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domingo, 8 de dezembro de 2024

A queda da categoria "extremista" (quem mateou mais?) - AUGUSTO DE FRANCO Revista ID

A queda da categoria "extremista"

Assad não era extremista

AUGUSTO DE FRANCO

Revista ID, DEZ 8, 2024

 

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: "Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar".

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino.

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho).

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria "extremista" é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas.

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas - não depois que chegaram ao poder.

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis" e "Três Antis").

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto - juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) - compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.

 

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sábado, 23 de novembro de 2024

Bolsonaro e o bolsonarismo - Augusto de Franco (Revista Identidade Democrática)

Bolsonaro e o bolsonarismo


E o perigo que atualmente representam para a democracia


Augusto de Franco

Revista Identidade democrática, Nov 22, 2024


Bolsonaro e o bolsonarismo são expressões do populismo-autoritário ou nacional-populismo - dito de extrema-direita - que floresceu mais amplamente na segunda década do século 21. 

Na Itália, inicialmente, com Bepe Grillo e Gianroberto Casaleggio do movimento 5 Stelle, Matteo Salvini com a Lega Nord (e, depois, Lega per Salvini Premier) até chegar à forma, hoje mais moderada, de Giorgia Meloni, do Fratelli d'Italia. 

Na Polônia com os irmãos Lech e Jaroslaw Kaczynski e, depois, com Andrzej Duda, do partido Lei e Justiça. Na Hungria com Viktor Orbán, do Fidesz. Na Turquia, com Recep Erdogan, do partido Justiça e Desenvolvimento. Na França, com Marine Le Pen, da Rassemblement National. No Reino Unido, com Nigel Farage, do Reform UK e o movimento do Brexit. Nos Estados Unidos, com Donald Trump e o movimento MAGA, que colonizou o partido Republicano. Na Alemanha, com Tino Chrupalla e Alice Weidel, com a AFD - Alternativa para a Alemanha. Na Holanda, com Geert Wilders, do Partido para a Liberdade. Na Finlândia, com Riika Purra, do partido Verdadeiros Finlandeses. Em El Salvador com Nayib Bukele, do Nuevas Ideas. Em Israel, com Benjamin Netanyahu, do Likud, em aliança com supremacistas como Bezalel Smotrich do Partido Sionista Religioso e Itamar Ben-Gvir do partido Poder Judaico. Em Portugal, com André Ventura, do Chega. Na Espanha, com Santiago Abascal, do Vox. No Brasil, com Jair Bolsonaro e o movimento olavista-bolsonarista. 

Ocupam posições especiais (com alguns casos ainda em exame): na Índia, Narendra Modi, do Partido do Povo Indiano, com seu projeto autocrático, de fundo mítico-religioso, chamado Bharat; na Argentina, Javier Milei, do Partido Libertário; na Eslováquia, Roberto Fico, do Smer, que embora seja dito de esquerda, virou quase um fantoche de Putin.

Desses todos, estão atualmente no governo apenas nove atores: Orbán, Erdogan, Meloni, Netanyahu, Bukele, Modi, Fico, Milei e Trump (a partir de 2025). 

Quase todos esses foram apoiados ou estimulados por Vladimir Putin, do partido Rússia Unida - que não se enquadra bem como direita ou esquerda.

Pois Putin também apoia ou estimula: a) ditadores de esquerda, ditos socialistas, como Xi Jinping da China, Kim Jong-un da Coreia do Norte, Minh Chính do Vietnam, Díaz-Canel de Cuba, Nicolás Maduro da Venezuela, Daniel Ortega da Nicarágua, Sonexay Siphandone do Laos; b) ditadores islâmicos, como Ali Khamenei do Irã, Bashar al-Assad da Síria; c) ditadores seculares, como Alexander Lukashenko da Bielorrussia, Paetongtarn Shinawatra da Tailândia; e d) neopopulistas ditos de esquerda - não autoritários, mas também não-liberais - como Obrador e Sheinbaum do México, Xiomara e Manuel Zelaya de Honduras, Gustavo Petro da Colômbia, Lula da Silva do Brasil, Cyril Ramaphosa da África do Sul e, talvez, Prabowo Subianto da Indonésia.

Pode-se dizer que Bolsonaro surfou na onda do populismo-autoritário, mas que ele - em si - é apenas um oportunista eleitoreiro reacionário, um passadista saudoso da ditadura militar e de seus métodos truculentos e anacrônicos. Não fosse o olavismo, o bolsonarismo não teria nenhuma substância ideológica considerável (o que era a opinião do próprio Olavo de Carvalho).

