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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Que liberalismo é esse? - Pedro Doria (Canal Meio)

 Pedro Doria pode ter efetivamente razão, mas a verdade é que esses jogos conceituais só ocupam mesmo os acadêmicos, pois os verdadeiros agentes da política e da economia não dão a mínima para conceitos: ele só querem mesmo defender seus interesses, indiferentes a esses rótulos!

Paulo Roberto de Almeida 


QUE LIBERALISMO É ESSE?


POR PEDRO DORIA

Canal Meio, 20/10/2022

https://www.canalmeio.com.br/notas/que-liberalismo-e-esse/

O liberalismo brasileiro cindiu, nesta eleição de 2022, de uma maneira como jamais havia ocorrido antes. A maior mostra deste movimento talvez seja a maneira como dirigentes do Partido Novo reagiram à declaração de voto, pelo seu fundador João Amoêdo, no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “A declaração é uma traição aos valores liberais”, escreveu Felipe D’Ávila, candidato à presidência do Novo este ano. “Amoêdo, pega o boné e vai embora.” O presidente da legenda foi no mesmo tom. “Vergonhosa, constrangedora e incoerente a declaração de voto”, afirmou Eduardo Ribeiro. Amoêdo, porém, não está sozinho. Declararam voto em Lula Pérsio Arida, Pedro Malan, Edmar Bacha, Armínio Fraga, Elena Landau, José Roberto Mendonça de Barros, Henrique Meirelles. Ao passo que inúmeros, na Faria Lima, gritam que a dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes são os únicos capazes de tocar um projeto liberal no Brasil. “Hoje sou um liberal”, declarou à Veja o próprio Bolsonaro faz duas semanas.

Isto é novo no cenário político da Nova República. Se pessoas que se dizem liberais votam tanto em Lula quanto em Bolsonaro porque veem no adversário incompatibilidade com o liberalismo, algo fica evidente. Estão chamando pelo mesmo nome ideologias muito diferentes.

A confusão não é nova. A eleição de 2022 apenas a tornou evidente. Meu companheiro neste espaço, o cientista político Christian Lynch, os distingue chamando uns de liberais-democratas e, os outros, de neoliberais. José Guilherme Merquior os dividia de forma mais direta. Liberais de um lado, liberistas do outro. Uns defensores da liberdade no sentido mais amplo da palavra, outros focados apenas em liberdade econômica. A diferença entre os dois grupos não é pequena mas se tornou mais aguda, principalmente na América Latina, após os anos 1980.

Neste momento de risco à democracia, é bom que se separem para nunca mais se encontrarem.

Mas antes é importante fazer a distinção entre as duas visões de mundo — e poucos o fazem melhor do que o cientista político Michael Freeden, professor emérito de Oxford. Porque uma ideologia tão antiga e longeva quanto o liberalismo, nascida com a publicação de Uma Carta sobre Tolerânciade John Locke, em 1689, não poderia atravessar mais de três séculos sem mudar profundamente e fazer nascer muitas variantes.

Freeden não vê um único liberalismo — vê gerações de filósofos refletindo sobre seus tempos, sociedades, e reagindo às dificuldades e questões que apareciam. Foram, assim, depositando camadas de novos valores e ideias, por vezes ignorando o pensado antes, noutras recuperando o que havia se perdido. Ao todo o liberalismo, em sua descrição, foi construído uma camada após a outra ao longo dos séculos. Ao final são cinco camadas, nem sempre coerentes entre si, mas bem ou mal alicerçadas pela busca dos mesmos de princípios.

A primeira, a raiz de todas, é movida pelo impulso de ser contrário a qualquer forma de tirania. É a âncora que garante a toda pessoa, todo indivíduo, um espaço em que sua liberdade pessoal seja garantida. A liberdade de se expressar, de tomar parte no debate sobre a política, e agir sem medo de sofrer consequências pelo que pensa. Esta liberdade, Locke já via desde o início, teria inevitavelmente de ser limitada pela liberdade do outro.

É deste liberalismo mais base que nasce o instinto de formar um Estado a partir de uma Constituição na qual todos serão iguais perante a lei.

A segunda camada, que surge já com os primeiros movimentos da Revolução Industrial, trata da liberdade econômica. É o liberalismo de Adam Smith e David Ricardo. Conforme os mercados globais começam a se abrir, ainda num ambiente de governos absolutistas, o direito de poder negociar salários e determinar preços de produtos sem que o Estado se envolva começa a ser cobrado. A crença no trabalho individual, honesto, que leve ao crescimento econômico da pessoa e, assim, da nação, passam a ser defendidos com argumentos sólidos e lógicos. No entorno desta ideia surge o contrato entre duas pessoas ou empresas com valor perante a Justiça. Aquele Estado de Locke passa a ser, também, um garantidor destas relações privadas.

