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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Que liberalismo é esse? - Pedro Doria (Canal Meio)

 Pedro Doria pode ter efetivamente razão, mas a verdade é que esses jogos conceituais só ocupam mesmo os acadêmicos, pois os verdadeiros agentes da política e da economia não dão a mínima para conceitos: ele só querem mesmo defender seus interesses, indiferentes a esses rótulos!

Paulo Roberto de Almeida 


QUE LIBERALISMO É ESSE?


POR PEDRO DORIA

Canal Meio, 20/10/2022

https://www.canalmeio.com.br/notas/que-liberalismo-e-esse/

O liberalismo brasileiro cindiu, nesta eleição de 2022, de uma maneira como jamais havia ocorrido antes. A maior mostra deste movimento talvez seja a maneira como dirigentes do Partido Novo reagiram à declaração de voto, pelo seu fundador João Amoêdo, no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “A declaração é uma traição aos valores liberais”, escreveu Felipe D’Ávila, candidato à presidência do Novo este ano. “Amoêdo, pega o boné e vai embora.” O presidente da legenda foi no mesmo tom. “Vergonhosa, constrangedora e incoerente a declaração de voto”, afirmou Eduardo Ribeiro. Amoêdo, porém, não está sozinho. Declararam voto em Lula Pérsio Arida, Pedro Malan, Edmar Bacha, Armínio Fraga, Elena Landau, José Roberto Mendonça de Barros, Henrique Meirelles. Ao passo que inúmeros, na Faria Lima, gritam que a dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes são os únicos capazes de tocar um projeto liberal no Brasil. “Hoje sou um liberal”, declarou à Veja o próprio Bolsonaro faz duas semanas.

Isto é novo no cenário político da Nova República. Se pessoas que se dizem liberais votam tanto em Lula quanto em Bolsonaro porque veem no adversário incompatibilidade com o liberalismo, algo fica evidente. Estão chamando pelo mesmo nome ideologias muito diferentes.

A confusão não é nova. A eleição de 2022 apenas a tornou evidente. Meu companheiro neste espaço, o cientista político Christian Lynch, os distingue chamando uns de liberais-democratas e, os outros, de neoliberais. José Guilherme Merquior os dividia de forma mais direta. Liberais de um lado, liberistas do outro. Uns defensores da liberdade no sentido mais amplo da palavra, outros focados apenas em liberdade econômica. A diferença entre os dois grupos não é pequena mas se tornou mais aguda, principalmente na América Latina, após os anos 1980.

Neste momento de risco à democracia, é bom que se separem para nunca mais se encontrarem.

Mas antes é importante fazer a distinção entre as duas visões de mundo — e poucos o fazem melhor do que o cientista político Michael Freeden, professor emérito de Oxford. Porque uma ideologia tão antiga e longeva quanto o liberalismo, nascida com a publicação de Uma Carta sobre Tolerânciade John Locke, em 1689, não poderia atravessar mais de três séculos sem mudar profundamente e fazer nascer muitas variantes.

Freeden não vê um único liberalismo — vê gerações de filósofos refletindo sobre seus tempos, sociedades, e reagindo às dificuldades e questões que apareciam. Foram, assim, depositando camadas de novos valores e ideias, por vezes ignorando o pensado antes, noutras recuperando o que havia se perdido. Ao todo o liberalismo, em sua descrição, foi construído uma camada após a outra ao longo dos séculos. Ao final são cinco camadas, nem sempre coerentes entre si, mas bem ou mal alicerçadas pela busca dos mesmos de princípios.

A primeira, a raiz de todas, é movida pelo impulso de ser contrário a qualquer forma de tirania. É a âncora que garante a toda pessoa, todo indivíduo, um espaço em que sua liberdade pessoal seja garantida. A liberdade de se expressar, de tomar parte no debate sobre a política, e agir sem medo de sofrer consequências pelo que pensa. Esta liberdade, Locke já via desde o início, teria inevitavelmente de ser limitada pela liberdade do outro.

É deste liberalismo mais base que nasce o instinto de formar um Estado a partir de uma Constituição na qual todos serão iguais perante a lei.

A segunda camada, que surge já com os primeiros movimentos da Revolução Industrial, trata da liberdade econômica. É o liberalismo de Adam Smith e David Ricardo. Conforme os mercados globais começam a se abrir, ainda num ambiente de governos absolutistas, o direito de poder negociar salários e determinar preços de produtos sem que o Estado se envolva começa a ser cobrado. A crença no trabalho individual, honesto, que leve ao crescimento econômico da pessoa e, assim, da nação, passam a ser defendidos com argumentos sólidos e lógicos. No entorno desta ideia surge o contrato entre duas pessoas ou empresas com valor perante a Justiça. Aquele Estado de Locke passa a ser, também, um garantidor destas relações privadas.

A partir de meados do século 19, quando a miséria que acompanhou a industrialização se tornou evidente, mais uma vez o liberalismo mudou seu foco, puxado por um de seus pensadores mais importantes — o inglês John Stuart Mill. Esta terceira camada não se opõe ao livre comércio, mas já não o vê mais central. A prioridade se torna liberar o potencial do desenvolvimento de cada pessoa. Se a primeira camada do liberalismo dizia “deixa eu ser quem sou”, esta terceira proporia “deixa eu crescer tanto quanto posso”. Há um sentido de igualdade de oportunidades e a busca por um Estado que garanta as condições para que todos possam encontrar seu melhor. O mercado já não é mais um de bens — o mercado torna-se uma metáfora para explicar as dinâmicas de como circulam ideias, valores, mesmo pessoas.

