Pouca gente circulava nas ruas do centro do Rio de Janeiro no fim da tarde da última sexta-feira, como costuma acontecer desde a pandemia. Mas uma pequena multidão disputava as últimas cadeiras disponíveis em um auditório da Academia Brasileira de Letras para assistir a uma palestra do embaixador Rubens Ricupero.
Ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e da Amazônia na década de 90, ele foi escalado pela academia para falar sobre o “Brasil em um mundo de acelerada transformação”, dentro do ciclo de debates sobre o bicentenário do país.
Aos 85 anos, ele lançou duas perguntas à audiência. A primeira, mais histórica: o que se fez na diplomacia nos últimos 200 anos? A segunda, prospectiva: o que se pode fazer ao longo dos próximos 100 anos?
As duas perguntas indicam uma terceira, que deveria estar no centro dos debates quando o país chega aos dois séculos de independência: qual é o lugar do Brasil no mundo neste começo do século 21?
Para Ricupero, poucos países devem tanto à diplomacia como o Brasil, que hoje tem um território dois terços superior ao que teria inicialmente e que vive em paz há 152 anos com todos os seus vizinhos.
Coube ao Barão do Rio Branco no início do século 20, como recordou o embaixador, tecer a estratégia de política externa adotada como bússola por décadas à frente. A postura do Brasil, segundo o antigo chanceler, era a de um país “amante da paz, conciliador e avesso à loucura das hegemonias”.
O otimismo do Barão o levou, durante discurso em 1905, a prever que o Brasil estaria entre as maiores nações da América Latina que, a seu ver, alcançariam em 50 anos condições de se colocar, juntamente com os Estados Unidos, entre as mais poderosas do mundo.
Não chegamos nem perto disso. E, neste início de século, o Brasil bicentenário está diante de um mundo tomado por múltiplas crises. Depois da crise financeira de 2008, recordou o embaixador, ocorreram o “retorno com força” da extrema direita, a ameaça de uma nova guerra fria, desta vez entre Estados Unidos e China, e a invasão da Ucrânia.
Como se isso não bastasse, o mundo sofre com catástrofes naturais “com digital humana”, como a pandemia e o aquecimento global. Ameaças contra as quais de nada vale o poder militar e econômico e que exigem cooperação em tempo de renovadas rivalidades geopolíticas.
É diante desse cenário cheio de desafios que se coloca a segunda pergunta: o que fazer nos próximos 100 anos? Ou, em outras palavras, como o Brasil quer se colocar no mundo?
As reflexões bem que poderiam ter lugar de destaque nas campanhas eleitorais desse ano do bicentenário. Mas cedem espaço, em momento de radicalização política, à discussão de medidas econômicas de curto alcance e a novos episódios das guerras culturais.
O próprio 7 de setembro foi raptado pela disputa eleitoral. A data nacional passou a ser vista como o momento máximo de mobilização promovida pelo atual governo em busca de reeleição. Uma celebração partidária, longe de uma data a ser pacificamente celebrada por toda a nação.
Longe dos comícios, Ricupero ensaiou, em sua palestra na Academia Brasileira de Letras, possível resposta aos atuais desafios internacionais. Se não é possível atender às expectativas de 1905 do Barão do Rio Branco, observou, o país pode buscar um caminho alternativo.
“Outro estilo de ser potência é possível, que não militar ou econômica”, disse Ricupero. “Uma potência ambiental, de direitos humanos, de promoção de igualdade racial e social, solidária a fracos e a vulneráveis”.
Para sair em defesa desses valores, recordou o embaixador, será necessário que os coloquemos em prática aqui mesmo, até mesmo para que venhamos a conquistar a autoridade necessária a essa postura diante do resto do mundo.
Ou seja, a adoção de uma nova agenda interna – baseada na defesa do meio ambiente, na redução das desigualdades e do combate ao racismo e a outras discriminações – seria a base necessária para a construção de uma renovada agenda externa.
O protagonismo baseado no exemplo já ocorreu em passado recente. A partir de uma bem-sucedida política em defesa da Amazônia, o Brasil passou a ser visto pelo resto do mundo como parceiro necessário nos principais foros de debates sobre a questão ambiental.
A aceleração do desmatamento nos últimos três anos, acoplada à perplexidade na comunidade internacional diante da percepção de risco de uma possível ruptura institucional, retirou do país muito do protagonismo exercido nas últimas décadas.
Se o Brasil pretende reconquistar apoio e simpatia internacionais, precisará primeiramente mudar a sua agenda interna. E essa mudança só poderá ser promovida pelo governo a ser eleito em outubro.
O ano de 2023 será o primeiro ano do terceiro século do Brasil como país independente. Se o bicentenário pegou o país no contrapé, dividido e radicalizado, será sempre possível corrigir o rumo. A adoção de uma nova agenda social e ambiental, como defendeu Ricupero, pode bem ser o início desse novo momento da nossa história.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.