities, o Banco Central não vai reduzir o juro demais. Por quê? Porque essa inflação mais baixa é temporária. Então, é fundamental
 que seja um mecanismo simétrico, e que preserve o valor da moeda em geral. Isso é o que dá para fazer. É parte do funcionamento de uma economia de mercado. E o governo pode e deve, na atuação do Banco Central, procurar suavizar um pouco esses ciclos e, na atuação mais regulatória, ter estoques, coisas do gênero. Existem ferramentas consagradas e que eu acho que podem ser usadas com certo cuidado.

Ao falar nessa questão de suavizar a atuação do Banco Central, significa que não é preciso subir tanto os juros e que o choque  já contratado está de bom tamanho para controlar essa situação? Ou o quê, especificamente?
A situação está envolvendo uma série de fatores porque houve uma depreciação muito grande do câmbio, que não é exatamente um sinal de confiança no real, mesmo com esse juro (alto). Então, isso não é bem um choque de oferta e tem que ter um outro tratamento mais complexo e, em última instância, o Banco Central tem que deixar claro ele vai perseguir a meta. Agora, se para chegar na meta o Banco Central está tendo que colocar o juro em 15%, que é a expectativa, ou 14,25%, na próxima reunião, é um sinal de que você tem um problema maior. O Banco Central está sobrecarregado e está faltando ajuda do lado fiscal. Esse é o problema maior que nós temos. E essa situação fiscal, no fundo, faz com que a confiança no real caia muito. Todo mundo está olhando: o governo está tomando dinheiro emprestado para pagar juro. Todo mundo que já tomou dinheiro emprestado ou conhece alguém que já caiu no cheque especial, deixou o saldo no cartão de crédito e aquilo foi rolando a uma taxa alta, entende bastante bem essa situação. Então, assim, o Brasil hoje tem uma situação onde o governo paga inflação mais 7,5% (IPCA mais 7,5%) por um período muito longo e não é viável. Estamos meio que enfiando a cabeça na areia com relação a uma questão: em última instância, tem um fundamento fiscal fora do lugar, que precisa ser corrigido. Agora, o governo já deixou claro que não quer mais fazer reforma nenhuma. Isso a meu ver é uma péssima política econômica e tem graves consequências sociais. E não é a longo prazo. É a médio prazo, e até mais a curto prazo porque que tira a confiança na economia e, com isso, o Brasil fica vivendo da maneira que a gente viu nos últimos 40 anos: cresce um pouco durante o período, depois tem uma crise, cresce um pouco, tem uma recessão. Não é bom. Isso está fora
 do lugar.

Estamos na segunda metade do governo e o presidente já deixou claro que acredita que 2025 e 2026 serão anos de “colheita”. Não tem mais espaço para reformas e o que havia a fazer já foi feito. Há o risco de não se fazer mais nada em 2025, 2026, além do que foi anunciado, encaminhado ao Congresso e aprovado no final de 2024. Qual é o risco?
A palavra adequada é colheita, de fato. Só que a colheita não vai ser boa, vai colher problema. Se plantou desequilíbrio, vai colher problema. É basicamente isso que está aí, mais ou menos encomendado.

Sem cuidar do fiscal, pelo que entendi, não se conseguirá avançar na equação, na solução de problemas: a inflação, os juros altos…
Exatamente. E o fiscal precisa de reformas profundas, esse que é o diabo. Mas não tem jeito. Não adianta a gente espernear, dizer “ah, não, não quero fazer a reforma”. Está bom, então vai pagar um preço. E o preço disso a gente já conhece. É incerteza, é volatilidade, é insegurança, é insegurança no emprego, é a frustração do crescimento baixo que o país tem tido há mais de 40 anos. Em 40 e poucos anos, o crescimento médio muito baixo, na média. Alguns anos foram bons. Alguns avanços importantes ocorreram na área social, na saúde… Tudo isso é verdade. Mas foi pouco. O Brasil cresceu muito pouco. Podia ter crescido muito mais. Mas não vai ser sem abordar a Previdência outra vez. Não vai ocorrer se as questões ligadas ao bom funcionamento do Estado não forem abordadas, com uma reforma administrativa bem feita para aumentar a produtividade do Estado também. Não vai acontecer se os gastos tributários, que são enormes subsídios para os mais ricos, não forem encarados. Acho que essa é uma agenda óbvia já há bastante tempo. Isso tudo é coisa grande. Hoje tem um tema quente que são essas emendas (parlamentares) e que estão estimadas em R$ 50 bilhões. Isso é 0,4% do PIB. Sinceramente, o Brasil tem que fazer um ajuste (fiscal) muito maior. Então, o déficit primário de 1% do PIB. Precisaria ter um superávit de 3% do PIB para estancar a sangria. Bom, e aí, como é que vai ficar? O que eu acho absurdo é a falta de transparência. Evidente que o Congresso tem toda legitimidade para se envolver na alocação dos recursos, mas a falta de transparência, não. Essa parte realmente é essa inaceitável.

Esse problema está sendo parcialmente atacado pelo lado da transparência, na discussão com o STF.
Mas o problema maior, que é o desequilíbrio entre a política fiscal e a política monetária, é a ameaça da chamada dominância fiscal. Esse é um problema muito grave e muito grande.

Quando a gente conversa com o governo, há uma leitura que o mercado tem uma irritação com o governo Lula, tem má vontade e sempre vê o que não foi feito e não valoriza o que foi feito. O mercado tem má vontade com o governo Lula?
O mercado não tem má vontade nem boa vontade com ninguém. O mercado gosta de uma economia sadia, que esteja crescendo, com os lucros crescentes, com investimentos rentáveis, com mais segurança, segurança econômica, segurança pessoal. Eu acho que o mercado, no fundo, numa economia de mercado, e não existe outra forma de se organizar a economia, ele gosta de boas políticas econômicas que tragam prosperidade, que permitam bons investimentos. O mercado gosta de volatilidade? Desculpe, mas estou trabalhando no mercado há décadas. O mercado gosta de uma boa tendência, positiva, bacaninha. Onde você vai poder investir, vai poder estudar direito os investimentos, entender o que você está fazendo, que também é um fator de produtividade para a economia. Às vezes, a gente se esquece. O mercado é um cassino? Não é. Usar o capital bem é bastante relevante. Eu entendo que o presidente Lula deve ter ficado chateado quando ele caiu nas pesquisas e o mercado subiu. Eu entendo perfeitamente. Ele tem uma história magnífica, e isso é inquestionável. Mas eu acho que no lado econômico…

Quando ele ficou doente, o mercado subiu…
Eu acho que ele tem toda razão de ficar chateado, mas eu acho que ele não deveria interpretar isso como uma coisa pessoal. Quando ele fez, tomou as decisões que ele tomou quando se elegeu a primeira vez, o mercado adorou. É o mesmo mercado. Então, não é esse o problema. É um problema do estado da economia que influencia os mercados.

Recentemente, o presidente do maior partido da base de apoio do governo, Gilberto Kassab, do PSD, falou num evento do mercado financeiro que, hoje, o governo tem um ministro da economia fraco, que não tem capacidade de influenciar o governo. O senhor considera Fernando Haddad um ministro fraco?
Não acho. Eu acho que ele faz o que o chefe dele manda. Não sei o que mais que ele poderia fazer. Talvez bater na mesa pontualmente
 e se posicionar, mas, no fundo, o maestro é o presidente da República. Então acho que é uma acusação, neste momento, natural também, porque as coisas estão paradas. Mas, em última instância, o problema está mais em cima.

O senhor já esteve no governo. Há um Banco Central com um presidente novo e uma diretoria relativamente nova ainda construindo a sua credibilidade. Como que o senhor vê hoje a atuação do Banco Central em parceria com a Fazenda, como uma equipe econômica de fato?
Pessoalmente, eu entendo que eles se dão bem, mas profissionalmente, vamos dizer assim, está funcionando mal. Eu acho que o lado fiscal está deixando uma batata quente na mão do Banco Central, difícil de segurar. Bem difícil. O Banco Central está precisando de ajuda. O arcabouço (fiscal), quando surgiu, foi um bom passo, mas ele está tendo resultados limitados. Ele próprio, no início, já nasceu limitado. Ele daria um passo na direção certa, mas não resolveria a questão. Eu tive a chance de comentar isso, inclusive no evento público em Brasília, na presença do ministro, que sempre foi uma pessoa lúcida, que, a meu ver, tomou a decisão correta lá atrás de fazer a manobra no ônibus e tentar caminhar na direção certa. Mas ela não foi 100% implementada e já era um primeiro passo positivo, mas apenas um primeiro passo. Mas eu não fulanizaria, não. Acho que se for para fulanizar, infelizmente é para cima.