É daí que surge, na virada para o século 20, o que os ingleses batizaram de Novo Liberalismo — um que ressaltava interdependência dos indivíduos em sociedade. Por mais que existam direitos individuais, todos dependemos uns dos outros até para que possamos garantir os mesmos direitos individuais. Os agentes do Novo Liberalismo são os principais promotores da criação de uma teia de proteção social que incluísse seguro desemprego, aposentadoria, saúde pública, alimentação gratuita nas escolas. Para que a pessoa seja realmente livre é preciso garantia de dignidade para todos, diziam. Se as camadas anteriores viam indivíduos e o Estado, esta quarta camada incluiu um terceiro elemento na dinâmica. A sociedade.

Da segunda metade do século passado para cá, economistas, juristas e filósofos do liberalismo vêm criando sua quinta camada, observando que as relações humanas em sociedades livres se tornaram bem mais complexas do que se poderia imaginar. Grupos de interesses se formam normalmente para disputar suas pautas, e seu espaço deve ser garantido. Estes grupos — partidos, sindicatos, entidades de classe, igrejas, mais recentemente ONGs — todos disputam a palavra no debate e poder de ação, e nenhum deve ter seu monopólio. Uma sociedade liberal, portanto, deveria ser capaz de garantir não apenas o ambiente para livre manifestação e relação entre indivíduos, mas também entre estes grupos.

É neste momento em que pensadores como o Nobel indiano Amartya Sem florescem. Ou o americano John Rawls.

Hoje, novos debates chegam à pauta, como o da questão identitária, quando grupos se organizam na sociedade não ao redor de interesses econômicos ou no entorno de ideias, mas pelo que consideram uma identidade comum. O multiculturalismo, talvez inevitável com a ampliação daquele velho desejo liberal das fronteiras abertas, cria novas tensões e certamente, nas próximas décadas, uma sexta camada será adicionada à mais antiga das tradições de pensamento político em democracias. O liberalismo ainda não produziu um pensamento coeso sobre como lidar com as novas tensões que surgem.

As cinco camadas do pensamento liberal descritas por Michael Freeden são todas relacionadas, todas se encontram nos princípios essenciais da liberdade individual observados por Locke. Mas, a respeito dos inúmeros aspectos do pensamento liberal, temas diversos foram colocados com maior ou menor ênfase dependendo da época ou do lugar. E, ainda assim, todas estas camadas compõem a mesma tradição do que a ciência política engloba nesta palavra: Liberalismo.

Cada liberal constrói o seu liberalismo com as peças disponíveis nas prateleiras do pensamento passado, seguindo o mesmo princípio de pesar as ênfases. Os limites são sempre claros. Um presidente da República intolerante não representa aquilo que o autor de Carta sobre Tolerância pensou.

Se o presidente não tolera diversidade entre pessoas, se fala em extermínio de parte da oposição, se a atuação privilegia uma igreja sobre outras, então não descende de Locke.

Não é liberal. É iliberal.

Ou, como escreveu no Twitter Michael Reid, colunista de Américas da revista The Economist, “nenhum liberal de verdade pode achar que Bolsonaro, que não aceita restrição ao poder, é menos ruim que Lula”. Reid escreve para a revista que é o bastião do pensamento liberal britânico faz quase dois séculos e respondia ao ataque de Felipe D’Ávila a Amoêdo. “Você tem todo o direito a sua opinião mas representa qualquer coisa menos o liberalismo.”

Se não é liberalismo, o que é isso que D’Ávila, Paulo Guedes, os parlamentares ainda eleitos do Novo, empresários como Luciano Hang e Salim Mattar, e um bando de gente na Avenida Faria Lima chama por este nome? O que é isto que Christian Lynch chama de neoliberalismo em distinção ao liberalismo-democrático e Merquior batizou liberismo em contraste com liberalismo?

De volta a Michael Freeden. Há duas razões políticas para chamar de liberalismo o que não é liberalismo. Parecem contraditórias entre si mas, na verdade, são complementares. Uma parte de pensadores marxistas e militantes de esquerda, em geral, cujo objetivo é reforçar uma caricatura hostil do liberalismo. A outra vem do outro flanco, da direita, para empurrar um pacote de ideias impopulares como se fossem benéficas. A direita quer se beneficiar da marca. A esquerda pretende detrata-la. Ambos os grupos se beneficiam do mesmo movimento. O jogo de um interessa ao outro. E, na sua ação, ambos sufocam o espaço do real liberalismo.

No neoliberalismo, no liberismo, as esferas social, política e cultural são todas subordinadas ao mercado no sentido estritamente econômico do termo. O Estado serve apenas como garantidor dos fluxos contínuos de capitais e produtos, o que fere de morte a ideia essencial de Locke de que todo poder deve ser limitado. De que pessoas não podem ser oprimidas. Esta ideologia pode lembrar, à primeira vista, uma versão pura da segunda camada do liberalismo, como se a primeira jamais tivesse existido. Mas não há Adam Smith e David Ricardo sem John Locke, o Barão de Montesquieu ou Voltaire. Smith era profundamente tocado por valores humanistas. Escreveu A Riqueza das Naçõese escreveu, também, a Teoria dos Sentimentos Morais, quando reflete sobre a mútua busca por simpatia nas relações entre pessoas. Na busca por respeito entre pessoas. E mesmo quando escrevia sobre economia, assim como Ricardo, eles pensavam não nas relações entre grandes corporações que produzem anualmente mais do que o PIB de meio mundo. Pensavam, isto sim, em negociantes, em gente procurando construir suas vidas. Havia uma missão ética no pensamento de ambos com uma única direção: a construção de uma sociedade justa.

