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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Timothy Snider analisa e desmantela o "plano de paz russo" contra a Ucrânia - Revista ID

Timothy Snider analisa e desmantela o "plano de paz russo" contra a Ucrânia - Revista ID


 1. A soberania da Ucrânia será confirmada.

Isso é grotesco. A Rússia invadiu a Ucrânia. A soberania da Ucrânia foi violada. O que será feito para reafirmar essa soberania? Sobre isso, o texto é pior do que silencioso. Os pontos subsequentes demonstram que a soberania ucraniana será, de fato, deliberadamente minada.

Na verdade, todo o documento, tanto em sua origem quanto em seus objetivos, representa a visão russa padrão de que a Ucrânia, de alguma forma, não é um Estado da mesma maneira que outros Estados.

2. Um acordo abrangente de não agressão será concluído entre a Rússia, a Ucrânia e a Europa. Todas as ambiguidades dos últimos 30 anos serão consideradas resolvidas.

Assim, em algum momento futuro, uma varinha mágica será acenada e todos os problemas serão resolvidos, porque agora está tudo estipulado dessa forma.

O mais interessante nessa estranha disposição é o inglês. Parece algo traduzido do russo. Em termos de conteúdo, a ideia de que “ambiguidades” “serão consideradas resolvidas” (isso soa como inglês para você?) não é apenas bizarra, mas totalitária. Em que mundo, exatamente, um acordo poderia resolver todas as ambiguidades?

Outro problema: as partes mencionadas já assinaram, todas elas, acordos e tratados legais que proíbem a agressão. Isso vale para todas elas coletivamente, bem como para a Rússia e a Ucrânia enquanto díade. A existência desses acordos juridicamente vinculativos não impediu a Rússia de invadir a Ucrânia em 2014 e 2022. A assinatura de mais um acordo pela Rússia para não invadir a Ucrânia em meio à sua invasão parece, no mínimo, vazia e cínica.

Ao que tudo indica, se essa disposição tem algum propósito, é de natureza propagandística. Em vez de começar (como um tratado de paz faria) com a guerra que de fato está acontecendo, ela começa com o tema preferido da Rússia, que são todas as queixas das últimas três décadas.

3. Espera-se que a Rússia não invada os países vizinhos e que a OTAN não se expanda ainda mais.

Aqui temos um exemplo gritante de russicismo: “é de se esperar” é uma forma reflexiva bastante usada em russo justamente dessa maneira. Vou evitar as implicações filosóficas dessas formulações — de que ninguém realmente assume a responsabilidade por nada — e ir direto ao propósito propagandístico deste ponto.

Espera-se que a Rússia não invada os países vizinhos. De quem? O que deve ser feito para impedir isso? O que fazer em relação à invasão russa em curso na Ucrânia? Ao apresentar a questão de forma hipotética e passiva, o autor pretende que o leitor ignore a dura realidade que deveria estar no cerne de qualquer tratado de paz: a Rússia está, de fato, invadindo um país vizinho neste exato momento.

A expectativa de que a OTAN “não se expandirá mais” introduz um argumento russo velado. A OTAN é uma organização de Estados soberanos que solicitam adesão. São eles os atores significativos, não a própria OTAN. Na visão de mundo oficial russa, existem grandes potências, como a Rússia e os Estados Unidos, e nada mais importa. A OTAN é vista como uma emanação do poder estadunidense, uma visão que faz com que os outros membros pareçam insignificantes ou inexistentes, não verdadeiramente soberanos.

E é precisamente nessa tradição que a Rússia, neste ponto, nega a soberania da Ucrânia. Um país soberano tem o direito de escolher seus aliados como bem entender. Este argumento consegue, sem mencionar a Ucrânia e sem mencionar a soberania, negar que a Ucrânia seja soberana. Isso anula qualquer significado que se possa ter tido e promove um importante interesse russo e, de fato, toda a visão de mundo do Kremlin.

4. Será realizado um diálogo entre a Rússia e a OTAN, com a mediação dos Estados Unidos, para resolver todas as questões de segurança e criar condições para a desescalada, a fim de garantir a segurança global e aumentar as oportunidades de cooperação e desenvolvimento econômico futuro.

Novamente, a ideia de que qualquer diálogo possa “resolver todas as questões de segurança” não faz sentido. Nenhum diálogo jamais conseguiu tal feito. E a Rússia teve todas as oportunidades para dialogar nos anos anteriores à invasão da Ucrânia em 2014, após essa invasão e até mesmo após a invasão de 2022. O objetivo deste argumento é insinuar que os Estados Unidos e a Rússia podem, por si só, decidir todas as questões na Europa.

5. A Ucrânia receberá garantias de segurança confiáveis.

Isso é obviamente sem sentido. Uma garantia de segurança é confiável na prática, não no papel. Nesta situação específica, isso significaria uma ação institucional e militar que desfizesse a atual ocupação russa e impedisse uma futura. Nada disso está especificado neste documento; e veremos que a tendência de tudo o que se segue é na direção oposta: facilitar a ação militar russa, tanto atual quanto futura. Observe novamente o uso da voz passiva: nada será feito, e nem sequer sabemos por quem nada será feito.

6. O tamanho das Forças Armadas da Ucrânia será limitado a 600.000 militares.

Qualquer país soberano pode determinar o tamanho de suas próprias forças armadas. Este ponto constitui uma violação óbvia e direta da soberania ucraniana e revela (mais uma vez) que o primeiro ponto está ali essencialmente para fins hipnóticos: a afirmação vazia no início de que a soberania ucraniana “será confirmada” visa impedir o leitor de perceber que todo o documento é um ditame dirigido à Ucrânia, que, obviamente, não foi consultada em sua elaboração.

E observe que não há limite para o tamanho das forças armadas russas.

7. A Ucrânia concorda em consagrar em sua constituição que não aderirá à OTAN, e a OTAN concorda em incluir em seus estatutos uma disposição segundo a qual a Ucrânia não será admitida no futuro.

Um pouco de história recente pode ser útil aqui, antes de chegarmos ao ponto óbvio de que isso também viola a soberania ucraniana. A OTAN não era popular na Ucrânia até a invasão russa em 2014. Depois disso, a OTAN, compreensivelmente, tornou-se atraente. Tornou-se ainda mais popular após a Rússia empreender a invasão em larga escala da Ucrânia em 2022. Em outras palavras, a OTAN nunca foi um problema até a Rússia torná-la um.

Algo semelhante pode ser dito sobre a Suécia e a Finlândia, que aderiram à OTAN porque a Rússia invadiu a Ucrânia.

Um país soberano tem a capacidade de escolher seus aliados. Desde a invasão de 2014, a Rússia tem feito repetidas e variadas exigências sobre o que a Ucrânia deveria incluir em sua constituição, o que tem sido uma das maneiras óbvias pelas quais a Rússia tem tratado a Ucrânia como algo menos que um Estado soberano.

Essa estrutura constitucional sugere uma origem russa. É difícil imaginar que um americano cogitaria interferir na constituição ucraniana.

8. A OTAN concorda em não estacionar tropas na Ucrânia.

Novamente, o ponto crucial aqui é a formulação. Observe que, mais uma vez, as coisas são feitas à Ucrânia, acontecem à Ucrânia, como se a própria Ucrânia não fosse soberana. É a Ucrânia que tem o direito soberano de decidir se países estrangeiros podem instalar tropas em seu território.

9. Caças europeus serão estacionados na Polônia.

Observe novamente a formulação peculiar. Quem os estacionará e por que exatamente na Polônia? E o que exatamente é um caça europeu? A Polônia fica na Europa e possui caças.

Mas provavelmente o que se quer dizer aqui é outra coisa: que os Estados Unidos não vão estacionar caças americanos na Polônia. Presumo que isso não tenha sido dito explicitamente para que os aliados da Rússia dentro do governo americano não tivessem que explicar por que os Estados Unidos estão fazendo essa concessão um tanto estranha.

O país invasor não está sendo solicitado a se conter de forma significativa. Não há nenhuma menção à Rússia cessar os combates, aos ataques a civis e à destruição de sua infraestrutura, à tortura ou à retirada da Ucrânia. Ucranianos, europeus e americanos estão sendo instruídos por uma Rússia que parece ter total liberdade de ação.

A direção do poder é extraordinária por si só. O que estamos lendo é uma exigência de capitulação por parte de um país que não está se saindo bem em uma guerra que ele mesmo iniciou. Jamais conseguiria obter algo sequer parecido com os termos deste acordo no campo de batalha. Para isso, precisa dos americanos.

10. A garantia dos EUA: Os EUA receberão compensação pela garantia; se a Ucrânia invadir a Rússia, perderá a garantia; se a Rússia invadir a Ucrânia, além de uma resposta militar decisiva e coordenada, todas as sanções globais serão restabelecidas, o reconhecimento do novo território e todos os outros benefícios deste acordo serão revogados; se a Ucrânia lançar um míssil contra Moscou ou São Petersburgo sem motivo, a garantia de segurança será considerada inválida.