E o pacote de medidas do final do ano passado e toda aquela discussão pública que gerou um desgaste para o ministro Haddad e o governo, de uma forma geral? Isso é reversível para 2025, 2026?
Eu acho que, em tese, é reversível se vier o comando para reverter. Mas, hoje, não é isso que está aí sinalizado. Não há dúvida que há uma pressão muito grande de que os últimos dois anos são hora de colher. Para colher, você tem que ter plantado antes. Como o governo não plantou, não vai colher. Ou vai colher problema.

Tem um ponto que  é um agravante: a mudança no comando dos Estados Unidos, a maior economia do mundo, e o presidente Donald Trump com esse vaivém na tarifação. Ficou mais difícil o cenário com Trump?
Muito mais, com certeza. O cenário já vinha complicado. A invasão da Ucrânia, o que está acontecendo no Oriente Médio, aquele terrível massacre em Israel, a guerra fria entre Estados Unidos e China… Não nos iludamos, isso é uma nova Guerra Fria. E aí, nesse quadro que surgiu Trump. Eu estou, no momento, preocupado porque acho que a ideia de um mundo economicamente mais aberto é muito poderosa e ela está sendo radicalmente revertida. A incerteza das políticas do presidente Trump são um fator recessivo. O tratamento que ele dá a seus aliados históricos, os seus vizinhos, humilhante é, a meu ver, inaceitável e incompreensível também. Não é um quadro muito promissor. A ideia é fazer umas reformas no Estado é sempre bom. Repensar algumas coisas, o bom funcionamento do Estado, avaliar, mas acabar com o Estado é um pouco demais. Não está muito claro até onde ele vai. Então, no momento, a chegada dele foi, eu diria, problemática e isso se espelha já um pouco no próprio mercado. Estamos aqui no meio de uma correção bastante forte na bolsa americana. O dólar, que, se imaginava, subiria com introdução de tarifas de importação, está caindo. É um movimento muito baseado em confiança também. É um pano de fundo bem ruinzinho
.

Nesse cenário tem muita intimidação de parceiros comerciais, mas algumas medidas concretas, como é o caso da tributação do aço e do alumínio do Brasil, entrará em vigor até que se faça alguma coisa no sentido contrário. Isso repercutirá no crescimento. Qual é a sua previsão para 2025?
Eu procuro não fazer previsão. Tem tanta variável…

O mundo está tão imprevisível?
A previsão é de uma desaceleração no Brasil, com certeza. Pode ser uma recessão.

Já em 2025?
Pode. Mais para o final do ano. Não quero fazer previsões porque tem muitas, vamos chamar assim, partes móveis na equação. Mas há risco, sim, de uma desaceleração forte. E ela combina uma política monetária apertada e um clima global bastante preocupante. Tem algumas coisas que eu estou bem curioso para ver. Qual vai ser a resposta da Europa? A Europa está dando sinais que foram reforçados com essa posição americana com relação à Ucrânia, muito interessante também.

Já tem gente que diz, na verdade, que o movimento é Make Europe Great Again, e que a Europa despertou. O destaque é a Alemanha, uma economia que sempre foi fiscalista. Austeridade fiscal acima de tudo e, agora, propôs um mega programa para os próximos anos de investimento em segurança e também modernização da indústria…
A Alemanha é um caso um pouco à parte porque ela construiu a credibilidade. Ela construiu uma base fiscal sólida para agora poder gastar 20% do PIB que eles estão prometendo gastar. Isso é um caso perfeito porque é uma economia que trilhou uma política fiscal, vamos dizer, mais austera. Ao contrário do seria uma visão intuitiva “curtoprazista”. A Alemanha tem tido um desempenho extraordinário. E agora, de fato, a concorrência na indústria, que é uma área forte da Alemanha, vinda da China, tem sido duríssima. As questões de estratégicas com a Rússia são complicadas. E a Alemanha pode com esse tipo de política? O problema desse tipo de política é o seguinte: é para quem pode, não é para quem quer. A Alemanha pode. Os outros, menos. Então, vamos ver como é que esse troço vai, no final das contas, acontecer. E o outro ponto é o seguinte: a Europa está envelhecendo bem rápido, fez opções de estilo de vida bem diferentes das opções americanas. E bem diferente das opções asiáticas. As pessoas têm mais tempo de lazer e proteção social maior. Isso tudo foram opções da Europa. O que a Europa precisaria, na verdade, é que esse processo fosse viável a longo prazo. Isso é o que está sendo questionado. Não dá. Está caro demais. Então, a ideia de que uma expansão fiscal vai ser a solução para o problema europeu. Não vai. Não. Talvez ajude no caso alemão porque eles são muito disciplinados. Certamente vão gastar bem o dinheiro, e eles podem gastar. Outros não podem.

Mas esse cenário também é um cenário inflacionário mundialmente, não é? O que penaliza também economias como a brasileira… Ou não?
Os últimos 20 anos, 30 anos de inflação formam um período muito interessante. De um lado, houve um consenso na linha de ter bancos centrais independentes, voltados para o controle da inflação. Foi um grande sucesso. Veio a pandemia, as inflações subiram, mas já estão caindo de novo. Existe essa visão de que a inflação não ajuda em nada. Temporariamente, às vezes, sim. A inflação sobe, os bancos centrais podem errar um pouco a mão aqui ou ali. Agora, no geral, a base fiscal também tem que existir para que os bancos centrais consigam fazer esse trabalho direito. Acho que, hoje, há uma certa euforia com relação ao que a Europa vai fazer. Tudo bem, mas a Europa fez opções. A produtividade da Europa, eu diria, é alta. Por hora trabalhada, a produtividade europeia é bastante alta. Então, assim, eu ainda acho que a médio prazo o problema da Europa tem a ver com demografia. A questão da imigração é colossal e, portanto, é um pouco cedo para soltar rojões e achar que agora vai.

Com essa reconfiguração mundial, com novas lideranças que assumiram postos chaves, como Donald Trump nos Estados Unidos, um patamar de inflação para uma economia como a brasileira de 3% é muito baixo? É possível conviver com uma inflação um pouco maior, na casa entre 4% e 5%, ou isso seria um problema muito grave para o Brasil?
Essa história é bem antiga. Tem economistas sérios defendendo um aumento da meta (de inflação). Eu não sou defensor. Eu acho que seria uma bobagem. Eu não tenho nada contra suavizar um pouco a volta à meta em situações limítrofes. Mas mexer na meta eu realmente não mexeria. Eu acho que o que falta aí é mesmo um apoio fiscal. A mudança de meta seria quase que instantaneamente engolida pela economia, sem ganho. Os preços vão subir e pronto, o gato comeu. Então, eu não mexeria, não. A inflação agora está alta, em 5%? Não vou conseguir trazê-la para a meta em 18 meses. Sem ajuda fiscal, mais ainda…

Mas essa suavização não come a credibilidade do Banco Central? Há um histórico recente, na gestão de Alexandre Tombini no BC, em que ele foi acusado de ter sido leniente, aceitado uma inflação um pouco maior e, com isso, ter feito o caldo desandar. Há uma preocupação neste Banco central em construir essa credibilidade para ser um Banco Central novo?
Não vejo nada neste momento que possa merecer qualquer acusação ao Banco Central. Ele está fazendo o trabalho dele. Agora, fazer esse trabalho com uma política fiscal frouxa em relação ao que ela deveria ser, é um pouco mais difícil. Acho que, desde que fique claro que a inflação está caindo, administrar esses choques de oferta num horizonte de tempo de mais do que um ano, levar dois anos, três anos para chegar na meta não é nenhum pecado. Agora, o nosso caso hoje, eu diria, é mais grave. Não é um ponto na inflação que vai resolver coisa alguma, na minha opinião. Dois pontos ou três no saldo primário, aí, sim.


domingo, 27 de outubro de 2024

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial : entrevista com Jairo Nicolau - Hugo Henud (Estadão)

 Dica de leitura : "A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial"( Jairo Nicolau, FGV/Rio)

Entrevista | Jairo Nicolau, cientista político: ‘Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual’

Por Hugo Henud 

 O Estado de S. Paulo, domingo, 27 de outubro de 2024


Para Jairo Nicolau, professor da FGV, a ausência de novas lideranças na esquerda capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado explica o desempenho eleitoral aquém do esperado desse campo político: ‘Eleitor vota em líderes, não em partidos’

 

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial: a falta de renovação de lideranças capazes de dialogar com o novo perfil do eleitorado, especialmente em um País onde as personalidades políticas têm mais peso que os programas partidários. A avaliação é do cientista político e professor da FGV, Jairo Nicolau, que aponta que o eleitor se conecta mais com figuras carismáticas capazes de traduzir seus anseios do que com ideias ou plataformas de governo. ‘O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas’, afirma Nicolau, destacando que, enquanto nomes à direita ocupam esse espaço, partidos como PT e PSOL vêm perdendo terreno em segmentos nos quais antes tinham força, como periferias, jovens e evangélicos — o que explica o desempenho eleitoral aquém do esperado dessas siglas nas eleições municipais.