“Uma das principais características do conservadorismo é a crença nas origens extra-humanas da ordem social”, escreve Freeden. Ideologias não são conjuntos estáticos de ideias. São como linguagens. Partem de uma ideia forte — a liberdade, para o liberalismo, ou o conflito de classes, para o marxismo — e vão se adaptando aos momentos da história. A ideia forte do conservadorismo é esta, a de que a ordem social não é uma construção humana. É algo que está além do controle das pessoas. Em certos momentos do passado, sua origem foi percebida como divina. Vem de Deus. Para este grupo, a ordem social é dada pelo mercado e mexer com o mercado é sugerir que pessoas poderiam intervir na ordem social.

Para o professor de Oxford, esta filosofia, este neoliberalismo ou liberismo ou o que for, não é uma vertente liberal. É a captura da linguagem do liberalismo para vender uma forma de conservadorismo.

No fim, o conservadorismo é uma ideologia a serviço da manutenção dos privilégios de um grupo perante outros. É assim desde a Revolução Francesa, quando protegia aristocratas. Na descrição do historiador das ideias alemão Jan-Werner Mueller, em essência o conservadorismo acredita que deve haver uma hierarquia social. A existência de desigualdade entre grupos é compreendida como parte da ordem natural.

É do jogo que se pense assim. Só não é liberal. De Locke, não vem.

Liberais são poucos, no Brasil. Por um bom tempo foi conveniente, politicamente, uma aliança com conservadores e tolerância com a captura do nome. Por um tempo, até, foi possível encontrar pontos de encontro nos pensamentos e evitar os muitos atritos. Ser liberal na economia, conservador nos costumes, virou até frase corriqueira. Como se fosse coerente.

Quando aquele grupo quer cruzar a linha da democracia, o rompimento não é apenas desejável. É imperativo. Já causou dano demais.


Esse artigo é parte de uma das edições de sábado do Meio. Exclusiva para Assinantes Premium.

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domingo, 9 de outubro de 2022

O liberalismo de Roberto Campos - Instituto Liberal

 


O liberalismo de Roberto Campos

 

 08/10/2022  Instituto Liberal  

 

Há vinte e um anos, o Brasil perdia um de seus mais importantes pensadores e ator político da história recente do liberalismo brasileiro. Estou falando de Roberto de Oliveira Campos, autodenominado lanterna na popa.

 

Apesar de hoje ser visto como um símbolo do liberalismo, Roberto iniciou sua trajetória política do outro lado do quadrante político, no socialismo. Em suas próprias palavras: “Em minha juventude também fui socialista. Acreditava no poder do estado para reformar o mundo, se não cria-lo de novo. Cheguei mesmo, em vista de meu ímpeto nas nações unidas, ímpeto crítico contra as nações lideres, a ser chamado de comunista pelo ilustre ministro Oswaldo Aranha”. Sua transição do socialismo para o capitalismo liberal aconteceu durante o seu tempo servindo o Itamaraty nos Estados Unidos, onde teve a oportunidade de fazer sua pós-graduação em economia pela George Washington University. Apesar de ser um grande economista Campos não possuía formação econômica, sendo teólogo e filósofo de formação. Após seu tempo nos EUA passou a defender a economia de mercado que, em suas palavras, é uma democracia permanente em que cada cidadão vota diariamente, quando na vida politica ele vota raramente.

 

Após sua atuação nas nações unidas, voltou ao Brasil onde atuou por diversas vezes como assessor e membro de equipes econômicas de vários governos, sempre buscando iluminar o caminho do Brasil ao capitalismo liberal de mercado e para longe do famigerado capitalismo de estado que tanto vemos por aqui. Assessorou Getúlio Vargas na elaboração do projeto de lei que criou a Petrobras. Entretanto, no projeto original, diz Campos, “destacávamos a criação de uma empresa de exploração de petróleo de capital majoritariamente brasileiro, mas com participação estrangeira, portanto sem um monopólio de caráter estatal, este foi incluso no projeto pelo congresso nacional”.

 

Foi também um dos criadores do BNDE, atual BNDES, banco de desenvolvimento criado para suprir a falta de crédito que era observada no país à época, uma grande barreira para o crescimento e para o desenvolvimento do país.

 

Atuou como coordenador de trabalho no plano de metas de Juscelino Kubitschek, onde sugeriria a mudança do nome para “Programa de Metas”, além de sugerir que se fizesse um plano mais amplo visando combater o déficit público e equilibrar as contas externas através de uma reforma cambial, ambas propostas renegadas por Juscelino.

 

Ainda auxiliaria Jânio Quadros nas tratativas com credores internacionais do plano de metas, com foco em seus credores europeus, e seria ministro do planejamento do Governo Castelo Branco, onde, junto a Octavio Gouveia de Bulhões, foi responsável pela modernização do estado brasileiro, a instituição do PAEG, o controle da inflação, a Liberalização da lei de remessas de lucros e a criação do Banco Central do Brasil.

