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quinta-feira, 28 de março de 2024

Celso Lafer: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (2018): dois volumes de escritos

Um dos últimos lançamentos de livros que fiz, para ser mais exato o último, enquanto diretor do IPRI-Funag-Itamaraty, colocando um ponto final nesta coletânea de artigos, ensaios e notas feitas pelo ex-chanceler Celso Lafer, compilando mais de três décadas de uma copiosa produção de textos sempre voltados para a política externa, as relações internacionais do Brasil, a cultura e a inteligência. Reproduzo a postagem que elaborei às vésperas do lançamento em Brasília.

Dentro de mais algum tempo terei o prazer de lançar o livro que elaborei sobre sua obra, conjuntamente com esforço similar em torno da também volumosa produção intelectual de Rubens Ricupero, ambos objeto deste meu livro Vidas Paralelas.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Celso Lafer: dois volumes com seus textos principais, quase prontos

Acabo de colocar um ponto final no índice onomástico deste livro: 

Celso Lafer:
Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1415 p.)


Aqui o sumário geral da obra: 
Volume 1
Apresentação: presidente da Funag
Prefácio – Gelson Fonseca Jr.
Índice do Volume 1
Introdução geral: Celso Lafer

Parte I – A reflexão da experiência
Parte II –Itamaraty
A instituição
Diálogos
Memórias
Parte III – Relações internacionais
A necessidade do campo
O campo teórico
Tópicos específicos 
Volume 2
Sumário 
Índice do Volume 2
Parte IV – A inserção internacional do Brasil: a política externa brasileira
O Brasil no mundo
Lições do passado
Parceiros vitais do Brasil 
Questões polêmicas
Parte V – Personalidades
Posfácio: Paulo Roberto de Almeida
Biobibliografia do autor 

Índice onomástico

Tenho um posfácio, ao final do 2o. volume, apresentando o conjunto da obra, que transcrevo mais abaixo, depois de postar as orelhas e uma parte da quarta capa. Depois do posfácio, transcrevo o sumário de cada um dos dois volumes.



“A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre”, Brasília, 19 julho 2018, 9 p. Discussão geral da obra em publicação pela Funag de Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação, com base num paralelo intelectual com a obra de Henry James, The Education of Henry Adams: an autobiography (New York: The Modern Library, 1999), e alguma referência às Confissões de Santo Agostinho. 


A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
 [Objetivo: apresentar a coletânea; finalidade: informar sobre o sentido da obra]