A partir de meados do século 19, quando a miséria que acompanhou a industrialização se tornou evidente, mais uma vez o liberalismo mudou seu foco, puxado por um de seus pensadores mais importantes — o inglês John Stuart Mill. Esta terceira camada não se opõe ao livre comércio, mas já não o vê mais central. A prioridade se torna liberar o potencial do desenvolvimento de cada pessoa. Se a primeira camada do liberalismo dizia “deixa eu ser quem sou”, esta terceira proporia “deixa eu crescer tanto quanto posso”. Há um sentido de igualdade de oportunidades e a busca por um Estado que garanta as condições para que todos possam encontrar seu melhor. O mercado já não é mais um de bens — o mercado torna-se uma metáfora para explicar as dinâmicas de como circulam ideias, valores, mesmo pessoas.

É daí que surge, na virada para o século 20, o que os ingleses batizaram de Novo Liberalismo — um que ressaltava interdependência dos indivíduos em sociedade. Por mais que existam direitos individuais, todos dependemos uns dos outros até para que possamos garantir os mesmos direitos individuais. Os agentes do Novo Liberalismo são os principais promotores da criação de uma teia de proteção social que incluísse seguro desemprego, aposentadoria, saúde pública, alimentação gratuita nas escolas. Para que a pessoa seja realmente livre é preciso garantia de dignidade para todos, diziam. Se as camadas anteriores viam indivíduos e o Estado, esta quarta camada incluiu um terceiro elemento na dinâmica. A sociedade.

Da segunda metade do século passado para cá, economistas, juristas e filósofos do liberalismo vêm criando sua quinta camada, observando que as relações humanas em sociedades livres se tornaram bem mais complexas do que se poderia imaginar. Grupos de interesses se formam normalmente para disputar suas pautas, e seu espaço deve ser garantido. Estes grupos — partidos, sindicatos, entidades de classe, igrejas, mais recentemente ONGs — todos disputam a palavra no debate e poder de ação, e nenhum deve ter seu monopólio. Uma sociedade liberal, portanto, deveria ser capaz de garantir não apenas o ambiente para livre manifestação e relação entre indivíduos, mas também entre estes grupos.

É neste momento em que pensadores como o Nobel indiano Amartya Sem florescem. Ou o americano John Rawls.

Hoje, novos debates chegam à pauta, como o da questão identitária, quando grupos se organizam na sociedade não ao redor de interesses econômicos ou no entorno de ideias, mas pelo que consideram uma identidade comum. O multiculturalismo, talvez inevitável com a ampliação daquele velho desejo liberal das fronteiras abertas, cria novas tensões e certamente, nas próximas décadas, uma sexta camada será adicionada à mais antiga das tradições de pensamento político em democracias. O liberalismo ainda não produziu um pensamento coeso sobre como lidar com as novas tensões que surgem.

As cinco camadas do pensamento liberal descritas por Michael Freeden são todas relacionadas, todas se encontram nos princípios essenciais da liberdade individual observados por Locke. Mas, a respeito dos inúmeros aspectos do pensamento liberal, temas diversos foram colocados com maior ou menor ênfase dependendo da época ou do lugar. E, ainda assim, todas estas camadas compõem a mesma tradição do que a ciência política engloba nesta palavra: Liberalismo.

Cada liberal constrói o seu liberalismo com as peças disponíveis nas prateleiras do pensamento passado, seguindo o mesmo princípio de pesar as ênfases. Os limites são sempre claros. Um presidente da República intolerante não representa aquilo que o autor de Carta sobre Tolerância pensou.

Se o presidente não tolera diversidade entre pessoas, se fala em extermínio de parte da oposição, se a atuação privilegia uma igreja sobre outras, então não descende de Locke.

Não é liberal. É iliberal.

Ou, como escreveu no Twitter Michael Reid, colunista de Américas da revista The Economist, “nenhum liberal de verdade pode achar que Bolsonaro, que não aceita restrição ao poder, é menos ruim que Lula”. Reid escreve para a revista que é o bastião do pensamento liberal britânico faz quase dois séculos e respondia ao ataque de Felipe D’Ávila a Amoêdo. “Você tem todo o direito a sua opinião mas representa qualquer coisa menos o liberalismo.”

Se não é liberalismo, o que é isso que D’Ávila, Paulo Guedes, os parlamentares ainda eleitos do Novo, empresários como Luciano Hang e Salim Mattar, e um bando de gente na Avenida Faria Lima chama por este nome? O que é isto que Christian Lynch chama de neoliberalismo em distinção ao liberalismo-democrático e Merquior batizou liberismo em contraste com liberalismo?

De volta a Michael Freeden. Há duas razões políticas para chamar de liberalismo o que não é liberalismo. Parecem contraditórias entre si mas, na verdade, são complementares. Uma parte de pensadores marxistas e militantes de esquerda, em geral, cujo objetivo é reforçar uma caricatura hostil do liberalismo. A outra vem do outro flanco, da direita, para empurrar um pacote de ideias impopulares como se fossem benéficas. A direita quer se beneficiar da marca. A esquerda pretende detrata-la. Ambos os grupos se beneficiam do mesmo movimento. O jogo de um interessa ao outro. E, na sua ação, ambos sufocam o espaço do real liberalismo.