Em entrevista ao Estadão, Nicolau avalia que, embora o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), saia fortalecido destas eleições, esse desempenho não garante, necessariamente, sucesso nas eleições majoritárias de 2026. Como exemplo, o cientista político cita João Doria, que governou São Paulo de 2019 a 2022 e chegou a lançar sua pré-candidatura à Presidência naquele ano, mas não conseguiu viabilizar-se na disputa. “Prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam preditores de sucesso nas eleições seguintes”, pontua.

Quanto à projeção para 2026 e aos “recados” das urnas nestas eleições, Nicolau ressalta que o alto volume de recursos destinados por meio de emendas parlamentares, direcionadas por deputados federais e senadores a seus redutos eleitorais, representa um obstáculo à renovação política, ao colocar esses políticos em vantagem competitiva para a reeleição daqui a dois anos. “Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases”, completa.

Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:

 

A esquerda enfrentou dificuldades em várias capitais e grandes centros urbanos. Na sua avaliação, o que explica essa perda de terreno, especialmente em regiões que antes eram redutos tradicionais desse campo político?

Vou trazer um elemento que me parece crucial para a esquerda hoje: a ausência de lideranças. O que está faltando à esquerda são justamente novas lideranças, mais do que ideias, porque o Brasil não é um país onde as pessoas votam em partidos pelas ideias. Um exemplo disso são as novas lideranças da direita, como Nikolas Ferreira. São muitas lideranças de direita que estão surgindo nos últimos anos. Por outro lado, quantos jovens com menos de 40 anos existem entre as lideranças de esquerda? Quase nenhum. Veja as eleições em São Paulo: a discussão na capital paulista gira em torno de três personagens – NunesBoulos Marçal. Quer dizer, quem falou em partido, quem falou em doutrina em São Paulo? Ninguém. No caso de Marçal, não é sobre suas ideias, mas sim sobre ele como figura, como pessoa física, que atraiu o eleitorado. Quem fala em partido? Quem fala em programa? São os nomes que se destacam: LulaJair Bolsonaro, Pablo Marçal, Ricardo Nunes, Guilherme Boulos, Nikolas. Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual.

E quanto ao desempenho do PT nessas eleições? Há uma percepção de que políticas públicas assistencialistas, por exemplo, já não são suficientes para assegurar a adesão eleitoral.

Os partidos de esquerda, diante do insucesso em algumas cidades e de certo cansaço com políticas públicas do governo Lula, precisam fazer um balanço. Mas, se me perguntassem o que eu sugeriria para um partido de esquerda formar novos quadros ou discutir propostas para o Brasil, eu diria: formar novas lideranças. O eleitor vota em líderes, não em partidos.

Quem são, hoje, os nomes do PT? Faltam às siglas de esquerda lideranças emergentes que possam se comunicar, nas cidades e nas câmaras, com um Brasil que mudou. Um país onde as pessoas são mais escolarizadas, mais religiosas; onde a elite é menos homogênea racialmente — ainda majoritariamente branca, mas em transformação. Um Brasil em que as pessoas se conectam pelas redes sociais e por novos meios. Esse novo Brasil demanda novas lideranças. Aqui, os partidos dependem de líderes mais do que em outros países, e o que falta à esquerda, mais que programas, são lideranças capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado. O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas.

Qual partido conseguiu, de fato, dialogar melhor com os eleitores evangélicos nessas eleições? Os resultados mostram que partidos de centro e direita tiveram mais sucesso nesse público. Quais fatores ajudam a explicar esse desempenho?

Esse é um fenômeno recente. Nem sempre a esquerda teve dificuldades. Lula já foi eleito presidente com o apoio das principais denominações evangélicas, em 2002 e 2006. O que aconteceu é que parte da agenda comportamental, antes pouco politizada, foi politizada e atraiu os evangélicos para a direita. E isso ocorreu porque a direita apresentou líderes que dialogam diretamente com esse segmento, enquanto a esquerda não apresentou quase nenhum representante no segmento. Sabe como os partidos de esquerda vão se aproximar dos evangélicos? Quando tiverem um dirigente do PT, por exemplo, que seja evangélico, carismático e que as pessoas realmente gostem. Assim, eles chegam aos evangélicos. O Brasil funciona em função de nomes.

Como o senhor avalia a atuação do governador Tarcísio de Freitas nestas eleições? Ele sai politicamente fortalecido para 2026?

O Republicanos, partido de Tarcísio, teve um bom desempenho, o que, sem dúvida, o fortalece como uma liderança importante no Estado. No entanto, prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam, necessariamente, preditores de sucesso nas eleições seguintes. Veja o caso de Doria: enquanto prefeito e, depois, governador, muitos analistas o apontavam como um dos principais nomes para a eleição presidencial de 2022, mas isso não se concretizou. O mesmo vale para Serra, Cabral, Alckmin... Portanto, não é tão simples assim.

Olhando para o cenário nacional, os resultados municipais podem influenciar as eleições de 2026?

Os resultados municipais nunca influenciaram resultados nacionais. Resultados municipais servem para uma reconfiguração da distribuição dos partidos como as câmaras municipais, prefeitura, e essa mudança acontece de maneira tênue. Mas mostra padrões, tendências...

Existe um “recado” das urnas que já sinaliza tendências?

Com esses resultados, acho que dificilmente a direita deixará de dominar a Câmara dos Deputados, com cerca de 60% a 70% dos assentos. Posso dizer isso com certa segurança. A direita, provavelmente, será majoritária no Senado e elegerá muitos nomes. Também está ocorrendo uma clara compactação do sistema partidário brasileiro e uma redução da dispersão, tornando a vida muito difícil para os pequenos partidos devido à reforma política e à cláusula de desempenho [medida que limita o acesso de partidos com pouca votação ao fundo partidário e tempo de propaganda em rádio e TV]. Outro ponto: um partido central da política brasileira até 2016 está em um processo contínuo de declínio preocupante, que é o PSDB. Eu diria que, se o PSDB não tivesse dois governos de Estado, hoje três, estaria uma situação ainda mais complicada. Já os partidos da esquerda precisam se movimentar.

O senhor avalia que as emendas parlamentares tiveram um papel decisivo no apoio de lideranças locais nas campanhas municipais? Até que ponto essas emendas podem influenciar os resultados das eleições e o processo de renovação política?

