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domingo, 1 de setembro de 2024

Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008 - Diego Viana (Valor Econômico)

 Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008

 

O melhor e o pior dos tempos

Entrevista /  Nouriel Roubini destaca como avanços tecnológicos podem melhorar nossas vidas, mas comportamento humano pode pôr tudo a perder.

Por Diego Viana, para o Valor, de São Paulo

31/08/2924

 

Nouriel Roubini se expressa como Charles Dickens (1812-1870) para falar do mundo atual: é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Se o romancista inglês se referia ao século XVIII da Revolução Francesa, o economista ítalo-iraniano-americano está falando de uma era marcada por automação e inteligência artificial, situação geopolítica fragmentada, mudança climática, extremismo político e protecionismo comercial.

Roubini veio ao Brasil neste mês para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Neste ano, o evento sugere aos participantes que respondam à seguinte pergunta: "Quem está no controle"? A incerteza sobre a capacidade de comando em escala mundial é uma das maiores preocupações do economista. A falta de uma potência hegemônica neste século, afíima, reduz o incentivo para ofertar bens públicos globais, principalmente a segurança. Como consequência, o perigo de conflitos internacionais se amplifica.

Ainda assim, pelo menos no curto prazo, o autor do livro "Mega-ameaças" (2022, ed. Crítica), que ficou conhecido como "Dr. Catástrofe" por prever a crise de 2008, enxerga um cenário benigno. Apesar do recente solavanco nos mercados, a economia americana segue crescendo, com reflexos no resto do planeta. Mas a expansão também envolve perigos: se o Federal Reserve contrariar as expectativas e se vir obrigado a manter os juros altos por mais tempo, empresas podem começar a quebrar, provocando uma recessão. 

 

Trechos da entrevista de Roubini ao Valor:

Valor: A pergunta "Quem está no controle?" sugere que rumamos para um mundo anárquico. É o caso?

Nouriel Roubini: É uma pergunta importante. A estabilidade da ordem geopolítica requer a hegemonia de um poder que esteja, de fato, no comando do mundo. Esse poder provê bens públicos globais, porque seus interesses são tais que está disposto a fornecer segurança, livre comércio, coisas assim. O século XIX foi do Império Britânico, com a Pax Britannica. O século XX foi, em grande parte, o século da Pax Americana. Tivemos a Guerra Fria, claro, com a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, mas a URSS estava desconectada da economia global. O colapso soviético levou a um momento unipolar. Parecia que os EUA seriam o único país hegemônico. Hoje, a ascensão da China sugere a vinda de um mundo bipolar, mas tudo aponta, na verdade, para a multipolaridade. Há outras potências, como a União Europeia, que é fragmentada, mas ainda um importante ator econômico global. Existem novas potências emergentes, como a índia. Há também os Estados médios do Sul global, importantes tanto regionalmente quanto, até certo ponto, para os assuntos globais. O poder dos EUA está reduzido, então fornecer bens públicos globais talvez não seja tão fácil.

Valor: É um estado transitório, rumo à "Pax Sinica"? Ou a ausência de hegemonia será prolongada?

Roubini: Por um tempo, pensou-se que o século XXI seria o século chinês. A China crescia a 10% e seu PIB parecia a caminho de ultrapassar o americano. Mas o motor de crescimento chinês estagnou. Estava em 7% antes da covid, depois passou a 5%. Estudos sugerem que, sem mudar suas políticas, a China pode chegar à taxa potencial de apenas 3% até o fim da década. Por outro lado, por causa da tecnologia, alguns argumentam que o crescimento potencial dos EUA, que anda em 1,8%, até o final da década pode ser de 3% ou mais. Acho que o século americano pode perdurar. O poder americano, seja comercial, financeiro, bancário, tecnológico, econômico, político, geopolítico ou militar, ainda é incomparável. Apesar do mau funcionamento de seu sistema político, o crescimento americano pode acelerar bastante. Já a China, com o capitalismo de Estado e o excesso de dívidas, com a crise no setor imobiliário e o estrangulamento do setor privado, pode acabar em uma armadilha de renda média.

Valor: Os mercados passaram por um solavanco recentemente, com começo no Japão e reflexos nos Estados Unidos. Depois, a situação se estabilizou. Ainda podemos classificar o cenário econômico global como benigno?

Roubini: O cenário é benigno, apesar de alguns riscos importantes.

Valor: Que riscos são esses?

Roubini: A desaceleração americana tem sido bem mais lenta do que o Fed previa. No momento, espera-se que sejam feitos cortes em setembro e dezembro, mas depois disso é possível que o afrouxamento não prossiga. Com isso, as condições financeiras continuariam apertadas. Dado o forte endividamento público e privado, altas taxas de jurospodem prejudicar as empresas que dependem de dinheiro barato. Paradoxalmente, passamos do risco de pouso forçado para o pouso suave, depois o não pouso, o que reintroduz o perigo de cair em recessão.

Valor: Sendo assim, o que é o mais importante a observar neste momento?

Roubini: O futuro da economia depende muito de quem será eleito em novembro. A política econômica seria bem diferente com Donald Trump ou Kamala Harris. Algumas políticas que Trump pretende implementar são inflacionárias, com protecionismo, enfraquecimento do dólar, interferência na política monetária, cortes permanentes de impostos. Isso aumentaria os déficits ainda mais, tornando-os menos sustentáveis, o que traz consigo o risco de que os juros sejam empurrados para cima. Não estamos fora de perigo. Primeiro, porque o Fed talvez não possa reduzir muito os juros. Segundo, porque, dependendo da política econômica do ano que vem, pode haver tormentas.

Valor: O sr. disse que o potencial de crescimento dos EUA será maior, graças à tecnologia. Mas a adoção de tecnologia tem sido bastante rápida. É possível que o crescimento esteja acontecendo com inflação em queda porque esse potencial maior já entrou em cena?

Roubini: É uma possibilidade. A empolgação com a inteligência artificial generativa levou a uma onda importante de investimentos nos EUA. Todo mundo está entrando na IA. Os produtores desses modelos estão comprando mais chips, mais bancos de dados, mais eletricidade. Além disso, nos EUA, as leis de infraestrutura, da indústria de chips e da redução da inflação (IRA) levaram a um boom de investimentos industriais, com centenas de bilhões de dólares em nova capacidade manufatureira prometidos para a próxima década. A antiga infraestrutura dos EUA começa a ser renovada e há incentivos à energia renovável. São coisas grandes, que provavelmente atuam tanto no lado da oferta quanto da demanda. Elas podem explicar por que o crescimento tem sido forte.

Valor: Pelo prisma do mundo em desenvolvimento, os juros altos nos EUA preocupam porque reduzem o fluxo de capital e desvalorizam as moedas. Como é o cenário para o Sul global?

Roubini: Se prevalecer o cenário benigno e o Fed mantiver os juros no nível atual, há problemas. Um país que tenha tomado emprestado em dólar vai ter um custo de serviço da dívida mais alto. Isso vale também para quem tomou emprestado em moeda local, porque quando os juros em dólar estão altos, os juros em moeda doméstica têm que ser ainda mais elevados, para evitar a depreciação. Essa depreciação de moedas pode ser útil para a exportação desses países, mas é inflacionária. Além disso, o câmbiotambém eleva o preço em dólar das commodities, o que é uma desvantagem para exportadores. Essa combinação de fatores implica ventos contrários significativos para muitos mercados emergentes.

Valor: Na reunião do G20, houve avanços na ideia da taxa global sobre os mais ricos. Impostos internacionais são discutidos desde a taxa Tobin. É uma ideia eficaz?

Roubini: As últimas décadas trouxeram um aumento na desigualdade ao redor do mundo. Isto provocou reações contra a democracia liberal e o capitalismo, porque muitas pessoas se sentem deixadas para trás. Há grande insegurança econômica. As reações são variadas, mas todas levam a algum grau de populismo. Por isso, precisamos fazer algo quanto à desigualdade. Aumentar o bolo econômico, dando mais oportunidades para as pessoas se educarem e desenvolverem habilidades, é sempre a melhor política. Mas faz sentido argumentar que é preciso taxar os vencedores, em termos de renda ou riqueza. É preciso chegar a um acordo global, assim como a OCDE obteve um acordo sobre o imposto corporativo mínimo. Só a cooperação internacional pode evitar esse problema.

Valor: A política americana tem tudo, menos tédio. Um candidato foi baleado, outro desistiu da corrida. Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Como um investidor navega essa situação?

Roubini: É difícil prever aonde essa eleição vai conduzir. Agora os democratas têm uma candidata jovem, uma mulher afro-americana que pode energizar a militância. Há o risco de que ambos os lados se declarem vencedores, levando a decisão até a Suprema Corte, mais ou menos como em 2000. Podemos até repetir janeiro de 2021, só que de um jeito ainda mais caótico, com violência nas ruas se Trump perder. Tudo pode acontecer. Os mercados sabem que haverá diferenças na política externa entre Trump e os democratas, mas tendem a desconsiderá-las, porque nesse campo as variações não costumam ser grandes. No Oriente Médio, Trump deve pressionar os palestinos por um acordo de paz com Israel. Há preocupação de que ele abandone a Ucrânia, mas se fizer isso, haverá um efeito dominó. A China se veria em condições de assumir Taiwan sem reação. Mas a relação com a China é um ponto de concordância entre republicanos e democratas, são ambos agressivos. Sabemos muito pouco do que virá. Há algumas ideias, mas é difícil precificá-las nos mercados.