Isso não faz sentido, já que a garantia de segurança americana não está definida. Observe, porém, que esse ponto pressupõe que as sanções contra a Rússia tenham sido revogadas. Em outras palavras, introduz a ideia de que todas as sanções econômicas contra a Rússia já terão sido removidas.

O que talvez seja mais significativo é a ideia, nova nas relações internacionais, de que os Estados Unidos são uma espécie de entidade mafiosa, paga para fornecer uma “proteção” indefinida, em vez de um Estado, um país ou um povo com interesses, aliados e amigos. Presumo que os russos tenham entendido o quão humilhante isso parece para os americanos.

11. A Ucrânia é elegível para adesão à UE e receberá acesso preferencial de curto prazo ao mercado europeu enquanto esta questão estiver sendo analisada.

A Ucrânia é elegível para adesão à UE independentemente de tudo.

O único sentido implícito neste ponto é a sugestão implícita (”está sendo considerado”, observe novamente a estranha construção passiva) de que países fora da União Europeia deveriam ter permissão para participar de algumas das considerações. Este documento, que é puramente russo ou russo com alguma contribuição de americanos, não reflete nenhuma consulta aos Estados-membros da União Europeia ou à Comissão Europeia.

12. Um pacote global robusto de medidas para a reconstrução da Ucrânia, incluindo, entre outras: a criação de um Fundo de Desenvolvimento da Ucrânia para investir em setores de rápido crescimento, como tecnologia, centros de dados e inteligência artificial; a cooperação dos Estados Unidos com a Ucrânia para reconstruir, desenvolver, modernizar e operar conjuntamente a infraestrutura de gás do país, incluindo gasodutos e instalações de armazenamento; esforços conjuntos para a reabilitação de áreas afetadas pela guerra, visando a restauração, reconstrução e modernização de cidades e áreas residenciais; desenvolvimento de infraestrutura; e extração de minerais e recursos naturais. O Banco Mundial desenvolverá um pacote de financiamento especial para acelerar esses esforços.

Essas promessas estão sendo feitas por um país (a Rússia) que destruiu grande parte da Ucrânia e por outro (os Estados Unidos) que destruiu as instituições de seu próprio governo que seriam capazes de implementar tais políticas.

Isso sugere fortemente que se trata de atores privados, o que em si não é algo ruim. Parte da reconstrução da Ucrânia — além da cooperação com o governo central, os governos regionais e a sociedade civil — certamente envolverá o setor privado.

Mas neste documento em particular, que parece estar menos associado ao governo americano em si do que a investidores americanos específicos, há motivos para preocupação – preocupação que será ampliada abaixo, nos pontos 13 e 14.

13. A Rússia será reintegrada à economia global: O levantamento das sanções será discutido e acordado em etapas e caso a caso. Os Estados Unidos firmarão um acordo de cooperação econômica de longo prazo para o desenvolvimento mútuo nas áreas de energia, recursos naturais, infraestrutura, inteligência artificial, centros de dados, projetos de extração de metais de terras raras no Ártico e outras oportunidades corporativas mutuamente benéficas. A Rússia será convidada a retornar ao G8.

É preocupante que os americanos envolvidos na elaboração deste documento, supondo que tenha havido algum, pareçam mais versados ​​em como se pode ganhar dinheiro com a Rússia do que em quaisquer questões substantivas relevantes para a busca da paz.

Do lado russo, observe a tentativa tipicamente dramática de ignorar a questão óbvia e fundamental: as reparações de guerra. Durante uma guerra completamente ilegal, a Rússia infligiu centenas de bilhões, ou mais provavelmente trilhões, de dólares em danos, sem mencionar quaisquer penalidades a serem pagas por todas as mutilações e mortes ilegais.

14. Os fundos congelados serão utilizados da seguinte forma: US$ 100 bilhões em ativos russos congelados serão investidos em iniciativas lideradas pelos EUA para reconstruir e investir na Ucrânia; os EUA receberão 50% dos lucros dessa iniciativa. A Europa contribuirá com US$ 100 bilhões para aumentar o montante de investimentos disponíveis para a reconstrução da Ucrânia. Os fundos europeus congelados serão descongelados. O restante dos fundos russos congelados será investido em um veículo de investimento conjunto EUA-Rússia que implementará projetos em áreas específicas. Esse fundo terá como objetivo fortalecer as relações e aumentar os interesses comuns, criando um forte incentivo para evitar o retorno ao conflito.

Chegamos ao ponto do documento, nos itens 13 e 14, em que a Rússia está sendo recompensada pela invasão; a intenção é que não percebamos que literalmente nada foi mencionado que pudesse influenciar o fim da guerra ou garantir que a Rússia não invadisse novamente imediatamente.

Os ativos russos foram congelados porque a Rússia empreendeu uma guerra criminosa. Até o momento, nada neste documento impede essa guerra. Não há menção à retirada de tropas russas da Ucrânia, nem à disposição das tropas russas dentro da Rússia, nem ao armamento russo, nem a qualquer informação relevante sobre o comportamento russo. Neste ponto, o que vemos são duas coisas: os ativos russos serão descongelados e alguns deles serão entregues aos americanos. Os leitores podem não saber que esses ativos estão, em sua maioria, localizados na Europa. Portanto, isso equivale a retirar dinheiro russo congelado de bancos europeus e entregá-lo aos americanos.

A linguagem usada em relação a um veículo de investimento europeu-russo tem um quê de suborno: os russos pegam dinheiro que estava congelado por causa de crimes horríveis, e que sem a ajuda americana eles nunca mais veriam, e o repassam aos americanos — em troca de muito mais dinheiro — e de uma vitória na guerra contra a Ucrânia que eles não teriam conseguido sem a ajuda americana.

Infelizmente, esse ponto sugere fortemente uma troca de favores em que a Ucrânia é traída por alguns indivíduos americanos.

15. Será criado um grupo de trabalho conjunto americano-russo sobre questões de segurança para promover e garantir o cumprimento de todas as disposições deste acordo.

Isso não tem significado nenhum. É só um papo furado para fazer o resto parecer mais normal.

16. A Rússia consagrará em lei sua política de não agressão em relação à Europa e à Ucrânia.

Isso não tem significado. A Rússia já o fez ao assinar tratados, os quais desrespeitou completamente. O único caminho para a não agressão russa é uma Ucrânia forte.

17. Os Estados Unidos e a Rússia concordarão em estender a validade dos tratados sobre a não proliferação e o controle de armas nucleares, incluindo o Tratado START I.

Isso é confuso. O primeiro tratado sobre redução de armas nucleares foi notável. Ele expirou há dezesseis anos. Talvez os autores russos estivessem apenas zombando de seus parceiros americanos, presumindo que nenhum deles saiba nada sobre a história das relações EUA-URSS ou sobre o controle de armas.

18. A Ucrânia concorda em ser um Estado não nuclear, em conformidade com o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares.

Algo muito importante está acontecendo nesta frase. Precisamos dar um passo atrás para entendê-la. O mais fácil seria dizer que se trata apenas de mais um erro bobo sobre tratados, já que a Ucrânia, obviamente, já é membro do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Mas o Ponto 18 não é um erro. É uma tentativa deliberada de reformular talvez a questão mais importante da guerra, pelo menos para o mundo em geral: o risco de uma guerra nuclear.

Em resposta a qualquer disposição como esta, os ucranianos lembrarão ao mundo que, na verdade, concordaram em renunciar a todas as suas armas nucleares em 1994, em troca de garantias de segurança dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Federação Russa. Assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear como uma potência não nuclear. Entregaram à Rússia bombardeiros de longo alcance que a Rússia agora usa para matar ucranianos.

O ponto 18 implica — insinua no subconsciente do leitor — a ideia de que a Ucrânia jamais fez algo assim. Isso é extremamente injusto para os ucranianos, que foram invadidos por um dos países que emitiram essas garantias de segurança.

Mas é pior do que injusto: empurra toda a questão para o reino do irreal, o que é outra especialidade russa. Se aceitarmos que vivemos num mundo em que a Ucrânia nunca assinou o tratado, então podemos esquecer o Memorando de Budapeste de 1994, em que a Ucrânia deu um passo histórico para a paz e foi terrivelmente punida por isso pelo seu vizinho russo.

E jamais levaremos em consideração uma das maneiras fundamentais pelas quais este documento é perigoso.

O leitor, ou um americano ingênuo, pode esquecer que a Ucrânia abdicou de suas armas nucleares, mas líderes do mundo todo sabem disso. Eles estão acompanhando esta guerra e tirando lições. Se a Ucrânia for vista como tendo se defendido e vencido esta guerra, então não haverá necessidade de os países não nucleares construírem armas nucleares. Mas se a Ucrânia for vista como tendo perdido a guerra, então países da Ásia e da Europa se sentirão compelidos a construir suas próprias armas nucleares.