O que vai começar a atrapalhar a renovação é a combinação dos recursos de financiamento público com as emendas parlamentares, que subiram a valores astronômicos. Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases. Quando chegarmos a 2026, com as redes que esses políticos montaram — que já apareceram nas eleições municipais em algumas cidades — será muito difícil que um deputado ou senador não seja reeleito. Hoje, um deputado está em uma posição muito melhor do que seus colegas de 10 ou 20 anos atrás, quando as emendas ainda não eram obrigatórias. Agora, são valores de milhões, que superam até o orçamento de pequenas cidades no Brasil. Esses recursos são distribuídos a cidades, organizações da sociedade civil e entidades estatais; ou seja, todos os aliados do político. Em 2026, provavelmente veremos uma redução na renovação, porque os políticos que já ocupam cargos estão em uma situação muito mais favorável do que seus desafiadores.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito mais que a renovação de líder à esquerda se afastou do eleitor pela sua origem marxista que separa O capital e o trabalho sendo os dois um dependente do outro e inerente da vida
Acrescentando isso ao valor e a importância que a esquerda dá asfalta dente áreas completamente fora da média do eleitor brasileiro que é conservador cristão e preza pela família
Para acabar com o prestígio que ainda tinha , ao assumir esse viés autoritário do. PT apoio do STF censurando, perseguindo e prendendo a oposição está afastando mais ainda o eleitor

27/10/24 11:00

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Ricupero resenhado e entrevistado por Guilherme Evelin

Resenhei para o Estadão o livro de memórias do embaixador Rubens Ricupero. Além de ter sido um grande diplomata, da velha estirpe dos formados na escola do barão do Rio Branco, e de ser um grande humanista, Ricupero é um fino historiador. Em 2017, publicou "A Diplomacia na Construção do Brasil", um clássico, que conta a história do Brasil desde os tempos coloniais a partir do ponto de vista das relações do País com o mundo. Agora, Ricupero conta a trajetória de sua vida de 87 anos, entremeando com fatos históricos que ele testemunhou e vivenciou. Apesar de o livro ter 700 páginas, ninguém deve se assustar com o seu tamanho. Ele está à altura das obras de outros grandes memorialistas brasileiros - e a leitura é um deleite, que pode se fazer com poucas "sentadas". Minha resenha se ateve a um ângulo político, a partir de alguns episódios cruciais vividos pelo embaixador, como o golpe de 1964 e o lançamento do Real, há 30 anos, no qual foi um dos protagonistas. A partir desses episódios, Ricupero, sempre com um olhar voltado para o Brasil, lança algumas perguntas (inquietantes) sobre o que pode nos reservar o futuro, com a ressalva de que vivemos tempos em que a melhor atitude é dizer que "sabemos que não sabemos". Mas o livro vai muito além das histórias do Itamaraty e do poder no Brasil. Traz reminiscências deliciosas da infância de Ricupero, com evocações de uma São Paulo que falava italiano e deixou de existir, e de encontros com personagens como Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto e Clarice Lispector, entre muitos outros. Tudo isso para dizer que recomendo vivamente a leitura. A seguir, os links da matéria com a resenha e da entrevista que eu fiz com o embaixador por ocasião do lançamento do livro. https://lnkd.in/dq9m-D6r https://lnkd.in/dZfzbkYT

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, Entrevista Paulo Kramer, por José Fucs (O Estado de S. Paulo)

 Se há experimento, quem participa dele, o executa? Todos os políticos ou só alguns, militares,  judiciário ? Faltaram perguntas. O Brasil sempre foi país autoritário de povo passivo demais, vide o confisco da poupança por collor (meu vizinho morreu) .

Entrevista hoje na coluna do José Fucs :

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, diz cientista político

Para Paulo Kramer, País passa por um ‘experimento pavloviano’, em que a tolerância da sociedade a ‘expedientes menos democráticos’ está sendo testada, para ver se há alguma reação, mas o ‘ponto de virada’ está próximo.

19/09/2024 | 09h30 Atualização: 19/09/2024 | 16h49

Entrevista com Paulo Kramer

Cientista político, consultor, assessor parlamentar na Câmara dos Deputados e professor aposentado da Universidade de Brasília

O cientista político Paulo Kramer, de 67 anos, faz parte de um grupo restrito de profissionais da área, dominada por uma visão marxista da realidade, que se autodefine como um “liberal”. Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), consultor de riscos políticos e assessor parlamentar da liderança da minoria na Câmara dos Deputados, ele diz que o papel de “Poder Moderador” desempenhado hoje pelo STF (Supremo Tribunal Federal), com ações que vão além de seu papel constitucional, é “o problema número um” que a gente vive no País.

“Nós estamos vivendo o que eu chamo de golpe em câmera lenta. O Supremo hoje pode tudo, porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele”, afirma. Segundo Kramer, porém, o “ponto de virada” está próximo e deve resgatar o equilíbrio entre os Poderes da República. “Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica.”

Nesta entrevista ao Estadão, Kramer fala também sobre o fim do “presidencialismo de coalizão”, com a perda de poder do Executivo para o Legislativo na gestão do orçamento federal, a partir da aprovação das emendas parlamentares de execução obrigatória em 2015. Ele comenta, ainda, os projetos de impeachment do ministro Alexandre de Moraes e de anistia aos presos de 8 de janeiro que tramitam no Congresso e analisa as eleições municipais e o impacto do “fenômeno” Pablo Marçal, candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo, na direita e no bolsonarismo. “Provavelmente, a direita não marchará unida nas eleições de 2026″, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo o cenário político hoje no País?

O que está ocorrendo no País hoje tem relação com o patrimonialismo que predomina na política brasileira, essa tendência que nós temos de confundir o público com o privado. Isso acaba condicionando a visão que os políticos e o povo têm, de forma geral, sobre o que significa exercer um cargo público. Aqui, as pessoas, quando alçadas a uma posição de poder qualquer, acabam se achando maiores e mais importantes do que os cargos. Elas exercem o poder de maneira imoderada e é provavelmente por isso que nós estamos sempre clamando pela intervenção de um Poder Moderador.

Oficialmente, nós tivemos um Poder Moderador no Império, na Constituição de 1824. De lá para cá, na República, a figura do Poder Moderador deixou de existir na Constituição. Mas, na prática, desde o tenentismo (movimento político-militar que surgiu no fim da República Velha para tentar derrubar as oligarquias rurais que governavam o País), a gente está sempre à espera de um general, de um Sergio Moro, de um Deltan Dallagnol, para combater os efeitos nocivos desse exercício imoderado do poder. Isso é o contrário do que acontece em outros países, de tradição republicana mais sólida, onde o sujeito em geral tem consciência de que ele é menor do que o cargo, de que o cargo é mais importante do que ele, e de que, portanto, ele deve agir de forma decente no exercício de suas funções.

O que isso tem a ver com o atual quadro político do País?

No momento, essa busca pela ação de um Poder Moderador voltou a assombrar o Brasil e se tornou um componente crucial do nosso jogo político. Hoje, boa parte da esquerda vê no STF, particularmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, esse poder “providencial”, acima da mecânica rotineira da convivência institucional entre os Poderes. O Supremo hoje pode tudo. Pode tudo porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele. Para mim, este é o problema número um que a gente vive hoje no Brasil.

Enquanto a esquerda era hegemônica na nossa cultura política, seja na forma da social-democracia “perfumada” dos tucanos, seja no formato mais “botocudo” da tigrada lulopetista, isso não acontecia. Agora, com o crescimento de uma faixa de opinião de direita, conservadora, na sociedade brasileira – e pelo mundo afora – o STF vem assumindo este papel. Um lado reluta, quando não se recusa simplesmente a reconhecer, a legitimidade do outro. É por isso que cada eleição presidencial brasileira é encarada como uma crise e não como um desenvolvimento institucional periódico, previsível e normal numa sociedade democrática.

Em sua opinião, como isso está afetando o País?

Nós estamos vivendo um problema que eu chamo de golpe em câmara lenta. Este processo começou quando o ministro (Dias) Toffoli (então presidente do STF) se sentiu ameaçado pelas investigações da Lava Jato e designou seu colega, o ministro Alexandre de Moraes, para promover esse verdadeiro inquérito do fim do mundo, que não tem fim – o inquérito das fake news, que acaba incluindo tudo que ele considera prejudicial à sua visão de democracia. A partir daí, uma série de medidas foi tomada para beneficiar o lado do (hoje presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) e prejudicar o lado do (hoje ex-presidente Jair) Bolsonaro.

Houve a “descondenação” do Lula, que havia sido condenado em três instâncias, justamente com a intenção de permitir que ele disputasse a Presidência de novo. Depois, isso ficou mais patente ainda durante a eleição de 2022, quando o senhor Alexandre Moraes exerceu a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). É só comparar as ações que ele determinou contra um dos lados e quase não determinou contra o outro que você vê que não houve equilíbrio nas decisões em relação aos dois principais concorrentes. Desde então, esse processo vem tendo desdobramentos em série e é isso que eu chamo de um golpe em câmara lenta.

Quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado

Como a gente chegou a este ponto?

A gente pode comparar isso com um experimento diabólico, pavloviano, de reflexo condicionado, em que a tolerância do povo, da opinião pública, em relação a esses expedientes menos democráticos, menos republicanos, vai sendo testada passo a passo, para ver se há alguma reação. Na medida em que boa parte da população se mostrava indiferente ao que estava ocorrendo, os executores dessas medidas se sentiram cada vez mais à vontade para ir avançando. Com isso, eu acho que quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado.