Valor: Como alocar os investimentos perante esse quadro?

Roubini: Não é nada fácil. Esse ponto sobre a política externa ajuda, e algumas coisas são legíveis na política fiscal. O risco para a democracia é real, o que bagunça tudo. Acho que os mercados vão caminhar passo a passo, esperando para ver o que vem a cada momento. Há potenciais impactos ainda maiores, como a escalada da guerra no Oriente Médio ou na Ucrânia. Mas os mercados estão ignorando essas coisas, como se fossem um risco secundário. A melhor coisa é esperar para ver, em vez de se apressar em tomar alguma posição.

Valor: O sr. mencionou três iniciativas econômicas de Biden: leis de infraestrutura, de chips, de redução da inflação. Elas foram consideradas o retomo da política industrial ao centro da economia do planeta. Sem Biden, a política industrial permanece?

Roubini: A política industrial voltou de vez, não só nos EUA Os chineses a praticam há tempos, os europeus estão tentando. Em um mundo onde o crescimento é impulsionado pela tecnologia, dados, conhecimento e inovação, não posso deixar o mercado fazer tudo. Tenho que usar políticas industriais com inteligência para afetar a economia. Já nos afastamos do lais-sez-faire. Os governos estão pensando em como garantir a manufatura, como atrair ou resguardar empregos de qualidade. No processo, muitos erros podem ser cometidos, mas também há coisas boas que podem ser feitas. O resultado final pode ser bom ou ruim, ainda não sabemos. Mas todo mundo está fazendo.

Valor: O sr. citou a Europa como um dos polos do mundo fragmentado. Há debates na Europa sobre a derrocada do continente. Ela será ainda um grande ator na cena global?

Roubini: Isso depende de fazer as reformas estruturais e concluir o mercado único. Hoje, a perspectiva não está boa para a Europa. Há problemas na vizinhança, com ameaças vindas do Oriente Médio e da Rússia. Os EUA têm dois grandes oceanos e vizinhos amigáveis. Os EUA são independentes em energia, a Europa não. Os EUA são um mercado totalmente integrado, enquanto a Europa ainda não concluiu a união economicamente, nem politicamente. A Europa envelhece mais do que os EUA, que recebe mais imigrantes. A Europa está sujeita ao risco de que a Guerra Fria entre EUA e China piore. Ela exporta muito para a China e tem investimentos diretos lá. Está próxima do Oriente Médio, onde há turbulência, que pode levar a um choque energético como o da década de 1970, se houver guerra entre Israel e o Irã. Os desafios são todos solucionáveis, mas é preciso que a Comissão Europeia seja enérgica e aprove legislação para mudar os incentivos na direção de mais inovação, competitividade, dinamismo econômico e empreendedorismo. A Europa começa o jogo com grande capital humano, instituições fortes, renda alta. É rica, mas não se pode viver dos louros do passado.

Valor: Um ativo que a Europa preza muito é o "efeito Bruxelas", pelo qual as regulações europeias são adotadas no resto do mundo. Pode ser o caso da lei de IA recém-aprovada?

Roubini: Os europeus alegam que um dos seus papéis é fornecer parâmetros regulatórios, graças ao tamanho e importância de seu mercado. Mas é um comportamento complacente. Os grandes líderes em IA hoje são os EUA e a China, além de bolsões de excelência em Israel, Reino Unido e Japão. A Europa tem ambições nesse campo, mas não é tão forte. Mesmo antes da revolução da IA, os europeus não foram capazes de ocupar mercados com inovação. E se você não está inovando, tentar regular é ingênuo. Um: porque sua regulamentação pode ser demais e sufocar até mesmo o mínimo de investimento que você poderia obter. Dois: você pode errar. E três: não é óbvio que os outros vão adotar suas regras. Eu gastaria mais tempo tentando criar inovações em IA na Europa, em vez de regulá-la de uma forma que dá ainda menos incentivo para fazer parte dessa pesquisa.

Valor: Em resumo, que falta faz ter alguém "no controle"?

Roubini: Remeto ao título de um artigo que escrevi: "Inteligência artificial vs. estupidez humana". Se bem usada, a IA pode aumentar o crescimento, a produtividade, o bolo econômico. Mesmo se a maior parte da renda gerada for para poucos, sempre se pode taxá-los e redistribuir. O problema é a estupidez: não vivemos no mundo das máquinas inteligentes, mas de conflitos geopolíticos, reação contra a democracia e a globalização, relocalização da manufatura, nacionalismo econômico e mudanças climáticas. Essa mesma tecnologia pode ser usada para criar falsificações profundas, aumentar a desigualdade, aprofundar o desemprego e inclusive construir mais armas, para lutar guerras maiores. Vivemos no melhor dos tempos, porque a tecnologia pode nos fazer viver mais, melhor e com mais renda. E vivemos no pior dos tempos, com as mega-ameaças impulsionadas pelo comportamento humano. Podemos sobreviver aos próximos 20 anos sem guerra global, sem outra pandemia, sem catástrofe climática, sem crises financeiras? Se conseguirmos, o futuro será brilhante, usando a tecnologia para melhorar a situação de todos. 

 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

“Nenhum país é governável com a mentalidade gasto é vida" - Entrevista - Luis Stuhlberger (Valor Econômico)

 Introdução de Mauricio David:

Luis Stulberger é considerado por muitos o Warren Buffett ( o “mago” de Omaha...) brasileiro. É uma questão de opinião, mas algumas das coisas que ele diz são de gente, como ele, que conhece as condições de mercado. Algumas das suas previsões são complicadas (o governo Lula III seguindo os passos do desastre Dilma II, o dólar apontando para 7,0, o gasto previdenciário estourando, etc e tal). Um Deus nos acuda ! Mas que as suas previsões são realistas, lá isto são. O País está à beira do caos, com um presidente doidivanas que pensa que sabe economia e com um Ministro da Fazenda que entende um pouquinho – mas bem pouquinho mesmo...- de Sociologia e nada de Economia... Eh!, o futuro que se vislumbra não é nada otimista... Salve-se quem puder ! Ainda bem que 2026 está às portas, com novas eleições presidenciais... Mas falta ao Brasil um novo Fernando Henrique (o atual está fora de combate, preso ao leito), um novo Ricupero ( que se coloca fora de cogitação), quem nos sobrará ? O Malan não tem gosto pela política, o Bacha só pensa nas vaidades da Academia Brasileira de Letras, o Ciro rifou-se a si próprio, só sobra o Eduardo Paes que pensa que pode governar distribuíndo benesses e estádios às torcidas do Vasco e do Flamengo... Mas que país é esse ?, se perguntavam os roqueiros da Legião Urbana. Uma Pasárgada, como dizia Manuel Bandeira. Ou talvez a Maracangalha, do Dorival Caymmi...

MD

 

"Nenhum país é governável com a mentalidade gasto é vida"

 

VALOR ECONÔMICO - SP

24/07/2024

 

Entrevista - Para Stuhlberger, da Verde, câmbio depreciado veio para ficar e troca no BC preocupa

 

À frente do emblemático fundo Verde, um dos multimercados mais antigos da indústria de gestão de recursos no Brasil, Luis Stuhlberger mudou o posicionamento da carteira para um cenário mais pessimista a partir de abril. Foi quando o governo encaminhou a proposta do orçamento para 2025 que ficou claro que o arcabouço fiscal, desenhado no ano passado, não era crível. Com premissas de arrecadação extremamente agressivas, despesas subestimadas e um PIB projetado em 2%, a lógica do "gasto é vida" do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou à mesa.

O teto de gastos, diz, já tinha sido derrubado no final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Depois de Lula conseguir com o Congresso cerca de R$ 150 bilhões com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da transição, soma similar à obtida por Bolsonaro, o crescimento de gastos previdenciários e assistenciais mostra uma equação difícil de ser resolvida.

"A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar pagamentos para quem não trabalha", diz Stuhlberger, ao atualizar o seu diagnóstico macroeconômico e refletir sobre a indústria de multimercados.

No ajuste do timão, o gestor passou a comprar dólar, diminuiu a parcela em ações e trocou a histórica exposição em Notas do Tesouro Nacional série B (NTN-B) pela equivalente americana, a Treasury Inflation-Protected Securities (TIPS). Foi insuficiente para superar o CDI no ano, mas o Verde é um dos poucos multimercados tradicionais que numa janela de 2,5 anos ainda tem gordura em relação ao referencial.

"Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, tanto multimercados quanto de ações." A sucessão de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central é um fator de preocupação se o indicado for alguém que ceda a pressões políticas por corte de juros. "O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a [ex-presidente] Dilma [Rousseff] fez, colocando o [Alexandre] Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque ele vai pra R$ 7." Ele não vê, contudo, esse cenário se concretizando se Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária, for o escolhido, mas diz que o real mais depreciado veio para ficar.


A seguir, trechos da conversa com Stuhlberger, que recebeu o Valor na sede da gestora no fim da semana passada.

0 pé trocado dos multimercados Os multimercados, grandes e menores, operam bastante no exterior. Mas claro, têm o "edge" brasileiro. Dificilmente você vai ver um multimercado aqui que não tenha nenhuma posição no Brasil. E digamos assim que esses sete meses, seis meses mais um, o Brasil teve uma deterioração no preço dos ativos bastante significativa.

A gente pegou essa deterioração no começo. Fomos mal de janeiro a abril, mas de abril em diante, meio que virou. Eu já falei que me penitencio por ter acreditado que o PT teria alguma seriedade fiscal. Aí mudei de ideia, a gente passou a comprar dólar, diminuir a exposição a ações, trocamos as NTN-Bs por TIPS americanas, e aí melhoramos a performance. Não deu para compensar todas as perdas, que não foram enormes. Mas, pelo menos, eu acho que a gente agora está do lado certo do ciclo econômico.

Quebra de confiança 

O teto de gasto já levou um tiro no final do governo Bolsonaro. Aí vem uma fase de muita tensão no Brasil, no segundo semestre de 2022, que era política mesmo, tipo vamos ter um presidente? Bolsonaro falou que não ia aceitar o resultado das urnas. Foi extremamente sério. Estrangeiros dizendo assim: "não posso investir no Brasil porque não sei se vocês vão ter um presidente"; foi apavorante. Aí o Lula ganha por uma margem pequena, mas governa como se tivesse uma margem enorme. Esperava-se um Lula, digamos, mais parecido com o Lula 1 e Lula 2, vem aquela tensão de querer a PEC de transição, subindo já o gasto de 2022 para 2023 de maneira muito expressiva. Foi aprovada no Congresso que não é de esquerda, mas dá governabilidade. Deram uma quantia parecida àquela que deram para Bolsonaro, R$ 150 bilhões. E depois, com o passar do tempo, o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad foi reconstruindo a parte de tributos que o Bolsonaro excluiu.

"Gasto é vida" 

Essas mudanças abruptas econômicas começam naqueles primeiros meses de governo Lula com "gasto é vida, sou contra qualquer tipo de controle, sempre governei gastando muito, mas depois o PIB cresce e tudo se resolve". Até que depois de um certo tempo de debate sai o arcabouço, no começo de 2023. Houve um período de calmaria relativamente longo, quase um ano. Teve outras tensões, mas do ponto de vista fiscal, o mercado acabou comprando a ideia de que o arcabouço funcionaria. A premissa não era a ideal, mas as tensões vinham muito mais de fora do que de dentro, basicamente dos Estados Unidos.

Começou a ficar claro que o arcabouço era uma peça de ficção quando o governo mandou o orçamento do ano que vem. Veio com premissas de arrecadação extremamente agressivas, depois de tudo que subiu em 2023, subiu em 2025 sobre 2024, 3,5%. Com o PIB que a gente imagina, que vai subir um pouco mais de 2%, é impossível. E aí tem aquelas metas, vai fazer R$ 50 bilhões de acordos no Carf, premissas que não vão ocorrer. A Fazenda governa no estilo, "eu aumento, mas não invento". E isso, no final, acaba deixando o Congresso irritado.

O nó previdenciário 

No gasto do governo federal, que deve estar por volta R$ 3,4 trilhões, 20% do PIB, há um crescimento expressivo dos gastos previdenciários totalmente incompatível com a reforma. A reforma da Previdência mostraria agora uma curva de crescimento muito abaixo do que se vê. E ninguém tem uma explicação para isso.

Eu não sei exatamente onde passaria essa curva, mas acho que seria mais perto de 1% e está subindo 3%. Nos últimos 12 meses, o acumulado é de R$ 930 bilhões. Mas previdência é previdência, as pessoas ficam mais velhas, se aposentam. Agora, o que está subindo de maneira muito mais intensa é aquilo que chamo de assistência social, vista fiscal, o mercado acabou comprando a ideia de que o arcabouço funcionaria. A premissa não era a ideal, mas as tensões vinham muito mais de fora do que de dentro, basicamente dos Estados Unidos.

Começou a ficar claro que o arcabouço era uma peça de ficção quando o governo mandou o orçamento do ano que vem. Veio com premissas de arrecadação extremamente agressivas, depois de tudo que subiu em 2023, subiu em 2025 sobre 2024,3,5%. Com o PIBque a gente imagina, que vai subir um pouco mais de 2%, é impossível. E aí tem aquelas metas, vai fazer R$ 50 bilhões de acordos no Carf, premissas que não vão ocorrer. A Fazenda governa no estilo, "eu aumento, mas não invento". E isso, no final, acaba deixando o Congresso irritado.

O nó previdenciário 

No gasto do governo federal, que deve estar por volta R$ 3,4 trilhões, 20% do PIB, há um crescimento expressivo dos gastos previdenciários totalmente incompatível com a reforma. A reforma da Previdência mostraria agora uma curva de crescimento muito abaixo do que se vê. E ninguém tem uma explicação para isso.

Eu não sei exatamente onde passaria essa curva, mas acho que seria mais perto de 1% e está subindo 3%. Nos últimos 12 meses, o acumulado é de R$ 930 bilhões. Mas previdência é previdência, as pessoas ficam mais velhas, se aposentam. Agora, o que está subindo de maneira muito mais intensa é aquilo que chamo de assistência social, é uma quase previdência. As rubricas são imensas, esse número já é de mais de R$ 500 bilhões e está subindo. Coisas como o Bolsa Família, o BPC [Benefício de Prestação Continuada], que é o valor de uma previdência para quem não contribuiu, mas se aponta que tem qualquer doença que não te deixa trabalhar, você consegue.

Por isso que o Haddad fala, "deve ter fraude, vamos achar uns R$ 15 bilhões nisso, R$ 20 bilhões". O governo promete e não acha. E deu uma acelerada no governo Lula.

Quando se soma a previdência mais toda a assistência social, esse número já chega a R$ 1,7 trilhão. E para o ano que vem vai ser maior. Por isso que o mercado não se acalma com corte R$ 15 bilhões, porque isso sobe R$ 200 bilhões por ano. A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar quem não trabalha. Ainda assim, esses cheques não são grandes. Se tirar a fortuna de todos os brasileiros ricos juntos, você não paga um ano disso. O problema é que é o âmago do pensamento do Lula.

Nenhum país é governável com essa mentalidade, mas o Lula e a esquerda acreditam na teoria de que se distribuir esse dinheiro todo, essas pessoas vão consumir. Em consumindo, a indústria vende, o comércio vende, a economia gira, as empresas pagam impostos e no fim terá valido a pena, porque isso faz o PIB crescer. E quando o PIB cresce, a dívida/PIB não cresce. É um pensamento que deu errado, historicamente, em todos os lugares do mundo

Lá e em abril, maio, quando os agentes econômicos entendem isso, houve deterioração súbita dos ativos. Misteriosamente, mesmo antes da deterioração dos juros e do câmbio, a nossa bolsa já vinha mal. Os estrangeiros tiraram R$ 40 bilhões do Brasil até abril, maio.

Os brasileiros estavam otimistas e não entendendo por que o gringo estava tirando dinheiro. Mas era da bolsa. Em investimento direto, compra de participações de empresas, não é um dado dramático, está todo mundo feliz porque a conta corrente está boa, com o Brasil batendo recorde de exportações, com o pré-sal, a balança crescendo, são números bons. Então, de uma certa forma, essa situação cambial boa durante um bom tempo mitigou uma situação fiscal ruim, até o dia que não mais.

É um conceito muito simples, que é "quando a pasta de dente sai do tubo". Aí não adianta você falar, "não, mas eu vou contingenciar". Quando a pasta de dente sai do tubo, essa teoria da entropia, demora para ela voltar. Agora, se você me perguntar, o Brasil tem conserto? Tem. Mas você tem que modelar no preço dos ativos a equação: Qual a chance de o Lula ganhar a eleição em 2026? É no mínimo 50%. Então com esse tipo de política, por mais quatro anos, até 2030 o país vai piorar muito.

Eventualmente, neste ano, cumpre a meta. Mas a dívida/PIB não sobe só pelo arcabouço. As coisas fora do arcabouço não são pequenas. O que o mercado olha hoje? la bom, são R$ 15 bilhões [de contigenciamento], ok, mas a receita está superestimada, a despesa do ano que vem subestimada. Mesmo o governo fazendo com controle é um negócio que sobe R$ 200 bilhões por ano.

É claro que o governo quando se vê num "comer", dá um medo lá em Brasília. Se a bolsa cai, o juro sobe, eles não entendem muito bem; mas o dólar quando sobe é sério, porque pega a inflação na veia, vai afetar o preço de alimento, vai atingir a classe pobre. Estamos no meio disso e não vai melhorar muito.

