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segunda-feira, 19 de setembro de 2022

I-Liberalismo: a nova tendência nas políticas domésticas e no plano global - Opinião O Globo

 Liberalismo é principal alvo da agressão russa à Ucrânia

O Globo | Opinião O Globo
19 de setembro de 2022
Conflito opõe democracias liberais ao 'iliberalismo' de Putin - valores antagônicos que definirão nosso futuro.

C omo em todas as guerras, princípios e valores estão em jogo na invasão da Ucrânia. De um lado, a Rússia de Vladimir Putin repetindo os mesmos devaneios imperialistas da Rússia czarista e da União Soviética. De outro, a Ucrânia de Volodomyr Zelensky, invadida por querer compartilhar com a União Europeia (UE) valores democráticos liberais, no momento em que a velha ordem mundial do Pós-Guerra se desintegra e surgem autocratas em busca de espaço.

O maior exemplo - e uma espécie de pioneiro - desses autocratas é Putin, já há quase 23 anos no poder. O ex-agente apagado da KGB soviética na Alemanha Oriental consolidou a doutrina que os cientistas políticos têm chamado de "iliberalismo" - regime em que, embora haja eleições periódicas, as instituições democráticas são solapadas para dobrar-se aos interesses do homem forte que governa, com restrições às liberdades de expressão, pensamento, comportamento etc. Da Venezuela à Hungria, de El Salvador à Polônia, os passos dos autocratas repetem o roteiro criado e executado primeiro por Putin.

Do outro lado da guerra, as democracias liberais do Ocidente, sobretudo os Estados Unidos sob o governo de Joe Biden, têm fornecido o apoio financeiro e militar sem o qual Zelensky não teria conseguido suas importantes vitórias militares nos últimos dias.

A motivação do conflito na Ucrânia tem sido comparada com frequência à da Segunda Guerra, quando o Ocidente também se uniu contra o nazifascismo de Hitler, Mussolini e seus aliados japoneses. "Os nazistas e o Império do Japão também acreditavam que os Estados Unidos estavam fracos devido à decadência do capitalismo e à diversidade racial", escreveu em artigo recente o economista americano Noah Smith. O choque entre o liberalismo tradicional e esse novo "iliberalismo" tende, segundo ele, a ocupar o espaço deixado vago pelo fim da dicotomia entre comunismo e capitalismo que alimentou a Guerra Fria durante décadas.

A extrema direita apoia Putin. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que usou o termo "iliberal" para definir o arremedo de democracia em seu país, recusou o pedido de Zelensky para não comprar petróleo e gás russos. Também impediu que armas enviadas à Ucrânia por europeus e americanos passassem por território húngaro. No mesmo contexto está a visita descabida do presidente Jair Bolsonaro a Putin pouco antes da invasão. No Kremlin, Bolsonaro prestou sua "solidariedade" ao autocrata, embora seu apoio não tenha se refletido na postura do Itamaraty em organismos internacionais.

A garantia contra agressores como Putin é a união de países para se defenderem juntos. E o que acontece na Ucrânia, com a feliz coincidência de os Estados Unidos aproveitarem a chance para dar um recado direto à Rússia e indireto à China. Se a defesa da Ucrânia for bem-sucedida, segundo Smith, os projetos expansionistas imperiais sofrerão um forte baque, enquanto o mundo busca uma nova ordem. Que ela preserve o liberalismo.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Sistemas políticos liberais e i-liberais, segundo Augusto de Franco

 Uma abordagem inteligente dos sistemas e atores liberais ou i-liberais, a partir do modelo Variedades de Democracia da Universidade de Gotemburgo, aperfeiçoado e exemplificado por Augusto de Franco.

Paulo Roberto de Almeida 


Classificando as forças políticas sem usar as noções de esquerda e direita

Ensaiemos uma nova classificação dos atores políticos (inspirada na classificação do V-Dem dos quatro tipos de regimes políticos: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada ou não-eleitoral). Claro que isso pode ser apenas uma inspiração: os critérios (ou indicadores) de democracia que permitem a classificação do V-Dem nos quatro tipos acima não se aplicam a atores políticos (ou forças políticas). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Trump) em democracias liberais (como os EUA). Podemos ter autocratas eleitorais fora do governo (como Farage, Salvini e Le Pen) em democracias liberais (como Reino Unido, Itália e França). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Bolsonaro e Duda) em democracias eleitorais (como Brasil e Polônia).

Feita a ressalva, vamos à classificação proposta:

Como mostra o diagrama acima, os democratas podem ser classificados em dois tipos: liberais e eleitorais.

Os autocratas também podem ser classificados em dois tipos: os eleitorais e os não-eleitorais.

Os democratas liberais, por sua vez, podem ser classificados em dois tipos: os radicais e os formais.

Exemplos de democratas eleitorais radicais: Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras, Spinoza, Dewey, Arendt…

Exemplos de democratas liberais formais: Merkel e Scholz (na Alemanha), Quesada (na Costa Rica), Kishida (no Japão), Jacinda Ardern (na Nova Zelândia), Gahr Store (na Noruega).

Os democratas eleitorais podem, igualmente, ser classificados em dois tipos: os formais (ou não-populistas) e os neopopulistas.

Exemplos de democratas eleitorais formais: Antonio Costa (em Portugal), Milanovic (na Croácia), Saied (na Tunísia), Piñera (no Chile), Lacalle Pou (no Uruguai).

Exemplos de democratas eleitorais neopopulistas: Evo e Arce (na Bolívia), Correa (no Equador), Lugo (no Paraguai), Funes (em El Salvador), Lula (no Brasil), Castillo (no Peru) e Zelaya em famiglia (em Honduras).