 

Além de sua atuação como ministro, Roberto Campos atuaria por duas vezes como embaixador do Brasil, primeiramente no governo João Goulart em Washington e posteriormente como embaixador em Londres no Governo Geisel. Em Washington foi muito atuante ao tentar uma aproximação do Brasil com o Governo de John Kennedy, o que facilitou em primeiro momento o acesso do Brasil a créditos de origem internacional. Campos chegou até mesmo a organizar um jantar entre John Kennedy e o então presidente do Brasil João Goulart a fim de acalmar os ânimos e acabar com as especulações ideológicas a respeito de Goulart que rodavam Washington.

 

Durante sua estadia em Londres enraizou ainda mais suas crenças quanto ao liberalismo econômico, ao observar os resultados do gigantismo estatal brasileiro e compará-los aos programas de governo de Margaret Tatcher no Reino Unido. Ainda em Londres, participou da banca de doutoramento em economia na Universidade de York do ex-presidente de Portugal Dr. Aníbal Cavaco Silva.

 

Como parlamentar atuou por quatro pleitos, oito anos como senador por Mato Grosso e oito anos como deputado pelo Rio de Janeiro. No auge do plano Cruzado, durante o governo Sarney, foi uma das poucas vozes críticas ao plano. Durante a assembleia nacional constituinte de 1988, sentia como se fosse o único parlamentar a defender a economia de mercado e as ideias do liberalismo econômico. Não teve nenhuma de suas ideias aprovadas quando deputado e senador. Apresentou 15 projetos de leis no Senado, todos rejeitados, entre os quais, estão projetos propondo:

 

-Livre negociação salarial no setor privado e estabelece medidas de flexibilização do mercado de trabalho para evitar o desemprego; -Extinguir, como empresas estatais, as que forem deficitárias, privatizando-as ou liquidando-as; -Estabelecer a livre negociação salarial; -Criar contratos de trabalho simplificados para facilitar novos empregos.

 

Terminou seu mandato reclamando da solidão do liberal no Brasil e dizendo que o discurso era um retrospecto melancólico ao seu tempo como parlamentar:

 

“Minha melancolia não vem de saudades antecipadas de Brasilia, cidade que considero um Bazar de Ilusões e uma usina de déficits, e sim do reconhecimento do fracasso de toda uma geração – minha geração – em lançar o Brasil em uma trajetória de desenvolvimento sustentado. Continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza Corrigível. A melancolia vem também da constatação de nossa insuportável “mesmice”. Quando cheguei ao congresso em 1983, eleito Senador por Mato Grosso, os temas cadentes do momento eram moratória e recessão. Dezesseis anos depois quando me despeço de dois mandatos como deputado federal pelo Rio de Janeiro, os temas voltam a ser recessão e crise cambial. Isso mostra que o Brasil, conquanto capaz de saltos de desenvolvimento não aprendeu a tecnologia do desenvolvimento sustentado. É um saltador de saltos curtos, e não um corredor de resistência.”

 

Roberto Campos ainda se tornaria membro da ABL em 1999 após uma conturbada eleição. Sua candidatura sofreu pesada oposição de membros como Celso Furtado e Ariano Suassuna. No fim, foi eleito por 20 votos a 16 pela Bella Jozef e assumiu dia 28 de Outubro com um discurso que destacou o contraste ideológico entre os membros da cadeira que ele foi eleito, suas perspectivas para ao futuro do Brasil e do mundo e criticou o que ele considerou “batalha ideológica”.

 

Roberto Campos faleceu no ano de 2001 no auge de seus 84 anos, ainda muito atuante e verbal contra as violações a liberdade e diversas intervenções econômicas do estado brasileiro sobre o mercado.

 

Apesar de não estar mais entre nós, sua aura de defesa do liberalismo e combate ao intervencionismo econômico continua a pairar sobre o Brasil, esperando que mais indivíduos como ele assumam seu lugar e tomem para si as dores desse debate que a tanto tempo impede o crescimento do Brasil e nos limita a migalhas e voos de galinha. Seu legado continua a inspirar o movimento liberal que o sucedeu, sempre relembrando da alcunha que lhe foi dada no passado, e que deu nome a sua biografia: A lanterna na popa. Iluminando o caminho para os liberais de hoje e inspirando aqueles que virão amanhã.

 

Dessa maneira, deixo aqui minha homenagem a ele que foi um dos grandes pensadores e patronos do liberalismo moderno no Brasil. Que a lanterna na popa continue a guiar dezenas de liberais que escolheram este caminho e seja sempre uma lembrança que esta batalha não é de nenhuma maneira fácil, mas é uma batalha pela qual devemos lutar.

 

Instituto Liberal

 

O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Uma síntese perfeita sobre os sentidos do liberalismo, em John Locke e em Pierre Manent, por Alex Catharino

Uma síntese perfeita sobre os sentidos do liberalismo, em John Locke e em Pierre Manent

Alex Catharino


Há exatos 390 anos, em 29 de agosto de 1632, em Wrington, Somerset, na Inglaterra, nasceu o médico e filósofo John Locke, falecido, aos 72 anos, em High Laver, Essex, no mesmo país.

Além de ser notável representante do empirismo britânico, devido as reflexões epistemológicas no "Ensaio acerca do Entendimento Humano", de 1689, suas concepções políticas, nos "Dois Tratados sobre o Governo", de 1689, e nas três "Carta sobre a Tolerância", publicadas, respectivamente em 1688, em 1690 e em 1692, fizeram que a maioria dos analistas considerasse John Locke como o "pai do liberalismo".