Essa é a verdadeira questão nuclear em jogo quando consideramos o formato da paz na Ucrânia. Queremos gerar proliferação nuclear ou queremos desencorajá-la? Este ponto, habilmente, sufoca essa questão — mentalmente — antes mesmo que ela surja. Mas, se um acordo como esse for de fato concretizado, armas nucleares reais serão construídas em todo o mundo e uma guerra nuclear real se tornará mais provável.

19. A usina nuclear de Zaporizhzhia será inaugurada sob a supervisão da AIEA, e a eletricidade produzida será distribuída igualmente entre a Rússia e a Ucrânia — 50:50.

Novamente, o termo “lançada” sugere algum tipo de problema com a tradução do russo original. Uma usina nuclear não é algo que se lança. A disposição legal não significa muita coisa — a AIEA deveria supervisionar usinas nucleares em geral. A usina está sob ocupação russa. Essa ocupação, claro, é a questão central.

20. Ambos os países comprometem-se a implementar programas educativos nas escolas e na sociedade com o objetivo de promover a compreensão e a tolerância às diferentes culturas e eliminar o racismo e o preconceito: a Ucrânia adotará as normas da UE sobre tolerância religiosa e proteção das minorias linguísticas. Ambos os países concordam em abolir todas as medidas discriminatórias e garantir os direitos dos meios de comunicação e da educação ucranianos e russos. Toda a ideologia e as atividades nazistas devem ser rejeitadas e proibidas.

Novamente, é preciso dar um passo atrás para compreender toda a reformulação que está acontecendo aqui. A Rússia invadiu a Ucrânia. Durante essa invasão, roubou artefatos de museus ucranianos, queimou livros ucranianos e sequestrou crianças ucranianas. Ucranianos estão presos em prisões russas como prisioneiros políticos. Ucranianos feitos prisioneiros de guerra são forçados a lutar contra seu próprio país até serem mortos. Na Rússia, a própria palavra e o conceito de Ucrânia foram removidos dos livros escolares. A Rússia empreendeu um programa de violência abrangente para destruir a cultura ucraniana e tem sido bastante aberta sobre isso. Nada aqui aborda esses danos.

A referência à “ideologia nazista” também merece uma análise cuidadosa. A posição da Rússia é que tudo o que é ucraniano é nazista e que nada do que a Rússia faz pode ser interpretado como nazista. Isso, por si só, é indefensavelmente bizarro: a Rússia é o principal estado fascista do mundo, e a Ucrânia é uma democracia com um presidente judeu. Mas a palavra “nazista”, para as autoridades russas, é simplesmente uma arma usada para justificar a destruição da cultura ucraniana. “Todas as medidas discriminatórias” são presumivelmente uma tentativa de forçar a Ucrânia a permitir que o Estado russo transmita conteúdo da mídia russa dentro do país.

21. Territórios: A Crimeia, Luhansk e Donetsk serão reconhecidas como territórios russos de facto, inclusive pelos Estados Unidos. Kherson e Zaporizhzhia serão congeladas ao longo da linha de contato, o que implicará reconhecimento de facto nessa mesma linha. A Rússia renunciará a outros territórios acordados que controla fora das cinco regiões. As forças ucranianas se retirarão da parte do Oblast de Donetsk que atualmente controlam, e essa zona de retirada será considerada uma zona tampão neutra e desmilitarizada, reconhecida internacionalmente como território pertencente à Federação Russa. As forças russas não entrarão nessa zona desmilitarizada.

Aceitar e recompensar a agressão, que é a essência deste ponto, viola a letra do direito internacional e anula seus propósitos mais elementares.

O terceiro subponto não tem sentido, pois não foram especificados tais territórios.

Há algo maliciosamente errado na formulação dos dois primeiros subpontos. Reconhecer algo de facto não é realmente reconhecê-lo.

Por exemplo, se você roubar meu carro, de fato, você o possui. Mas seria um exagero me pedir para escrever uma carta reconhecendo que você, de fato, possui meu carro. Coisas que são de fato são coisas que não gostamos, mas que, por ora, não podemos mudar — embora possam ser ilegais. De jure, esse carro é meu. De jure, os territórios pertencem à Ucrânia. Incluir em um documento que a ocupação de fato é de alguma forma “reconhecida” provavelmente visa confundir a situação e criar a impressão de que, na verdade, a ocupação é de jure. Essas declarações sobre “reconhecido como russo de fato” são como eu dizer que meu carro é “reconhecido como sendo seu de fato”. Ao dizer isso, eu talvez não esteja renunciando ao meu direito legal — de jure — ao meu carro, mas seria estranho da minha parte. Isso parece já ocorrer no quarto subponto, que já caracteriza os territórios ucranianos como “internacionalmente reconhecidos” como russos.

Os territórios em questão também são importantes. A Ucrânia está sendo pressionada a se retirar de importantes áreas na região de Donetsk que, de fato, controla e que a Rússia não conseguiu tomar. A Rússia invadiu o Donbas há onze anos e ainda não controla toda a região. Grande parte do que não controla está fortemente fortificada. A simples entrega dessas terras à Rússia deixaria a Ucrânia muito mais vulnerável a uma futura invasão russa.

Neste ponto, assim como em todo o documento, a Rússia está sendo recompensada por invadir a Ucrânia.

22. Após concordarem com os futuros arranjos territoriais, tanto a Federação Russa quanto a Ucrânia comprometem-se a não alterar esses arranjos pela força. Quaisquer garantias de segurança não serão aplicáveis ​​em caso de violação deste compromisso.

A primeira frase parece sugerir que a Rússia pode continuar a guerra até ficar satisfeita e, em seguida, obrigar a Ucrânia a não fazer nada a respeito. Observe a palavra “futuro”. Claro, é possível que aqui tenhamos novamente um problema de tradução do russo.

23. A Rússia não impedirá a Ucrânia de usar o rio Dnieper para atividades comerciais, e serão alcançados acordos sobre o livre transporte de grãos através do Mar Negro.

Em inglês, a grafia deste rio é Dnipro. Observe a grafia russa.

A primeira frase, se lida com atenção, não promete muito. A Ucrânia pode usar suas próprias vias navegáveis ​​em seu próprio território soberano da maneira que bem entender; a formulação sugere, em vez disso, que a Rússia tem algum tipo de influência sobre essa questão, o que não é verdade. O que essa frase realmente deveria nos lembrar é o seguinte: com exceção dessa promessa muito limitada no ponto 23, a Rússia não se compromete neste texto a fazer nada de específico para cessar as hostilidades ou torná-las menos prováveis ​​no futuro.

24. Será criado um comitê humanitário para resolver as questões pendentes: Todos os prisioneiros e corpos restantes serão trocados na proporção de “todos por todos”. Todos os civis detidos e reféns serão devolvidos, incluindo crianças. Um programa de reunificação familiar será implementado. Serão tomadas medidas para aliviar o sofrimento das vítimas do conflito.

Parte disso já está acontecendo. O restante seria desejável, é claro. Mas, obviamente, essa postura neutra é extremamente enganosa. A Rússia invadiu a Ucrânia e sequestrou dezenas de milhares de crianças.

25. A Ucrânia realizará eleições em 100 dias.

Novamente, observe que a Ucrânia precisa fazer algo, e que não há qualquer indício de que a Rússia também deva fazer algo.

A Rússia não realiza eleições livres há duas décadas. A Ucrânia, por outro lado, já teve uma série delas. Portanto, essa formulação sugere que existe um problema onde não existe, e ignora a questão central e bastante evidente da ditadura russa.

A Rússia vem argumentando, por vezes de forma antissemita, que o atual presidente ucraniano não é de fato legítimo, não é real, é apenas um fantoche, etc. Ele tem sido alvo de propaganda russa há anos. Mas, ao contrário do presidente russo, ele foi eleito em eleições livres e justas. Essa questão foi escolhida para que os russos pudessem ver esse conflito terminando com a vitória do seu candidato sobre o candidato do outro lado.

E a questão é tão básica que vale a pena repetir: a Ucrânia é um país soberano, com seus próprios mecanismos para eleições. Elas não podem ser realizadas legalmente agora, durante a lei marcial. Quando a lei marcial for suspensa — quando a guerra realmente terminar — elas serão realizadas.

Este acordo não porá fim à guerra e foi concebido para obrigar a Ucrânia a realizar eleições sob pressão russa durante uma guerra com a Rússia.

26. Todas as partes envolvidas neste conflito receberão anistia total por suas ações durante a guerra e concordam em não apresentar quaisquer reivindicações ou considerar quaisquer queixas no futuro.

Todas as partes envolvidas neste conflito? Isso parece conferir imunidade legal a todos na Rússia e na Ucrânia por tudo o que fizeram ao longo dos últimos onze anos. O que, por si só, é estranho.