Dentro disso que o sr. está falando, desse quadro do golpe em câmera lenta, dessa tentativa de ir testando a sociedade, em que estágio o sr. acredita que estamos hoje?

Olha, eu acredito que nós estamos nos aproximando de um ponto de virada. Ou vai ou racha. Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, aliado ao lulopetismo, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado constitucional, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica. Senão, nós vamos ficar sempre naquele subdesenvolvimento político de achar que precisamos de uma força de fora, um Deus ex-machina que salve a situação, quando na verdade é a vontade organizada e legal dos cidadãos que fará com que as coisas aconteçam.

No sistema representativo, isso ocorre com a sociedade exercendo pressão para que seus representantes eleitos no Congresso façam alguma coisa para mudar a situação. É assim que funciona numa democracia. As pessoas enchem as ruas, protestam, se manifestam, não para ganhar no grito, mas para sensibilizar seus representantes eleitos, seus congressistas, deputados e senadores, para que façam aquilo que elas estão querendo.

Como o sr. você viu a manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, no dia 7 de setembro? Até que ponto ela refletiu esta maior conscientização da sociedade, se havia menos gente nas ruas do que em manifestações anteriores?

O governo e a esquerda tentaram pintar a última manifestação na Paulista como um grande fracasso, já que em manifestações anteriores havia trezentas mil pessoas nas ruas e dessa vez havia algo em torno de cinquenta, sessenta mil. Agora, como tudo é relativo em política, quando você compara essas cinquenta e poucas mil pessoas que estavam na Paulista com o ato esvaziado que foi realizado no mesmo dia na Esplanada dos Ministérios, com a presença do Lula e de ministros do STF, você consegue ter uma ideia mais precisa da dimensão da manifestação que ocorreu em São Paulo.

Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares

Até pouco tempo atrás, havia uma percepção de que essas bandeiras relacionadas ao STF e ao impeachment do ministro Alexandre de Moraes estavam mais ligadas aos bolsonaristas e a grupos de direita e hoje parece que elas ganharam apoio das forças de centro e até de centro-esquerda. Qual a sua visão desta questão?

A minha visão se baseia naquele famoso ditado “pau que dá em Chico dá em Francisco”. Quer dizer, um poder ilimitado ou que se sente ilimitado é sempre perigoso para todos os players do jogo. É por isso que, no longo prazo, o que interessa é que o equilíbrio entre os Poderes seja reestabelecido, para que no futuro isso não ameace mais ninguém, nem a esquerda nem a direita.

Agora, como o sr. afirmou há pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e boa parte da esquerda, que representam uma parcela significativa da sociedade, estão a favor desta atuação do STF e particularmente do ministro Alexandre de Moraes. O que está levando a esse apoio do Lula e da esquerda ao STF e ao ministro?

A gente tem de levar em conta que o Lula não é mais aquele e que o famoso “presidencialismo de coalizão” também não é. O “presidencialismo de coalizão”, hoje, não funciona mais. Aquela história de o Poder Executivo usar as verbas do Orçamento para formar uma base parlamentar e aprovar suas medidas no Congresso mudou de forma considerável nos últimos anos. Desde 2015, quando o Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, se aborreceu com a então presidente da República Dilma Rousseff, porque achou que ela não tinha se empenhado o suficiente para garantir que o PT não votaria contra ele no Conselho de Ética por “quebra de decoro parlamentar”, o jogo virou. A partir daí, com a aprovação das emendas de execução obrigatória, os parlamentares foram avançando sobre aquela já diminuta parcela discricionária do Orçamento, que permite ao Executivo gastar onde quiser. Hoje, nós temos as emendas individuais dos parlamentares, as emendas de bancada e uma série de emendas de execução obrigatória que realmente dão uma independência muito grande aos parlamentares, sejam de que partido forem.

Atualmente, o Parlamento não está mais obrigado a se submeter aos desejos do Executivo. O Congresso já não depende mais do presidente, como nos primeiros mandatos do Lula e nos tempos do Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares. Neste sentido, o Congresso pode criar mais dificuldades para o Executivo. Isso alterou a correlação de forças entre os Poderes. Então, além de o Lula 3 estar mais velho, visivelmente mais debilitado do ponto de vista do seu vigor físico, ainda sofre essa limitação. O governo Bolsonaro já pegou essa conjuntura de maior independência orçamentária dos parlamentares e meio que se conformou com o novo desenho. Mas parece que o governo Lula 3 está tentando rodar um software já vencido.

"Eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar. É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder."

Recentemente, o STF determinou que houvesse um acerto entre o Legislativo e o Executivo e até estabeleceu um prazo para isso acontecer. No fim, chegou-se a uma fórmula, que, pelo que entendi, deve dar mais poder ao governo na gestão do Orçamento. É isso mesmo? Como o sr. analisa esta questão?

O que se combinou, o que ficou mais ou menos garantido a partir de agora, foi a chamada rastreabilidade da origem das emendas, que é uma coisa positiva, na minha opinião. Isso vai permitir que se saiba quem pediu aquela emenda, em todos os seus passos: empenho da verba, se ela efetivamente aplicada, executada. Agora, tem uma questão em aberto aí. O senador Davi Alcolumbre (União-AP), que é candidato à sucessão do Rodrigo Pacheco na presidência do Senado, já está dizendo que a solução é transformar as emendas de bancada em emendas individuais.

De qualquer forma, essa ação do governo mostra que há uma tentativa do Executivo de recuperar o poder do passado em relação ao Orçamento. O sr. acredita que isso é possível?

É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder. O Congresso sentiu o gostinho dessas emendas de execução obrigatória e agora, obviamente, não quer devolver esse poder para o Executivo. Então, eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar.

É isso que explicaria, na sua visão, a dependência do governo em relação ao STF, para conseguir implementar suas políticas?

Exatamente. Ele precisa dessa muleta. Eu vou te dar um exemplo bem recente. Há poucos dias, outro ministro do STF, o Flávio Dino, autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para combater os incêndios florestais, fora do arcabouço fiscal, que, cá para nós, já está avacalhadíssimo, desacreditadíssimo, embora o governo Lula e sobretudo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, procurem manter uma aparência de normalidade nas contas públicas perante o mercado.

A rigor, tendo em vista a urgência de se combater esses incêndios que estão consumindo o Brasil, o Lula não precisaria da autorização do Flávio Dino para conseguir esse crédito junto ao Congresso. Mas, hoje, o governo se escuda atrás do STF mesmo quando não precisa. Agora, isso também tem uma explicação: para o Lula, para quem “gasto é vida”, o arcabouço fiscal impõe limites que ele e seus companheiros não suportam. Então, é como se o Lula dissesse “olha, não sou eu que estou pedindo para abrir o crédito. Estou pedindo porque o Flávio Dino determinou” – por sinal, em mais uma decisão monocrática de um ministro do Supremo.

Considerando todo esse quadro que o sr. traçou, o que a eleição do novo comando da Câmara e do Senado pode mudar na relação do governo com o Congresso?

Eu acredito que a próxima eleição para a presidência da Câmara e do Senado vai colocar nestes dois postos estratégicos representantes do chamado Centrão, que é aquela geleia, uma hora está de um lado, outra hora está do outro. Usa, muitas vezes, o ímpeto das bancadas de direita para pressionar o Executivo em questões paroquiais, de interesse dos políticos do grupo. Eu acredito que não vai dar para escapar disso. É claro que a direita está tentando comprometer os futuros presidentes das duas Casas, sejam eles quem forem, com a sua pauta. Agora, a gente sabe, por experiências anteriores, que essas promessas podem ou não ser cumpridas, dependendo da conveniência desses políticos, desses ocupantes de altos cargos do Congresso.

Acho muito difícil, pelo menos até onde a vista alcança, que haja uma mudança significativa nas posições do Congresso. Isso não quer dizer que, no futuro, não será possível, mas no momento acho pouco provável os futuros presidentes do Senado e da Câmara, sejam eles quem forem, concordarem com a diminuição do seu poder. Tem um postulado básico da ciência política segundo o qual quem tem poder não quer dividi-lo com ninguém. A não ser que seja forçado a isso por um poder maior. Agora, mesmo com as emendas de execução obrigatória, tem sempre um carguinho público que pode ser ocupado por alguém ligado a um deputado, a um senador, em troca de apoio no Congresso.