Nesta semana, em memória desse pensador inglês, recomendamos o livro "História Intelectual do Liberalismo: Dez Lições", do cientista político francês Pierre Manent, disponível, atualmente, em língua portuguesa em lançamento da Edições 70 (@edicoes_70).

Além do prefácio introdutório, de uma nota final, e do posfácio "Grandeza e Miséria do Liberalismo", escritos pelo próprio autor, a obra é dividida nos respectivos capítulos: I) "A Europa e o Problema Teológico-Político", II) "Maquiavel e a Fecundidade do Mal", III) "Hobbes e a Nova Arte da Política", IV) "Locke, o Trabalho e a Propriedade", V) "Montesquieu e a Separação dos Poderes", VI) "Rousseau, Crítico do Liberalismo", VII) "O Liberalismo Depois da Revolução Francesa", VIII) "Benjamin Constante e o Liberalismo de Oposição", IX) "François Guizot, o Liberalismo de Governo", X) "Alexis de Tocqueville, o Liberalismo Perante a Democracia".

Nas sentenças finais de seu posfácio, Pierre Manent fez a seguinte advertência aos liberais contemporâneos:

"É verdade que o liberalismo fez recuar o cristianismo para a periferia da vida coletiva. Todavia, despeito de seu triunfo, não se pode substituir inteiramente a ele, porque define apenas as condições da ação, e nunca as suas finalidades, como fez o cristianismo. É a relação com o cristianismo, bem mais do que a questão da organização econômica, que é fundadora e formadora do liberalismo. É essa relação que temos de nos esforçar por desembaraçar, se quisermos chegar à clareza sobre o destino das sociedades liberais".

Alex Catharino

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Conheça um dos pais do liberalismo no Brasil: Eugênio Gudin - Ricardo Bergamini

 Conheça um dos pais do liberalismo no Brasil: Eugênio Gudin

 

 O engenheiro e economista

 

Eugênio Gudin foi um economista e engenheiro brasileiro, pioneiro na divulgação de ideias liberais no País. Depois de uma carreira bem sucedida no setor privado como engenheiro entre os anos de 1900 e 1920, Gudin começou a se interessar por economia e publicar artigos na área.

 

Carreira de técnico no setor público

 

Nas próximas décadas, Gudin passaria a integrar órgãos consultivos criados pelo governo para ajudar na gestão econômica brasileira.

 

Ele também foi pioneiro na construção do ensino superior de Economia no Brasil, participando da fundação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas em 1938, mais tarde incorporada à UFRJ.

 

Institucionalização do curso de economia no Brasil

 

Pelo seu protagonismo acadêmico em Economia, Gudin foi nomeado pelo então ministro da Educação em 1944 para institucionalizar o ensino na disciplina no Brasil.

 

No mesmo período, o economista representou o Brasil na conferência de Bretton Woods ao lado de Roberto Campos, um de seus alunos e admiradores.

 

Liberalismo x Desenvolvimentismo

 

No pós-guerra, o Brasil estava dividido entre dois projetos econômicos para nortear o desenvolvimento do País: de um lado o liberalismo, do outro o desenvolvimentismo. 

 

Eugênio Gudin seria o grande nome do liberalismo brasileiro no período

 

Os desenvolvimentistas

 

A proposta dos desenvolvimentistas era a industrialização forçada através do planejamento econômico. Caberia ao estado medidas como criar estatais em setores estratégicos, proteger a economia interna das importações, controlar o mercado de crédito e restringir o capital estrangeiro. Segundo eles, essas medidas levariam ao crescimento da indústria nacional e consequentemente ao desenvolvimento do Brasil.

 

 Os liberais

 

Já os liberais, como Gudin, defendiam outra abordagem. Para eles, a estratégia desenvolvimentista na prática levaria ao surgimento de uma indústria fechada e ineficiente, incapaz de andar com as próprias pernas.

 

Assim, ao invés de se desenvolver, o Brasil ficaria eternamente refém de grupos de interesse que usariam o Estado para extrair renda do restante da sociedade.

 

Propostas liberais

 

Como alternativa, Gudin sugeriu que o Brasil criasse um ambiente propício à concorrência, ao investimento privado e ao crescimento da produtividade:

 

– Fortalecimento dos direitos de propriedade

 

- Privatizações

 

– Abertura ao comércio

 

– Expansão da educação básica e técnica

 

- Igualdade de tratamento ao capital estrangeiro

 

- Responsabilidade fiscal

 

- Combate à inflação

 

- Entre muitos outros pontos.

 

- Economia e democracia

 

Vale destacar que, para Gudin, o excesso de intervenção não era apenas ruim para a economia, como também para a democracia:

 

“O capitalismo de Estado, além de incompatível com o regime democrático de governo, padece de decisiva inferioridade quanto à capacidade do melhor e mais eficiente aproveitamento dos fatores de produção.” – Eugênio Gudin

 

Infelizmente, o Brasil não deu ouvidos a Gudin e escolheu o projeto desenvolvimentista, que dominou a agenda econômica nacional até meados dos anos 80. Nesta altura, o Brasil tinha se tornado uma economia fechada e ineficiente, em hiperinflação e com péssimos indicadores educacionais, como alertado décadas atrás.

 

Conte com o NOVO para construirmos um País com mais liberdade e menos intervenção estatal.