Inúmeras vezes, crimes de guerra russos muito específicos foram documentados: a própria guerra como uma guerra de agressão, as deportações de ucranianos, especialmente crianças, o assassinato de civis e prisioneiros de guerra, a tortura. Esses são crimes de acordo com o direito internacional. É evidente que isso não deve ser esquecido. Na prática, a lei não é determinada por russos e americanos, que não podem conceder anistia em nome de organizações internacionais ou outros países.

27. Este acordo será juridicamente vinculativo. Sua implementação será monitorada e garantida pelo Conselho da Paz, presidido pelo Presidente Donald J. Trump. Sanções serão impostas em caso de violação.

Ainda não existe um Conselho de Paz, e não está claro como ele poderia monitorar e garantir essa massa de impossibilidades, contradições e ilegalidades.

Nenhuma pessoa sozinha pode ser nomeada chefe de uma instituição que se destina a ser permanente.

Vemos aqui, no entanto, uma sugestão do problema processual básico que mencionei no início: parece haver alguns americanos que pensam que fazer um “acordo” rápido e dar crédito ao presidente é uma maneira de atingir seus objetivos pessoais, e cuja ânsia em tudo isso os permitiu delegar o texto propriamente dito aos russos.

28. Assim que todas as partes concordarem com este memorando, o cessar-fogo entrará em vigor imediatamente após ambas as partes se retirarem para os pontos acordados para iniciar a implementação do acordo.

Que cessar-fogo? Literalmente nada foi dito sobre isso.

Não há clareza sobre como esse texto entraria em vigor, ou mesmo que tipo de status ele teria (o ponto anterior não fornece essa informação).

Grande parte do que teria de acontecer após um cessar-fogo exigiria a participação da Ucrânia e da Europa. Mas nenhum ucraniano ou outro europeu esteve envolvido na elaboração deste texto. Ucranianos e europeus teriam de ser partes em qualquer acordo concreto.

Chegamos ao fim, e as questões executivas fundamentais não foram abordadas. Quem são os partidos? Não sabemos.

Essas disposições violam dezenas de leis e tratados já em vigor. Como isso será resolvido?

Enquanto escrevo, europeus, ucranianos e americanos estão reunidos em Genebra. É importante compreender que este texto não pode ser visto como um quadro para um acordo de paz, mesmo que, para fins diplomáticos, possa ser apresentado dessa forma.

Mas talvez sirva de estímulo para algo muito melhor. E como um lembrete de como as políticas públicas não devem ser feitas.

sábado, 10 de maio de 2025

A Revolução pela Corrupção do PT - Augusto de Franco (Revista ID)

 Dependência da corrupção e aproximação com ditaduras

A verdadeira natureza do PT

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O pior problema do lulopetismo não é que ele tenha a mais extensa folha corrida de corrupção da história universal em democracias. Muito mais grave do que isso é que Lula, o PT e seu governo se aliam às maiores ditaduras do planeta contra as democracias liberais.

Há um problema histórico de corrupção. Mas o mensalão e o petrolão não levaram a um arrependimento do PT. Os lulopetistas achavam que tinham direito de fazer o que fizeram pois o objetivo final era nobre: financiar seu projeto de poder que tinha como propósito acabar com a desigualdade. Era "a revolução pela corrupção", como cunhou o saudoso Ferreira Gullar.

Para remover essa mancha do seu caráter teria de haver arrependimento, autocrítica, correção de rumos e afastamento dos dirigentes envolvidos. O PT fez o contrário: negou tudo e manteve os implicados em posições de destaque no partido (e alguns até no governo).

Com esse comportamento é mesmo impossível se desvencilhar da dependência da trajetória. É o que estamos vendo agora com o caso do roubo dos aposentados. O governo do PT sabia há tempos do roubo dos aposentados. Não fez nada porque, entre os ladrões, estavam vários apaniguados da patota sindicalista. Agora, que o escândalo veio a público, está mentindo que foi ele que revelou o assalto. Pode-se dizer que isso é o batom na cueca. Não, por certo, o batom da Débora, condenada a quase 15 anos de prisão por ter pichado uma estátua. Mas a cueca lembra, com certeza, a daquele assessor do José Guimarães, líder do governo na Câmara.

O Sindnapi (Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos), que tem como vice-presidente “Frei Chico”, irmão de Lula, chegou a incluir 3,2 mil novos filiados por dia. Dados da CGU mostram que, em julho de 2023, o sindicato do irmão do Lula incluiu 67,2 mil novos aposentados em seus sistemas de descontos e em junho do ano passado foram outras 63,1 mil novas inclusões potencialmente ilegais. Impossível não levantar a hipótese de que esse tipo de sindicalismo (lulopetista) é uma forma de banditismo.

O governo Lula III - seguindo a tradição dos governos Lula I, Lula II, Dilma I e Dilma II - compactua com esse tipo de comportamento. Diz que vai investigar e punir os responsáveis, doa a quem doer. Mas as evidências não confirmam tal vontade. A AGU de Lula deixou de fora dos pedidos de bloqueio de recursos e quebra de sigilo as entidades aparelhadas pelo PT. Livrou a CONTAG que recebeu R$ 426 milhões em 2023 porque sua presidente é petista. Livrou o SINDNAPI ("sindicato dos aposentados") que tem como diretor Frei Chico, o irmão de Lula. Livrou o CONAFER (agricultores familiares) cuja receita superou os R$ 202,3 milhões em 2023. É o que leio na imprensa. Não sou da Polícia Federal, nem do FBI ou da CIA.

Sim, o PT tem um imenso histórico de corrupção. Mas pouca gente entendeu (sobretudo os lavajatistas) que: 

1) O PT praticou a corrupção tradicional do sistema político (simbolizado pelo famoso "caixa 2", aquele que se faz para eleger representantes e, com as sobras, para enriquecer e se dar bem na vida) e a corrupção com motivos estratégicos de poder (o "caixa 3", desviando recursos para financiar um Estado paralelo que tinha como objetivo delongar a presença do partido no governo até tomar o poder). 

2) O problema principal do PT não é a corrupção e sim o populismo, o antipluralismo e o hegemonismo que são contra-liberais e, quando praticados por tempo suficiente, autocratizam o regime democrático alterando por dentro o seu DNA. 

Mas pouca gente percebeu tudo isso porque o PT escondeu sua corrupção estratégica dentro da corrupção tradicional, depositando seus ovos na carcaça podre do velho sistema político. Assim, ficou parecendo que Lula era a mesma coisa que Cabral, que Dirceu era mais ou menos igual a Cunha, que Vaccari era uma espécie de Geddel. Nunca foram. Não são. Nunca serão.

Esse caráter autocrático ou autocratizante do PT, entretanto, não é em geral tão percebido, a despeito da montanha de evidências. Vejamos algumas.

1 - Lula, o PT e o governo se proclamam democratas e até mesmo salvadores da democracia. Se é assim, por que o Brasil não se articula com as democracias plenas ou liberais das Américas (como Canadá, Costa Rica, Uruguai e Chile)? Por que prefere se aproximar dos regimes eleitorais parasitados por governos populistas que se dizem de esquerda (como México, Honduras, Colômbia, Bolívia)? Pior. Por que o Brasil se aproxima de ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela e Nicarágua)?

2 - Lula, o PT e o governo e seus esbirros na imprensa se autoelogiam por estarem empenhados em articular o BRICS. Mas entre os 10 membros plenos do BRICS, 80% são ditaduras. Entre os 9 membros parceiros do BRICS, 78% são ditaduras. Nas duas categorias, 79% são ditaduras. Nelas não há nenhuma democracia liberal ou plena. O que o Brasil - se quer ser uma democracia plena - está fazendo no BRICS?

3 - Lula, o PT e o governo e seus esbirros na imprensa, dizem que a democracia liberal está ameaçada pelo crescimento da extrema-direita e aí citam Trump, Le Pen, Orbán, Bukele, Milei, Bolsonaro, Weidel (AfD), Ventura, Abascal, Farage, Wilders etc. É engraçado que não citam Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un, Lukashenko, Cuòng (Vietnam), Sisoulith (Laos), Khamenei (Irã e seus braços terroristas Hamas, Hezbollah, Houthis), Lourenço, Canel, Maduro, Ortega. Esses ditadores da segunda lista (alguns declaradamente de esquerda ou socialistas) não ameaçam a democracia?

Existem mais evidências. 

4 - Neste exato momento Lula está na Rússia, representando o Brasil na Parada da Vitória promovida pelo ditador Putin. Não estará presente no convescote nenhuma democracia liberal ou plena. Não estará presente nenhuma democracia formal, mesmo defeituosa, com exceção do Brasil (e dos países satélites da Rússia, como a Eslováquia e a Sérvia). Cerca de 90% dos convidados presentes são ditadores que foram a Moscou ajudar a recuperar a imagem de Putin e aplaudir o desfile de tropas que invadiram ou invadirão a Ucrânia. O que o Brasil está fazendo nessa caterva? O que justifica tal comportamento a não ser dar uma demonstração clara para o mundo de que o Brasil se aliou ao eixo autocrático contra as democracias liberais?