Como o sr. analisa as iniciativas do governo para interferir nas eleições do comando do Congresso, apesar dos desmentidos oficiais?

Eu acredito que o Executivo está se movimentando e vai se movimentar, sim, para ter o resultado mais favorável possível na composição das mesas do Senado e da Câmara. Agora, o que a gente percebe é que há alguns pontos que se tornaram cláusula pétrea para o Congresso e dos quais ele não vai abrir mão. Por exemplo, qualquer medida hoje que interfira negativamente nessa chamada pauta moral, na pauta dos costumes, na pauta da segurança pública, não tem muita chance de passar, porque quem se opõe a isso hoje está em franca minoria.

O impeachment do ministro Alexandre de Moraes não é tão simples quanto pode parecer

Na sua avaliação, qual a viabilidade de o pedido do impeachment do ministro Alexandre de Moraes que está sendo apresentado no Senado ser levado adiante?

Na verdade, a coisa não é tão simples quanto pode parecer, porque os regimentos internos, tanto do Senado quanto na Câmara dos Deputados dão uma latitude de decisão muito grande para os presidentes das duas Casas. Seria necessário futuramente modificar os dois regimentos, para que uma vez estabelecida uma maioria considerável, uma maioria robusta, pelo menos uma maioria absoluta de parlamentares favoráveis a um determinado curso de ação, que o presidente da Câmara ou do Senado tivesse de dar continuidade ao processo. Hoje, os presidentes têm poder demais, tanto na Câmara quanto no Senado, sendo que, no caso de processo de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal, cabe ao Senado conduzir, por maioria de dois terços.

O sr. acredita, então, que isso não deve caminhar no Senado?

Eu acredito que as cinco assinaturas que estão faltando para atingir mais da metade dos senadores vão ser mais difíceis de obter do que as 36 já obtidas no pedido de impeachment. Em quantos pedidos de impeachment do Alexandre de Moraes o Rodrigo Pacheco já sentou literalmente em cima? De qualquer forma, os senadores que apoiam o impeachment pretendem constranger o Pacheco com esse pedido, aproveitando que as eleições municipais armam o palanque para as eleições gerais de 2026. Para um partido se posicionar bem nas eleições gerais, é muito importante que ele tenha conseguido um bom resultado nas eleições municipais.

Outro dia, eu me deparei com o início de uma articulação para que os candidatos municipais do PSD, que é o partido do Pacheco, comecem a pressionar seus senadores mais ou menos nos seguintes termos: “Nós vamos perder as eleições aqui no nosso município, porque vocês são contra a assinatura do pedido de impeachment do Alexandre de Moraes”. Agora, ainda que isso não vá adiante, eu espero que a mera ameaça de abertura do processo de impeachment tenha, digamos assim, “capacidade de dissuasão”, para que os senhores ministros do Supremo caiam na real e retornem ao seu quadrado constitucional.

Além do impeachment, tem também o projeto de anistia aos presos dos atos de 8 de janeiro para o Congresso avaliar. Embora a narrativa dominante seja de que houve uma tentativa de golpe, muitos juristas, políticos e analistas que não têm nada de bolsonaristas dizem que, para eles, o que houve foi uma depredação de prédios públicos, como outras que ocorreram no passado, envolvendo o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Qual a probabilidade, na sua opinião, de essa anistia sair?

Eu acredito que o avanço mais rápido ou mais lento desse movimento pela anistia vai depender, mais uma vez, dos vasos comunicantes entre a opinião pública e seus representantes eleitos, porque a anistia é uma lei votada pelo Congresso. A esquerda está se manifestando contra a anistia porque, em sua visão, os manifestantes cometeram crimes como depredação, vandalismo etc. Agora, alguns juristas afirmam que a anistia é para isso mesmo, é para perdoar crimes. A anistia tecnicamente falando, é um perdão, um esquecimento em relação aos crimes cometidos por qualquer das pessoas envolvidas naqueles atos.

Eu tenho conversado de vez em quando com o desembargador aposentado Sebastião Coelho, que patrocina várias causas daquelas famílias, daqueles presos do 8 de janeiro. O Sebastião diz o seguinte para os seus clientes: “Se eu fosse vocês, não aceitaria nenhum acordo com o Ministério Público, pela simples razão de que a experiência histórica do Brasil nos mostra que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudam e você vai perder o direito de reclamar depois”. E o Sebastião Coelho não é o único a reconhecer a precariedade jurídica dessas ordens inconstitucionais. Agora, o que vai definir isso é o que antigamente os comunistas chamavam de “correlação de forças”. Vai depender de um Congresso que se sinta mais independente para tomar as medidas necessárias, entre elas, a abertura de um processo contra o ministro Alexandre de Moraes e a própria anistia.

Essa briga do Elon Musk com o Alexandre de Moraes ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil

Na semana passada, houve até uma tentativa na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de levar isso adiante, mas em princípio a decisão foi adiada para depois das eleições municipais por uma intervenção do governo e do Arthur Lira, presidente da Câmara. O sr. acredita que isso vai voltar mesmo à pauta?

Eu acho que vai depender sobretudo do resultado das eleições. Eu vi o Bolsonaro falando outro dia que o futuro do Brasil passa pelos municípios. Isso quer dizer que o PL e os bolsonaristas vão batalhar para fazer o maior número possível de prefeituras ou o maior número possível de prefeituras importantes, em cidades grandes, para provar sua força e garantir que, na eleição geral de 2026, mais bolsonaristas, mais representantes da direita entrem para o Congresso e possam efetivamente virar o jogo.

Muitos analistas consideram que a ação do ministro Alexandre de Moraes contra o X (antigo Twitter) e o empresário Elon Musk foi emblemática das restrições impostas hoje à liberdade de expressão no Brasil, de uma volta da censura. O que o sr. pensa sobre isso? O sr. concorda com esta visão?

Eu concordo. Acredito que a reação do Elon Musk foi um game changer, como dizem os americanos. Foi um fator que ajudou a virar o jogo. Essa briga do Alexandre de Moraes com o Elon Musk teve o resultado positivo de desacreditar a narrativa de que a direita é antidemocrática, a direita é fascista, a direita é isso, a direita é aquilo. Pelo menos a briga do Elon Musk com o Xandão ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que estava acontecendo e que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil.

Para finalizar, gostaria de voltar às eleições municipais. De acordo com as pesquisas, a esquerda está se mostrando competitiva, se não me engano, em quatro capitais, na disputa pelas prefeituras. Como isso se insere no contexto que a gente está vivendo? O sr. acredita isso reflete uma mudança de mentalidade na sociedade ou acha que as eleições municipais são definidas por questões locais mesmo e que o resultado se deve muito aos nomes que estão envolvidos na disputa?

A minha avaliação é que nas cidades pequenas realmente o local tende a prevalecer. Agora, nas cidades maiores, nas metrópoles, é inevitável que essa disputa municipal seja nacionalizada. Basta ver o exemplo de São Paulo. Hoje, as pessoas e a mídia só falam de duas coisas: Pablo Marçal e os incêndios. É o que está na pauta. É como se o Pablo Marçal já estivesse ensaiando uma candidatura presidencial, porque no Brasil inteiro se fala disso. Muitos candidatos em outras capitais já reclamam, falam assim: “Estão cobrindo pouco a gente e muito o Estado de São Paulo, a cidade de São Paulo”.

Para a direita se viabilizar em 2026, precisa conquistar uma parcela importante do centro político

Qual a sua avaliação do fenômeno Marçal? O sr. acredita que a disputa entre ele e a família Bolsonaro e a crítica que muitos bolsonaristas fazem a ele colocaram a liderança do ex-presidente na direita em xeque?

Diante do fenômeno do Pablo Marçal, o que eu acho que o Bolsonaro deveria fazer e não está fazendo é explicar por que a direita que ele representa depende de uma guinada ao centro para se viabilizar politicamente nas próximas eleições. Porque é justamente por isso que ele está apoiando o Ricardo Nunes, que não tem nada a ver com ele. O Nunes tem mais a ver com o presidente do PL, que é o Valdemar Costa Neto, do que com o presidente de honra, que é o Bolsonaro. De qualquer maneira, para a direita se viabilizar em 2026 precisa conquistar uma parcela importante do centro político. E justamente quando o Bolsonaro fez esse movimento surgiu o Pablo Marçal denunciando essa aliança.