 

Ricardo Bergamini

sábado, 25 de dezembro de 2021

Sistemas políticos liberais e i-liberais, segundo Augusto de Franco

 Uma abordagem inteligente dos sistemas e atores liberais ou i-liberais, a partir do modelo Variedades de Democracia da Universidade de Gotemburgo, aperfeiçoado e exemplificado por Augusto de Franco.

Paulo Roberto de Almeida 


Classificando as forças políticas sem usar as noções de esquerda e direita

Ensaiemos uma nova classificação dos atores políticos (inspirada na classificação do V-Dem dos quatro tipos de regimes políticos: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada ou não-eleitoral). Claro que isso pode ser apenas uma inspiração: os critérios (ou indicadores) de democracia que permitem a classificação do V-Dem nos quatro tipos acima não se aplicam a atores políticos (ou forças políticas). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Trump) em democracias liberais (como os EUA). Podemos ter autocratas eleitorais fora do governo (como Farage, Salvini e Le Pen) em democracias liberais (como Reino Unido, Itália e França). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Bolsonaro e Duda) em democracias eleitorais (como Brasil e Polônia).

Feita a ressalva, vamos à classificação proposta:

Como mostra o diagrama acima, os democratas podem ser classificados em dois tipos: liberais e eleitorais.

Os autocratas também podem ser classificados em dois tipos: os eleitorais e os não-eleitorais.

Os democratas liberais, por sua vez, podem ser classificados em dois tipos: os radicais e os formais.

Exemplos de democratas eleitorais radicais: Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras, Spinoza, Dewey, Arendt…

Exemplos de democratas liberais formais: Merkel e Scholz (na Alemanha), Quesada (na Costa Rica), Kishida (no Japão), Jacinda Ardern (na Nova Zelândia), Gahr Store (na Noruega).

Os democratas eleitorais podem, igualmente, ser classificados em dois tipos: os formais (ou não-populistas) e os neopopulistas.

Exemplos de democratas eleitorais formais: Antonio Costa (em Portugal), Milanovic (na Croácia), Saied (na Tunísia), Piñera (no Chile), Lacalle Pou (no Uruguai).

Exemplos de democratas eleitorais neopopulistas: Evo e Arce (na Bolívia), Correa (no Equador), Lugo (no Paraguai), Funes (em El Salvador), Lula (no Brasil), Castillo (no Peru) e Zelaya em famiglia (em Honduras).

Os autocratas eleitorais podem ser classificados em dois tipos: os neopopulistas e os populistas-autoritários (ou nacional-populistas).

Exemplos de autocratas eleitorais neopopulistas: Maduro (na Venezuela), Ortega (na Nicarágua), Lourenço (em Angola).

Exemplos de autocratas eleitorais populistas-autoritários: Orbán (na Hungria), Erdogan (na Turquia), Jarosław e Lech Kaczyński e Duda (na Polônia), Salvini (na Itália), Le Pen (na França), Farage (no Reino Unido), Trump (nos EUA), Modi (na Índia), Duterte (nas Filipinas), Bolsonaro (no Brasil).

Os autocratas não-eleitorais são os velhos ditadores já conhecidos (remanescentes do século 20).

Exemplos de autocratas não-eleitorais: Dias-Canel (em Cuba), Xi-Jinping (na China), Bin Salman (na Arábia Saudita), Bashar al-Assad (na Síria), Omar al-Bashir (no Sudão).

Os campos hachurados em cinza claro no diagrama são i-liberais.

Para que serve essa classificação?

Em primeiro lugar para escapar da categorização vazia, elaborada a partir da posição relativa no espectro político ou político-ideológico (levando em conta o conteúdo das ideias esposadas ou apresentadas): extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita, extrema-direita – adotando agora como critério o comportamento político. Se alguém se perde nessas categorizações “tomográficas” descritivas das forças políticas não leva em conta as categorias analíticas capazes de explicar comportamentos políticos.

O problema não é se você pronuncia ou escreve as palavras ‘esquerda’ e ‘direita’ e sim se você usa essas categorias equívocas para analisar comportamentos políticos. Por exemplo, podemos encontrar comportamento político populista na esquerda e na direita: o peruano Castillo (de esquerda) e o americano Trump (de direita) são populistas. Outro exemplo: Antonio Costa em Portugal é considerado mais de esquerda e Sebastião Piñera no Chile é considerado de direita (ver imagem que ilustra este artigo), mas ambos são democratas eleitorais formais (não-populistas) e é isso que é fundamental para analisar o funcionamento dos regimes onde governam.

Voltando à inspiração da classificação do V-Dem. O que é relevante para a análise é se uma força política é democrático-liberal (radical ou formal), democrático-eleitoral (não-populista ou neopopulista), autocrático-eleitoral (neopopulista ou populista-autoritária) ou autocrático-fechada (não-eleitoral).

Todas as classificações que partem de uma posição relativa no espectro são equívocas: dependendo da configuração do ambiente político, alguém que é de direita pode ser encarado como extrema-direita, alguém que é de extrema-esquerda pode ser só de esquerda, alguém que é de esquerda pode ser tomado como de centro-esquerda… e por aí vai. Alguém achará uma direita e uma esquerda até no Vaticano e um democrata-liberal formal no PSTU será considerado como “de direita”. Isso não esclarece, confunde.