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terça-feira, 29 de abril de 2025

É uma vergonha democratas não criticarem o BRICS - AUGUSTO DE FRANCO (Revista ID)

 É uma vergonha democratas não criticarem o BRICS


BRICS Brasil - Português (Brasil)

É inacreditável – e inaceitável – que não haja uma oposição democrática no Brasil criticando o governo Lula por participar e querer até liderar o BRICS.

O BRICS, originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia e China em 2009 (com a adesão da África do Sul em 2010), expandiu-se significativamente em 2024 e 2025. Deixou de lado o disfarce de bloco econômico e assumiu seu objetivo político de aumentar a influência do Sul Global (uma espécie de terceiro-mundismo requentado) no combate ao imperialismo norte-americano e o neocolonialismo europeu, quer dizer, em oposição à ordem internacional liberal e às democracias liberais.

QUEM SÃO OS PAÍSES BRICS

Em 2025, o BRICS é composto por membros plenos e países parceiros, conforme detalhado abaixo, com base em informações recentes e confiáveis:

Membros Plenos do BRICS

Os países que atualmente são membros plenos do BRICS, com direito a participar de todas as reuniões e tomar decisões por consenso, são:

Brasil – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista.

Rússia – Autocracia eleitoral.

Índia – Autocracia eleitoral.

China – Autocracia fechada.

África do Sul – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista. (Por erro ou vezo ideológico o V-Dem promoveu a África do Sul à democracia liberal no seu relatório de 2025, mas é melhor ignorar esse percalço).

Egito (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral.

Etiópia (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral.

Irã (aderiu em 2024) – Autocracia fechada.

Emirados Árabes Unidos (aderiu em 2024) – Autocracia fechada.

Indonésia (aderiu em janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral.

Nota: A Arábia Saudita (Autocracia fechada) foi convidada a se tornar membro pleno em 2023, mas sua adesão ainda não foi oficialmente confirmada, embora algumas fontes indiquem que ela já participa como membro.

Não há nenhuma democracia liberal (V-Dem) no BRICS. Não há nenhuma democracia plena (The Economist Intelligence Unit) no BRICS.

Entre os 10 membros plenos do BRICS, 8 (80%) são ditaduras.

Países Parceiros do BRICS

Os países parceiros são uma categoria criada em 2024, durante a Cúpula de Kazan, na Rússia, para integrar nações em um estágio preliminar antes da possível adesão como membros plenos. Esses países participam de cúpulas e reuniões temáticas, mas não têm direito a voto ou aprovação de documentos. Os atuais países parceiros, confirmados a partir de janeiro de 2025, são:

Belarus – Autocracia eleitoral.

Bolívia – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista.

Cazaquistão – Autocracia eleitoral.

Cuba – Autocracia fechada.

Malásia – Democracia eleitoral, flawed.

Nigéria (confirmada como parceira em 17 de janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral.

Tailândia – Autocracia eleitoral.

Uganda – Autocracia eleitoral.

Uzbequistão – Autocracia fechada.

Entre os 9 membros parceiros do BRICS, 7 (78%) são ditaduras.

Nota sobre outros países convidados

Durante a Cúpula de Kazan, em outubro de 2024, 13 países foram convidados a se tornarem parceiros, mas apenas os nove listados acima confirmaram sua participação até janeiro de 2025. Os outros quatro países convidados — Argélia (Autocracia eleitoral), Turquia (Autocracia Eleitoral), Vietnã (Autocracia fechada) e Nigéria (antes de sua confirmação em janeiro) — não haviam respondido formalmente até o final de 2024, e Argélia, Turquia e Vietnã ainda não confirmaram sua adesão como parceiros até abril de 2025.

Nenhuma democracia liberal, nenhuma democracia plena

Mais de 30 países expressaram interesse em participar do BRICS, seja como membros ou parceiros. Nenhuma democracia liberal (V-Dem) se interessou. Nenhuma democracia plena (The Economist Intelligence Unit) se interessou.

Conclusão

O BRICS é uma articulação política (inicialmente disfarçada de bloco econômico) composta majoritariamente por ditaduras (79%). O BRICS é hoje um instrumento do eixo autocrático contra as democracias liberais.

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quarta-feira, 19 de março de 2025

Em defesa dos conservadores (uma lição de democracia, liberalismo, conservadorismo e outras coisas mais) - Augusto de Franco (revista ID)

Em defesa dos conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

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Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

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domingo, 16 de março de 2025

A raiz do realismo político - Augusto de Franco (revista ID)

A raiz do realismo político

Capítulo 33 do livro “Como as democracias nascem” (Franco, Augusto. São Paulo: Casas da Democracia, 2023)

“A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal”.

O realista Kissinger (1994), em Diplomacy, interpretando o pensamento de Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro”.

O realismo político acabou virando uma vertente de política externa ou internacional. Não nasceu assim, porém. Nasceu como um pensamento antipolítico, para efeitos, na verdade, internos.

Há uma tradição autocrática no pensamento político. É essa tradição que constitui o chamado realismo político. Começa com Platão, passa por Maquiavel, Hobbes, pelo Cardeal Richelieu, por Clausewitz, pelos chamados “políticos do poder”, como Metternich e Bismarck e vários outros até chegar aos realistas modernos como Schmitt, Morgenthau e Carr e aos contemporâneos, como, para citar apenas alguns exemplos, Brzezinski, Genscher, Ross, Kissinger e o novo crush dos autocratas de direita e de esquerda chamado John Mearsheimer. Este artigo é sobre isso. Mas não vai comentar exaustivamente as ideologias desses autocratas e sim apenas chamar a atenção para alguns padrões antidemocráticos que estão presentes nos seus pensamentos.

PLATÃO

Podemos dizer – sem medo de errar – que o realismo político nasceu com Platão, quer dizer, tem a ver com os fundamentos dos regimes de Esparta, Creta e Siracusa – não com os fundamentos do regime que vigorou em Atenas nos séculos 5 e 4 a.C. Sua raiz é dória, não jônia. E as tentativas de atribuí-lo originalmente a Tucídides são inconsistências inventadas por acadêmicos americanos.

Platão, nas Leis (626a), escreveu que “na realidade, por questões de natureza (φύσις), todas as póleis vivem envolvidas em um estado de guerra velada”. Bem… aí com certeza começou, no plano teórico, o chamado realismo político. O primeiro problema dessa afirmação platônica não é constatar que as póleis (entendidas erroneamente como cidades-Estado) vivem em estado de guerra e sim achar que isso ocorre por algum tipo de deteminação natural, da phýsis, como qualidade ou propriedade constitutiva de todas as coisas ou sua maneira de ser. O segundo problema é não ver que a pólis, numa democracia (onde Platão vivia, embora a ela se contrapusesse), não é a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu Hannah Arendt (1958), em A condição humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses”.

Avancemos agora pouco mais de dois milênios para constatar como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Hans Morgenthau (1948), um dos principais teóricos do realismo político, acreditava que “a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza humana”. Eis aí, desnudado, o pressuposto ideológico platônico antipolítico. Natureza humana é uma natureza (não, com perdão do neologismo, uma “socialeza”). Natureza, Deus ou História (tudo assim com maiúsculas) dá no mesmo. É uma instância extra-política determinando a política a despeito da interação propriamente política entre as pessoas. Se há algo infenso à política, determinando a política, não pode haver democracia.

Bastaria dizer isso. Mas partamos de uma definição, quase escolar, de realismo político antes de examinar os pensamentos de alguns realistas políticos.

REALISMO POLÍTICO É GUERRA

Em poucas palavras e simplificando ao máximo (o que não é tão inadequado, pois suas construções intelectuais são simplórias), o realismo político parte da constatação de que, não havendo uma instância normativa no plano internacional (uma autoridade máxima à qual os Estados devam se submeter), cada Estado – sim, todo realismo é um estatismo: o sujeito é sempre o Estado, a sociedade é um dominium do Estado – deve garantir a sua própria segurança, agindo em nome de um interesse nacional.

Em nome desse interesse nacional, definido pelo próprio Estado, cada ator deve lutar para aumentar o seu poder (em geral traduzido como capacidade militar, mas não só), para impor sua vontade a Estados mais fracos. Cada Estado deve então decidir por si mesmo se e quando vai usar sua força para alcançar seus objetivos (ou realizar seus interesses).

A colaboração entre Estados, no limite, leva a abrir flancos perigosos, pois o aliado de hoje pode se tornar o inimigo de amanhã (o que é bem resumido na máxima autocrática: “os aliados lhe enfraquecem, os inimigos lhe fortalecem”).