Câmbio e efeito México

Quando se calcula o "fair value" [valor justo] do dólar no Brasil - vamos dizer que esteja por volta de R$ 5,20, R$ 5,25 -, entram várias coisas na conta: o CDS [prêmio de risco] do Brasil, o CRB [índice de commodities], a diferença da Selic para os Fed funds [juros dos EUA], Leva em conta o preço do dólar em relação ao euro, ao renminbi [chinês], e também a moedas de emergentes. E o México tem peso importante na cesta. A Claudia Scheinbaum [nova presidente do país] é uma pessoa surpreendentemente preparada, se comparar com o Lula. De esquerda, mas preparada. O problema é que fez um Congresso com dois terços de esquerda. Eu nem acho que a moeda [mexicana] tenha se depreciado muito. Mas isso pesou no real em 20 centavos. Se hoje o fair value é R$ 5,20, R$ 5,25, se não tivesse o efeito México, seria R$ 5,00.

Eu digo o México, mas o peso chileno também se depreciou, o colombiano, e agora com o [Donald] Trump [candidato republicano com chances de voltar à Casa Branca], há uma tendência negativa, com esse protecionismo, para as moedas da América Latina.

Esse dólar veio para ficar, a pasta de dente não vai voltar para o tubo. Na minha conta, está 6,5% acima do "fair value", se comparar o preço do dólar/real. No governo Dilma foi 20% acima, o que equivaleria hoje a R$ 6,10, R$ 6,20. Porém, por que isso não vai ocorrer? Porque naquela época a gente tinha um déficit em conta corrente muito alto, era 5%, hoje é 2%.

Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, multimercados e ações.

Juros

O mercado coloca um prêmio para o juro no Brasil de 2025 em relação à média da SOFR [a taxa do overnight publicada pelo Fed] de quase 750 pontos, enquanto hoje é 500. Quer dizer, está em 7,5%, tem um prêmio. Agora, você me pergunta: "Então o juro vai ficar em 10,5% até final deste ano e um Banco Central petista vai subir para 12%?" Não parece provável. Mas o mercado se equilibra nisso por uma razão de modelo. Então, você só vai ganhar essa diferença ficando até o fim.

A cada Copom que passa, sempre vai ter um prêmio grande. Eu fiquei muito surpreso quando isso aconteceu a partir de abril, porque imaginava que só ia aparecer no último ano de governo, quando poderia querer gastar mais e dar um pé no arcabouço. 

Reforma tributária

Tem o Congresso e os seus lobbies empresariais. Você não consegue tributar algo do agronegócio. O governo tem razão, a carga tributária brasileira é enorme, mas é muito mal distribuída. Esse é um ponto. O Brasil é o país emergente com maior carga. Não é fácil ser ministro da Fazenda. Agora, muita coisa foi mal feita. Você fica discutindo dois anos e enfia um monte de coisa na última meia hora. Então, por exemplo, eu já vi que a tributação do setor de construção está mal feita. Vai precisar de ajuste no Senado, vai ser uma briga. Mas é uma coisa boa, acho que essa reforma do IVA, apesar de estar longe do ideal, vai ser bem melhor do que a situação atual. 

Sucessão no BC

Preocupa todo mundo. Do mesmo jeito que o Lula pensa quanto mais gasto, melhor, o Brasil é um país que por conta disso tem um juro real de equilíbrio muito alto. E o Lula pensa assim: "E se esse juro fosse 2, 3% menor? Imagina esse dinheiro quanto faz falta no social..." Os governos do PT, todos eles, Lula 1, Lula 2, Dilma, eles têm uma equação muito simples: para a economia funcionar com o mínimo de equilíbrio, o governo acelera e o Banco Centralbreca. O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a Dilma fez colocando o Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque o dólar vai para R$ 7. Esse equilíbrio - o governo acelera e o Banco Central breca - não é bom, mas funcionou nos oito anos do governo Lula. O juro nos oito anos do governo era 15%, 16%, 17%. E o Brasil funcionava desse jeito.

Não acho que isso vá acontecer com o [Gabriel] Galípolo [diretor de política monetária, principal nome cotado para assumir o posto de Campos Neto]. As circunstâncias de mercado farão com que o Lula não coloque um novo Tombini, quando quem determinava taxa de juros supostamente era a Dilma.

Vai depender de quem vai estar no Banco Central, é muito sensível. Se cortar o juro de 10,50% para 9,50% num cenário desse, já é muita coisa. E o Lula, vamos dizer, ele fica possesso porque isso vai contra o bom senso econômico que entende que tem.

Eleições nos EUA 

Olhando para o futuro, acho que o que está em jogo é o que se chama de "Republican Sweep", que é o Tramp ganhar e levar o Senado e a Câmara. Ele vai ficar muito mais poderoso. E isso é muito importante. Tem coisas que o Trump pode fazer sozinho. Por exemplo, aumento de tarifas de importação. De fato, não acho que ele vá executar tudo que está falando, tipo, "vou expulsar 10 milhões de pessoas, vou deportar [imigrantes]". Isso não é viável, mas essa combinação de muito menos imigração com aumento de tarifas é muito inflacionária.

Tem uma dificuldade de dizer quanto isso está no preço, porque o que a gente chama de "rates" [juros], de Fed funds, para dezembro de 2025, está por volta de 3,70% e o juro de hoje está em 5,30%. Não acho isso suficiente para um Republican Sweep, vai ser mais que isso porque vai gerar uma inflação para 2025 de 1 % a 1,5% maior do que o mercado está marcando.

Essas coisas, às vezes, você não consegue fazer muito rápido. Então tem esse risco de o juro cair, depois eventualmente voltar a subir nos Estados Unidos. Esse risco está aí. A chance de o Trump fazer algo disso é razoável, é grande. Então isso vai gerar, pelo menos para os próximos meses, um fator de instabilidade para as moedas da América Latina.

A competição dos isentos 

Nem todos tiram dinheiro, especificamente do multimercado, mas falando de LCA, LCI, CRA, CRI, debênture incentivada, Fiagro, fundo imobiliário, HG, que são isentos [para a pessoa física], estamos falando de um estoque de quase R$ 1,8 trilhão. E tem aquela quantidade de CDBs de bancos muito pequenos que pagam lá 120% do CDI garantidos pelo FGC [Fundo Garantidor de Créditos], é também um competidor. Vai ter uma diminuição [dos incentivados] pelas medidas [de restrição de lastro] tomadas [pelo CMN], mas o estoque é imenso. No isento, tem risco de crédito privado e "duration". E tem muita coisa que tem risco de execução. Então, é aquela história do Brasil: tem o investimento que tem o come-cotas [o imposto semestral]. O multimercado [em fundo fechado exclusivo/restrito] pagava imposto quando resgatava. Mas era grande o estoque. 

Você pega uma performance sofrível, porque nenhum cliente tem um multimercado só, e junta com os isentos, aí tem uma tempestade perfeita.

Neste R$ 1,8 trilhão [em dívida], alguma coisa vai dar errado. Mas o atrativo da isenção é grande, porque você está falando de até 2% ao ano de vantagem. É óbvio que o principal problema da gente, nem vou dizer da "asset class", é performar melhor. Ano passado, a gente não foi mal, deu CDI mais 1,5% líquido e neste virou a chave de compreensão da complexidade séria do fiscal brasileiro. Não quero dar a impressão que a culpa é do Brasil, longe disso. A gente tem que melhorar, estamos trabalhando nisso.

 

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Ricupero e os bastidores do lançamento do Real - Sérgio Lamucci (Valor Econômico; Comentários de Mauricio David)

Ricupero e os bastidores do lançamento do Real

30 anos Plano Real 

 

Especial - Em suas memórias, ele conta o que viveu na Fazenda, do papel de comunicador ao de "algodão entre cristais", e fala do episódio da parabólica

 

Sérgio Lamucci

 

Aos 87 anos, o embaixador Rubens Ricupero publica as suas "Memórias". No ano em que se completam três décadas do Plano Real, os capítulos em que trata da sua passagem pelo Ministério da Fazenda, em 1994, contando bastidores do período, ganham especial interesse. O diplomata relata os cinco meses em que ficou no cargo, narrando as pressões enfrentadas por ele e pela equipe que elaborou o plano, a convivência difícil com o então presidente Itamar Franco, a tarefa de comunicar à população a mudança de moeda e o episódio da parabólica, que levou à sua saída do ministério.

Do fim de março ao começo de setembro de 1994, Ricupero teve papel importante na fase de implementação do plano que enfim derrubou a inflação e levou o seu antecessor no cargo, Fernando Henrique Cardoso, a ser eleito presidente nas eleições daquele ano, batendo Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno. Fernando Henrique montou a equipe que elaborou o Real, composta por nomes como Pérsio Arida, André Lara Resende, Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco, mas coube a Ricupero comandar a Fazenda nos meses anteriores e imediatamente posteriores à introdução do real, sendo fundamental na comunicação do novo plano. No começo de março, havia sido lançada a Unidade Real de Valor (URV), que funcionou como uma "quase moeda", não existindo fisicamente, até a substituição do cruzeiro real pelo real.