O fato de Bolsonaro e seus seguidores, civis e, sobretudo, militares, tramarem um golpe de Estado à moda antiga, com fechamento de instituições pela força bruta e, ao que se diz, planejamento de assassinato de representantes eleitos, não se coaduna com o comportamento da imensa maioria dos populistas-autoritários atuais, listados acima. Seus métodos para chegar ao poder e nele se manter são outros, por erosão democrática, com o desmonte dos sistemas de freios e contrapesos das democracias que parasitam.

O golpe bolsonarista, embora tenha sido planejado e intentado, tinha pouquíssimas chances de se concretizar e perdurar (caso tivesse sucesso). Em primeiro lugar porque não havia força político-militar para tanto (como ficou demonstrado). Em segundo lugar porque a maioria do sistema político - mesmo a sua parcela governista - não o apoiava (porque seria um suicídio para quem vive do jogo eleitoral). Em terceiro lugar porque não haveria apoio internacional para a aventura esdrúxula.

Evidentemente, os golpistas bolsonaristas devem responder pelos seus crimes. Mas essa é uma tarefa da polícia, do ministério público e da justiça e não da política, na medida em que a ameaça de golpe de Estado não existe mais na atualidade. Tratar o assunto como se a ameaça fosse atual e esticar os processos judiciais com o fito de colher vantagens eleitorais em 2026 é a pior coisa que se pode fazer agora. Significa investir, por mais dois anos, na polarização tóxica que está dilacerando a sociedade brasileira.

O "perigo" que o bolsonarismo representa, no curto prazo, é apenas o de seus próceres, antigos ou novos, vencerem as próximas eleições. Mas tirar o PT do poder pelo voto, em eleições limpas, não é golpe de Estado: faz parte do jogo democrático. Tentar impedir isso com artimanhas político-judiciais, restringindo direitos políticos e liberdades civis (como a liberdade de expressão: aparelhando os meios de comunicação profissionais e praticando censura prévia nas mídias sociais), terá como efeito inevitável acelerar um processo de autocratização do nosso regime político.


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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Democracia como modo-de-vida - John Dewey, Augusto de Franco (ID)

A democracia criativa de John Dewey

INTELIGÊNCIA DEMOCRÁTICA

OUT 25

 

Augusto de Franco, Dagobah (17/07/2017), Inteligência Democrática (25/10/2024)

O pouco conhecido discurso de John Dewey (1939) – intitulado Democracia criativa: a tarefa diante de nós – fez mais de 80 anos. E foi pronunciado quando ele, Dewey, completava 80 anos de idade.

 

Claro que democracia como modo-de-vida quer dizer, a rigor, democracia como modo de convivência social, ou seja, modo regulação de conflitos na vida comum ou na convivência social cotidiana. Quando se vai organizar qualquer coisa, quando se vai interagir com alguém, sobretudo para fazer alguma coisa juntos. Isso significa, no fundo, não criar inimigos, cooperar mais do que competir, não exigir alinhamentos de posições e sim montar ecologias de diferenças coligadas, não lutar ou combater, enfim… é a democracia experimentada não apenas como forma de administração política do Estado e sim também em todos os ambientes de convivência, como a família, os grupos de amigos e vizinhos, as escolas e universidades, as organizações formais ou informais da sociedade civil e as empresas.

Publiquei este artigo pela primeira vez em português, em 2008, juntamente com Thamy Pogrebinschi, numa coletânea sobre os escritos políticos de John Dewey:

 

FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (2008): Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: EdiPUC-RS, 2008.

 

Na introdução do livro linkado acima, escrevi:

No discurso “Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente” (1939), em que lançou sua derradeira contribuição às bases de uma nova teoria normativa da democracia que poderíamos chamar de democracia cooperativa, John Dewey deixou claro que estava tomando o conceito em seu sentido “forte”. A democracia, para ele, não se refere – nem apenas, nem principalmente – ao funcionamento das instituições políticas, mas é “um modo de vida” baseado em uma aposta “nas possibilidades da natureza humana”, no “homem comum”, como ele diz, “nas atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana”. Segundo Dewey, a democracia é uma aposta generosa na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida, livre de toda coerção e imposição por parte dos demais, sempre que estejam dadas as devidas condições.