Como não há democracia no plano internacional, não há lei (quer dizer, império da lei) ou critério ético-político a que um Estado deva se submeter. Logo, a única maneira de garantir a sobrevivência do Estado como entidade é organizar-se para se defender de um possível ataque de outros Estados.

Para garantir a paz (entendida como manutenção da integridade do Estado) é necessário se preparar para a guerra por meio da defesa (e por isso toda defesa é guerra preemptiva). E como o sistema é competitivo, a única maneira de evitar a guerra é alcançar um equilíbrio de forças que desestimule, por medo da retaliação, que um Estado faça guerra contra outro e o destrua.

Bem, trata-se de uma definição quase escolar, mas nem por isso incorreta. Pelo menos deixa claro que falar do realismo é falar de guerra. Não, não é falar de outra coisa. É o óbvio. Mas agora vem uma inferência não tão óbvia: toda guerra é interna. Este é o primeiro ponto a ser entendido. Para entendê-lo, porém, é preciso balançar algumas certezas.

Para começar, guerra não é o conflito. É um modo de regular o conflito. E guerra não é o conflito violento. Pode ser praticada sem violência (física), como guerra fria e como política adversarial (a política como continuação da guerra por outros meios).

Depois é preciso ver que guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos (tanto faz se for a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de Orwell).

Em seguida é necessário entender que a guerra não tem como objetivo principal derrotar um país estrangeiro a não ser na medida em que isso puder ser usado para instalar internamente um ‘estado de guerra’ (não adianta derrotar um inimigo externo se não se derrotar os inimigos internos, quer dizer, se a força política que está no poder de Estado não continuar estabelecendo sua supremacia). O objetivo da guerra – para quem a faz (e como dizia Maturana, “a guerra não acontece, nós a fazemos”) – é instalar um estado de guerra que enseje, permita e justifique a ereção de estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos. Ou seja, a guerra é um engendramento para possibilitar uma reorganização do cosmo social. Em outras palavras, para impor uma ordem preconcebida em vez de deixar que diversas ordens emerjam da interação, o que acontece toda vez que tomamos a liberdade como sentido da política (e não a ordem). Este ponto é fundamental, porque a democracia é apenas a política que não tem uma ordem pronta (preconcebida) para colocar no lugar de outra, mesmo que essa ordem seja avaliada como a mais perfeita e justa do universo.

Aqui é preciso entender, para resumir, que não é apenas que autocracias façam guerras: a guerra já é a autocracia. E toda autocracia é sempre uma guerra contra um inimigo interno (ainda que um inimigo externo possa existir objetivamente).

Voltemos agora aos pensadores realistas para corroborar essas primeiras impressões.

SCHMITT

O jurista e estudioso político alemão Carl Schmitt, publicou, em 1932, um famoso livro intitulado “O conceito do político”, que provocou grande controvérsia sobre um suposto militarismo ou belicismo presente nas suas concepções. Sua posição foi encarada como realista, pelo fato de ele admitir (mesmo sem desejar, ou propor) que a guerra é o pressuposto sempre presente como possibilidade real em qualquer relação política. De qualquer modo, não há como negar que, para conceituar o político, Schmitt insiste demais nas noções de guerra e de inimigo, deixando de tratar, com a mesma atenção – e isso não pode ser por acaso –, dos conceitos de paz e de amigo.

Não cabe aqui entrar na controvérsia nos termos em que ela foi colocada. Talvez seja necessário dizer apenas que, para Carl Schmitt, “a diferença especificamente política… é a diferença entre amigo e inimigo”. Ainda que ele tente fazer uma distinção entre inimicus em seu sentido lato (o concorrente comercial, “o adversário particular que odiamos por sentimentos de antipatia”) e hostis (o inimigo público, o combatente que usa armas para destruir meu contexto vital, enfim, o inimigo político), parece claro que Schmitt não via diferença de natureza entre guerra e política. Tanto é assim que ele afirma que “a guerra, enquanto o meio político mais extremo, revela a possibilidade subjacente a toda concepção política, desta distinção entre amigo e inimigo” (1). Quer dizer que, para ele, conquanto seja um “meio extremo”, a guerra é um meio político. Do contrário ele deveria ter afirmado que a política pode levar à guerra, deixando de ser o que é (mudando, portanto, sua natureza) e não que a guerra é um meio político, pois que, assim, ao fazer guerra, ainda estamos fazendo política.

Pode-se perceber em Carl Schmitt um viés realista da chamada realpolitik. Contrapondo-se ao idealismo, o realismo político é uma política baseada no “equilíbrio do poder”, na linha do pensamento e da prática do Cardeal Richelieu – com sua “razão de Estado” (“raison d’état”) colocada acima de qualquer princípio moral – e dos chamados “políticos do poder”, como os já citados Metternich, Bismarck e, mais recentemente, Kissinger (1994), segundo a qual – e ele escreveu isso interpretando o pensamento do presidente Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” – “a teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal” (2).

O ponto da discussão é o seguinte: se pode haver guerra como meio político, então devemos ser realistas o suficiente para praticar a política como quem conta com tal possibilidade (e se prepara para isso, o que acaba, quase sempre, sendo a mesma coisa que praticar a política como “arte da guerra”). Ao proceder desse modo, separando os amigos políticos dos inimigos políticos (os que podem nos combater), cristalizamos aquela relação de inimizade que pode levar à guerra (e que, de qualquer modo, leva à prática da política como uma “arte da guerra”).

O problema é que isso não vale apenas para a relação entre Estados soberanos, mas acaba deslizando – inevitavelmente – para todas as relações políticas (Richelieu usava a “lógica” da tal “razão de Estado” para manter o seu poder internamente e não apenas nas relações internacionais da França). Amigo, então, passa a ser todo aquele que está de acordo com nosso projeto e inimigo todo aquele que discorda do nosso projeto. Ora, se quero afirmar o meu projeto, então devo derrotar ou destruir (na verdade, incapacitar) aqueles que podem inviabilizar a sua realização e isso deve ser feito, inclusive, preventivamente, antes que eles (os outros, os inimigos) consigam inviabilizar meu projeto ou substituí-lo pelos projetos deles. Preempção.

Há uma linha divisória muito fina entre derrotar e destruir o projeto do outro e derrotar e destruir o outro como ator político, quer dizer, como alguém que pode apresentar um projeto diferente (que não é o meu). Assim, basta alguém não estar de acordo com meu projeto (político), para poder ser classificado como inimigo (político), pelo menos em potencial.

Esse ponto de vista, portanto, não cogita muito da possibilidade de transformar o inimigo político em amigo político, convencendo-o, ganhando-o para o nosso projeto ou adotando outro projeto, um terceiro projeto, que contemple ambos os projetos (o nosso e o dele). O realismo indica que isso não ocorrerá, pelo simples fato de ele (o outro), para usar o pensamento de Carl Schmitt, não ser um eu-mesmo – o que significa, paradoxalmente, convenhamos, uma construção ideal do inimigo, aquele que deve ser desconstituído como ser político enquanto ameaçar a realização do meu projeto. Não podendo ser destruído de pronto, tal inimigo, pelo menos, deverá ficar em seu canto, respeitando meu espaço, caso contrário será destruído mais tarde ou a qualquer momento: a isso se chama “equilíbrio de poder”. Configura-se assim uma situação de luta permanente, levando a uma política adversarial ou geradora de inimizade. Porque o outro, em vez de ser considerado como um possível parceiro, um aliado ou colaborador, é visto, antes de qualquer coisa, como um potencial inimigo.

Na verdade, o inimigo como construção ideal passa a ser uma peça funcional do nosso esquema de poder, quer dizer, da nossa política (ou antipolítica). Sem o inimigo, desconstitui-se a realpolitik e o tipo de poder que ela visa sustentar, em geral baseado na necessidade de preservação de uma determinada ordem que precisa ser mantida contra o perigo representado pelo inimigo. É para manter essa ordem que se instaura então, internamente, o “estado de guerra” que consiste em uma preparação para a guerra externa (que pode vir ou não, pouco importa) mas sempre em nome da paz (pois que só alguém preparado para a guerra pode manter a paz). E o mais grave é que esse “estado de guerra” interna pode se referir tanto ao âmbito de um país diante de outros países, como ao de uma organização em conflito real ou potencial com outras organizações, como, por exemplo, ao de um governo confrontado por partidos de oposição. O raciocínio, como se vê, é uma perversão, mas o fato de ele ser aceito tão amplamente indica que as tendências de autocratização da democracia ainda estão na ofensiva em relação às tendências de democratização da democracia.