Para o Marçal, é todo mundo comunista, aquele exagero todo. Agora, se o Pablo Marçal ganhar esta eleição, ele sem dúvida alguma se fortalece muito caso queira disputar a Presidência da República em 2026, embora isso ainda não esteja claro para mim. Mas, caso ele queira disputar a Presidência, uma vitória em São Paulo vai dar uma força enorme para ele. E, mesmo que ele não ganhe, eu acredito que o estrago já está feito.

Em que sentido o sr. diz que o estrago está feito?

No sentido da direita se dividir e, portanto, se enfraquecer. Porque o Bolsonaro, que até este momento é o grande líder nacional da direita, está apoiando um candidato de centro em São Paulo. E, se esse candidato de centro perder, isso vai mostrar uma dúvida. E se o Pablo Marçal ganhar? Vai mostrar uma divisão significativa da direita. Quer dizer, provavelmente a direita não marchará unida para 2026. Isso deve contagiar bastante o quadro. A esquerda está batendo palma.

Eu não aqui vou julgar das intenções do Marçal, até porque eu não as conheço, mas ele sem dúvida alguma neste momento representa um setor mais intransigente da direita e que vai buscar sua justificação lá atrás nas raízes do próprio Bolsonaro. Só que o Bolsonaro e seus colaboradores mais próximos já perceberam que, para se viabilizar eleitoralmente, a direita precisa do centro. O Pablo Marçal recusa isso. Então, não sei. Vamos aguardar.

Última pergunta: deixando de lado um pouco esse fenômeno do Marçal, se é possível fazer isso, quem deverá ser na sua percepção o herdeiro do Bolsonaro em 2026?

O bolsonarismo, quer o Bolsonaro tenha planejado isso ou não, permitiu o surgimento de um monte de outras lideranças de direita, ao contrário do que aconteceu com Lula, no PT. O próprio Pablo Marçal é uma delas. Agora, essa multiplicidade de lideranças talvez tenha que ser administrada, se a direita quiser realmente ter chances nas próximas eleições. Eu acredito que a eleição deste ano, a eleição municipal, ela vai fortalecer a direita. Agora, os líderes da direita precisam tirar as conclusões desse fortalecimento, fazer uma leitura correta dessa conjuntura, para que a direita não marche enfraquecida e dividida para as próximas eleições."

Entrevista por José Fucs

Foto: Elza Fiuza/Agencia Brasil

domingo, 1 de setembro de 2024

Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008 - Diego Viana (Valor Econômico)

 Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008

 

O melhor e o pior dos tempos

Entrevista /  Nouriel Roubini destaca como avanços tecnológicos podem melhorar nossas vidas, mas comportamento humano pode pôr tudo a perder.

Por Diego Viana, para o Valor, de São Paulo

31/08/2924

 

Nouriel Roubini se expressa como Charles Dickens (1812-1870) para falar do mundo atual: é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Se o romancista inglês se referia ao século XVIII da Revolução Francesa, o economista ítalo-iraniano-americano está falando de uma era marcada por automação e inteligência artificial, situação geopolítica fragmentada, mudança climática, extremismo político e protecionismo comercial.

Roubini veio ao Brasil neste mês para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Neste ano, o evento sugere aos participantes que respondam à seguinte pergunta: "Quem está no controle"? A incerteza sobre a capacidade de comando em escala mundial é uma das maiores preocupações do economista. A falta de uma potência hegemônica neste século, afíima, reduz o incentivo para ofertar bens públicos globais, principalmente a segurança. Como consequência, o perigo de conflitos internacionais se amplifica.

Ainda assim, pelo menos no curto prazo, o autor do livro "Mega-ameaças" (2022, ed. Crítica), que ficou conhecido como "Dr. Catástrofe" por prever a crise de 2008, enxerga um cenário benigno. Apesar do recente solavanco nos mercados, a economia americana segue crescendo, com reflexos no resto do planeta. Mas a expansão também envolve perigos: se o Federal Reserve contrariar as expectativas e se vir obrigado a manter os juros altos por mais tempo, empresas podem começar a quebrar, provocando uma recessão. 

 

Trechos da entrevista de Roubini ao Valor:

Valor: A pergunta "Quem está no controle?" sugere que rumamos para um mundo anárquico. É o caso?

Nouriel Roubini: É uma pergunta importante. A estabilidade da ordem geopolítica requer a hegemonia de um poder que esteja, de fato, no comando do mundo. Esse poder provê bens públicos globais, porque seus interesses são tais que está disposto a fornecer segurança, livre comércio, coisas assim. O século XIX foi do Império Britânico, com a Pax Britannica. O século XX foi, em grande parte, o século da Pax Americana. Tivemos a Guerra Fria, claro, com a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, mas a URSS estava desconectada da economia global. O colapso soviético levou a um momento unipolar. Parecia que os EUA seriam o único país hegemônico. Hoje, a ascensão da China sugere a vinda de um mundo bipolar, mas tudo aponta, na verdade, para a multipolaridade. Há outras potências, como a União Europeia, que é fragmentada, mas ainda um importante ator econômico global. Existem novas potências emergentes, como a índia. Há também os Estados médios do Sul global, importantes tanto regionalmente quanto, até certo ponto, para os assuntos globais. O poder dos EUA está reduzido, então fornecer bens públicos globais talvez não seja tão fácil.

Valor: É um estado transitório, rumo à "Pax Sinica"? Ou a ausência de hegemonia será prolongada?

Roubini: Por um tempo, pensou-se que o século XXI seria o século chinês. A China crescia a 10% e seu PIB parecia a caminho de ultrapassar o americano. Mas o motor de crescimento chinês estagnou. Estava em 7% antes da covid, depois passou a 5%. Estudos sugerem que, sem mudar suas políticas, a China pode chegar à taxa potencial de apenas 3% até o fim da década. Por outro lado, por causa da tecnologia, alguns argumentam que o crescimento potencial dos EUA, que anda em 1,8%, até o final da década pode ser de 3% ou mais. Acho que o século americano pode perdurar. O poder americano, seja comercial, financeiro, bancário, tecnológico, econômico, político, geopolítico ou militar, ainda é incomparável. Apesar do mau funcionamento de seu sistema político, o crescimento americano pode acelerar bastante. Já a China, com o capitalismo de Estado e o excesso de dívidas, com a crise no setor imobiliário e o estrangulamento do setor privado, pode acabar em uma armadilha de renda média.

Valor: Os mercados passaram por um solavanco recentemente, com começo no Japão e reflexos nos Estados Unidos. Depois, a situação se estabilizou. Ainda podemos classificar o cenário econômico global como benigno?

Roubini: O cenário é benigno, apesar de alguns riscos importantes.

Valor: Que riscos são esses?

Roubini: A desaceleração americana tem sido bem mais lenta do que o Fed previa. No momento, espera-se que sejam feitos cortes em setembro e dezembro, mas depois disso é possível que o afrouxamento não prossiga. Com isso, as condições financeiras continuariam apertadas. Dado o forte endividamento público e privado, altas taxas de jurospodem prejudicar as empresas que dependem de dinheiro barato. Paradoxalmente, passamos do risco de pouso forçado para o pouso suave, depois o não pouso, o que reintroduz o perigo de cair em recessão.

Valor: Sendo assim, o que é o mais importante a observar neste momento?

Roubini: O futuro da economia depende muito de quem será eleito em novembro. A política econômica seria bem diferente com Donald Trump ou Kamala Harris. Algumas políticas que Trump pretende implementar são inflacionárias, com protecionismo, enfraquecimento do dólar, interferência na política monetária, cortes permanentes de impostos. Isso aumentaria os déficits ainda mais, tornando-os menos sustentáveis, o que traz consigo o risco de que os juros sejam empurrados para cima. Não estamos fora de perigo. Primeiro, porque o Fed talvez não possa reduzir muito os juros. Segundo, porque, dependendo da política econômica do ano que vem, pode haver tormentas.

Valor: O sr. disse que o potencial de crescimento dos EUA será maior, graças à tecnologia. Mas a adoção de tecnologia tem sido bastante rápida. É possível que o crescimento esteja acontecendo com inflação em queda porque esse potencial maior já entrou em cena?

