Liberalismo é principal alvo da agressão russa à Ucrânia
C omo em todas as guerras, princípios e valores estão em jogo na invasão da Ucrânia. De um lado, a Rússia de Vladimir Putin repetindo os mesmos devaneios imperialistas da Rússia czarista e da União Soviética. De outro, a Ucrânia de Volodomyr Zelensky, invadida por querer compartilhar com a União Europeia (UE) valores democráticos liberais, no momento em que a velha ordem mundial do Pós-Guerra se desintegra e surgem autocratas em busca de espaço.
O maior exemplo - e uma espécie de pioneiro - desses autocratas é Putin, já há quase 23 anos no poder. O ex-agente apagado da KGB soviética na Alemanha Oriental consolidou a doutrina que os cientistas políticos têm chamado de "iliberalismo" - regime em que, embora haja eleições periódicas, as instituições democráticas são solapadas para dobrar-se aos interesses do homem forte que governa, com restrições às liberdades de expressão, pensamento, comportamento etc. Da Venezuela à Hungria, de El Salvador à Polônia, os passos dos autocratas repetem o roteiro criado e executado primeiro por Putin.
Do outro lado da guerra, as democracias liberais do Ocidente, sobretudo os Estados Unidos sob o governo de Joe Biden, têm fornecido o apoio financeiro e militar sem o qual Zelensky não teria conseguido suas importantes vitórias militares nos últimos dias.
A motivação do conflito na Ucrânia tem sido comparada com frequência à da Segunda Guerra, quando o Ocidente também se uniu contra o nazifascismo de Hitler, Mussolini e seus aliados japoneses. "Os nazistas e o Império do Japão também acreditavam que os Estados Unidos estavam fracos devido à decadência do capitalismo e à diversidade racial", escreveu em artigo recente o economista americano Noah Smith. O choque entre o liberalismo tradicional e esse novo "iliberalismo" tende, segundo ele, a ocupar o espaço deixado vago pelo fim da dicotomia entre comunismo e capitalismo que alimentou a Guerra Fria durante décadas.
A extrema direita apoia Putin. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que usou o termo "iliberal" para definir o arremedo de democracia em seu país, recusou o pedido de Zelensky para não comprar petróleo e gás russos. Também impediu que armas enviadas à Ucrânia por europeus e americanos passassem por território húngaro. No mesmo contexto está a visita descabida do presidente Jair Bolsonaro a Putin pouco antes da invasão. No Kremlin, Bolsonaro prestou sua "solidariedade" ao autocrata, embora seu apoio não tenha se refletido na postura do Itamaraty em organismos internacionais.
A garantia contra agressores como Putin é a união de países para se defenderem juntos. E o que acontece na Ucrânia, com a feliz coincidência de os Estados Unidos aproveitarem a chance para dar um recado direto à Rússia e indireto à China. Se a defesa da Ucrânia for bem-sucedida, segundo Smith, os projetos expansionistas imperiais sofrerão um forte baque, enquanto o mundo busca uma nova ordem. Que ela preserve o liberalismo.