No neoliberalismo, no liberismo, as esferas social, política e cultural são todas subordinadas ao mercado no sentido estritamente econômico do termo. O Estado serve apenas como garantidor dos fluxos contínuos de capitais e produtos, o que fere de morte a ideia essencial de Locke de que todo poder deve ser limitado. De que pessoas não podem ser oprimidas. Esta ideologia pode lembrar, à primeira vista, uma versão pura da segunda camada do liberalismo, como se a primeira jamais tivesse existido. Mas não há Adam Smith e David Ricardo sem John Locke, o Barão de Montesquieu ou Voltaire. Smith era profundamente tocado por valores humanistas. Escreveu A Riqueza das Naçõese escreveu, também, a Teoria dos Sentimentos Morais, quando reflete sobre a mútua busca por simpatia nas relações entre pessoas. Na busca por respeito entre pessoas. E mesmo quando escrevia sobre economia, assim como Ricardo, eles pensavam não nas relações entre grandes corporações que produzem anualmente mais do que o PIB de meio mundo. Pensavam, isto sim, em negociantes, em gente procurando construir suas vidas. Havia uma missão ética no pensamento de ambos com uma única direção: a construção de uma sociedade justa.

“Uma das principais características do conservadorismo é a crença nas origens extra-humanas da ordem social”, escreve Freeden. Ideologias não são conjuntos estáticos de ideias. São como linguagens. Partem de uma ideia forte — a liberdade, para o liberalismo, ou o conflito de classes, para o marxismo — e vão se adaptando aos momentos da história. A ideia forte do conservadorismo é esta, a de que a ordem social não é uma construção humana. É algo que está além do controle das pessoas. Em certos momentos do passado, sua origem foi percebida como divina. Vem de Deus. Para este grupo, a ordem social é dada pelo mercado e mexer com o mercado é sugerir que pessoas poderiam intervir na ordem social.

Para o professor de Oxford, esta filosofia, este neoliberalismo ou liberismo ou o que for, não é uma vertente liberal. É a captura da linguagem do liberalismo para vender uma forma de conservadorismo.

No fim, o conservadorismo é uma ideologia a serviço da manutenção dos privilégios de um grupo perante outros. É assim desde a Revolução Francesa, quando protegia aristocratas. Na descrição do historiador das ideias alemão Jan-Werner Mueller, em essência o conservadorismo acredita que deve haver uma hierarquia social. A existência de desigualdade entre grupos é compreendida como parte da ordem natural.

É do jogo que se pense assim. Só não é liberal. De Locke, não vem.

Liberais são poucos, no Brasil. Por um bom tempo foi conveniente, politicamente, uma aliança com conservadores e tolerância com a captura do nome. Por um tempo, até, foi possível encontrar pontos de encontro nos pensamentos e evitar os muitos atritos. Ser liberal na economia, conservador nos costumes, virou até frase corriqueira. Como se fosse coerente.

Quando aquele grupo quer cruzar a linha da democracia, o rompimento não é apenas desejável. É imperativo. Já causou dano demais.


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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A esfinge Vladimir Putin - Pedro Doria

 Faltou um livro ESSENCIAL neste relato de Pedro Doria: Putin’s kleptocracy: who owns Russia, de Karen Dawisha, que relata como Putin desviou dinheiro para construir sua carreira de ditador. 

Paulo Roberto de Almeida


A Esfinge Putin

Por Pedro Doria 

(28/02/2022)

É um truque antigo de marketing. Quando preparou uma pesquisa informal para entender as aflições políticas da população russa, Gleb Pavlovsky não perguntou aos leitores do diário Kommersant quem gostariam de ver no comando do Kremlin. O experiente cientista político perguntou sobre personagens de ficção. Qual seria o presidente dos sonhos. O jornal, que Pavlovsky havia dirigido nos tempos da queda da União Soviética, tinha por dono seu chefe, o oligarca Boris Berezovsky. E Berezovsky estava aflito por respostas. Ele e todos da Família.


Àquela altura, em princípios de 1999, quase todo mundo já havia abandonado Boris Yeltsin, o presidente da Rússia. Ele, o único líder eleito democraticamente na história para o comando do país, havia desapontado seus eleitores. Em parte, havia injustiça na baixa popularidade. A classe média havia se expandido imensamente nos anos anteriores e os confortos da sociedade de consumo se espalharam rapidamente — telefonia, televisões, geladeiras, automóveis. Mas também havia hiperinflação e uma sensação generalizada de desordem e decadência. A Rússia pós-URSS havia desmoronado. E Yeltsin parecia simbolizar aquilo. Com cada vez mais frequência era visto cambaleante, falando com dificuldade, às vezes também incoerente. Saíra de uma operação cardíaca invasiva e delicada fazia pouco. Sua filha dizia que o pai estava doente e tomando muitos remédios. O povo achava que seu presidente era, como tantos russos, alcoólatra. Certo é que não tinha condições de saúde para terminar o mandato. Havia sido abandonado por quase todos que apenas uns anos antes o bajulavam. Talvez por isso o pequeno grupo de parentes, assessores e amigos que continuaram ao seu lado tenham ganhado o apelido de ‘a Família’. Precisavam de um sucessor. Precisavam, principalmente, de um sucessor que idealmente pudesse ser controlado e que não mandasse prender Yeltsin e os seus por corrupção, após sua renúncia.