Roubini: É uma possibilidade. A empolgação com a inteligência artificial generativa levou a uma onda importante de investimentos nos EUA. Todo mundo está entrando na IA. Os produtores desses modelos estão comprando mais chips, mais bancos de dados, mais eletricidade. Além disso, nos EUA, as leis de infraestrutura, da indústria de chips e da redução da inflação (IRA) levaram a um boom de investimentos industriais, com centenas de bilhões de dólares em nova capacidade manufatureira prometidos para a próxima década. A antiga infraestrutura dos EUA começa a ser renovada e há incentivos à energia renovável. São coisas grandes, que provavelmente atuam tanto no lado da oferta quanto da demanda. Elas podem explicar por que o crescimento tem sido forte.

Valor: Pelo prisma do mundo em desenvolvimento, os juros altos nos EUA preocupam porque reduzem o fluxo de capital e desvalorizam as moedas. Como é o cenário para o Sul global?

Roubini: Se prevalecer o cenário benigno e o Fed mantiver os juros no nível atual, há problemas. Um país que tenha tomado emprestado em dólar vai ter um custo de serviço da dívida mais alto. Isso vale também para quem tomou emprestado em moeda local, porque quando os juros em dólar estão altos, os juros em moeda doméstica têm que ser ainda mais elevados, para evitar a depreciação. Essa depreciação de moedas pode ser útil para a exportação desses países, mas é inflacionária. Além disso, o câmbiotambém eleva o preço em dólar das commodities, o que é uma desvantagem para exportadores. Essa combinação de fatores implica ventos contrários significativos para muitos mercados emergentes.

Valor: Na reunião do G20, houve avanços na ideia da taxa global sobre os mais ricos. Impostos internacionais são discutidos desde a taxa Tobin. É uma ideia eficaz?

Roubini: As últimas décadas trouxeram um aumento na desigualdade ao redor do mundo. Isto provocou reações contra a democracia liberal e o capitalismo, porque muitas pessoas se sentem deixadas para trás. Há grande insegurança econômica. As reações são variadas, mas todas levam a algum grau de populismo. Por isso, precisamos fazer algo quanto à desigualdade. Aumentar o bolo econômico, dando mais oportunidades para as pessoas se educarem e desenvolverem habilidades, é sempre a melhor política. Mas faz sentido argumentar que é preciso taxar os vencedores, em termos de renda ou riqueza. É preciso chegar a um acordo global, assim como a OCDE obteve um acordo sobre o imposto corporativo mínimo. Só a cooperação internacional pode evitar esse problema.

Valor: A política americana tem tudo, menos tédio. Um candidato foi baleado, outro desistiu da corrida. Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Como um investidor navega essa situação?

Roubini: É difícil prever aonde essa eleição vai conduzir. Agora os democratas têm uma candidata jovem, uma mulher afro-americana que pode energizar a militância. Há o risco de que ambos os lados se declarem vencedores, levando a decisão até a Suprema Corte, mais ou menos como em 2000. Podemos até repetir janeiro de 2021, só que de um jeito ainda mais caótico, com violência nas ruas se Trump perder. Tudo pode acontecer. Os mercados sabem que haverá diferenças na política externa entre Trump e os democratas, mas tendem a desconsiderá-las, porque nesse campo as variações não costumam ser grandes. No Oriente Médio, Trump deve pressionar os palestinos por um acordo de paz com Israel. Há preocupação de que ele abandone a Ucrânia, mas se fizer isso, haverá um efeito dominó. A China se veria em condições de assumir Taiwan sem reação. Mas a relação com a China é um ponto de concordância entre republicanos e democratas, são ambos agressivos. Sabemos muito pouco do que virá. Há algumas ideias, mas é difícil precificá-las nos mercados.

Valor: Como alocar os investimentos perante esse quadro?

Roubini: Não é nada fácil. Esse ponto sobre a política externa ajuda, e algumas coisas são legíveis na política fiscal. O risco para a democracia é real, o que bagunça tudo. Acho que os mercados vão caminhar passo a passo, esperando para ver o que vem a cada momento. Há potenciais impactos ainda maiores, como a escalada da guerra no Oriente Médio ou na Ucrânia. Mas os mercados estão ignorando essas coisas, como se fossem um risco secundário. A melhor coisa é esperar para ver, em vez de se apressar em tomar alguma posição.

Valor: O sr. mencionou três iniciativas econômicas de Biden: leis de infraestrutura, de chips, de redução da inflação. Elas foram consideradas o retomo da política industrial ao centro da economia do planeta. Sem Biden, a política industrial permanece?

Roubini: A política industrial voltou de vez, não só nos EUA Os chineses a praticam há tempos, os europeus estão tentando. Em um mundo onde o crescimento é impulsionado pela tecnologia, dados, conhecimento e inovação, não posso deixar o mercado fazer tudo. Tenho que usar políticas industriais com inteligência para afetar a economia. Já nos afastamos do lais-sez-faire. Os governos estão pensando em como garantir a manufatura, como atrair ou resguardar empregos de qualidade. No processo, muitos erros podem ser cometidos, mas também há coisas boas que podem ser feitas. O resultado final pode ser bom ou ruim, ainda não sabemos. Mas todo mundo está fazendo.

Valor: O sr. citou a Europa como um dos polos do mundo fragmentado. Há debates na Europa sobre a derrocada do continente. Ela será ainda um grande ator na cena global?

Roubini: Isso depende de fazer as reformas estruturais e concluir o mercado único. Hoje, a perspectiva não está boa para a Europa. Há problemas na vizinhança, com ameaças vindas do Oriente Médio e da Rússia. Os EUA têm dois grandes oceanos e vizinhos amigáveis. Os EUA são independentes em energia, a Europa não. Os EUA são um mercado totalmente integrado, enquanto a Europa ainda não concluiu a união economicamente, nem politicamente. A Europa envelhece mais do que os EUA, que recebe mais imigrantes. A Europa está sujeita ao risco de que a Guerra Fria entre EUA e China piore. Ela exporta muito para a China e tem investimentos diretos lá. Está próxima do Oriente Médio, onde há turbulência, que pode levar a um choque energético como o da década de 1970, se houver guerra entre Israel e o Irã. Os desafios são todos solucionáveis, mas é preciso que a Comissão Europeia seja enérgica e aprove legislação para mudar os incentivos na direção de mais inovação, competitividade, dinamismo econômico e empreendedorismo. A Europa começa o jogo com grande capital humano, instituições fortes, renda alta. É rica, mas não se pode viver dos louros do passado.

Valor: Um ativo que a Europa preza muito é o "efeito Bruxelas", pelo qual as regulações europeias são adotadas no resto do mundo. Pode ser o caso da lei de IA recém-aprovada?

Roubini: Os europeus alegam que um dos seus papéis é fornecer parâmetros regulatórios, graças ao tamanho e importância de seu mercado. Mas é um comportamento complacente. Os grandes líderes em IA hoje são os EUA e a China, além de bolsões de excelência em Israel, Reino Unido e Japão. A Europa tem ambições nesse campo, mas não é tão forte. Mesmo antes da revolução da IA, os europeus não foram capazes de ocupar mercados com inovação. E se você não está inovando, tentar regular é ingênuo. Um: porque sua regulamentação pode ser demais e sufocar até mesmo o mínimo de investimento que você poderia obter. Dois: você pode errar. E três: não é óbvio que os outros vão adotar suas regras. Eu gastaria mais tempo tentando criar inovações em IA na Europa, em vez de regulá-la de uma forma que dá ainda menos incentivo para fazer parte dessa pesquisa.

Valor: Em resumo, que falta faz ter alguém "no controle"?

Roubini: Remeto ao título de um artigo que escrevi: "Inteligência artificial vs. estupidez humana". Se bem usada, a IA pode aumentar o crescimento, a produtividade, o bolo econômico. Mesmo se a maior parte da renda gerada for para poucos, sempre se pode taxá-los e redistribuir. O problema é a estupidez: não vivemos no mundo das máquinas inteligentes, mas de conflitos geopolíticos, reação contra a democracia e a globalização, relocalização da manufatura, nacionalismo econômico e mudanças climáticas. Essa mesma tecnologia pode ser usada para criar falsificações profundas, aumentar a desigualdade, aprofundar o desemprego e inclusive construir mais armas, para lutar guerras maiores. Vivemos no melhor dos tempos, porque a tecnologia pode nos fazer viver mais, melhor e com mais renda. E vivemos no pior dos tempos, com as mega-ameaças impulsionadas pelo comportamento humano. Podemos sobreviver aos próximos 20 anos sem guerra global, sem outra pandemia, sem catástrofe climática, sem crises financeiras? Se conseguirmos, o futuro será brilhante, usando a tecnologia para melhorar a situação de todos.