Fernando Henrique deixou o cargo para se candidatar à Presidência, e Ricupero, então ministro do Meio Ambiente, foi escolhido pelo então presidente Itamar Franco para o posto. Ao Valor Ricupero ressaltou a importância do então presidente para a existência do plano, embora sem minimizar as dificuldades causadas por ele. "O grande mérito do Real, em primeiro lugar, é do Itamar, politicamente. Se não fosse ele, o Fernando Henrique não teria existido-nem ele nem eu", afirmou. Ao mesmo tempo, Itamar "atrapalhou o quanto pôde", diz Ricupero.

"Queria aumentar o salário mínimo, dar aumento para a Polícia Federal, para os militares, para os civis. Tudo isso era impossível", disse o embaixador. "Eu dizia: "Presidente, se eu fizer o que o senhor está me dizendo, aquilo que o senhor me pediu, não vou poder fazer"", conta Ricupero, lembrando que Itamar havia pedido para que ele aplicasse o plano com a equipe que estava ali. ""Se eu fizer o que o senhor me manda - eu vou fazer, porque o senhor é o presidente -, não vou ter nem equipe e nem plano"."


Entre as dores de cabeça causadas por Itamar, Ricupero cita as duas ordens formais para demitir o então secretário do Tesouro, Murilo Portugal. Ricupero não obedeceu. "Funcionário exemplar na competência e integridade, defendeu com firmeza a chave do cofre, ajudando a preservar as condições fiscais do êxito do Plano Real. (...) Com a missão pouco invejável de resistir às inumeráveis pressões para gastar, Portugal acabou por atrair iras e ressentimentos de gente poderosa, decidida a intrigá-lo junto à Presidência", conta o embaixador, no livro lançado pela Editora Unesp.

Ricupero diz que, após o segundo pedido para demitir Portugal, deixou passar alguns dias. "Dessa vez, as intrigas se intensificaram, até que o presidente me chamou para reclamar da desobediência à sua decisão. Passei longo tempo explicando que não havia nada de arbitrário na execução do Orçamento, muito menos interferência individual do diretor do Tesouro. Itamar era impulsivo, com frequência inseguro em relação à própria autoridade. Possuía, contudo, a virtude de escutar e não insistia quando se convencia de haver cometido um equívoco."

No livro, Ricupero relata uma grande surpresa ao se reunir com a equipe, a quem reserva muitos elogios, no mesmo dia do convite para ser ministro. "À noite, realizou-se, em casa, minha primeira reunião com a equipe econômica. Após as introduções de praxe, perguntei qual seria o Dia D, a data do lançamento da nova moeda. Recebi um choque ao descobrir que não havia nenhuma data definida. Pior, a discussão revelou que as opiniões variavam num espectro larguíssimo, que ia de um mês a um ano", conta ele.

"Eduardo Jorge, assessor parlamentar de FHC desde o Senado, queria que fosse em um mês, prazo obviamente inexequível. No extremo oposto, Pérsio Arida e outros falavam em um ano, e ainda assim com relutância. Preferiam que a transição para a nova moeda se prolongasse o máximo possível para dar tempo à consolidação da URV e sua aceitação espontânea nos reajustes salariais", escreve Ricupero, observando que a divergência escondia duas complicações mais profundas. "A primeira era o conflito entre as considerações políticas e as puramente econômicas. A segunda tinha a ver com o imenso, incomensurável grau de insegurança que pairava sobre as chances de que o plano desse certo em termos econômicos."

Ricupero diz que, "depois de examinar as etapas a completar antes de introduzir a nova moeda, chegou-se à conclusão de que o mínimo prazo viável seria de três meses a partir do começo de abril". Os participantes saíram da reunião convictos de que teriam de trabalhar com esse horizonte de tempo, ainda que a decisão formal de bater o martelo na data de 1º de julho só tenha sido tomada mais tarde. O calendário eleitoral era um fator inescapável.

Entre os integrantes da equipe montada por Fernando Henrique para a elaboração do Real, Ricupero fala de modo bastante elogioso do ex-presidente do BNDES Edmar Bacha, ao lembrar do papel do economista para convencer os parlamentares a aprovar a medida provisória da URV-segundo o embaixador, a ideia de Fernando Henrique era renovar a MP a cada vencimento, e não fazê-la passar no Congresso, pelo risco de ser desfigurada. Ricupero não se convenceu da estratégia e preferiu batalhar pela aprovação da medida. Segundo ele, "graças ao trabalho excepcional do membro sênior da equipe, Edmar Bacha, foi possível, não sem perigo, mudar de estratégia e obter o endosso dos parlamentares. Paciente, com senso de humor, ar despretensioso escondendo mineira sagacidade, Bacha ganhou o apelido de "senador", pelos seus ares de negociador tarimbado". Ricupero também destaca o papel do deputado Luís Eduardo Magalhães, então líder do PR, para a aprovação da MP.

Uma passagem curiosa é o relato de uma conversa com Fernando Henrique, após a reunião em que Itamar o convidou para ocupar a Fazenda, em que o futuro presidente elogia especialmente um dos integrantes da equipe. "Ao sair do tête-à-tête, encontrei Fernando Henrique e me ofereci para levá-lo de carro até seu apartamento. No caminho, pedi que me falasse um pouco dos membros da equipe, como agiam, se havia tendências, posições discordantes, que conselhos me daria para lidar com eles", escreve Ricupero.

"Fiquei surpreso de ver como se estendia em elogios a Gustavo Franco, quase exclusiva mente. Acho que ele mesmo se deu conta do desequilíbrio, pois, sem que eu dissesse nada, acrescentou que já conhecia bem os demais membros da equipe anteriormente. A verdadeira revelação, a novidade, tinha sido Gustavo", conta ele. "Tive a impressão de que a razão real estaria no caráter mais afirmativo de Franco, que transmitia a sensação de jamais ter dúvidas."

Ao Valor Ricupero disse que Bacha e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan eram "as duas âncoras de mais experiência - inclusive, os que tinham mais idade, mais maturidade". Na sua visão, Pérsio Arida e Gustavo Franco, dois ex-presidentes do Banco Central (BC), eram os mais brilhantes - a essa altura, o ex-presidente do BNDES André Lara Resende não estava mais no time.

Para Ricupero, evitar confrontos entre a equipe e Itamar foi uma das suas tarefas mais importantes à frente da Fazenda. "Na fase histórica de preparação do lançamento da moeda e dos primeiros meses de sua sustentação, fui o "algodão entre cristais", que evitou um choque direto entre Itamar e a equipe, capaz de esfacelar o programa anti-inflacionário", conta ele, no livro.

Ricupero diz que seu dever era claro. "Tinha de tomar o partido da equipe, defender suas posições, interpor-me entre ela e todos os empenhados em desfigurar o programa, ainda que inspirados por intenções de boa-fé, extemporâneas naquele instante. No fundo, via-me obrigado a resistir ao presidente a fim de protegê-lo de si mesmo e de seus íntimos, equivocados nas tentativas de passar por cima da competência dos membros da equipe econômica", escreve ele. "Itamar acreditava sinceramente na possibilidade de um plano que desse cabo do risco da hiperinflação. Contudo, da mesma forma que a imensa maioria dos políticos brasileiros, imaginava alguma coisa na linha do que havia sido o Plano Cruzado, uma espécie de milagre indolor que resolvesse de imediato todos os problemas sem nenhum custo político."

Um dos piores episódios de pressão ocorreu em 29 de junho de 1994, "na antevéspera do lançamento da moeda e da aprovação da medida provisória que consolidaria todos os aspectos relevantes ligados à moeda". Ricupero recebeu o então ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, um integrante do círculo íntimo de Itamar. "Preferi não chamar todos os membros da equipe, que seguiam trabalhando febrilmente para dar os últimos retoques à complexa medida a ser enviada ao Congresso. Convidei Pérsio Arida e Winston Fritsch para estarem presentes à entrevista, além de alguns colegas diplomatas. Desde o primeiro instante, senti que a conversa ia entortar. Não tanto pelos assuntos suscitados. O que chocou foi a atitude arrogante de cobrança, o tom cominatório de censura, parecia uma espécie de inspetor de quarteirão cobrando providências, dando prazos, puxando orelhas, como se fôssemos crianças malcriadas", conta o embaixador.

Para não perder a autoridade perante a equipe e não se tornar um joguete "das manobras de círculos palacianos", Ricupero conta ter telefonado na frente de Dupeyrat para Ruth Hargreaves, irmã do chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, que controlava a agenda de Itamar. ""Dona Ruth", lhe disse, "estou aguardando desde esta manhã que o presidente me chame para despachar a medida provisória. (...) Temos só um par de horas.

Diga, por favor, ao presidente que, se eu não for chamado logo, alguma coisa muito grave pode acontecer. Diga assim mesmo"". Ao ouvir o telefonema, Dupeyrat afirmou, segundo Ricupero: "Vejo que não sou bem-vindo aqui".