Toda política que admite a guerra como um de seus meios acaba sendo uma política adversarial, baseada na luta constante para destruir o inimigo ou para manter o “equilíbrio de forças” (e deve-se notar que, aqui, a política já começa a se constituir sob o signo da força e não do poder – uma distinção tão cara à Johanna Arendt). Para a realpolitik, a única realidade política – inexorável – é a da interação de forças e, assim, o único critério político deve ser o da correlação de forças. Devo, sempre, fazer tudo o que for possível para alterar a correlação de forças a favor do meu projeto (ou a meu favor, quando se trata de um projeto pessoal, de uma agenda própria – como, aliás, sempre acontece). A política passa a ser uma luta constante para atingir tal objetivo, quando não deveria ser; ou seja, como escreveu Michelangelo Bovero (1988) em “Ética e política: entre maquiavelismo e kantismo”, a política não deveria ser luta e sim impedir a luta: não combater por si próprio, mas resolver e superar o conflito antagônico e impedir que volte a surgir (3).

Não são apenas as teorias políticas que estão, em sua maioria, contaminadas pela visão perversa do clausewitzianismo invertido (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A chamada sabedoria política tradicional também se baseia, totalmente, nas regras da luta política como “arte da guerra” ou na prática da ‘política como uma continuação da guerra por outros meios’, pois parece claro que, na maioria dos casos, essa sabedoria não se refere à guerra propriamente dita, aquela em que ocorre a violência física: aqui estamos tratando do ânimo adversarial, que tanto está por trás da guerra quanto da política adversarial ou competitiva.

DE HOBBES A CLAUSEWITZ

Thomas Hobbes (1651) – que era autocrático, mas não desprovido de inteligência – já havia percebido que “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…” (4).

Conquanto acumule uma grande dose de sabedoria a tradição política é autocrática, não democrática. Essa sabedoria dos grandes chefes e articuladores políticos, tão admirada pelos políticos tradicionais e pelas almas impressionáveis, tem pouco a ver com a democracia.

Sabedoria não significa democracia nem constitui um requisito para a boa prática democrática. A democracia não é uma tradição: é um acaso; é um erro no script da Matrix, uma falha no software dos sistemas autocráticos.

O conjunto dos ensinamentos oriundos da sabedoria política tradicional induz a um comportamento que gera inimizade e que, consequentemente, exige a prática da política como “arte da guerra”. Tudo está baseado, no fundo, em vencer o adversário, desarmar seu projeto político, ou seja: desorganizar suas forças e, sobretudo, impedir que se reúnam os meios necessários à sua existência como ator político.

Do ponto de vista da democracia – não há como negar – isso tudo é uma perversão. Se existe uma ética da política e essa ética é – ou só pode ser – a democratização, então o recurso da guerra (no sentido da prática da política como “arte da guerra”) deve ser visto como violador dessa ética e, assim, como o comportamento a ser evitado.

Em política, a guerra (quer dizer, a política pervertida como “arte da guerra”) não acontece em função da existência objetiva do inimigo, mas em função de nossas opções de encarar o outro como inimigo e de tentar destruí-lo (mas, na verdade, mantê-lo como impotente para nos destruir). Tais opções só são feitas se estivermos montando ou mantendo um sistema autocrático de poder, que exige o inimigo para a sua ereção ou para o seu funcionamento como tal (quer dizer, como um sistema não-democrático de organização e resolução de conflitos).

Clausewitz (1832) tinha razão, segundo certo ponto de vista, quando dizia que a guerra é uma continuação da política por outros meios: se ficar claro que essa continuação não é mais política e que a política capaz de ter tal continuação é uma política praticada como “arte da guerra”. A chamada “fórmula inversa” (a ‘política como continuação da guerra por outros meios’) é que é perversa, pois a guerra não pode levar à política a menos que queiramos estabelecer a impossibilidade da democracia. Políticas que conduzem à guerra são autocráticas. Coletividades que praticam a democracia não guerreiam entre si (na exata medida em que a praticam).

Há um fundamento hobbesiano na visão da política como continuação da guerra por outros meios. No famoso capítulo XIII do “Leviatã”, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz” (5).

Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (6).

O mesmo fundamento hobbesiano para a visão da política como continuação da guerra por outros meios – ao assumir que não pode haver sociedade (civil) sem Estado – conspira contra os pressupostos da democracia.

Enfim, a luta política como “arte da guerra”, cria a guerra e obstrui a democracia. Lembrando novamente do que disse certa vez Maturana, a guerra não acontece: nós a fazemos (7). E como a fazemos? Ora, praticando a “arte” de operar as relações sociais com base no critério amigo x inimigo. Toda vez que fazemos isso estamos, caso se possa falar assim, armando ou fazendo guerra. Não necessariamente a guerra tradicional, “quente” e declarada, entre países ou grupos dentro de um país, a guerra com derramamento de sangue, mas também aquelas formas de guerra “fria” e não instalada: a “guerra sem derramamento de sangue” (como Mao definia a política), a “guerra sem mortes” (como George Orwell definia o esporte competitivo), a paz dos impérios (lato sensu, quer dizer, a paz estabelecida pelo domínio) e a paz como preparação para a guerra, o “estado de guerra” (interno) instalado em função da guerra (externa) ou de sua ameaça (ou, ainda, da avaliação, subjetiva, da sua possibilidade); enfim, a prática da política como “arte da guerra” que compreende: os modos de regulação de conflitos em que a produção permanente de vencedores e vencidos gera inimizade política, os padrões de organização compatíveis com esses modos de regulação de conflitos e o clima adversarial que se instala consequentemente nos coletivos humanos que os praticam.

Para captar os conceitos (na verdade os preconceitos) fundantes é ocioso passear pelos demais realistas. Aí acima estão os principais fundamentos do realismo político e por que eles são incompatíveis com os fundamentos da democracia (um modo pazeante – não-guerreante – de regulação de conflitos). Mas é preciso dizer algo a mais para chegar à conclusões aplicáveis aos tempos que correm.

O QUE APRENDEMOS SOBRE O REALISMO POLÍTICO

São três os principais aprendizados decorrentes da análise democrática do realismo político:

1 – O realismo político é uma ideologia.

2 – O realismo político é um culto ao Estado.

3 – O contrário do realismo político é a democracia.

Examinemos cada um desses aprendizados.

O credo realista

O realismo é uma ideologia que se escuda em uma suposta ciência (às vezes chamada de geopolítica) para não se reconhecer como tal (como uma ideologia). Da constatação de que o mundo está assim, ele passa de contrabando a ideia que o mundo é assim. Como disse John Mearsheimer, respondendo a um jornalista do New Yorker que lhe perguntava se não devemos pensar em tentar criar um mundo onde nem os EUA nem a Rússia se comportem de maneira intervencionista: “Não é assim que o mundo funciona” (8).

As crenças em que se baseia a ideologia realista são, basicamente, as seguintes: a) o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo; b) as pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses ou preferências (ao fim e ao cabo egotistas); c) sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva; e d) nada pode funcionar sem hierarquia. Infelizmente extravasa o escopo deste artigo mostrar que essas crenças estão presentes no subsolo das concepções realistas da política. Mas talvez nem seja tão necessário fazer isso (para os propósitos do presente escrito): estes são fundamentos hobbesianos ou decorrentes do hobbesianismo, como o darwinismo social.

O culto ao Estado

O protótipo de qualquer hierarquia (stricto sensu, como poder sacerdotal) é o Estado (e sua forma histórica inaugural, que é o Estado-Templo mesopotâmico).

O realismo é um culto ao Estado. Poder é poder de Estado (degenerado como força). Os Estados são os únicos atores que contam. Para quem adota o realismo político (como uma espécie de religião laica, pois é isso que ele é) não faz nenhum sentido continuar defendendo a democracia. A democracia não se baseia nos interesses dos Estados e sim nos desejos das pessoas. Desejos? Pessoas? Tudo isso é irrelevante para a realpolitik, para a política do poder (como exercício ou ameaça do exercício da força – o que é, a rigor, uma antipolítica).

Não existe a sociedade como forma de agenciamento autônoma. Como já foi dito anteriormente, a sociedade é um dominium do Estado (na acepção feudal mesmo do termo).

Na prática, portanto, só há uma lei. A lei do mais forte. E o que é surpreendente aqui não é que o mais forte diga que a única lei que vale é a do mais forte. O que é supreendente é que os mais fracos repitam isso (por obra de ideologia). No mundo ideológico de Mearsheimer, que funciona de uma determinada maneira e não de outra, “só a força faz o que é certo” (9).

Ora, se a única “realidade” é a lei do mais forte, foram inúteis as vidas e as obras de Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras e outros sofistas, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Berlin, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Maturana, Rawls, Dahrendorf, Sen, Dahl… Isso nos leva ao próximo aprendizado.

O contrário do realismo político é a democracia

O contrário do realismo político não é qualquer idealismo irrealista e sim a democracia. Democracia pressupõe sempre direitos (sobretudo direitos políticos). Mas para a mentalidade realista, o poder é sempre de fato, não precisa ser de direito. Retira sua legitimidade de sua própria existência, não importa para nada se for uma tirania. Os que desafiam o poder, mesmo quando despótico, podem ser terroristas, mas o poder nunca, por mais atos terroristas que pratique.

