Três grandes desafios dos novos diplomatas brasileiros
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Notas para Aula Magna em curso preparatório a concurso para a carreira diplomática
Em 2001, elaborei, com base num pequeno livro, Quatro Regras de Diplomacia, escrito no último quinto do século XIX por um diplomata do regime monárquico português, um texto relativamente simétrico, mas ampliando aquelas ideias num novo texto a que dei o título de “Dez Novas Regras de Diplomacia”, e que se tornou, na sequência, um dos meus textos mais acessados neste primeiro quarto de século XXI. Nesse trabalho, eu retomava uma ou outra das boas regras do colega português, como o de manter um estilo conciso e objetivo na escrita, por exemplo, mas rejeitava outras, por anacrônicas. Ele pode ser lido no blog Diplomatizzando (16/08/2015, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/dez-regras-modernas-de-diplomacia-paulo.html).
Mais tarde, efetuei uma revisão do trabalho, sob o título de “Dez regras sensatas para a diplomacia profissional”, anexa ao livro Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira; essa versão pode ser conferida no mesmo blog (19/08/2021: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html). Ambos os exercícios se destinavam apenas a fornecer aos candidatos à carreira uma visão de minhas próprias concepções sobre o trabalho diplomático, a atitude ou postura que me pareciam mais adequadas ao desempenho na profissão, com base numa certa independência intelectual em face de alguns “dogmas” da instituição à qual servi por mais de quatro décadas.
O exercício que proponho aqui tem o mesmo espírito geral, e se destina a fornecer aos novos colegas, recém ingressados no Itamaraty, algumas ideias próprias sobre como encarar os desafios que se abrem aos que iniciam uma trajetória numa das mais interessantes e diversificadas carreiras da burocracia federal, uma trajetória que eu mesmo percorri no plano profissional, com grande satisfação pessoal, por sinal combinada a atividades acadêmicas que também constituíram um dos fulcros de minhas preferências intelectuais.
1. Ter uma noção precisa do que é o sistema internacional, à margem de quaisquer discursos de autoridades governamentais.
O mundo não é exatamente como pretendem que ele seja os líderes das grandes potências, nomeadamente os presidentes dos Estados Unidos, da China e da Rússia, este último empenhado em construir o que ele chama, vagamente, de “nova ordem global multipolar” (sic), mas que representa apenas aquilo que os dirigentes das duas grandes nações euroasiáticas desejam colocar no lugar da atual “ordem” mundial, caracterizada pelo que é tido por uma hegemonia americana sobre as principais instituições internacionais. A chave desse conhecimento passa por uma leitura dos bons livros de relações internacionais e, sobretudo, da imprensa com reputação consagrada no plano global e nacional, mais pelo lado das reportagens do que pelo lado das colunas de comentaristas, ainda que alguns deles sejam reputados. As principais redes de comunicação trazem um resumo diário do que ocorre de relevante no planeta, após o que cabe selecionar as matérias relevantes e procurar lê-las por completo. Algumas boas análises acompanham naturalmente essa seleção, a partir da qual se pode ir estabelecendo algumas preferências individuais para aprofundamento da pesquisa.
O grande desafio nessa vertente seria o retomar nossa tradição de nação autônoma em relação aos conflitos interimperiais e de mirar exatamente nos interesses nacionais de desenvolvimento econômico e social, descartando ideias extemporâneas e inadequadas de “nova ordem global multipolar”, uma noção tão bizarra quanto a de um Sul Global unificado e convergente em seus objetivos prioritários.
2. Ter uma noção precisa de como é o Brasil, nos planos regional e internacional, independentemente da retórica governamental sobre a integração.
Ortega y Gasset dizia que somos o que somos mais nossas circunstâncias, ou seja, o contexto imediato de nossa existência com todas as suas limitações e peculiaridades. O Brasil tem na América do Sul a sua circunstância imediata, ainda que ignorada durante boa parte de nossa história, mais voltada para o Atlântico Norte, para os países de origem e para aqueles que moldaram nosso perfil contemporâneo. A América do Sul aparenta ter similaridades econômicas, sociais e culturais, mas o desenvolvimento histórico diferenciado desde a independência construiu um perfil próprio a cada um, ainda que relativamente unificado quanto a sucessos e fracassos no plano do sistema global.
É um fato, por exemplo, que tendo apresentado renda e desenvolvimento econômico mais avançado que as nações asiáticas durante certo tempo no século XX, o continente sul-americano foi significativamente ultrapassado pelas economias emergentes do Sudeste Asiático. Estas foram mais propensas a entrarem acordos de livre comércio, entre si e com potências econômicas da região e fora dela, do que o foram os países sul-americanos nos poucos acordos que possuem reciprocamente ou no contexto mais amplo. Uma simples visualização de um mapa das cadeias mundiais de valor traduz graficamente essa diferença.
O Brasil, como país economicamente mais avançado do continente, poderia liderar um avanço para a constituição de um espaço econômico na região, e se não o faz deve ser por um renitente protecionismo que não condiz com nossa condição de economia mais forte da região. Esse é um grande desafio, que poderia ser assumido pela nova geração de diplomatas brasileiros.
3. Ver no Itamaraty uma instituição de Estado, voltado para os interesses nacionais, acima de quaisquer peculiaridades partidárias, preferências ideológicas ou propensões políticas momentâneas.
A política externa, como sabemos, é determinada pela chefe de Estado e de governo, em nosso sistema presidencialista, cabendo aos diplomatas profissionais a operacionalização dessa política por meio dessa ferramenta burocrática que é o Itamaraty. O Brasil atravessa uma fase de transição política pouco compatível com o estabelecimento de uma política externa coerente não só com os grandes interesses nacionais, assim como princípios e valores constitucionais, que são também os tradicionais do Itamaraty. Na atualidade, atravessamos não só mais um capítulo de uma diplomacia ultra presidencialista, como também uma que é essencialmente personalista, o que nem sempre se coaduna perfeitamente com parâmetros que supúnhamos normais no contexto de nossa história institucional.
O desafio que aqui se apresenta aos jovens diplomatas é o de tentar impulsionar interesses permanentes da nação e do Estado, à margem e por vezes, num sentido algo diverso daqueles interesses momentâneos, partidários ou ideológicos, que possam ser preferidos por dirigentes pouco dotados de expertise em relações exteriores.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4815, 20 dezembro 2024, 3 p.
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