Caímos nesse “método” de interpretação da realidade a partir da revolução francesa, que não reinventou a democracia na época moderna, mas em compensação inventou de dividir o mundo em esquerda e direita. Na verdade, inventou a esquerda. E aí a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. São conceitos de guerra, não de política. É sempre uma demarcação de campos para orientar ações de conquista ou destruição. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Em segundo lugar, a classificação aqui proposta serve para revelar que o comportamento político é função dos graus de liberalismo político (que vai, numa escala descendente, dos democratas liberais radicais aos autocratas não-eleitorais). Há uma mancha i-liberal cobrindo parte dos democratas e todos os autocratas. A ​presente classificação serve para mostrar que democratas eleitorais podem ser i-liberais (bastando, para tanto, que sejam populistas, no caso, neopopulistas – e a palavra ‘neopopulista’ é usada aqui para estabelecer uma diferença entre os velhos populismos, associados à demagogia, ao assistencialismo e clientelismo e à irresponsabilidade fiscal, e os novos populismos florescentes no século 21).

Em terceiro lugar a classificação serve para mostrar que, mesmo entre os democratas liberais, há uma distinção entre os radicais (ou inovadores – quer dizer dizer, entre os que apostam na continuidade do processo de democratização para alcançar as democracias que queremos) e os formais (que dão ênfase à manutenção do Estado democrático de direito ou à defesa da democracia que temos).

Quatro notas de rodapé para encerrar (ou começar):

1 – Na distinção entre democratas liberais radicais e formais, deve ficar claro que a defesa da democracia que temos é condição necessária para alcançarmos as democracias que queremos.

2 – A palavra ‘radical’ aqui não significa sectário, estreito ou extremista e sim, no seu sentido literal, ir à raiz da concepção democrática originária e aponta para uma conexão (ou fusão) entre o liberalismo antigo (dos democratas atenienses que tomavam a liberdade como sentido da política) e o liberalismo político dos modernos. É o imaginário lugar do pensamento onde Locke, Montesquieu, Tocqueville, Constant e Stuart Mill podem se encontrar com Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. Ou seja, o sentido da política não é a ordem, ainda quando seja uma nova ordem mais justa – e sim a liberdade.

3 – Democracias liberais também podem ser parasitadas por populismos, embora isso seja mais difícil de ocorrer do que numa democracia (apenas) eleitoral. As democracias liberais metabolizam as forças políticas populistas (sejam democráticas ou autocráticas) confinando-as mais facilmente nas margens do espectro político (ou impedindo que elas ocupem o centro de gravidade em torno do qual a política institucional vai orbitar). As democracias (apenas) eleitorais estão sempre em risco de decaírem para autocracias eleitorais e não têm proteção tão eficaz contra os populismos.

4 – Faltaram exemplos recentes de democratas liberais radicais? Pois é… No fundo, no fundo, foi isso que inspirou este artigo.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Bolivar Lamounier trata da morte anunciada dos regimes liberais

 Admirável análise realista das agruras temporárias da liberal democracia e das ameaças autoritárias, quando não tentações totalitárias, como alertou Jean-François Revel, e agora Bolívar Lamounier. Nossa democracia de baixa qualidade, a despeito dos arreganhos caudilhescos do genocida no poder, vai perdurar, e sempre de baixíssima qualidade, pois esta é a nossa infeliz condição. Vai demorar para construirmos um sistema representativo decente e um capitalismo razoável, vai demorar. A razão da demora? Insisto na responsabilidade principal: nossas elites — todas elas, não só o Grande Capital, sindicatos e corporações de Estado também— são muito MEDIOCRES!

Paulo Roberto de Almeida 

UM ABOMINÁVEL MUNDO NOVO?

Bolívar Lamounier - 29.06.2021


A democracia liberal mal se iniciava e sua morte já era anunciada dia sim e outro também. Um caso de mortalidade infantil.

No momento atual, com o mundo engolfado nessa monstruosa pandemia, ninguém se surpreenderá com o reaparecimento do tema. Agora, já mais que centenária, não há dúvida de que ela integra um grupo de altíssimo risco. Os fatores cogitados como causas do anunciado óbito variam, é claro, e é com eles que nos devemos preocupar. O mais invocado é uma reversão da interdependência mundial, cada país ensimesmando-se, concentrando-se em seus problemas internos  e deixando o resto ao Deus dará. Outra tecla continuamente martelada é a perda de hegemonia dos Estados Unidos, vale dizer, a  debilitação da grande potência do norte em relação às demais – à China, notadamente. Semanas atrás, Henry Kissinger discorreu longamente sobre esse tema, frisando que tal hipótese significaria a liquefação do ideário liberal frente ao férreo totalitarismo asiático. Tudo isso soa razoável no campo das hipóteses, mas se queremos pensar a sério sobre o futuro da democracia  liberal, precisamos de um recuo histórico maior e de mais cuidado com os conceitos.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal-representativa só começa a se configurar plenamente por volta da quarta década do século 19. Até então, com as exceções parciais  da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários  e em embriões de democracia. Estes existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político limitava-se a pequenos grupos  de elite – proprietários de terra, comerciantes e uns poucos profissionais liberais, como advogados e médicos. A  população habilitada a votar era uma minúscula parcela imersa numa vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. 

Um ponto importantíssimo, raramente ressaltado mesmo por renomados acadêmicos, é que esse era o cenário invocado pelos primeiros  críticos do liberalismo, que atestavam o óbito da democracia quando ela apenas engatinhava. Tomando a nuvem por Juno, tais críticos julgavam estar vendo um cemitério, e não o início de uma caminhada cheia de opções e possibilidades.