Se as Confissões de Santo Agostinho – que ocupam um lugar central na cultura cristã do Ocidente latino, ao dar início à tradição intelectual da autobiografia consciente e deliberada – apresentam essa característica de, pela sua própria natureza confessional, terem influenciado fortemente, segundo Stéphane Gioanni (L’Histoire, junho de 2018), o subjetivismo moderno, A Educação de Henry Adams inaugura, por sua vez – como construção consciente e deliberada de uma trajetória de vida tão confessional quanto as memórias do bispo da velha Hipona –, a moderna autobiografia intelectual, combinando objetivismo político com algum subjetivismo filosófico. Mais do que uma história de vida, ou uma simples memória, o livro de Henry Adams representa, mais exatamente, um grande panorama de história intelectual dos Estados Unidos entre a Guerra Civil e a Grande Guerra, um empreendimento talvez sem paralelo, até o início do século XX, na tradição ocidental das biografias “confessionais”.
Setembro de 2018 marca o centenário da primeira publicação completa da obra do bisneto de John Adams e neto de John Quincy Adams, dois antecessores presidentes. Sua educação primorosa, objeto da autobiografia (escrita na terceira pessoa), aproxima-se, em certa medida, da sólida formação intelectual de um dos maiores representantes da vida acadêmica e diplomática do Brasil: Celso Lafer. Cem anos depois da publicação daquela autobiografia pioneira, parece inteiramente pertinente seguir a “educação” de Celso Lafer, três vezes ministro, sendo duas como chanceler, chefe de missão em Genebra, professor emérito da USP, articulista consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais e de direito. 
A melhor forma de fazê-lo é por meio de uma compilação de seus muitos escritos sobre as relações internacionais, a política externa e a diplomacia brasileira, textos até aqui dispersos em um grande número de veículos impressos e digitais. A trajetória intelectual de seu autor se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de política doméstica.
A colaboração que pude prestar na montagem e revisão da presente coleção de textos – artigos, palestras, discursos, conferências, capítulos de livros – de Celso Lafer constituiu, ao longo do ano de 2018, uma das maiores gratificações intelectuais de minha relativamente curta trajetória como diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, (IPRI), um modesto think tank, subordinado, como o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – seu contraparte do Rio de Janeiro –, à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), esta por sua vez vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Digo uma das maiores gratificações porque, justamente, dois de meus critérios na organização de eventos e publicações no IPRI são justamente esses: tudo o que for intelectualmente gratificante e inovar sobre a agenda “normal”. 
Ainda antes de assumir formalmente a direção do IPRI, pude colaborar na montagem e realização de um seminário, de uma exposição e de um livro sobre o patrono da historiografia brasileira, o também diplomata, Francisco Adolfo Varnhagen: Varnhagen (1816-1878): diplomacia e pensamento estratégico (Brasília: Funag, 2016). Nesse primeiro empreendimento junto ao IPRI ofereci um estudo sobre o “pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e atualidade”, no qual tive a oportunidade e o lazer de atualizar suas propostas de “reforma do Brasil”, apresentadas pela primeira vez em 1849, no Memorial Orgânico, documento magistralmente retirado das cinzas pelas mãos do presidente do IHGB, o historiador Arno Wehling, um especialista e também admirador da obra historiográfica de Varnhagen. 
Logo em seguida, dediquei-me a retirar das “cinzas” de um injusto ostracismo político um outro colega diplomata, o economista de formação Roberto Campos, por meio de uma obra coletiva feita inteiramente à base da admiração de amigos: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). O livro, entretanto, por razões de oportunidade e de cálculo político, não foi publicado pela Funag, tanto quanto um outro, sobre o historiador e diplomata Oliveira Lima. Em seguida, aproveitando o desafio da publicação da magistral Fotobiografia de Oswaldo Aranha por seu neto, Pedro Corrêa do Lago (Rio de Janeiro: Capivara, 2017), e ajudado pela perícia documentalista de seu outro neto, Luiz Aranha, decidi montar, com a preciosa e estratégica ajuda do historiador Rogério de Souza Farias, uma compilação praticamente completa dos escritos de relações internacionais e de diplomacia brasileira produzidos ao longo de trinta anos pelo grande estadista gaúcho, o segundo maior chanceler brasileiro do século XX depois de Rio Branco, segundo Rubens Ricupero: “Oswaldo Aranha dominou a política exterior dos meados do século XX como Rio Branco o fizera na sua primeira década. Depois do Barão, ninguém mais alcançou, dentro e fora do país, o prestígio e a influência de Aranha, nenhum outro dirigiu a diplomacia com tanto acerto em tempos perigosos e de escolhas difíceis.” (Apresentação de Rubens Ricupero a: Oswaldo Aranha: um estadista brasileiroBrasília: Funag, 2017, 1o. vol.). 
A coletânea Aranha preenche, sem dúvida alguma, uma lacuna na historiografia brasileira da diplomacia contemporânea, ao recolher discursos, entrevistas, cartas e escritos diversos do político rio-grandense convertido em estadista de estatura mundial. Ela cobre momentos cruciais das relações internacionais e bilaterais do Brasil em pleno século XX, quando a diplomacia esclarecida de Aranha influenciou decisivamente a política do governo Vargas ao adotar a opção correta na voragem da Segunda Guerra Mundial, aliás a única concebível para um discípulo de Rui Barbosa, no formidável embate que se travou entre as democracias do Ocidente, capitaneadas por Churchill e Roosevelt, e os totalitarismos liderados pelos fascistas da Alemanha, Itália e Japão.
Esse trabalho de garimpo documental e de lapidação redacional dos escritos dispersos de Oswaldo Aranha, esteve, provavelmente, na origem da idealização, organização e montagem da obra que agora se apresenta: uma compilação seletiva dentre os muitos, incontáveis escritos até aqui dispersos de Celso Lafer, primeiro reunidos e organizados por ele mesmo, com a ajuda de Carlos Eduardo Lins da Silva, depois revistos e padronizados por mim, ao longo de muitas noites de indescritível prazer intelectual. Não sei se por pura emulação historiográfica, se por alguma secreta indução bibliográfica e documental, ou se por um evidente paralelismo diplomático, Celso Lafer e eu mesmo cogitamos, quase simultaneamente, que depois da “compilação Oswaldo Aranha” estava mais do que na hora de também pensarmos numa “compilação Celso Lafer”. Material, aliás abundante, não faltava para esse novo empreendimento.
A decisão foi então tomada em vista da existência, dispersa até aqui, dos seus muitos escritos de relações internacionais, de política externa e de diplomacia do Brasil, que constituem, ao mesmo tempo, um grande panorama do cenário mundial, político e econômico, nas últimas cinco décadas. Esses textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.
Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui. Suas qualidades intrínsecas, combinando sólida visão global e um conhecimento direto dos eventos e processos que o autor descreve e analisa, representam um aporte fundamental a todos os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse campo, com a vantagem dele ter tido a experiência prática de conduzir a diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. As “questões polêmicas” da quarta parte reúnem alguns de seus artigos de jornal, nos quais exerceu um olhar crítico sobre a “diplomacia” implementada a partir de 2003, rompendo pela primeira vez a tradição secular da política externa brasileira, no sentido de representar o consenso nacional em torno dos interesses do país, para adotar o sectarismo míope de um partido que tentou monopolizar de forma canhestra (e corrupta) o sistema político. 