Os autocratas eleitorais podem ser classificados em dois tipos: os neopopulistas e os populistas-autoritários (ou nacional-populistas).

Exemplos de autocratas eleitorais neopopulistas: Maduro (na Venezuela), Ortega (na Nicarágua), Lourenço (em Angola).

Exemplos de autocratas eleitorais populistas-autoritários: Orbán (na Hungria), Erdogan (na Turquia), Jarosław e Lech Kaczyński e Duda (na Polônia), Salvini (na Itália), Le Pen (na França), Farage (no Reino Unido), Trump (nos EUA), Modi (na Índia), Duterte (nas Filipinas), Bolsonaro (no Brasil).

Os autocratas não-eleitorais são os velhos ditadores já conhecidos (remanescentes do século 20).

Exemplos de autocratas não-eleitorais: Dias-Canel (em Cuba), Xi-Jinping (na China), Bin Salman (na Arábia Saudita), Bashar al-Assad (na Síria), Omar al-Bashir (no Sudão).

Os campos hachurados em cinza claro no diagrama são i-liberais.

Para que serve essa classificação?

Em primeiro lugar para escapar da categorização vazia, elaborada a partir da posição relativa no espectro político ou político-ideológico (levando em conta o conteúdo das ideias esposadas ou apresentadas): extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita, extrema-direita – adotando agora como critério o comportamento político. Se alguém se perde nessas categorizações “tomográficas” descritivas das forças políticas não leva em conta as categorias analíticas capazes de explicar comportamentos políticos.

O problema não é se você pronuncia ou escreve as palavras ‘esquerda’ e ‘direita’ e sim se você usa essas categorias equívocas para analisar comportamentos políticos. Por exemplo, podemos encontrar comportamento político populista na esquerda e na direita: o peruano Castillo (de esquerda) e o americano Trump (de direita) são populistas. Outro exemplo: Antonio Costa em Portugal é considerado mais de esquerda e Sebastião Piñera no Chile é considerado de direita (ver imagem que ilustra este artigo), mas ambos são democratas eleitorais formais (não-populistas) e é isso que é fundamental para analisar o funcionamento dos regimes onde governam.

Voltando à inspiração da classificação do V-Dem. O que é relevante para a análise é se uma força política é democrático-liberal (radical ou formal), democrático-eleitoral (não-populista ou neopopulista), autocrático-eleitoral (neopopulista ou populista-autoritária) ou autocrático-fechada (não-eleitoral).

Todas as classificações que partem de uma posição relativa no espectro são equívocas: dependendo da configuração do ambiente político, alguém que é de direita pode ser encarado como extrema-direita, alguém que é de extrema-esquerda pode ser só de esquerda, alguém que é de esquerda pode ser tomado como de centro-esquerda… e por aí vai. Alguém achará uma direita e uma esquerda até no Vaticano e um democrata-liberal formal no PSTU será considerado como “de direita”. Isso não esclarece, confunde.

Caímos nesse “método” de interpretação da realidade a partir da revolução francesa, que não reinventou a democracia na época moderna, mas em compensação inventou de dividir o mundo em esquerda e direita. Na verdade, inventou a esquerda. E aí a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. São conceitos de guerra, não de política. É sempre uma demarcação de campos para orientar ações de conquista ou destruição. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Em segundo lugar, a classificação aqui proposta serve para revelar que o comportamento político é função dos graus de liberalismo político (que vai, numa escala descendente, dos democratas liberais radicais aos autocratas não-eleitorais). Há uma mancha i-liberal cobrindo parte dos democratas e todos os autocratas. A ​presente classificação serve para mostrar que democratas eleitorais podem ser i-liberais (bastando, para tanto, que sejam populistas, no caso, neopopulistas – e a palavra ‘neopopulista’ é usada aqui para estabelecer uma diferença entre os velhos populismos, associados à demagogia, ao assistencialismo e clientelismo e à irresponsabilidade fiscal, e os novos populismos florescentes no século 21).

Em terceiro lugar a classificação serve para mostrar que, mesmo entre os democratas liberais, há uma distinção entre os radicais (ou inovadores – quer dizer dizer, entre os que apostam na continuidade do processo de democratização para alcançar as democracias que queremos) e os formais (que dão ênfase à manutenção do Estado democrático de direito ou à defesa da democracia que temos).

Quatro notas de rodapé para encerrar (ou começar):

1 – Na distinção entre democratas liberais radicais e formais, deve ficar claro que a defesa da democracia que temos é condição necessária para alcançarmos as democracias que queremos.

2 – A palavra ‘radical’ aqui não significa sectário, estreito ou extremista e sim, no seu sentido literal, ir à raiz da concepção democrática originária e aponta para uma conexão (ou fusão) entre o liberalismo antigo (dos democratas atenienses que tomavam a liberdade como sentido da política) e o liberalismo político dos modernos. É o imaginário lugar do pensamento onde Locke, Montesquieu, Tocqueville, Constant e Stuart Mill podem se encontrar com Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. Ou seja, o sentido da política não é a ordem, ainda quando seja uma nova ordem mais justa – e sim a liberdade.

3 – Democracias liberais também podem ser parasitadas por populismos, embora isso seja mais difícil de ocorrer do que numa democracia (apenas) eleitoral. As democracias liberais metabolizam as forças políticas populistas (sejam democráticas ou autocráticas) confinando-as mais facilmente nas margens do espectro político (ou impedindo que elas ocupem o centro de gravidade em torno do qual a política institucional vai orbitar). As democracias (apenas) eleitorais estão sempre em risco de decaírem para autocracias eleitorais e não têm proteção tão eficaz contra os populismos.

4 – Faltaram exemplos recentes de democratas liberais radicais? Pois é… No fundo, no fundo, foi isso que inspirou este artigo.