"O senhor sempre será bem-vindo quando vier trazer assuntos jurídicos ou constitucionais de sua pasta. Quanto à economia, vou perguntar ao presidente quem é o ministro da Fazenda, o senhor ou eu. Dependendo da resposta, não terei nada mais a fazer no ministério", respondeu o então ministro da Fazenda. Pouco depois, Ricupero foi avisado de que seria recebido por Itamar, e tudo se resolveu.

Se atuar para impedir o choque entre Itamar e seu entorno e equipe econômica era desgastante, Ricupero diz que se consolou "em parte" com a outra função principal que exerceu no Ministério da Fazenda. "Da mesma forma que não havia escolhido a ingrata posição de amortecedor entre o presidente e a equipe, tampouco imaginei que em pouco tempo me tornaria uma espécie de missionário do plano, a ponto de receber de Itamar a alcunha de "sacerdote do Real", conta ele.

Encarregado de fazer a campanha de informação sobre a nova moeda, uma vez que Fernando Henrique deixara a Fazenda para se candidatar, Ricupero se empenhou no papel, mesmo sem experiência prévia com televisão. Os pronunciamentos foram importantes para a comunicação do plano, ajudando a população a se preparar e a se informar sobre a troca da moeda. Ao Valor o embaixador destacou a relevância dessa atividade para o sucesso do plano, na sua visão. "Eu não tive nenhum aporte teórico ao plano. Isso é inteiramente devido a eles [aos economistas que elaboraram o Real]. Eu fiz foi a comunicação, uma história que resta contar. Sem a comunicação, não teria dado certo."

Para Ricupero, "a verdadeira mudança cultural trazida pelo Plano Real, por meio da comunicação, mas sobretudo pela realidade, residiu na demonstração de que a elevação de preços agravava o sofrimento dos que vivem de salários e não têm como se defender. (...) Não foram as palavras, e sim o efeito fulminante do plano, o que mudou a mentalidade da população. A ponto de que, mesmo os opositores do real, entre eles o PT, tiveram de alterar o discurso, se não suas convicções íntimas, diante da intolerância desenvolvida pela sociedade contra o retorno da inflação".

Para ele, "ninguém mais ganha eleição no Brasil se não investir contra a inflação. Pena que não tenha acontecido algo similar com a responsabilidade no gasto do dinheiro público, na leviandade de destruir as contas do Orçamento para fins eleitorais".

No livro, Ricupero lembra ainda que, "no contexto exterior, o plano jamais encontrou compreensão e ajuda de parte do FMI, do governo norte-americano, de autoridades financeiras internacionais em geral". Em visita ao Brasil, o então subsecretário do Tesouro americano, Larry Summers, lhe disse sem rodeios: "Compreendo o que vocês estão querendo fazer, mas não vai dar certo porque a situação orçamentária brasileira é muito precária, não permitirá manter a estabilidade por tempo suficiente".

Em resposta, Ricupero conta ter dito a Summers que a opinião era "correta do ponto de vista teórico ideal". Não levava em consideração, porém, as especificidades da situação do país. "Se tivéssemos podido, gostaríamos de contar com uma situação fiscal bem mais sólida antes de lançar a moeda nova. Mas, em ano eleitoral, com um presidente que tomou posse devido ao impeachment do anterior, com as tensões sociais existentes, sem forte apoio parlamentar, não há condições para efetivar o ajuste fiscal que nos demandam. Ideal ou não, na falta de condições, teremos de criar as condições, isto é, a moeda é que vai gerar apoio político para depois levar avante o ajuste, e não o contrário".


No último capítulo em que trata do Real, Ricupero fala do episódio que fez com que tivesse de deixar o governo - a transmissão de uma conversa com o jornalista Carlos Monforte, antes de fazer uma gravação para o Jornal da Globo, captada por algumas antenas parabólicas. "Hoje, não consigo entender o que me levou a dizer tanta coisa absurda e sem sentido", escreve ele.

Segundo o embaixador, um pouco antes, alguns assessores haviam informado a ele "que se detectavam os primeiros sinais de reviravolta animadora", após um período de desconfiança. A projeção para os índices de preços indicava uma queda brusca. Monforte insistiu na importância de divulgar esses sinais de queda da inflação na entrevista que começaria a seguir. "Aleguei que não podia fazer isso de forma unilateral, sem consultar os colegas. (...) Prometí que na segunda-feira seguinte, depois de obter a anuência dos demais, daria a meu entrevistador a novidade em primeira mão. Do contrário, acrescentei: "Vão dizer: você proibiu da vez anterior que era mim, agora que é bom... No fundo é isso mesmo. Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é mim a gente esconde". As duas últimas frases, quando vieram a público, destruíram qualquer possibilidade de Ricupero seguir no cargo.

"As pessoas não perceberam a contradição existente entre o que eu dizia e o que estava fazendo realmente. Se fosse verdade que eu não tinha escrúpulos, então por que não divulgava já a queda dos preços, faturando o que era bom para nós e para o plano? O poder das palavras é tão grande, porém, que todo mundo se fixou somente no que falei, não prestando atenção no que eu estava fazendo, que era recusar a divulgação da boa notícia", escreve ele. "Gostaria de apagar de minha vida aqueles 19 minutos, mas nunca atribuí a ninguém a responsabilidade pelo que sucedeu a não ser a mim mesmo." Segundo ele, o que o faz sofrer é ter feito papel de tolo, ao se "deixar levar pela presunção e pela vaidade".

Evocar o episódio, segundo ele, ainda é "um esforço penoso", mesmo depois de quase 30 anos. "Embora importante, a participação na saga do Real não define ou esgota minha trajetória, representa cinco meses de uma vida de 87 anos. Depois do episódio da parabólica, vivi e realizei outras coisas. Não sei se algum dia serei capaz de olhar as imagens da conversa malfadada, embora consiga ler a transcrição do que se falou", conta Ricupero.

O livro de memórias, de mais de 700 páginas, evidencia que a trajetória de Ricupero não se limita ao papel no Real. O diplomata conta a sua vida desde a infância pobre no Brás, numa família de imigrantes italianos e narra a experiência nos primeiros anos de Brasília, onde acompanhou a renúncia de Jânio Quadros e o golpe de 1964. Ricupero fala ainda das suas passagens pelas embaixadas do Brasil nos EUA, entre 1991 e 1993, e na Itália, em 1995, e pelo Ministério do Meio Ambiente, em 1993 e 1994, além de tratar de seu período como secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), entre 1995 e 2004. A atuação como ministro da Fazenda, como mostram as "Memórias", é apenas uma das etapas de uma vida intensa.

 

 


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Comentários de Maurício David:  

Ah!, se eu tivesse uma varinha de condão e pudesse fazer com que certas pessoas pudessem viver mais de 200 anos...

MD

P.S.: Por ocasião do Plano Real, eu estava fora do Brasil, em Paris, fazendo o meu doutorado em economia. Não gostei de certas medidas prévias ao lançamento do real. Quando foram anunciadas, eu estava participando de um seminário que reunia a nata dos economistas de esquerda, nas aforas de Paris. Critiquei duramente algumas medidas de restrições de gastos que foram adotadas (hoje, compreendo que eram necessárias naquele momento, como bem explica o embaixador Ricupero em suas esplêndidas memórias... Mas fiz as críticas junto ao público dileto do Fernando Henrique  (muito meu amigo, fundamos juntos o PSDB, eu era “fernandista” de quatro costados...), e parece que êle não gostou muito das minhas críticas feitas junto ao seu público de coração. Mas o Fernando Henrique era um cavalheiro e uma pessoa muito cordial e afetuosa, não guardava mágoa de ninguém...Quando voltei ao Brasil, a fins de 95 e o Fernando já na Presidência e o Real completando mais de um ano, o Bresser (também muito meu amigo, uma pessoa extraordinária...) me convidou para trabalhar com êle em Brasília. Desempregado, aceitei o convite. Mas tenho que falar antes com o Presidente, disse-me o Bresser. OK, disse-lhe eu. O Bresser falou com o Fernando Henrique e este, sem vacilar, deu o seu OK. Assim fui para Brasília, onde fiz o meu “serviço militar” passando 9 meses por lá. Foi o quanto aguentei, pude ver por dentro o pior dos jogos de poder no Planalto. Ao fim do meu “serviço militar”, pedi o meu boné e voltei ao Rio (ainda desempregado, mas logo depois ganhei uma liminar na Justiça garantindo o meu retorno ao BNDES, de onde havia sido excluído por pressão do SNI em 1980, readmitido pela emenda constitucional que convocou a Assembléia Nacional Constitutinte em 1984/85 e novamente demitido pelo infame governo Collor em 1990). 