Não foi o primeiro nome listado na pesquisa que chamou atenção do marqueteiro. Foi o segundo: Stierlitz. Chamou atenção porque, no Kremlin de 1999, todos sabiam muito bem quem lembrava de muitas maneiras Max Otto von Stierlitz, o codinome alemão utilizado pelo agente secreto Maxim Maximovich Isaev das histórias de espionagem. Era o jovem diretor-geral do Serviço Federal de Segurança, a FSB. Desconhecido, um burocrata pouco ambicioso, alguém que sempre que testado havia demonstrado lealdade.


Lembrava Stierlitz até no jeito de sorrir. No detalhe dos maneirismos. Todos sabiam. Todos sempre percebiam.


O que ninguém no Kremlin havia entendido é que Vladimir Vladimirovitch Putin tinha um talento raro, uma habilidade construída pelos melhores agentes da antiga KGB. Ele vivia num mundo de espelhos. “Sou um especialista em comportamento humano”, havia explicado mais de década antes para um amigo de faculdade que lhe perguntara o que um agente fazia bem. Putin era capaz de refletir de volta a expectativa que criavam a seu respeito. Sempre parecia ser quem queriam que fosse.


Há 22 anos no poder, o presidente russo segue sendo a mesma esfinge num labirinto de espelhos. Vive entre a costura de realidade e ficção, num ambiente em que a verdade nunca é clara e os fatos parecem sempre manipulados. A história de como chegou onde está ajuda muito a entender por que uma guerra inacreditável acaba de estourar dentro do continente europeu.


Leningrado


Putin nasceu o filho caçula e tardio de uma típica família de Leningrado, em 1952. Nunca conheceu os irmãos. O primeiro morreu logo após ter nascido. O segundo morreu aos 8, de disenteria e fome, no cerco de dois anos e meio que os nazistas impuseram à cidade durante a Grande Guerra. Seu pai lutou e foi herói, mas a frente de batalha o deixou com as pernas doloridas, marcadas e pouco funcionais pelo resto da vida. A mãe trabalhava numa fábrica. O menino Vladimir passou a infância e parte da adolescência num apartamento dos tempos pré-revolucionários que havia sido dividido com outras três famílias, cada uma em seu quarto, a cozinha no meio com um fogão, uma pia, e só. No inverno, se aqueciam com lenha queimada em fornos de ferro fundido, um por cômodo.


Mas os Putin tinham confortos atípicos — o quarto da família era bem maior do que os outros. Tinham também um carro, já em finais dos anos 1950. Um aparelho telefônico. E até uma dacha, um casebre fora da cidade onde podiam passar o verão. Mais de um biógrafo desconfia que ali estão indícios de que o severo e silencioso pai do futuro presidente não era apenas um reservista por invalidez do Exército Vermelho. Ele próprio, filho de um dos cozinheiros de Lênin e Stálin, talvez tivesse se mantido como um agente de baixa patente da polícia secreta, um informante a respeito do que se passava no bairro.


Como era mirrado e briguento, desde cedo o jovem Vladimir, ou Volodya como os mais próximos ainda o chamam, se dedicou a aprender a lutar. Primeiro boxe, mas quebrou o nariz. Depois sambo, uma arte marcial russa, que logo migrou para judô. Ele era adolescente quando saiu publicado o romance 17 Instantes numa Primavera, um thriller de espionagem encomendado pela KGB para melhorar sua imagem. É a história de um James Bond russo, um espião frio, discreto e hábil, inteiramente dedicado à Rússia, que se insere jovem na Alemanha nazista, ascende a oficial da SS sob a identidade de Max Otto von Stierlitz, manipula as rivalidades alemãs, neutraliza a diplomacia americana e facilita a entrada do Exército Vermelho em Berlim.


O livro mexeu com a imaginação de toda uma geração de soviéticos, mas em particular com a de Putin que, na virada para a adolescência, de mau aluno tornou-se bom, e se dedicou a estudar alemão. Seus colegas sonhavam ser cosmonautas. Ele, agente da KGB. Outro indício de que seu pai tinha mais contatos do que alguém como ele teria é que o menino, embora não tivesse as melhores notas, conseguiu matrícula na Universidade Estadual de Leningrado, o curso superior de excelência dali. E que, formado, foi imediatamente convidado a se juntar ao serviço secreto.


O agente na Alemanha


Em 1992, quando Vladimir Putin era assessor do prefeito de São Petersburgo e já demonstrava ambições políticas, encomendou um documentário (trecho) a seu respeito. A história que contava era a do trabalho daquele jovem burocrata para conseguir importar comida para uma cidade faminta tentando se erguer dos destroços da URSS. Mas seu objetivo com o filme era outro — queria vazar logo que havia sido agente da KGB. A informação, se tornada pública depois, poderia prejudicar sua carreira. Queria controlar o dano. Pelo jeito do jovem político, o cineasta Igor Shadkhan não resistiu. Usou no fundo, durante a confissão, o tema composto por Mikael Tariverdiev e que qualquer russo conhecia — a trilha da minissérie televisava em 12 episódios dos anos 1970 recontando a história de Stierlitz. (Trecho.) Para Putin, era a melhor ótica possível. Não era a KGB opressora, era a KGB que havia vencido a Guerra que emanava.


Anos depois, já próximo de se tornar presidente, deu uma longa entrevista que se tornou base para boa parte de suas biografias. Contou que, formado pela KGB, trabalhou em postos burocráticos de Leningrado — a passada e futura São Petersburgo — enquanto tentava conquistar o sonho de ser um agente no exterior. Quando enfim conseguiu, foi mandado para Dresden, na Alemanha Oriental. Putin fazia graça de si mesmo. Sonhava em ir para Berlim, onde estava a ação de contraespionagem pesada, foi para uma cidadezinha industrial desimportante em que boa parte do serviço era fazer clipping de jornais estrangeiros e tentar recrutar agentes entre os estudantes da universidade local.


Não há rastro documental sobre sua carreira além do fato de que ganhou uma medalha de bronze. “Até cozinheiras ganhavam essa medalha”, ele brincou na entrevista. Também não há rastro de sua carta de desligamento da KGB. E uma única informação salta aos olhos — quando se desligou da agência, estava a um ano de se aposentar. Raros agentes tinham direito de se aposentar cedo. Ele poderia antes dos 40. Algo fez para merecer. A explicação corrente é de que se desligou mesmo faltando pouco para a pensão porque a história andou, a União Soviética se desmanchou e ele queria mergulhar na vida democrática.


Dresden não era, de fato, Berlim. Mas tinha três características que faziam da cidade importante para o serviço secreto russo e para a Stasi, a polícia secreta da Alemanha comunista. A primeira é que, justamente, não era Berlim. Por isso, não havia ali tanta atividade de contraespionagem ocidental. Os agentes podiam trabalhar mais à vontade na sombra. Em segundo, era o centro do contrabando alemão. O mundo socialista havia se mostrado incapaz de avançar tecnologicamente na velocidade do mundo liberal. Mainframes e computadores pessoais eram contrabandeados para a Europa Oriental e União Soviética via Dresden, tanto as máquinas para uso pelo governo quanto os projetos furtados de como montá-las. Mas ali estava uma corrida infrutífera, mesmo copiando pareciam sempre anos atrás. Por fim, em Dresden funcionava boa parte da atividade de contrainformação. Propaganda para seduzir jovens de esquerda na Europa Ocidental que podiam se mostrar úteis, flagrantes de encontros sexuais para ser ser usados em chantagem de pessoas com alguma importância, e histórias falsificadas que poderiam ser distribuídas pela imprensa como verdadeiras, espalhando confusão nos países inimigos. A máquina de desinformação soviética voltada para a Europa funcionava em Dresden.


Putin se mudou para a cidade com sua mulher e as duas filhas muito pequenas pouco antes de Mikhail Gorbachev assumir o comando da nação. Voltou logo após a queda do Muro de Berlim, após ter supervisionado a queima de documentos. Os da Stasi sobreviveram. A KGB foi eficiente — não deixou nada relevante para ser encontrado. Àquela altura, estava em curso a Operação Luch — quer dizer ‘raio de luz’, ‘foco de luz’. Uma operação secreta da agência para garantir a continuidade de seus serviços após a dissolução, já prevista, da URSS.


É neste ambiente que voltou a São Petersburgo um jovem e idealista Vladimir Putin que, como conta, renunciou ao cargo na KGB e em semanas se achou emprego na universidade em que havia estudado. Lá, tornou-se próximo do carismático professor de Direito Anatoly Sobchak, que meses depois terminaria eleito o primeiro prefeito democrático da cidade. Putin se fez seu braço direito.


Dresden não era Berlim, São Petersburgo não era Moscou. Enquanto na capital oligarcas saíam comprando por quase nada os espólios da URSS e se tornando bilionários da noite para o dia, na segunda maior cidade do país o problema era mais comezinho e também mais evidente. Era a máfia, um novo e violento crime organizado que se formara rapidamente e controlava boa parte dos serviços públicos.


Sobchak sabia que Putin havia sido KGB. Possivelmente, muitos analistas acreditam nisso, quando ficou claro que ele seria eleito, o próprio serviço secreto ofereceu o tenente-coronel para ajuda-lo. Neste ambiente, dissimularam um desligamento da agência. O trabalho de Volodya, Vladimirzinho, seria negociar com o crime, tornar a governança possível. Na prática, entre 1992 e 96, foi Putin quem realmente governou São Petersburgo. Ao final do governo de Sobchak, a cidade não havia se tornado mais segura. Mas a máfia estava organizada, não criava confusão com a prefeitura, e ninguém tinha dúvida de quem mandava.


Sobchak não conseguiu ser reeleito — diferentemente do esperado, perdeu por 1,5% dos votos. Um escândalo de corrupção pessoal estourou dias antes do pleito, envolvendo a compra de um apartamento. Putin, conta a narrativa oficial, foi o único a nunca abandoná-lo. Não falta quem desconfie que, em verdade, ele tenha ajudado de algum jeito a promover a derrota.


Kremlin


A derrota interessava a Boris Yeltsin, que temia a rivalidade de Sobchak na eleição presidencial. Se nunca denunciou Sobchak em público, se anos depois estava presente em seu funeral, abraçado à família, também é verdade que após a derrota eleitoral Putin já tinha emprego novo. No Kremlin. Seu primeiro cargo foi como diretor do Departamento de Propriedades Estrangeiras — tudo aquilo fora da Rússia que a URSS havia deixado de legado. Dos palácios das embaixadas às bases militares ao que não estava registrado. Em sete meses tornou-se chefe de Controle. Era quem garantia que os governos provinciais seguissem as ordens do presidente. Em um ano, virou vice-chefe de gabinete. O número dois da estrutura administrativa do palácio presidencial.


Em 1997, agora claramente com a patente oficial de tenente-coronel da reserva, assumiu o comando da FSB, a sucessora da KGB. Nos dois meses seguintes, seu principal rival em São Petersburgo foi preso e a mais importante ativista democrata do país, Galina Starovoitova, foi assassinada em condições ainda hoje misteriosas.


Apesar do documentário, que teve alcance curto, Putin passou quase todo este período nas sombras. Quando 1999 entrou, ele não era um rosto conhecido dos russos. Domou, sim, a máfia de São Petersburgo — é a única ação que pode ser concretamente atribuída a ele. Mas não é claro o que mais fez para galgar tão rápido degraus dentro do Kremlin. E, como estava longe dos holofotes da imprensa, suas ações foram pouco registradas. Mais de um biógrafo entrevistou membros do grupo Família que cercava Yeltsin tentando compreender porque ele, dentre tantos, foi o escolhido.


Ele tinha exatamente o perfil que poderia inspirar confiança na população russa, uns disseram. Ele era de nossa confiança, disseram outros. Tinha pouca ambição. Seria fácil de controlar. Seria leal.


Presidente


Boris Berezovsky era um matemático, um acadêmico, quando a URSS acabou. Naquele caos, quando as máfias locais buscavam a única fábrica de automóveis do país para comprar carros baratos e revender, aproveitando-se de um gerente corrupto que embolsava o dinheiro, ele percebeu uma oportunidade. Chegou ao gerente e ofereceu para comprar a produção de mais de um ano, pagaria uma parte como adiantamento e o resto ao longo do tempo. O homem não havia percebido, mas Berezovsky sim — a inflação ia comer aquele valor nos anos seguintes. Com a fortuna que acumulou rápido, tornou-se sócio de uma das maiores companhias petroleiras do país e o principal dono do principal grupo de mídia que tinha no antigo canal de TV estatal sua estrela. Dos oligarcas que se tornaram bilionários após a implosão do mundo comunista, foi o único que se manteve fiel a Yeltsin até o fim.


Quando percebeu que as conversas no Kremlin indicavam mesmo a escolha de Putin como sucessor, tomou um avião para a França onde encontrou o diretor da FSB num modesto apartamento alugado para as férias de verão. Lá estava Volodya, apertado numa salinha com a mulher e duas filhas correndo para cá e para lá, um russo de classe média que se comportava como quem conta o dinheiro. Queria ser ele, Berezovsky, o primeiro a sondar a respeito da indicação do presidente para que virasse primeiro-ministro.


Berezovsky desejava fazer parecer a Putin que ele lhe devia esta. Saiu bem impressionado com a humildade do homem.


No Réveillon de 1999, Yeltsin surpreendeu a Rússia com um discurso (assista) em que, comovido, anunciava sua renúncia. A câmera cortou para o primeiro-ministro que assumiria como interino em seu lugar (assista). Para muitos, era a primeira vez que viam seu rosto. Um homem miúdo, ainda não totalmente confortável com a câmera, um presidente acidental.


Àquela altura, porém, Vladimir Vladimirovitch Putin havia deliberadamente construído a história pela qual seria conhecido. Na KGB, nunca teve as promoções que desejou, havia sido sempre um burocrata, um cortador de clippings. Cresceu humilde. Não desejava, nunca procurou, poder. Era só eficiente.


Mas Putin trabalhou no centro da máquina de desinformação da KGB. Não é possível afirmar que ele era um dos agentes que faziam parte da Operação Luch, mas recém-chegado da Alemanha quase instantaneamente já estava numa posição chave do segundo mais importante governo municipal do país. Sua função, na lida discreta com o problema da máfia, era tipicamente uma função de KGB. O fato de que todos no círculo de Yeltsin se mostrassem tocados pela humildade, pela falta de ambição do homem que governa a Rússia faz 22 anos, também diz muito.


Sua arte marcial é o judô. A luta do homem pequeno que usa a força do grande para derrotá-lo. Não é uma metáfora vazia — Putin pensa sobre isso. Escreveu livros sobre judô.


A visão


Em agosto de 2000, quando Putin estava recém-eleito presidente — agora não mais interino —, afundou no Mar de Barents um submarino nuclear russo. O Kursk. O governo britânico e o norueguês ofereceram ajuda para o resgate, o Kremlin recusou. O presidente estava de férias, enquanto atrapalhada a Marinha tentava descobrir como lidar com a crise. A imprensa, incluindo o Canal Um de Berezovsky, passou a fazer uma cobertura pesada do país em comoção. E o governo paralisado. Putin demorou cinco dias para voltar ao Kremlin e, enfim, visitar o porto onde estavam as famílias. Foi um desastre de relações públicas.


Após discursar para as famílias dos marinheiros desesperados, falando às câmeras e aparentando completa indiferença com quem sofria ali na sua frente, o presidente ficou furioso com a cobertura do canal de seu aliado. Sergei Dorenko, na época o mais popular âncora do país, conta ter recebido um telefone de Putin em ira. Ele o acusava, convicto, de que a TV havia contratado prostitutas para que se fizessem passar pelas viúvas dos homens mortos.


Para o presidente, Dorenko entendeu ali, é quase como se não houvesse realidade, como se tudo fosse um teatro que o mais competente construía para fisgar o público. Berezovsky achou que controlaria Putin. Terminou sem seu canal de TV e exilado em Londres.


Em 2003, outro oligarca, Mikhail Khodorkovsky, desafiou o presidente. Era o homem mais rico do país, dono da maior companhia petroleira. Foi preso em 2004 acusado de corrupção. Obrigado a vender sua empresa. Após anos na cadeia, partiu para o exílio em 2013.


Aquilo que Putin havia feito com a máfia de São Petersburgo, ele fez em maior escala com os homens que enriqueceram nos espólios da URSS. Hoje, os oligarcas sabem quem manda. A liberdade de imprensa que havia existido no país foi lentamente se desfazendo. O governo dita a maneira como as histórias são contadas.


Em finais dos anos 1980, quando ficou claro que a URSS iria se desmanchar, um grupo de agentes da KGB iniciou uma operação para se sustentar após o fim, penetrar na estrutura do novo regime e reconstruir o império.


Stierlitz, o agente da ficção que por anos fez-se passar por alemão e discreto ascendeu na hierarquia da SS para enfim permitir a tomada de Berlim pelo Exército Vermelho não é só um personagem fictício. É uma operação de propaganda, construída nos anos 1960 após a denúncia dos crimes de Josef Stálin, para recuperar a imagem da KGB. A série de TV foi filmada com agentes de inteligência nos sets acompanhando a construção das cenas para garantir que o livro iria para a tela com o mesmo objetivo. Foi uma operação de propaganda oficial que produziu o mais popular programa de televisão da história da URSS, uma minissérie retransmitida anualmente até o colapso do regime, ainda hoje referência pop para uma geração que chega aos 70.


O comunismo, em verdade, é irrelevante. O que importa é a visão da Rússia grande. Uma visão que é contada como uma história por quem sabe construir histórias no corredor de espelhos onde a realidade se perde. Stierlitz vive.


Este perfil teve por base três livros e uma série em podcast. São Putin’s People, de Catherine Belton; The Man Without a Face, The Unlikely Rise of Vladimir Putin, de Masha Gessen; Putin’s World, de Angela Stent; e o podcast "Putin, Prisoner of Power", de Misha Glenny.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Venezuela: como o poder chavista corrompeu eleicoes e fraudou a politica - Pedro Doria

Pedro Doria - Editor Executivo do Jornal O Globo

Em outubro de 2012, quando Hugo Chávez se elegeu pela última vez presidente da Venezuela, eu estava em Caracas cobrindo o pleito para O Globo. Foi uma baita aula de eleição venezuelana.

Quando o domingo de eleição chegou, eu já havia ouvido de um dos ministros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) seus anseios; havia conversado com demógrafos, tinha as últimas pesquisas de opinião de cor. Entendia a distribuição geográfica e social dos votos de Henrique Caprilles e do presidente. Havia assistido a comícios de ambos os candidatos, todos incrivelmente cheios, todos otimistas. Naquela manhã, qualquer um poderia encontrar uma pesquisa para seu gosto: vitória folgada de um, vitória folgada do outro. As duas pesquisas com maior histórico de acerto em pleitos passados davam uma vantagem ligeira para a oposição.