Doze anos antes, em “O público e seus problemas” (1927), ele já tinha deixado claro que existe uma distinção entre a democracia como uma ideia de vida social e a democracia política como um sistema de governo. A ideia – argumentava ele – permanece estéril e vazia sempre que não se encarne nas relações humanas. Porém na discussão há que distingui- las. A ideia de democracia é uma ideia mais ampla e mais completa do que se possa exemplificar no Estado, ainda no melhor dos casos. Para que se realize, deve afetar todos os modos de associação humana, a família, a escola, a indústria, a religião. Inclusive no que se refere às medidas políticas, as instituições governamentais não são senão um mecanismo para proporcionar a essa ideia canais de atuação efetiva.

 

O discurso original de Dewey vai reproduzido abaixo na íntegra.

DEMOCRACIA CRIATIVA: A TAREFA DIANTE DE NÓS

John Dewey

Democracia criativa: a tarefa diante de nós (1939). Publicado inicialmente em John Dewey and the Promise of America, Progressive Education Booklet n° 14 (Columbus, Ohio: American Education Press, 1939), pp. 12-17, de um discurso lido por Horace M. Kallen no jantar de homenagem a Dewey em Nova Iorque em 20 de outubro de 1939. Cf. Hickman, Larry A. & Alexander, Thomas. The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998: pp. 340-343. A menção, contida no livro acima, à obra de Dewey [LW 14: 224-30] se refere ao volume e às páginas das Later Works: 1925-1953 in Boydston, Jo Ann (ed.). The Collected Works of John Dewey, 1882-1953. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press, 1969-1991.

Nas atuais circunstâncias, não posso esperar esconder o fato de que já existo há oitenta anos. A menção do fato talvez lhes sugira um fato mais importante – a saber, que os eventos de extrema significância para o destino deste país ocorreram durante os últimos quatro quintos de um século, um período que abrange mais de metade de sua vida nacional em sua forma presente. Por razões óbvias não deverei tentar resumir mesmo os mais importantes desses eventos. Referi-me a eles aqui por causa de sua influência sobre a questão com a qual este país se comprometeu quando a nação tomou forma – a criação da democracia, uma questão que agora é urgente tal como era há cento e cinqüenta anos, quando os homens mais experientes e sábios do país uniram-se para fazer um levantamento das condições e criar a estrutura política de uma sociedade autogovernada.

Pois a importância final das mudanças que ocorreram nesses últimos anos é que os modos de vida e as instituições que antes eram o produto natural, quase inevitável, de condições afortunadas agora precisam ser conquistadas por um esforço consciente e resoluto. Nem todo o país estava em um estado pioneiro há oitenta anos. Mas ele estava, excetuando-se talvez umas poucas cidades grandes, tão perto do estágio pioneiro da vida americana que as tradições do pioneiro, certamente da fronteira, foram agentes ativos na formação dos pensamentos e na formatação das crenças daqueles que nasceram nesse período. Ao menos na imaginação o país ainda tinha uma fronteira aberta, uma fronteira de recursos não aproveitados e não apropriados. Era um país de oportunidade e atração física. Mesmo assim, havia mais do que uma conjunção maravilhosa de circunstâncias físicas envolvidas no esforço de dar à luz esta nova nação. Existiu um grupo de homens que foram capazes de readaptar instituições e ideias mais antigas para satisfazerem às situações oferecidas pelas novas condições físicas – um grupo de homens extraordinariamente talentosos em termos de inventividade política.

No momento presente, a fronteira é moral, não física. O período de terras livres que pareciam de extensão ilimitada acabou. Os recursos não aproveitados são agora os humanos ao invés dos materiais. Eles são encontrados no desperdício de homens e mulheres adultos que não têm a chance de trabalhar, e nos rapazes e moças jovens que encontram portas fechadas onde antes havia oportunidade. A crise que há cento e cinquenta anos clamava por inventividade social e política está conosco em uma forma que apresenta uma forte demanda por criatividade humana.

Em todo caso, isso é o que tenho em mente quando digo que temos agora que recriar através de um empenho deliberado e determinado o tipo de democracia que em sua origem há cento e cinquenta anos era em grande parte produto de uma combinação afortunada de homens e circunstâncias. Vivemos por um longo tempo com o legado que chegou até nós a partir da feliz conjunção de homens e eventos numa época mais antiga. O atual estado do mundo é mais do que um lembrete que temos agora de pôr em ação toda a energia que possuímos para nos provarmos dignos de nosso legado. É um desafio fazer com as condições críticas e complexas de hoje o que os homens de outrora fizeram com condições mais simples.