Mientras tanto (como se diz nos países de língua castellana) os meus colegas do Departamento de Economia da PUC/RJ eram de uma arrogância só, não apreciavam o debate e odiavam a quem os criticavam. Eu, porque era amigo da Conceição (embora nunca tenha sido sacristão nas suas igrejas, nem sequer coroinha...), era muitas vezes olhado com desconfiança pelo outro lado ( o outro lado eram os meus colegas um tanto ou quanto neoliberais da PUC). Por falar nisto, um dos aspectos mais interessantes desta matéria sobre as “Memórias” do querido embaixador é quando ele conta da “paixonite” que o Fernando Henrique teve pelo Gustavo Franco (professor do Departamento de Economia da PUC/RJ, membro da chamada “equipe econômica” e ex-presidente do Banco Central). O Fernando tinha uma profunda admiração pelo Gustavo, no fundo, no fundo, era o cara em que mais confiava na equipe econômica (como bem descreve o embaixador Ricupero em sua entrevista ao jornal Valor Economico ) embora o Edmar Bacha e o Pedro Malan fossem os membros mais “seniors” do “gabinete sombra” do FHC que bolou e implantou o Plano Real. Diga-se de passagem que a Conceição era unha e carne com o Malan, nesta época. Houve um episódio dantesco (dependendo do ponto de vista de quem acompanhou o processo) naqueles anos : um confronto de titãs, de gigantes do pensamento econômico, na disputa pela vaga de Professor Titular na Faculdade de Economia da UFRJ, a Federal do Rio, a histórica ex-Universidade do Brasil. Pedro Malan e Antonio Barros de Castro. Como eu já destaquei mais acima, os dois – Castro e Malan – eram dois economistas respeitadíssimos (menos o Malan pelo Delfim Neto, que o odiava pelas posições críticas à política econômica da ditadura que o Malan adotava no IPEA, onde trabalhava). Nesta batalha entre os titãs, a Conceição se lançou com unha e dentes na campanha pelo Malan (acreditem se quiserem, sou testemunha ocular e presencial desta campanha do “Delenda Castro” que se deflagrou nas hostes dos “conceicettes” como eram chamados pejorativamente admiradores da Conceição).  Eu, muito amigos dos dois, fiquei entre a cruz e a caldeirinha. A batalha foi ganha pelo Castro (sem nenhum demérito para o Malan) e o Pedro resolveu sair do Brasil e foi para Nova York, para exercer uma função de pesquisador em um organismo da ONU. Visitei-o logo após ele ter assumido a função na ONU. Almoçamos juntos e eu o vi muito acabrunhado e entristecido. Logo após veio o final da ditadura e o Malan foi convidado pelo novo governo para assumir a função de representante do Brasil do Brasil na diretoria do Banco Mundial. Com Fernando Henrique assumindo o Ministério da Fazenda, o Pedro assumiu a função de negociador da dívida externa brasileira e depois, quando o Fernando foi eleito Presidente, foi convidado – e aceitou – ser o novo Ministro da Fazenda. O Castro, por sua vez, prosseguiu em sua carreira acadêmica exitosa e terminou convidado para a Presidencia do BNDES, mas ali(aqui) ficou por pouco tempo, pois logo foi decapitado da função. Os “conceicettes” do banco ficaram histéricos com a nomeação do castro e comemoram com foguetes quando êle foi triturado nas disputas pelo Poder...

Aproveito para lhes contar um episódio algo inusitado. Como já comentei acima, quando da implantação do Plano Real eu estava vivendo na França, mais exatamente em Paris. Tempos depois, acho que em 1996 ou 1997, conversando com a Conceição ( que era na ocasião deputada federal, integrante da bancada do PT – odiada pela equipe do Real, os professores da PUC gostariam de condená-la à guilhotina, se fora possível...), pois bem, a Conceição era odiada pelos professores da PUC e certamente não circulava muito com eles pelos ministérios em Brasília no governo FHC, mas era muito bem informada no ambiente de fofocas e nas articulações de bastidores em Brasília (até por ter muitos ex-alunos trabalhando lá no Planalto). Bom, conversa vai, conversa vem, a conversa rola para o lado de como e porque o Gustavo Franco magnetizou tanto o Presidente Fernando Henrique no seu primeiro governo. A Conceição me disse que a influencia do Gustavo Franco derivou fundamentalmente do seguinte fato (reproduzo de memória o que me disse a Conceição). Em certo momento da preparação final do Plano Real, deu a “paúra” geral em toda a equipe econômica. Todas as pernas tremeram, ninguém sabia ao certo de o Plano “emplacaria” ou não. As dúvidas sobre as suas chances de êxito eram muitas, e até generalizadas. Em um destes momentos críticos o Gustavo Franco (que andava sempre com uma maquininha de calcular, fazendo mil e uma contas) ante uma pergunta do Fernando Henrique : “mas quem me garante que vai dar certo ?”, o único que levantou a mão e respondeu ao Presidente : “eu garanto, Presidente ! Pode seguir em frente” e demonstrou com números porque o Plano daria certo”. Coup de foudre, como dizem os franceses...Paixão fulminante !, mal traduzindo do francês... O Fernando Henrique recuperou a confiança e mandou tocar prá frente... A partir daí, não fazia nada na economia sem perguntar antes ao “baixinho”... (Lembro-me de uma capa da revista VEJA que vi em Paris e em que o baixinho do Gustavo Franco aparecia vestido de Napoleão, à cavalo e espada em punho, conduzindo as hostes guerreiras da turma do Plano Real... Será real (sem trocadilhos...) ou fantasia da Ceiça ? Sei lá. Mas que é verossímel, é... Em tempo, concluía a VEJA (fazendo blague com Napoleão e com o Gustavo Franco, outro baixinho na história) : “cuidado com os baixinhos, eles são fogo !!!”

MD


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Uma amostra do que Trump poderia fazer, se retornar - Editorial Valor Econômico

 Trecho de um Editorial do Valor Econômico:

(3/06/2024)

 O primeiro mandato de Trump pode ter sido uma experiência em moderação se comparado ao que Trump declara que pretende fazer se ganhar um segundo. Ele ameaça nomear um procurador especial para investigar Biden e família e realizar o mesmo contra rivais políticos, remover “marxistas” do Departamento de Educação, mobilizar a Guarda Nacional para intervir nas cidades contra o crime, fazer com que Estados republicanos levem à Justiça mulheres que realizem aborto, revogar ações afirmativas pela equidade de gênero e racial etc.

Com suas indicações, Trump deu à Suprema Corte uma maioria conservadora, que decidiu que o aborto não é mais um direito constitucional. Ela aceitou examinar, e não o fará antes da eleição, a alegação de Trump de que ele não pode ser julgado por atos realizados durante o mandato, um salvo conduto para cometer as ilegalidades que bem desejar.

A volta de Trump seria um pesadelo para aliados e adversários igualmente. Ele promete estabelecer tarifas de 10% sobre todas as importações e aumentá-las para 60% no caso dos produtos oriundos da China. Toda a legislação de proteção ambiental deve ser revista. O multilateralismo, já atacado em seu primeiro governo, sofrerá novos golpes.”


sábado, 13 de abril de 2024

O peso do passado na política industrial - Lu Aiko Otta (Valor Econômico)

O peso do passado na política industrial 

A recente experiência brasileira envolvendo o uso do poder do Estado para fortalecer a economia recomenda cautela

Lu Aiko Otta

Valor Econômico, 10/04/2024


Como parte da nova política industrial, o governo federal aceitará pagar até 10% mais caro em suas compras de produtos e serviços, se forem nacionais. O adicional poderá chegar a 20% se, além disso, houver desenvolvimento tecnológico local.

Parece bom, se o objetivo é fortalecer empresas nacionais e, melhor ainda, a pesquisa e a inovação. No entanto, a recente experiência brasileira envolvendo o uso do poder do Estado para fortalecer a economia recomenda cautela.

Na administração federal direta (que não envolve estatais), a definição de quais produtos e serviços poderão ser comprados com a margem de preferência de 10% a 20% ficará a cargo de uma comissão interministerial instalada há duas semanas.

“Com a instituição da comissão, busca-se melhorar a governança e dar maior transparência às políticas públicas desenhadas para potencializar o uso do poder de compra do Estado para a promoção do desenvolvimento sustentável”, disse à coluna o presidente do colegiado, Emílio Chernavsky. “Deve-se pontuar que tais políticas têm sido largamente utilizadas ao redor do mundo, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento.”

Os estudos que darão base às decisões da comissão serão tornados públicos. É uma opção mais transparente do que deixar a cargo de cada ministério a aplicação das margens, explicou um técnico.

Nos bastidores, é citada a frase atribuída a Louis Brandeis, que integrou a Suprema Corte dos EUA de 1916 a 1939. Disse ele que a publicidade é o melhor remédio para doenças sociais e industriais, a luz do sol é tida como o melhor dos desinfetantes e a luz elétrica é o melhor dos policiais.

Prevista em leis de 2010 e 2021, a margem de preferência é criticada por especialistas por admitir que o setor público pague mais caro em suas compras.

Os técnicos do governo relativizam essa avaliação. Sustentam que os produtos e serviços nacionais recolhem impostos aqui, o que também tem impacto fiscal.