O problema do realismo político é que ele acha irrelevantes as diferenças entre democracia e autocracia. Esquece que democracias não invadem militarmente democracias. E que só há guerra (quente) quando pelo menos uma autocracia está envolvida.

A democracia não é irrealista. Países democráticos devem reconhecer países autocráticos como regimes de fato, não de direito. Porque não pode ser ‘de direito’ um regime que não se baseia em um Estado de direito, onde não vige o império de leis legitimamente aprovadas por um parlamento autônomo, escolhido pela população em eleições livres e limpas, onde há violação de direitos políticos e onde as liberdades civis são restringidas; por exemplo, onde a oposição seja proibida ou perseguida e os direitos humanos desrespeitados.

Isso não significa que países democraticos devam atacar países autocráticos usando a força, nem que com eles não possam manter relações, inclusive comerciais ou, ainda, que com eles não possam se associar para resolver problemas que afetam toda a humanidade, como o aquecimento global, por exemplo. Só não podem legitimá-los, sob o pretexto de que o mundo é assim ou funciona assim. Ou sob a alegação de que a autodeterminação dos povos dá direito a tiranos de oprimir suas populações e usar o Estado para mover guerras contra os de seu próprio povo, encarando partes desse povo, que não os obedecem, como inimigos internos.

Autodeterminação dos povos. Tudo bem. Mas quem fala pelos tais “povos”? O realismo político entende, por “povos”, os Estados (mesmo se seus regimes e seus governos forem autocráticos). Se é assim, então, autodeterminação dos povos só pode valer, a rigor, em democracias. Pois ditadores não podem decidir em nome das pessoas (o “povo”) porque não são governantes legítimos.

E aqui entra toda a problemática da diplomacia que, em geral, mesmo nos regimes democráticos, não é democrática.

Sim, diplomacia não é democracia porque no plano internacional não vige a democracia e sim o regime de equilíbrio competitivo. Ou seja, a política externa é sempre uma continuação da guerra por outros meios. A diplomacia das democracias cuida então para que esses meios não sejam violentos. Evitar a guerra quente (com derramamento de sangue) é bom, mas não basta. Uma diplomacia democrática deveria defender a democracia, que não é o contrário da guerra violenta e sim o contrário de qualquer guerra (quente, fria ou como política adversarial). Uma diplomacia democrática teria de fazer a distinção entre democracias e autocracias. Porque sabe que autocracias não são regimes legítimos. São regimes de fato, não de direito. Não pode lidar apenas com jogos de poder na base da realpolitik. Tem que defender a democracia contra as tiranias.

O que é próprio da democracia, o que está, por assim dizer, no seu “genoma”, é ser um processo de desconstituição de autocracia. Assim, o papel dos democratas é defender a democracia contra as tiranias. Não importa se a tirania é dita de direita ou de esquerda. Não importa se a tirania é contra o imperialismo (dos outros). Não importa se a tirania diz ser contra o capitalismo ou o socialismo. Isto não é irrealismo, mas realismo democrático (se é que essa expressão faz algum sentido).

DISTINGUINDO REALISTICAMENTE DEMOCRACIAS DE AUTOCRACIAS

E é perfeitamente possível distinguir democracias de autocracias. Numa democracia, sejam quais forem os critérios propostos por diferentes teóricos e os diversos indicadores adotados por institutos de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo (como a Freedom House, a The Economist Intelligence Unit e o V-Dem Institute), os seguintes pontos devem ser observados:

1) A liberdade (de ir e vir, de imprensa, no ciberespaço, de reunião e de manifestação, de organização social e política e, inclusive, de empreender e ter propriedades) não pode ser violada, nem restringida (sob qualquer pretexto).

2) A eletividade (o direito de eleger seus representantes para governar ou elaborar as leis – executivo e legislativo – e de ser eleito para essas funções) não pode ser violada, restringida ou fraudada. Aqui cabe um comentário: esse critério é necessário, porém não suficiente para caracterizar um regime como democrático (democracia não é eleição: a maioria das ditaduras realmente existentes hoje em dia no mundo – 60 em 90, segundo o V-Dem Report 2022 – promove eleições).

3) A publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), ou seja, a inexistência de opacidade e de segredo nos negócios de Estado, deve estar garantida por mecanismos eficazes.

4) A rotatividade ou alternância também deve ser observada: os mandatos constituídos por representação ou nomeação devem ser limitados no tempo, não podendo um governante se prorrogar no posto (ou alternar com alguém do mesmo partido ou corrente política indefinidamente).

5) A legalidade deve ser mantida, o que exige um judiciário independente e um conjunto de leis democraticamente aprovadas (inclusive uma Constituição elaborada por um parlamento constituinte legitimamente eleito). É o chamado Império da Lei, expressão utilizada para dizer que não há império de uma pessoa e que os habitantes do país são cidadãos e não súditos de ninguém.

6) A institucionalidade, garantida por um conjunto de instituições que funcionem com a sua dinâmica própria e tenham proteções suficientes para não serem invadidas por interesses empresariais, corporativos ou partidários e político-eleitorais. Isso significa, por exemplo, não transformar as instituições em palcos de disputa de hegemonia, onde um partido ou coligação de partidos tentem conquistar maioria para converter essas instituições em correias de transmissão de suas vontades ou diretivas políticas.

Há muito realismo aqui. A democracia pode até acabar se estiolando por excesso de realismo. Foi tentado e funcionou. Continua sendo tentado em 32 democracias liberais e, com menos intensidade, em 58 democracias eleitorais. A maioria dos que vivem nesses regimes tem preferência por eles em relação às quase 60 autocracias eleitorais e às 33 democracias fechadas (não-eleitorais). Irrealismo é dizer que tudo isso é irrealismo porque não corresponde a uma ideologia segundo a qual o mundo não funciona assim. O subtexto realista é sempre o mesmo: o mundo não pode ser mudado. Por que? É aqui que surgem, como pulsões, aquelas crenças mencionadas acima. Ora, porque a natureza humana… Ora, porque o egoismo… Ora, porque os grandes estadistas-guerreiros… Ora, porque o tronco hieráquico gerador de programas verticalizadores… ou seja, o Estado, o Estado, o Estado tem sempre razão!

“GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA”

Eis que chegamos ao tempo presente: 2022. 2022 é 1984. Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. Ou, na síntese de Putin, Autocracia é Democracia.

Mas o papel dos democratas é resistir às tiranias e não ficar buscando razões para explicar porque as tiranias se comportam como tiranias. Basta isso para nos posicionarmos diante da invasão da Rússia à Ucrânia. Ficar buscando as razões pelas quais as tiranias se comportam como tiranias – em geral, para os realistas, por culpa de alguma democracia, que as provocou querendo ou não – é apoiar, objetivamente, as tiranias.

A guerra que o ditador Putin decretou às democracias liberais revelou um novo tipo de cretinismo. O cretinismo geopolítico. É aquele cara que fica olhando os mapas e quase tendo orgasmos ao contabilizar o poderio bélico das grandes potências. É assim – pensa ele – que o mundo funciona. É a sua φύσις, como dizia Platão, Morgenthau e todos os realistas que vieram antes ou depois – e continuam vindo agora.

“Vou usar armas nucleares”. Ah! Então melhor não reagir. Pode invadir à vontade, “seu” Putin. Aproveite para destruir tudo, anexar os territórios e matar o maior número de pessoas. Não gostou? O mundo é assim, fazer o quê? Realpolitik. A força é o (único) critério da correção – e da verdade – em política externa.

Curioso que todos os autocratas falam que querem democracia e paz. Goebbels falava. Stalin falava. Putin fala. Ping fala. Mas, para alcançar esses supernos princípios, sabem como é, na vida real, é preciso fazer autocracia e guerra. Assim, quando um autocrata-realista pronuncia a palavra ‘democracia’ é bom se esconder da polícia. E quando fala a palavra ‘paz’, melhor correr logo para um abrigo antiaéreo.

Notas e referências

(1) Cf. Schmitt, Carl (1932). O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.

(2) Cf. Kissinger, Henry (1994). Diplomacia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001.

(3) Cf. Bovero, Michelangelo (1988). “Ética e política entre maquiavelismo e kantismo” in Revista Lua Nova número 25: “Ética, política e gestão econômica”. São Paulo: CEDEC, 1992.

(4) Cf. Hobbes, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(5) Idem.

(6) Idem-idem.

(7) Cf. Maturana, Humberto (1991). El sentido de lo humano. Santiago: Dolmen Ediciones, 1997.

(8) Cf. Isaac Chotiner, The New Yorker (01/03/2022). Why John Mearsheimer Blames the U.S. for the Crisis in Ukraine https://newyorker.com/news/q-and-a/why-john-mearsheimer-blames-the-us-for-the-crisis-in-ukraine

(9) Cf. Mearsheimer em vídeo: 

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores.

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