Se enfatizo que a tarefa pode ser cumprida somente por esforço inventivo e atividade criativa, é em parte porque a profundidade da crise atual deve-se em parte considerável ao fato de que por um longo período agimos como se nossa democracia fosse algo que se perpetuasse automaticamente; como se nossos ancestrais tivessem sido bem-sucedidos em instalar uma máquina que resolvia o problema do movimento perpétuo na política. Agimos como se a democracia fosse algo que ocorresse principalmente em Washington ou Albany – ou alguma outra capital estadual – sob o ímpeto do que acontece quando homens e mulheres vão às urnas mais ou menos uma vez por ano – o que é uma maneira um tanto extrema de dizer que temos o hábito de pensar na democracia como uma espécie de mecanismo político que irá funcionar desde que os cidadãos sejam razoavelmente fiéis no cumprimento de seus deveres políticos.

Nos últimos anos, temos ouvido cada vez mais frequentemente que isso não basta; que a democracia é um modo de vida. Essa afirmação é a mais dura verdade. Mas não estou certo de que algo da externalidade da velha ideia não adira à nova e melhor assertiva. De qualquer forma, poderemos escapar dessa maneira externa de pensar somente à medida que percebermos no pensamento e na ação que a democracia é um modo pessoal de vida individual; que ela significa a posse e o uso contínuos de certas atitudes, formando o caráter pessoal e determinando o desejo e a finalidade em todas as relações da vida. Ao invés de pensarmos em nossas próprias disposições e hábitos como acomodados a certas instituições, temos de aprender a pensar neles como expressões, projeções e extensões das atitudes pessoais habitualmente dominantes.

A democracia como um modo de vida pessoal e individual não envolve algo fundamentalmente novo. Mas quando aplicada, ela confere um novo sentido prático a velhas ideias. Colocada em prática, ela significa que os inimigos poderosos atuais da democracia podem ser confrontados com sucesso apenas pela criação de atitudes pessoais nos seres humanos individuais; que devemos superar nossa tendência de pensar que sua defesa pode ser encontrada em meios externos quaisquer, sejam militares ou civis, se eles estiverem separados de atitudes individuais arraigadas a ponto de constituir o caráter pessoal.

A democracia é um modo de vida guiado por uma fé ativa nas possibilidades da natureza humana. A crença no Homem Comum é um item familiar ao credo democrático. Tal crença seria infundada e sem significância a não ser que signifique fé nas potencialidades da natureza humana, visto que essa natureza é exibida em todo ser humano, independentemente de raça, cor, sexo, nascimento e família, de riqueza material ou cultural. Essa fé pode ser promulgada em leis, mas ela se encontra apenas no papel a não ser que seja materializada nas atitudes que os seres humanos exibem uns para os outros em todos os incidentes e relações do cotidiano. Denunciar o nazismo por intolerância, crueldade e estímulo ao ódio é o mesmo que estimular a falta de sinceridade se, em nossas relações pessoais com outras pessoas, se em nossa caminhada e conversa diária, somos movidos por preconceito de raça, cor ou outra ordem de preconceito; de fato, por qualquer coisa, salvo uma crença generosa em suas possibilidades como seres humanos, uma crença que traz consigo a necessidade de fornecer condições que possibilitem que essas capacidades realizem-se. A fé democrática na igualdade humana é a crença que todo ser humano, independente da quantidade ou extensão de seu dom pessoal, tem direito a uma oportunidade igual a todas as outras pessoas para desenvolver os talentos que possui. A crença democrática no princípio de liderança é uma crença generosa. Ela é universal. É a crença na capacidade de toda pessoa de conduzir sua própria vida, livre de coerção e imposição pelos outros, desde que as condições certas sejam proporcionadas.

A democracia é um modo de vida pessoal conduzido não apenas pela fé na natureza humana em geral, mas pela fé na capacidade dos seres humanos de julgamento e ação inteligentes, caso condições apropriadas sejam dadas. Fui acusado mais de uma vez e por opositores de uma fé indevida, utópica, uma fé nas possibilidades da inteligência e na educação como um correlato da inteligência. De qualquer forma, não inventei essa fé. Eu a adquiri do meu ambiente, já que esse ambiente era animado pelo espírito democrático. Pois o que é a fé na democracia no papel de consulta, de conferência, de persuasão, de discussão, na formação da opinião pública, a qual a longo prazo é autocorretiva, senão fé na capacidade da inteligência do homem comum de responder com bom senso ao livre curso dos fatos e ideias que são asseguradas por garantias efetivas de livre investigação, livre reunião e livre comunicação? Estou disposto a deixar para os defensores dos Estados totalitários de direita e de esquerda a opinião que a fé nas capacidades da inteligência é utópica. Pois a fé é tão profundamente arraigada nos métodos que são intrínsecos à democracia que, quando um democrata declarado nega a fé, ele condena a si mesmo por traição à sua profissão.

Quando penso nas condições nas quais homens e mulheres estão vivendo em muitos países estrangeiros hoje, medo de espionagem, com o perigo pairando sobre o encontro de amigos para uma conversa amigável em reuniões privadas, fico inclinado a crer que o coração e a garantia final da democracia encontram-se nos livres encontros de vizinhos na esquina para discutir o que é lido nas notícias não censuradas do dia, e em reuniões de amigos nas salas de estar de casas e apartamentos para conversarem livremente uns com os outros. Intolerância, abuso, ofensas pessoais por causa de diferenças de opinião sobre religião ou política ou negócios, bem como por causa de diferenças de raça, cor, riqueza ou nível cultural são uma traição ao modo de vida democrático. Pois tudo o que obstaculiza a liberdade e a plenitude de comunicação estabelece barreiras que dividem os seres humanos em grupos e rodas, em seitas e facções antagônicas, e assim enfraquece o modo de vida democrático. As garantias meramente jurídicas das liberdades civis de livre crença, livre expressão, livre reunião são pouco úteis se na liberdade de comunicação cotidiana a troca de ideias, fatos, experiências é sufocada por suspeita mútua, por abuso, por medo e ódio. Essas coisas destroem a condição essencial do modo democrático de viver até com mais eficácia do que a coerção aberta que – como o exemplo dos Estados totalitários prova – é efetiva somente quando consegue gerar ódio, suspeita, intolerância nas mentes dos seres humanos individuais.

Por fim, dadas as duas condições mencionadas, a democracia é um modo de vida que é conduzido pela fé pessoal no cotidiano pessoal de trabalho conjunto com outras pessoas. Democracia é a crença de que mesmo quando necessidades e fins ou consequências são diferentes para cada indivíduo, o hábito de cooperação amigável – que pode incluir, como no esporte, rivalidade e competição – é em si um acréscimo valioso à vida. Afastar, ao máximo possível, todo conflito que surgir – e certamente eles surgirão – da atmosfera e meio da força, de violência como um meio de solução e resolvê-lo através de discussão e inteligência significa tratar aqueles que discordam – mesmo profundamente – de nós como aqueles com quem podemos aprender e, na medida do possível, como amigos. Uma fé genuinamente democrática na paz é uma fé na possibilidade de administrar disputas, controvérsias e conflitos como tarefas cooperativas em que ambas as partes aprendam dando à outra a chance de se expressar, ao invés de uma parte conquistar pela supressão da outra à força – uma supressão que é violenta quando ocorre através de meios psicológicos de ridicularização, abuso, intimidação, ao invés de aprisionamento aberto ou em campos de concentração. Cooperar dando uma chance às diferenças de se mostrarem por causa da crença que a expressão da diferença é não só direito de outras pessoas, mas um meio de enriquecer sua própria experiência de vida, é inerente ao modo de vida pessoal democrático.

Caso o que foi dito seja acusado de ser um conjunto de lugares comuns morais, minha única resposta é que é exatamente isso que se pretende ao dizer tais coisas. Pois livrarmo-nos do hábito de pensar a democracia como algo institucional e externo e adquirirmos o hábito de tratá-la como um modo de vida pessoal significa perceber que a democracia é um ideal moral e, à medida que se torna um fato, é um fato moral. Trata-se de perceber que a democracia é uma realidade somente quando é de fato um lugar-comum de vida.

Visto que minha idade adulta tem sido dedicada à atividade da filosofia, devo pedir sua indulgência se ao concluir afirmo brevemente a fé democrática nos termos formais de uma posição filosófica. Conforme afirmado, democracia é a crença na habilidade da experiência humana de gerar os objetivos e métodos pelos quais uma experiência ulterior irá crescer numa riqueza ordenada. Todas as outras formas de fé moral e social residem na ideia que a experiência deve ser submetida em algum ponto ou outro a alguma forma de controle externo; a alguma “autoridade” que se alega existir fora dos processos de experiência. A democracia é a fé de que o processo de experiência é mais importante que qualquer resultado especial obtido, de forma que os resultados obtidos são de valor decisivo somente quando são usados para enriquecer e ordenar o processo em curso. Visto que o processo de experiência é capaz de ser educativo, a fé na democracia é o mesmo que fé na experiência e educação. Todos os fins e valores que são cortados do processo em curso tornam-se impedimentos, fixações. Eles lutam para fixar o que foi ganho ao invés de usá-lo para abrir o caminho e apontar o rumo para experiências novas e melhores.

Se alguém perguntar o que significa experiência nesse sentido, minha resposta é que se trata daquela interação livre dos seres humanos individuais com as condições que os cercam, especialmente o meio humano, que desenvolve e satisfaz necessidade e desejo aumentando o conhecimento das coisas como elas são. O conhecimento das condições tais como são é a única base sólida de comunicação e compartilhamento; qualquer outra comunicação significa sujeição de algumas pessoas à opinião pessoal de outras pessoas. Necessidade e desejo – dos quais crescem propósito e direcionamento de energia – vão além do que existe e, portanto, vão além do conhecimento, além da ciência. Eles continuamente abrem o caminho rumo ao futuro inexplorado e inatingível.

A democracia, comparada com outros modos de vida, é o único modo de vida que acredita sinceramente no processo de experiência como fim e como meio; como aquilo que é capaz de gerar a ciência que é a única autoridade confiável para a condução de uma experiência maior que libera emoções, necessidades e desejos de modo a tornar existentes coisas que não existiram no passado. Pois todo modo de vida que falha em sua democracia limita os contatos, as trocas, as comunicações, as interações pelas quais a experiência é firmada enquanto é também ampliada e enriquecida. A tarefa dessa liberação e enriquecimento é uma tarefa que precisa ser realizada dia a dia. Visto que se trata de uma tarefa que não pode terminar até que a própria experiência termine, a tarefa da democracia será sempre criar uma experiência mais livre e mais humana na qual todos compartilham e para a qual todos contribuem.

 

 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Augusto de Franco faz uma análise preliminar da vitória de Trump - Identidade Democrática

Uma análise de um dos mais finos analistas do jogo democrático no Brasil e no mundo. 

Minha análise preliminar da vitória de Trump

La victoria aplastante de Trump en Iowa allana el camino a su nominación  como candidato republicano a presidente | Elecciones USA | EL PAÍS

Trump está eleito. Pelo voto popular e pelo colégio eleitoral. Elegeu também a maioria do Senado e da Câmara. Elegeu a maioria dos governadores. E pode ampliar sua maioria na suprema corte. Com isso, aumentam as chances de que ele inaugure uma nova era nos EUA. O que vem por aí, todavia, não será bom para a democracia e para a humanidade.

Será péssimo para a Ucrânia e muito ruim para a coalizão das democracias liberais que foram decisivas para impedir que o expansionismo neoczarista de Putin tomasse o país e dissolvesse aquela nação. Será ruim para a União Europeia, dinamitada por dentro por aliados de Trump, como Viktor Orbán e por salientes expoentes da extrema-direita como Ventura, Abascal, Wilders, Chrupalla e Weidel, Purra, Salvini, Le Pen. Será ruim para a OTAN e para os países por ela protegidos (sobretudo os bálticos, a Suécia e até a Polônia) contra a avanço do eixo autocrático tendo como ponta de lança a ditadura expansionista russa. Será ruim para as democracias liberais como um todo. E será ruim para os regimes eleitorais que estão resistindo à ascensão ou ao retorno de populistas de direita (por exemplo, no Brasil, para os que tentam impedir a volta ao poder do bolsonarismo).

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Será ruim para o desenvolvimento sustentável do planeta, na medida em que Trump é um negacionista das mudanças climáticas. Além disso, o isolacionismo trumpista tipo America First, será ruim para o desenvolvimento humano e social dos países periféricos que precisam da ajuda americana e ocidental. Por último, será ruim para a paz no mundo (se Trump estivesse vivo em 1942, falaria cinicamente em paz numa Europa ocupada pelos nazistas; aliás, os EUA nem teriam entrado na guerra contra Hitler). 

Claro que, mais diretamente, a primeira vítima será o próprio modo de vida democrático da sociedade americana: não que Trump e o trumpismo (MAGA) sejam capazes de acabar com a democracia americana; não, pelo menos, nos curto e médio prazos, mas os EUA iniciarão um longo processo de “mutação genética” capaz de alterar lentamente (ou não tão lentamente) o “DNA” do seu regime democrático.

A vitória de Trump pode - dependendo de como ele quiser e for capaz de governar - instalar ou acirrar uma guerra civil fria nos EUA, ainda que no início subterrânea. Se isso acontecer, num suposto estado de guerra não declarado, não haverá estabilidade a não ser no movimento de avanço da autocratização. Se a cultura democrática da sociedade americana não conseguir resistir a isso teremos uma desconstrução dos EUA tal como hoje se configuram. Não será mais, a rigor, mais uma (única) "nação": em breve teremos “estados progressivamente desunidos”. Impossível prever agora o desfecho desse processo nos médio e longo prazos.

Fala-se que as instituições americanas são resilientes e que o fato de o povo ter votado majoritariamente em Trump é uma prova disso. Venceu quem teve mais votos. Mas tal discurso parece mais aquelas recomendações de autoajuda. Um consolo ou autoconsolo. No entanto, é impossível deixar de ver que a vitória de Trump revela uma crise da democracia americana (e não só da democracia americana). A maioria dos americanos perdeu a confiança nas suas instituições tradicionais. Corporações, forças armadas, universidades, tribunais - muitos milhões de cidadãos do Estados Unidos não confiam mais em nada disso. Mas a provavelmente obscurantista Era Trump, que agora começa, é um dos efeitos da terceira grande onda de autocratização que já engolfa o mundo todo em meados da terceira década deste século. Vale a pena dar uma espiada no diagrama abaixo:

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Não sabemos se (e quando) haverá uma quarta onda de democratização; ou seja, não sabemos quanto vai durar esta terceira onda de autocratização na qual estamos imersos. Trump - ou o trumpismo MAGA - no poder não abrevia, antes prorroga a duração da terceira onda de autocratização. Seu provável sucessor, J. D. Vance, eleito agora vice-presidente, pode piorar muito as coisas porque é mais articulado intelectualmente, inclusive com bilionários e “ideólogos tecnológicos” que já descartaram abertamente a democracia (e agora a desafiam), como Musk e Thiel. 

Não foram os analistas políticos e sim as urnas que mostraram que as instituições americanas não são mais confiáveis para a maioria dos americanos. Se tivermos que apostar em alguma coisa daqui para a frente será na cultura democrática da sociedade americana. Vamos ver. Quase certo, porém, que vem por aí mais um período de trevas: a democracia, na história, já passou por muitos períodos assim. Aliás, a democracia já ficou sumida durante dois milênios, de 322 a.C., com o fim da democracia ateniense, até meados do século 17, quando o parlamento inglês resolveu resistir ao poder despótico de Carlos I - para ressurgir, ou ser reinventada, como regime eleitoral pré-democrático em 1790 na Inglaterra e Irlanda (seguida em 1792 pela França e em 1796 pelos EUA), mas somente como democracia liberal em 1919.

Há uma cultura democrática na base da sociedade americana, sobretudo nas grandes cidades das costas leste e oeste (mas não nas zonas rurais do grande "centrão" do país). É essa cultura que ainda mantém a democracia nos EUA - a defesa de um modo de vida democrático - não mais a cultura predominante no establishment político, não o sistema judicial (e a suprema corte), não o defasado sistema eleitoral, não as direções dos maiores partidos - que sempre quiseram, desde os Pais Fundadores, uma república governável (de inspiração romana, oligárquica e aristocrática, que tomava a ordem como sentido da política), muito mais do que uma democracia (de inspiração ateniense, que tomasse a liberdade como sentido da política). 

São míticas as afirmações de que os Estados Unidos foram o primeiro país democrático, são a maior e a melhor democracia do mundo e são modelo de democracia plena. Os EUA forem o quarto país a adotar um regime eleitoral, na onda pré-democrática que vai de 1790 a 1848. Os EUA também foram retardatários na primeira onda de democratização, que vai de 1849 a 1921. Além disso os EUA foram retardatários em termos de adotar a democracia liberal. A Suíça já foi democracia liberal em 1849, a Austrália em 1858, a Bélgica em 1897, a Dinamarca em 1902, a Noruega em 1906, a Nova Zelândia em 1913, a Holanda em 1918 e a Inglaterra em 1919. Os EUA só viraram uma democracia liberal em 1969. 

Cabe reconhecer, por último, que os EUA não são mais, há muito tempo, uma democracia plena (e sim flawed) (1) e está em jogo, neste momento, até quando vão poder continuar sendo considerados uma democracia liberal (categoria na qual, como foi dito acima, se juntou muito tardiamente). Mas há uma vigorosa cultura democrática na sociedade americana - que cresceu a partir da extraordinária acumulação de capital social, em especial na Nova Inglaterra, a partir de meados do século 19 - e essa cultura era o único fator que poderia ter impedido a nova eleição do populista-autoritário, escroque e boçal, Donald Trump. Não deu. Talvez porque o capital social americano venha sendo continuamente dilapidado, seja pela centralização em Washington e pela multicentralização governamental na maioria dos estados, seja pela recorrência sistemática aos tribunais para resolver qualquer dilema banal da ação coletiva, seja pelo complexo científico-industrial-militar e, claro, pelas guerras. Agora estamos prestes a ver se o que ainda sobrou dessa cultura democrática será suficiente para resistir à Era Trump.

As causas da vitória de Trump são, portanto, muito mais profundas do que a falta de um discurso "progressista" palatável ao homem e a mulher comuns de classe média que votam em massa no "agente laranja". Alguns dizem que os progressistas estão entregando o mundo de bandeja aos fascistas por uma espécie de deficiência de marketing eleitoral. É como se tivessem um discurso inadequado ou não conseguissem mais conversar com parte do eleitorado. Mas isso está, simplesmente, errado. E é uma narrativa enganadora. Está errada, em primeiro lugar, essa classificação das forças políticas em conservadores, liberais e socialistas - os dois últimos compondo um mesmo campo progressista. O que é progressista? Zé Dirceu é progressista? Se for, os democratas não podemos ser progressistas. Liberais e socialistas (hoje populistas de esquerda, iliberais) não podem compor um mesmo campo. Está errada, em segundo lugar, porque não diz uma palavra sobre a maior ameaça que paira sobre as democracias liberais na atualidade: a formação de um agressivo eixo autocrático reunindo as maiores e mais brutais ditaduras do planeta.

Sim, eleito Donald Trump, temos de ter cuidado com essa conversa (da esquerda, dita progressista) de que a "internacional fascista" é a principal ou a única ameaça à democracia. 

É verdade que agora temos mais um - o sexto - governante populista-autoritário, dito de extrema-direita, no mundo: Orbán, Erdogan, Meloni, Bukele, Milei e... Trump! Mas ainda é um número muito menor do que o de autocratas, ditos de esquerda, que governam ditaduras: Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Phạm Minh Chính (Vietnam), Díaz-Canel (Cuba), Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Sonexay Siphandone (Laos) - para não falar de Vladimir Putin (Rússia), que investe nos dois lados e, claro, dos autocratas islâmicos, como Ali Khamenei (Irã), Bashar al-Assad (Síria) e não menos do que outros quinze ditadores (2). E atenção: não estão incluídos aqui os chefes de governo de regimes eleitorais não-autoritários e não-liberais, parasitados por populismos de esquerda (ainda chamados de democracias apenas eleitorais ou defeituosas), que se alinham ao eixo autocrático, como López Obrador e Claudia Sheinbaum (México), Xiomara e Manuel Zelaya (Honduras), Luis Arce e Evo Morales (Bolívia), Gustavo Petro (Colômbia), Lula da Silva (Brasil), Cyril Ramaphosa (África do Sul), talvez Prabowo Subianto (Indonésia) et coetera.

Podem ser apontados outros fatores. Embora isso não tenha sido determinante para a derrota de Kamala, é claro que a esquerda identitária americana atrapalhou muito a postulação da candidata democrata. Como diz o Yascha Mounk, trata-se de uma visão "paralela à visão de mundo tribalista que historicamente caracterizou a extrema-direita". Kamala, que namorou com essa visão ao concorrer as primárias democratas em 2019, não conseguiu se desvencilhar totalmente desses aloprados que propunham desfinanciar a polícia ou descriminalizar travessias ilegais de fronteira - embora ela não tenha feito mais isso na campanha eleitoral de 2024. Mas a nódoa ficou porque ela não enfrentou abertamente os fundamentos dessa visão antidemocrática e eleitoralmente suicida.

Tais razões, entretanto, são menores diante da influência da ascensão de um eixo autocrático, o mais poderoso já articulado em toda a história humana e da segunda grande guerra fria que já está em curso. De certo ponto de vista, os EUA, nas eleições de ontem, foram um palco dessa guerra, que não é mais a confrontação de dois blocos geograficamente demarcados, como foi a primeira guerra fria e sim um conflito fractal que pervade todas as fronteiras instalando polarizações que dividem as sociedades nacionais. Sem tal polarização, Trump não teria vencido. Mas esse é tema para um próximo artigo.

Notas

(1) Os EUA figuram em vigésimo-nono lugar do ranking de democracia da The Economist Intelligence Unit (2023).

(2) Entre os quais Hibatullah Azhundzada (do Afeganistão), Mohammad bin Salman (da Arábia Saudita), Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa (do Barein), Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani (do Catar), Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum (dos Emirados Árabes Unidos), Mohammed Ali al-Houthi (do Iémen), Abdullah II bin Al Hussein (da Jordânia), Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah (do Kuwait), Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib (da Líbia), Maomé VI e Aziz Akhannouch (do Marrocos), Haitham bin Tariq Al Said (de Omã), Hassan Sheikh Mohamud (da Somália), Abdel Fattah al-Burhan (do Sudão). 

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