Tomando só os pontos mais importantes, a segunda pretensão de atestar o óbito da democracia surgiu entre a segunda e a terceira décadas do século XX, na esteira da Revolução Russa e da marcha fascista sobre Roma. O horizonte que agora se descortinava compunha-se de um elenco muito mais complexo, protagonistas sociais de maior peso, entre os quais os sindicatos e partidos ideológicos se destacava. Nesse novo enredo, o leit-motiv era o confronto entre o capital e o trabalho. Resumidamente, podemos pois afirmar que a traço distintivo desse novo quadro era uma abrupta elevação do nível dos conflitos. O segundo atestado de óbito parecia emergir praticamente pronto: a colisão de interesses agigantara-se a tal  ponto que a   capacidade de resistência das “débeis” instituições da democracia não era maior que casquinhas de sorvete. O futuro pertenceria, de um lado,  a ditaduras comunistas, assentadas em sistemas de partido único e, do outro, na violência nua e crua contra a resistência e na organização compulsória dos contendores em corporações, próprias do fascismo. 

No Brasil, o modelo corporativista foi experimentado para inglês ver por Getúlio Vargas, que nunca quis organização nenhuma e sim uma ditadura personalista respaldada pelo Exército. Mas quem lhe deu o cartão vermelho foi o próprio Exército – especificamente os “pracinhas” que haviam combatido na Itália e retornaram convencidos de que o regime de Mussolini era uma grande farsa. 

Finda a Segunda Guerra Mundial, os problemas e atores eram ainda basicamente esses, mas a ideia-força sob a qual a sociedade internacional se reorganizou foi o liberalismo (político e econômico). Desde então, apesar de seus avanços e retrocessos, a democracia liberal permanece como o mais importante princípio internacional para a legitimação do poder. O fascismo do tipo italiano sumiu do mapa e  o comunismo soviético cambaleou por mais 45 anos.       

O segundo pós-guerra, marcado pela Guerra Fria, permanece vivo em nossa memória. Rachou como fendas tectônicas quase todos os países democráticos,   turbinando fatores internos de radicalização política, como foi o caso, no Brasil, da contraposição entre o lacerdismo e o getulismo. Fato é que mesmo países autoritários (como Portugal e Espanha) e outros, democráticos, que haviam recaído temporariamente no  autoritarismo se reergueram. Os elementos internos de conflito que havia em todos eles foram bem ou mal equacionados através da retomada do sistema representativo. 

Nos últimos anos, temos visto por toda parte uma legião de coveiros ansiosos por atestar, dia sim, outro também, o “fim da democracia representativa”. Claro, nada é impossível. Um dia o mundo democrático poderá  sucumbir de vez. 

Mas três afirmações podem ser feitas sem temor de errar. Em escala mundial, essa alternativa antidemocrática será um “abominável mundo novo”, pois será necessariamente totalitário, experiência sobre a qual a Alemanha e a URSS nos ensinaram o suficiente no transcurso do século 20. 

A segunda afirmação é que, por si sós, crises econômicas e baboseiras ideológicas, com ou sem pandemias não provocam rupturas profundas na ordem constitucional  democrática. Estas decorrem da gana de poder de líderes desmiolados, que não se furtam a ameaçar o convívio civilizado nas sociedades que governam. Também aqui, o exemplo brasileiro é relevante. Apeado do poder pelos militares em 1945, Getúlio Vargas, numa entrevista famosa a Samuel Wainer, mandou este recado ao país: “Eu voltarei. Mas não como político. Como líder de massas”. Não é exagero dizer que tal declaração, respondida no mesmo tom por Carlos Lacerda, foi o estopim da radicalização dos anos cinquenta, que desaguou no golpe militar de 1964.       

Aqui chegamos à minha terceira afirmação, referente a um velho equívoco do debate sobre a democracia e o liberalismo. À capenga suposição de que o sistema político liberal só é concebível em sociedades que hajam atingido um elevado nível de desenvolvimento econômico, social e educacional. Ora, nenhum teórico liberal sério jamais afirmou que o regime democrático só seria possível numa sociedade igualitária, constituída por unidades iguais em massa e peso, como bolas numa mesa de bilhar. 

Desde seus primórdios, a democracia, como qualquer outro sistema, teve que enfrentar os dilemas da acumulação de capital (ou seja, o crescimento econômico) e a ordenação ou regulamentação institucional dos conflitos (instituições respeitadas), com as desigualdades e enfrentamentos que deles decorrem. 

Salta aos olhos que o mundo pós-pandêmico terá de enfrentar grandes desafios, mas não necessariamente desafios que ponham em xeque a própria sobrevivência da ordem liberal-democrática. No Brasil, por exemplo, os últimos sessenta ou setenta anos evidenciam equívocos monumentais. O mega-endividamento externo do general-presidente Ernesto Geisel e mais recentemente o criminoso desperdício de recursos com a construção de estádios da era Lula-Dilma, por exemplo. 

Na  citada sequência de tolices, não nos demos conta de que nossas prioridades tinham que ser o fortalecimento do setor privado da economia e a destinação  de vultosos recursos para os setores de ciência e tecnologia, saneamento básico, saúde e, naturalmente, educação básica.  Essa reorientação será um imperativo inarredável, em relação ao qual a transparência e as divergências inerentes à  democracia serão uma grande alavanca, e não um obstáculo, como não se cansam de afirmar os idiotas incuráveis e os pregoeiros do autoritarismo.