A mitificação da democracia americana
Diz-se, com certa maledicência, que se a democracia americana fosse tão sólida como se costumava apregoar, não teria colocado, duas vezes, um charlatão para presidir a República. Essa vulnerabilidade revelaria uma fraqueza e isso teria a ver com a progressiva dilapidação do capital social acumulado pela sociedade americana. Faz sentido. Trump não é a causa da atual transição autocratizante do regime político americano: é apenas uma das consequências.
Por quê?
Isso tem a ver com a conversão tardia do regime americano à democracia: os EUA foram o quarto grande regime eleitoral que surgiu na história (em 1796, logo depois de Inglaterra e Irlanda em 1790 e da França em 1792), mas só viraram uma democracia eleitoral em 1921 (atrás de outros quatorze países, começando com a Suíça em 1849 e terminando com o Uruguai em 1920) (1).
Tem a ver também com o medo da democracia por parte dos chamados pais fundadores, sobretudo Hamilton e Madison, que preferiam uma república governável top down como a romana mais do que uma democracia auto-governável bottom up como a ateniense dos séculos 5 e 4 a.C.
Tem a ver com as disputas políticas que envolveram os Federalistas e John Adams contra Thomas Jefferson, o único democrata radical do pedaço.
Tem a ver com a mentalidade autoritária, isolacionista e imperialista, de importantes presidentes americanos do início do século 19, como James Monroe e o celerado Andrew Jackson.
Tem a ver com a morte no embrião do "governo civil" percebido por Alexis de Tocqueville na Nova Inglaterra na década de 30 do século 19.
Tem a ver com a centralização em Washington, a recorrência sistemática aos tribunais para resolver qualquer dilema banal da vida coletiva e com o complexo científico-industrial-militar que se erigiu em meados do século 20.
Cabe notar que a democracia eleitoral americana, já em si tardia, só adquire o status de democracia liberal em 1969, 120 anos depois da Suíça ter alcançado tal condição.
Então é bom baixar a bola nessa mitificação da democracia americana como a mais antiga, a mais perfeita e a mais consolidada do mundo.
Cada um dos pontos levantados acima precisaria ser analisado em profundidade:
O medo (e o desconhecimento) da democracia por parte dos pais fundadores.
A luta contra as concepções e práticas democráticas radicais de Thomas Jefferson, a recusa à sua reforma distrital baseada na instação das chamadas wards ou hundreds (repúblicas nos bairros) e a não compreensão do seu conceito de “common government” (2).
Os primeiros presidentes isolacionistas e imperialistas dos EUA (e a tentação de se comportarem como monarcas presidencialistas).
A morte no embrião do “governo civil” percebido por Tocqueville na Nova Inglaterra ou o início da dilapidação do capital social acumulado pela sociedade americana, com a centralização em Washington, a recorrência sistemática aos tribunais e a ereção do complexo científico-industrial-militar.
Notas
(1) No quadro abaixo podemos ver claramente as datas mencionadas de conversão dos regimes eleitorais à democracia.
(2) Jefferson mereceria uma consideração adicional. Os principais adversários de Thomas Jefferson foram os membros do Partido Federalista, liderados por figuras proeminentes como Alexander Hamilton e John Adams. Jefferson via esses oponentes não apenas como rivais políticos, mas como ameaças à própria natureza da república, descrevendo o conflito entre eles como uma luta fundamental entre diferentes visões do governo.
Alexander Hamilton foi o seu rival intelectual e político mais constante. Hamilton defendia um governo central forte, o que Jefferson considerava uma “depravação” e uma ameaça à independência dos cidadãos. John Adams, embora tenham retomado a amizade na velhice, foi um adversário feroz de Jefferson durante a década de 1790. Jefferson criticava a administração de Adams, especialmente por medidas como as Leis dos Estrangeiros e do Tumulto (Alien and Sedition Acts), que ele via como tentativas de reprimir a liberdade de expressão e fortalecer o poder executivo de forma autoritária.
Jefferson se opunha ao que chamava de “elite monárquica” e classificava muitos de seus oponentes como homens que admiravam excessivamente a constituição britânica e desejavam estabelecer um governo “forte” através de métodos de corrupção ou influência para ganhar o apoio popular, em vez de confiar no senso comum do povo.
Em razão de sua rejeição à autoridade das igrejas, Jefferson foi frequentemente atacado por líderes religiosos que o denunciavam como um “ateu gálico” ou um “infiel”. Enquanto os federalistas acusavam Jefferson de ser um agente da Revolução Francesa e de promover a anarquia, ele os acusava de serem “Tories” que queriam restaurar o privilégio hereditário.