Além disso, a margem de 10% seria uma forma de dar isonomia competitiva às empresas brasileiras, por juros e tributos mais altos aqui do que os cobrados no exterior.

Um estudo elaborado pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda em 2015 comprovou que a aplicação de margens de preferência ajudou a elevar a concorrência nas licitações, o que reduz preços. É algo que se observa em outros países que adotaram a ferramenta, disse um técnico. Outro efeito detectado em estudos é trazer mais micro e pequenas empresas para a disputa.

Uma dificuldade que se viu no passado, conta um integrante do governo, era determinar se o produto era mesmo fabricado no Brasil. A ideia agora é recorrer às bases de dados já existentes no governo para fazer a checagem. Por exemplo: o Credenciamento de Fornecedores Informatizado (CIF), do BNDES, ou cadastros da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Samuel Pessôa, chefe de pesquisa da Julius Baer Brasil e associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), comentou que, se as compras com margem de preferência envolvem um custo adicional, devem trazer retorno para a sociedade. No entanto, observou, o interesse público foi pouco defendido no passado.

As falhas ocorridas aqui são, possivelmente, referências mais relevantes do que o Inflation Reduction Act (IRA) dos Estados Unidos, lembrado pelo governo como uma prova de que não estão sendo criadas novas jabuticabas por aqui.

Mas é preciso ver no que vai dar o IRA, disse Pessôa. É algo novo, que se assemelha à política de formação de grandes empresas, na qual foram injetados 10% do Produto Interno Bruto (PIB) no BNDES. Aqui, os resultados não foram bons, avaliou.

Um ponto que diferencia atual política industrial de suas antecessoras é seu pequeno impacto fiscal, destacou o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso. Enquanto o IRA despeja US$ 1 trilhão anualmente, aqui os empréstimos com subsídios somam R$ 25 bilhões ao ano.

No global, a atual versão contém outras características que Velloso considera necessárias a uma boa política: mira o topo da tecnologia, privilegia a inovação, foca no bem-estar da sociedade.

“Mas estamos aplainando o terreno, apenas”, comparou. “E a casa vai demorar a ficar pronta.”

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse há duas semanas em entrevista à CNN que o poder público passa por um processo de reeducação.

“Nós perdemos, lá atrás, a mão. Tínhamos uma construção que foi feita a partir do segundo mandato do presidente Fernando Henrique - não do primeiro, mas a partir do segundo mandato - que perdurou até 2013. A partir desse momento, eu acredito que foi-se... testando hipóteses que não promoviam o desenvolvimento e que depois eram difíceis de abandonar.”

Com um pouco de boa vontade, é possível ver sinais de que ajustes estão sendo feitos para não repetir desta vez o desastre econômico que se viu no segundo mandato de Dilma Rousseff. É cedo, porém, para saber se os cuidados serão suficientes.

 

 



quarta-feira, 6 de março de 2024

O perigoso excesso de poupança da China - Martin Wolf (Valor Econômico)

Desde os anos 2000, jornalistas e economistas previram muitas crises, bolhas e fracassos da economia chinesa, que nunca ocorreram. Será mais um anúncio exagerado? (PRA)

O perigoso excesso de poupança da China 

Pequim deve ousar escolher remédios radicais

Martin Wolf*


Valor Econômico, quarta-feira, 6 de março de 2024


China é a superpotência global da poupança. No passado, em uma economia em rápido crescimento com oportunidades de investimento excelentes, suas altas poupanças foram um grande ativo. Mas também podem causar grandes dores de cabeça.

Hoje, com o fim do boom imobiliário, gerenciá-las se tornou um desafio. O governo chinês deve ousar escolher remédios relativamente radicais.

De acordo com o FMI, a China gerou 28% da poupança global total em 2023. Apenas um pouco menos do que a participação de 33% dos EUA e da UE combinados. Isso é bastante extraordinário.

Também tem várias implicações. Uma delas é que se a China fosse uma economia de mercado aberto, seus mercados de capitais seriam os maiores do mundo. Outra é que a forma como essa poupança é gerenciada provavelmente será o determinante mais importante das taxas de juros globais e do balanço de pagamentos globais.

Analisei esses desafios subjacentes em uma coluna em setembro. Uma visita recente à China confirmou tanto a importância desse problema quanto a aparente falta de vontade do governo em fazer mudanças decisivas na estrutura de renda e gastos. Portanto, é muito provável que a China continue a ter uma propensão extremamente alta para poupar.

Mas isso não se deve principalmente à frugalidade das famílias chinesas, como muitos pressupõem. Ainda mais importante é a baixa participação das famílias na renda nacional.

Em outras palavras, como Michael Pettis da Guanghua School of Management da Universidade de Pequim frequentemente argumentou, as poupanças da China são em grande parte uma questão de distribuição. Isso pode ser o motivo pelo qual é difícil que reduzam e, portanto, a taxa de poupança permaneça acima de 40% do PIB.

Se a demanda deve corresponder à oferta potencial em tal economia, a soma do investimento doméstico com o superávit em conta corrente deve corresponder às poupanças desejadas.

Se não corresponderem, o ajuste funcionará por meio de atividade econômica fraca —ou seja, uma recessão ou até mesmo uma depressão. Isso é "estagnação secular".

Com poupanças tão altas quanto as da China, é difícil evitar isso. Fazer isso exigiu um enorme superávit em conta corrente antes da crise financeira global de 2008 e, posteriormente, o boom imobiliário alimentado pela dívida do país.

Este último aparentemente acabou. Então, o que vem a seguir? Um curso natural seria a taxa de investimento cair significativamente.

É altamente improvável que a taxa de investimento economicamente lucrativa possa permanecer acima de 40% do PIB em uma economia cuja taxa de crescimento potencial diminuiu pela metade nos últimos 15 anos, no mínimo. Isso não faz sentido. O boom imobiliário mascarou essa realidade. Agora ela está aqui.

Se a taxa de poupança permanecer onde está e a taxa de investimento cair, a "solução" será então um aumento no superávit em conta corrente à medida que as poupanças fluem para o exterior. Os dados oficiais ainda não mostram isso. Mas há dúvidas sobre isso.

Brad Setser do Council on Foreign Relations argumenta que o superávit pode ser o dobro do que os dados oficiais mostram, em 4% do PIB.

Uma razão para seu ajuste para cima são as lacunas não explicadas entre o superávit comercial nos dados aduaneiros e no balanço de pagamentos. Outra é que o aumento das taxas de juros mundiais não está aparecendo no rendimento líquido de ativos estrangeiros.

Um superávit em conta corrente de 4% do PIB não parece grande pelos padrões passados da China. Mas, desde 2007, quando o superávit em conta corrente da China atingiu o pico de 10% do PIB, sua participação na economia mundial (a preços de mercado, que é o que importa aqui) saltou de 6 para 17%.

Portanto, do ponto de vista do resto do mundo, um superávit chinês de 4% do PIB é muito maior do que um de 10% em 2007.

Quem vai administrar os déficits compensatórios? Quem, em particular, os administrará quando o aumento concomitante das exportações for impulsionado pelo investimento em manufaturas competitivas, como veículos elétricos?

A resposta não são países ricos e boa classificação de crédito: eles verão isso como políticas de "cada um por si". O mesmo certamente será verdade para grandes economias emergentes, como a Índia.

Se a China quiser a solução mercantilista para o excesso de poupança, terá que financiar países emergentes e em desenvolvimento menores. Pode fingir que são empréstimos.

Mas grande parte do dinheiro será doações, após o fato. Se acabar financiando energia renovável fora, isso pode ser bom para o mundo. Mas, do ponto de vista da China, seria um presente caro.

Do ponto de vista econômico, uma solução mercantilista simplesmente não funcionará. A China é grande demais para tentar algo assim. Portanto, novamente, se a taxa de poupança permanecer tão alta, a China precisa compensar a queda inevitável na taxa de investimento em propriedades com algo mais.

O que poderia ser isso e como poderia acontecer? Uma solução óbvia e desejável, que de fato já está acontecendo, é uma enorme expansão nos investimentos em energia renovável. Os benefícios para a transição energética global seriam enormes.

A questão é quão grande esse investimento poderia ser e por quanto tempo duraria. Outra possibilidade é um investimento ainda maior na indústria. Mas isso esbarrará nos limites já discutidos nos mercados no exterior.

Como Sherlock Holmes disse: "Uma vez eliminado o impossível, o que resta, por mais improvável que pareça, deve ser a verdade."

Dada a dimensão da China, seu estágio de desenvolvimento e poupança excessiva, uma parte essencial de qualquer estratégia para estabilidade macroeconômica deve ser um salto no consumo privado e público como parte do PIB.

Além disso, dadas as dificuldades financeiras dos governos locais, isso também significará um papel maior para os gastos do governo central.

A China precisa de uma nova estratégia macroeconômica. Não se trata de outro "estímulo". Trata-se de mudar a distribuição de renda e gastos. A liderança não quer fazer isso. Mas os eventos forçarão sua mão no fim das contas.

*Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics