Participei, nesta tarde, de uma conversa com o sociólogo Renato de Oliveira, sobre temas da diplomacia e da sociologia do desenvolvimento, cujo video está disponibilizado neste link: https://www.facebook.com/100055583565581/videos/230131248849659/?d=n
Abaixo transcrevo o texto que eu tinha preparado para a ocasião, mas que obviamente não li.
Rupturas na diplomacia e desenvolvimento interrompido do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
[Objetivo: notas para entrevista oral; finalidade: debate público sobre diplomacia e Brasil]
1) O Itamaraty sempre foi reconhecido por assegurar um alto nível de formação do seu pessoal, e os diplomatas brasileiros sempre foram respeitados no exterior por sua alta capacidade de representação e negociação, projetando o Brasil como um "player" importante no cenário internacional, apesar dos nossos problemas estruturais internos. De onde surgiu um Ernesto Araújo? É possível falar de uma reação obscurantista na diplomacia brasileira que acabou sendo cooptada pelo bolsonarismo?
PRA: A constatação sobre a excelência dos quadros do Itamaraty é a opinião comum no Brasil, embora haja um pouco de exagero na qualidade, isenção ou adequação do corpo de funcionários da diplomacia profissional para fins de desenvolvimento do Brasil ou para a inserção do país na economia global. Somos funcionários bem preparados, mas certamente enquadrados num ambiente que funciona entre a meritocracia e estruturas feudais de comando e controle. Como para os militares, os dois princípios de funcionamento da Casa, sempre repetidos pelos barões do Serviço Exterior, são hierarquia e disciplina, e existe uma grande dependência dos quadros subalternos das chefias ou do gabinete, para quase tudo na carreira: promoções, chefias, postos, prebendas, etc., daí a estrita obediência aos chefes.
Ernesto Araújo é típico burocrata cinzento, que viveu trinta anos enquadrado no espírito da Casa, embora pudesse ter, mas escondidos, seus sentimentos e posturas pessoais de cunho religioso e ultra conservador. Mas passou incólume por mandatos tucanos e petistas sempre cumprindo fielmente seus deveres, no sentido mais anódino da palavra: disciplinado, obediente, respeitoso dos superiores e demonstrando perfeita conformidade com a ideologia do momento: tucanices na era FHC, quando ainda tínhamos uma diplomacia normal, adesão ao lulopetismo diplomático quando foi o caso, defendendo fielmente todas as posturas daquele momento, e isso está documentado. Provavelmente, quando da ascensão da Direita, a partir de 2013 e, sobretudo depois do impeachment de 2016 e a conformação da candidatura do capitão, ele se aproveitou do momento para, de maneira totalmente oportunista, se abrir aos futuros donos do poder para oferecer seus serviços. Ele o fez de forma clandestina, e até de forma ignóbil, pois se uniu a pessoas despreparadas para conduzir a política externa e não hesitou em submeter-se à vontade dos ineptos para praticamente destruir o Itamaraty. Ele certamente merece o desprezo de seus colegas de carreiras por todas as vergonhas a que foi conduzida a diplomacia brasileira, numa das derrocadas mais avassaladoras a que foi levada a diplomacia profissional e a qualidade do Serviço Exterior brasileiro.
Não existe NENHUMA “reação obscurantista na diplomacia brasileira que acabou sendo cooptada pelo bolsonarismo”, pois o perfil típico do diplomata profissional é o de um quadro muito bem informado, geralmente progressista, totalmente engajado nos grandes princípios e valores da diplomacia brasileira, historicamente, que são os do multilateralismo, da aderência ao Direito Internacional, aos da democracia, dos direitos humanos e da cooperação internacional e da integração regional e da inserção do Brasil no mundo. Nada a ver, absolutamente nada, com a agenda da extrema-direita reacionária, avessa ao verdadeiro liberalismo, antiglobalista e cerceadora dos direitos das minorias e desse ambiente que pode ser chamado de politicamente correto, que é o ambientalismo contemporâneo, dos direitos sociais numa perspectiva avançada, sem cultivar qualquer tipo de ideologia sectária, como é o caso dessa horrível direita conspiratória, primariamente anticomunista e antimultilateralista. Todas essas coisas são perfeitas aberrações, que chocam a vasta maioria dos diplomatas, o que não exclui que também existam aqueles sinceramente conservadores, ou direitistas, mas que sempre se enquadraram nos ares do tempo e serviram ao país da melhor forma possível. Sempre existem aqueles que por puro oportunismo carreirista resolver aderir ao novo credo da chefia, até com certo entusiasmo, o que poderá ser um problema para eles no futuro, quando o Itamaraty voltar a um comportamento normal, digamos assim, livre das loucuras e da completa esquizofrenia da fase atual.
2) O Brasil já pagaria um alto preço por seu isolamento internacional se o mundo continuasse o mesmo no pós-pandemia. No entanto, há tendências mais ou menos evidentes de que muitas coisas mudarão, sobretudo com os Estados nacionais (incluindo a Europa entendida como tal, apesar das suas dissensões internas) recuperando um protagonismo, sobretudo na formulação de políticas econômicas, que havia sido muito relativizado durante a globalização. Isto implicará mudanças estruturais nas políticas exteriores dos países líderes da economia mundial. Que cenário se pode desenhar para o Brasil? Como a diplomacia poderia ser um agente ativo para a recuperação econômica no novo cenário mundial?
PRA: Essa radicalização direitista, quase fascistoide, da diplomacia e do governo brasileiro atual vai ser superada em algum momento, e a diplomacia brasileira vai ser restaurada em suas grandes linhas tradicionais, de equilíbrio, ponderação, adequação aos grandes princípios que sempre guiaram nossa política externa, e tudo isso que ocorre hoje será um pesadelo a ser superado. Algumas sequelas persistirão durante algum tempo, como a perda de credibilidade de nossa postura junto a grandes parceiros internacionais, dos quais estamos temporariamente afastados ou com baixo nível de interação. A verdade é que existe um desgoverno geral no Brasil, dado que o chefe de Estado é um inepto despreparado, um, obsessivo com seus interesses pessoas, totalmente incompetente no exercício e no manejo da política externa, e jamais corrigido ou orientado adequadamente por um chanceler acidental que é totalmente submisso às loucuras dos seus chefes. Além de destruir o Itamaraty como instituição respeitável, ele conduziu o Brasil à pior situação no contexto internacional, aliás reconhecido por ele mesmo, ao confessar que não tinha problemas com nossa atual condição de pária internacional.
Mas os diplomatas são muito submissos para ensaiarem um movimento de revolta contra todos os horrores que ocorrem atualmente na política externa e na diplomacia. As reações ao descalabro vieram de diplomatas aposentados e de figuras do jornalismo e da academia, com uma quase unanimidade na reprovação. Eu sou praticamente o único diplomata da ativa que ousa protestar publicamente e rejeitar completamente a demolição que ocorre hoje na diplomacia brasileira, que é, por sinal, o título de meu próximo livro, depois de três que já publiquei neste ciclo de críticas ao bolsolavismo diplomático: Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras e Uma certa ideia do Itamaraty (ambos de 2020).
Tenho certeza de que a reconstrução da política externa e a restauração do Itamaraty começaram assim que conseguirmos nos livrar daqueles que eu chamo de novos bárbaros, uma vez que eles são perfeitamente bárbaros destruidores da antiga qualidade de nosso Serviço Exterior. Haverá algumas sequelas, entre eles o isolamento dos muito convertidos à obra de destruição, mas depois o Itamaraty voltará a servir o Brasil como sempre fez.
3) Retornando a F. Fernandes... Em “A Revolução Burguesa no Brasil”, ele defende a tese de que a oligarquia brasileira, convertida em burguesia por força dos influxos do mercado internacional, utilizou seu controle sobre o Estado para impedir o desenvolvimento pleno de uma racionalidade capitalista no plano interno, mantendo formas arcaicas de produção do excedente econômico e assegurando seu controle sobre o mercado por mecanismos extra-econômicos. Ou seja, o empresário brasileiro conquista hegemonia no mercado não por sua competência econômica, mas por controlar o Estado, impedindo a generalização da competitividade como padrão de organização da economia. Esta tese traz alguma luz sobre a situação atual do Brasil, seja do ponto de vista do retrocesso da economia, cada vez mais dependente de commodities, seja do ponto de vista do retrocesso nas relações internacionais, como se houvesse uma vocação de "ser periférico"?
PRA: Conheço bem toda a obra do mestre da Escola Paulista de Sociologia, em especial seu magnum opus, justamente A Revolução Burguesa no Brasil, e comecei minha tese de doutoramento com a intenção de comprovar e reafirmar seus argumentos principais nessa obra muito profundamente, mas também muito desigual: ela começa por uma postura weberiana-funcionalista muito explícita em sua primeira parte para terminar com tomadas de posição quase leninistas em seu conteúdo explicativo sobre as razões da autocracia burguesa e a persistência do não desenvolvimento. No curso de minhas leituras paralelas à obra de Florestan Fernandes, de Nikos Poulantzas, de Immanuel Wallerstein e de outros adeptos da teoria da dependência, fui revisando meus próprios argumentos, com, base num estudo muito detido das revoluções burguesas e do desenvolvimento do capitalismo periférico, sobretudo com base na leitura de Barrington Moore Jr, assim como de outros autores, o próprio Weber, Marx, naturalmente, mas também Fernand Braudel, Albert Hirschman e uma pletora de outros autores, em história, sociologia, política e desenvolvimento econômico. Devo também ao fato de ter viajado muito pelo mundo, em todos os socialismos e capitalismos realmente existentes, em diferentes países em desenvolvimento, a aquisição de uma visão bem mais matizada dos nossos problemas de desenvolvimento na América Latina, do que aquela que considero excessivamente acadêmica, e puramente conceitual, que é a de Florestan Fernandes e de muitos dos que o seguem na academia.
Dito isto, é preciso considerar que, sim, não exatamente os empresários brasileiros, mas as suas oligarquias, as suas elites econômicas e políticas preservaram formas arcaicas de relações de produção e de trabalho – o tráfico, a escravidão – e impuseram ao conjunto da sociedade uma dominação e controle do Estado que lhes permitiu preservar privilégios, não apenas no controle da terra e do patrimônio fundiário de modo geral, mas na ausência total de algum projeto que permitisse educar o conjunto da população, ademais de outras orientações em política econômica – como o mercantilismo, o protecionismo – que obstaculizaram um processo mais avançado de crescimento econômico e de desenvolvimento social. Não existe uma racionalidade capitalista em abstrato, apenas a extração de recursos a partir da dotação de fatores e das vantagens comparativas do país, e eles estavam na abundância de terras, mas monopolizadas em favor da oligarquia latifundiária, na oferta elástica de mão de obra escrava e depois de imigrantes de baixa escolaridade, e esse controle do Estado, que facilitou todos os comportamentos predatórios por parte dessas elites. E com isso fomos nos arrastando ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Os impulsos de industrialização, vindas do alto, e muito vinculadas ao próprio Estado, permitiram alguma mudança de estruturas – como analisada em obras de grandes mestres, como Caio Prado, Celso Furtado e o próprio Florestan Fernandes –, mas não foram suficientes para liquidar com velhos traços patrimonialistas, oligárquicos, mandonistas e centralizadores de nossas tradições políticas, o que redundou num país – sobretudo depois de completada a industrialização de JK aos militares – razoavelmente industrializado, mas apartado da economia mundial e sem ganhos de produtividade para nos inserir na economia global, dada a baixíssima qualificação do capital humano. As teses de Florestan Fernandes podem ser interessantes para elegantes digressões acadêmicas mas não servem muito para equacionar os problemas estruturais e os desafios sistêmicos do Brasil, a não ser na sua absoluta condenação da não-educação, a ausência completa de um projeto de qualificação da mão-de-obra depois da abolição da escravatura. Ele foi um dos pioneiros da educação brasileira, em sua segunda fase, a dos anos 1950 e 60, depois dos pioneiros dos anos 1920 e 30, como Anísio Teixeira, Fernando Azevedo e vários outros. Nisso, Florestan Fernandes estava inteiramente certo, muito embora ele tenha atuado bem mais na superestrutura da educação – isto é, o terceiro ciclo, como aliás fizeram os militares – do que na sua infraestrutura, a educação básica e técnico-profissional.
O Brasil não é dependente de commodities, ou não há problema algum em continuar exportando, como fizemos durante séculos, produtos de base, agrícolas e minerais, se não fossemos dependentes de nossa péssima educação de base e de um fechamento do país ao mundo, o que nos deixa relativamente apartados do das faixas mais elásticas do comércio internacional e dos investimentos diretos estrangeiros. Nosso retrocesso industrial não é definitivo e podemos voltar a uma maior capacidade competitiva nessa área, se soubermos efetuar reformas radicais em diversas áreas da economia e das políticas setoriais, sobretudo em educação, tecnologia e trabalho. A razão principal de nosso relativo subdesenvolvimento é que nossas elites são medíocres, não tão atrasadas materialmente, mas mentalmente. O atual retrocesso nas relações internacionais é temporário e passageiro, pois que temos ineptos absolutos no comando da diplomacia e da política externa, mas isso também pode ser superado em algum tempo, sem prejuízo maior para o Itamaraty. As relações externas não são, contudo, o terreno preferencial das reformas, que se situam todas no plano interno.
Eu resumiria os requerimentos para um processo de crescimento sustentado, com transformações produtivas e distribuição social dos resultados desse crescimento num conjunto de cinco elementos estruturais: uma macroeconomia estável, uma microeconomia competitiva, uma boa governança, sobretudo no Judiciário, um capital humano de alta qualidade e abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Podemos abordar essas questões mais a fundo, como já fiz em diversos trabalhos meus. Em todo caso, as reformas nessas grandes áreas têm pouco a ver com a qualidade de nossos diplomatas e tudo a ver com a qualidade de nossas lideranças econômicas e políticas, pois estas parecem estar singularmente paralisadas por um cenário político divisivo, disputado por populismos de direita e de esquerda, o que obviamente não facilita muito a caminhada em torno de soluções de consenso, ou seja, reformas graduais naquelas áreas selecionadas para atuação a partir do Estado ou da própria sociedade. Infelizmente, nossas elites são patrimonialistas, corporativas, prebendalistas, fisiológicas, e basicamente indiferentes à sorte das camadas mais humildes da população, quando não egoístas e consciente ou inconscientemente predatórias (ou seja, não interessadas na resolução da enorme desigualdade social e regional ainda existente no país). Para que ocorram mudanças reais nas relações de poder e nas estruturas econômicas, políticas, educativas, isso vai exigir um grande esforço por parte de líderes com perfil de estadistas nas próximas fases de nosso itinerário político.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3869, 15 de março de 2021
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Estimado Embaixador Paulo Roberto de Almeida.
O motivo desta mensagem, além de saudá-lo, é fazer-lhe um convite.
Estou organizando um canal de debates políticos, econômicos e sobre políticas públicas sobre Brasil e América Latina. O projeto, mais ambicioso, é organizar um centro independente de estudos e debates sobre estes temas, e já tive oportunidade de organizar entrevistas/debates com o arquiteto Jorge Francisconi, de Brasília, com o economista Victor Hernandez Roldan, da Universidade de Concepción, Chile, e estão previstos um com o cientista político Maurício Jaramillo Jassir, da Universidade del Rosário (Colômbia) sobre as recentes eleições equatorianas, nesta próxima quinta, e com o economista Carlos Leyba, ex-Subsecretário de Economia da Argentina e professor da Universidade de Buenos Aires, no próximo dia 18.
Gostaria de convidá-lo para uma entrevista sobre os problemas da política externa brasileira. Mais além da atuação ridícula e deplorável do chanceler "acidental", creio que estão sendo criados alguns problemas estruturais pelos quais o país pagará um alto preço: não só estamos perdendo a característica de "soft power" que, me parece, constituiu a essência da respeitabilidade que o Brasil conquistou em sua política externa independente, como perderemos o bonde dos rearranjos internacionais decorrentes da pandemia e das mudanças nas regras do jogo da economia mundial, que colocam em xeque grande parte dos pressupostos da globalização. A recente determinação do governo Biden de examinar 50 cadeias produtivas da economia norteamericana visando identificar os elos de maior dependência externa, bem como a anunciada injeção de mais de 1 trilhão de dólares para minimizar os efeitos sociais da pandemia e recuperar a economia - o que, aliás, coincide com igual iniciativa da Comunidade Europeia, que prevê inclusive transferências financeiras a fundo perdido para os países da Europa Meridional - parece indicar claramente uma retomada do protagonismo dos Estados nacionais no xadrez econômico internacional. Isto por certo trará novas exigências em política externa para o Brasil, que desindustrializou-se nas últimas décadas e ainda não conseguiu formular uma estratégia de inserção competitiva nos mercados internacionais que não seja como produtor de commodities.
Creio que são temas relevantes para se pensar uma saída da crise em que estamos mergulhados, e gostaria muitíssimo de contar com sua abordagem, além de, por suposto, sobre outros temas que V. Sa. julgar de interesse.
As entrevistas ocorrem através da plataforma StreamYard, às quintas feiras às 18h, com transmissão ao vivo pelo Facebook, ficando posteriormente disponíveis no YouTube.
É desnecessário frisar a importância da sua colaboração, se ela for possível.
Aguardando sua resposta,
Atenciosamente,
Renato de Oliveira (oliveira.remar@gmail.com)
Professor aposentado - UFRGS - Depto de Sociologia
Sociólogo - Consultor