Passei uma boa parte do dia em Petare, maior favela da capital. Ali, Caprilles havia sido eleito governador de Miranda pouco tempo antes.

(Pausa: erro comum a respeito de Venezuela. Não é 'pobre vota chavismo' e 'rico vota oposição'. Muitos ricos ganharam seus Humvees e BMWs por conta da política bolivariana; vi mais carros de alto luxo em uma semana de Caracas do que em cinco anos de São Paulo ou em um ano de Vale do Silício. Na mesma toada, o chavismo piora a vida de muitos pobres. Mais sobre isso à frente.)

Mais de uma vez assisti, em Petare, a voto de cabresto. Daqueles escancarados. De o presidente da mesa acompanhar o eleitor à urna "para ensiná-lo". Duas, três, quatro. Em uma das vezes, filmei. Também escancaradamente. Eu, um repórter estrangeiro, com credencial pendurada no pescoço, o iPhone travado à frente, sem disfarce. Neste caso, era um fiscal do PSUV que ajudava a senhorinha. Nem ligou. O que estava fazendo lhe era tão natural que não parecia errado. Alguém está filmando? E daí? O vídeo, publicado no site do Globo, foi trending topics na Venezuela por uma semana e tanto.

Quando saíram as pesquisas de boca de urna apuradas até as 13h, todas apontavam vantagem ligeira de Caprilles. A turma do PSUV se trancou em silêncio, nenhum jornalista conseguia acesso ao mais reles assessor. A da oposição, por sua vez, vivia uma ansiedade de que, nem acreditam, mas parece estar próximo. Havia a possibilidade de uma eleição histórica. Já à noite, na sede do CNE, os boletins começaram a demorar. Decidi com alguns companheiros rumar para o comitê Caprilles. Se Chávez fosse reeleito, 'mas de lo mismo', tudo como dantes; por outro lado, haveria história.

Aí veio o telefone: 'Gana Chávez', me informou um colega, repórter de um diário caraquenho, com suas boas fontes no CNE. A vantagem seria apertada, o anúncio ainda demoraria uma hora. Twittei, passei a notícia para o site. E meu motorista estava chorando. Ele acreditara numa vitória Caprilles. Era otimismo só o dia todo. Agora, tinha todos os motivos do mundo para chorar. Sua filha: onze anos. Viviam em um bairro pobre. A escola pública mais próxima de sua casa era excelente. Mas, lá, a menina não conseguia vaga. Por quê? Porque o pai não andava de vermelho, não fazia o serviço do partido. Uma vitória de Caprilles, para ele, era vaga naquela escola. Uma de Chávez era 'más de lo mismo', era tudo como dantes. Para a menina, seis anos de Chávez a levavam numa escola ruim até quase o fim da adolescência. Aquela notícia era uma pequena tragédia pessoal. Sua educação seria pior. Suas oportunidades de chegar à faculdade, piores. Seu futuro era permanecer onde estavam seus pais. E o homem chorava seu vazio.

Quando a manhã do dia de eleição fechou para Caprilles, a máquina bolivariana entrou em ação. Motoqueiros, carros e ônibus foram às ruas em todo o país, na direção dos lugares onde o chavismo era mais forte. Lá, o voto não é obrigatório. E o movimento tem uma capacidade ímpar de mobilização. Os homens e mulheres do partido começaram a bater à porta. 'Já votou?', 'Então venha, Chávez conta com vc.' Fazer o quê? Foram. Seções escolhidas ficaram abertas até muito além do horário e filas ainda se formavam depois das 17h, outras seções fecharam com o rigor da lei.

Cada um daqueles votos depositados em favor de Chávez existiu.

O país estava, como está, rachado. Cindido ao meio. No tempo de Chávez vivo, uma vitória estreita seria sempre impossível para a oposição. Porque vitória estreita a máquina conseguia virar na força bruta. Só que a crise econômica está pior. Será que a margem seria ainda estreita? E Chávez não está mais vivo. De que adianta? Maduro ainda vive o primeiro anos de muitos no mandato. Um Golpe governista? Talvez. Um impeachment? Com o atual Congresso, impossível. Que nem se fale do Supremo. Uma queda por fadiga de material? Talvez. Mas com que formato? Quem assume?

À distância, cada dia desses, me bate uma certa angústia. É muito barra pesada ver em cada esquina o retrato de Chávez ou de Bolívar. O culto à imagem de um país soviético. A truculência dos motoqueiros de vermelho. Os carros de luxo na rua. O altíssimo índice de latrocínios na capital. A falta de papel higiênico no supermercado. A multa para quem consome luz em excesso. Os apagões.

Quem acha que o Brasil do PT parece a Venezuela do PSUV não tem a mais vaga ideia do que aquele pobre país se tornou.