Henry James, ao escrever em 1907 a sua autobiografia intelectual, admitia, indiretamente – segundo o prefácio de Henry Cabot Lodge à obra finalmente publicada em setembro de 1918 pela Massachusetts Historical Society –, que a grande ambição do neto e bisneto de presidentes era a de “completar as Confissões de Santo Agostinho”. Mas, diferentemente do pai da Igreja Cristã, que, como grande intelectual, trabalhou a partir de uma multiplicidade para a unidade de ideias em torno da fé cristã, seu moderno êmulo americano reverteu a metodologia, passando a trabalhar a partir da unidade para a multiplicidade de ideias (The Education of Henry Adams: an autobiography, p. xxxiv, da edição de 1999 da Modern Library). Isso talvez porque, à diferença da angustiada defesa de uma rígida crença nos dogmas cristãos, exibida no quarto século da nossa era pelo pai intelectual da Igreja Católica, Henry Adams ostentava o agnosticismo científico típico dos primeiros darwinistas sociais do final do século XIX. 
Celso Lafer, herdeiro intelectual de grandes pensadores judeus do século XX, é, provavelmente também, um agnóstico pragmático, combinando destreza acadêmica e tino empresarial, como sempre foi a outra vertente de seus familiares e de um grande antecessor na diplomacia, seu tio Horácio Lafer, ministro da Fazenda e das Relações Exteriores na República de 1946. O modelo da autobiografia de Henry Adams, com suas três dezenas de capítulos seguindo a trajetória do ilustre herdeiro dos Adams nas grandes capitais do mundo ocidental – Washington, Londres (seu pai foi ministro na Corte vitoriana), Berlim, Paris (a Exposição Universal de 1900), Roma e muitas outras cidades dos Estados Unidos e da Europa–, poderia servir, eventualmente, para retraçar a carreira intelectual e diplomática de Celso Lafer, que também percorreu as grandes capitais da diplomacia mundial, como intelectual ou ministro das Relações Exteriores.
O jovem Adams, ao acompanhar como secretário o seu pai, designado em 1861 ministro plenipotenciário de Abraham Lincoln junto à corte da rainha Vitória, construiu uma educação “diplomática” no centro do que era então o maior império do planeta; ele pode encontrar-se com líderes britânicos da estatura de um Palmerston ou Gladstone, assim como, em suas andanças pela Europa, com “anarquistas” bizarros, ao estilo de um Garibaldi. Celso Lafer, por sua vez, construiu sua educação diplomática na observação direta do que foi feito por seu tio, Horácio Lafer, antes como ministro da Fazenda do Vargas dos anos 1950, depois à frente do Itamaraty, numa segunda fase do governo JK, dedicando a ambos trabalhos analíticos posteriores que figuram com realce em sua bibliografia. Da gestão do tio na política externa, destacou sobretudo sua ação no campo econômico: acordos comerciais, integração regional e aproximação à Argentina.
Essa educação continuou nos anos seguintes, de forma não surpreendente nos mesmos grandes temas focados anteriormente e, como Henry James, no contato direto com personalidades de realce na cena mundial; percorrendo as páginas dos dois volumes de Celso Lafer é possível registrar alguns dos grandes nomes do estadismo mundial, com quem Celso Lafer encontrou-se ou conviveu ao longo dessas décadas. Ele discorre, sempre de modo empático, mas penetrante, sem dispensar aqui e ali o bom humor, sobre líderes estrangeiros como Mandela, Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes, um justo entre os injustos do salazarismo. Dentre os diplomatas distinguidos do Brasil figuram os nomes deSaraiva Guerreiro e de Sérgio Vieira de Mello, para mencionar apenas dois nessa categoria.
Comparecem igualmente vários colegas e autores de renome, intelectuais da academia ou da diplomacia, como José Guilherme Merquior, Sergio Paulo Rouanet, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes, Rubens Ricupero, Gilberto Dupas, Celso Furtado, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, entre os brasileiros. Estudiosos  estrangeiros, alguns conhecidos pessoalmente, aparecem sob os nomes de Karl Deutsch, Raymond Aron, Andrew Hurrell, Octavio Paz, Morgenthau, Kissinger e Prebisch. Suas resenhas e prefácios registram autores conhecidos na área, a exemplo de Sérgio Danese, Fernando Barreto, Gerson Moura e Eugenio Vargas Garcia, contemplados com extensas notas publicadas na revista Política Externa, da qual foi um dos responsáveis, junto com Gilberto Dupas e Carlos Eduardo Lins da Silva, durante vários anos.

A educação de Celso Lafer se fez, primordialmente, em intensas leituras e eventuais contatos, com grandes nomes do pensamento histórico, filosófico e político da tradição ocidental, desde mestres do passado remoto – Tucídides, Aristóteles, Grócio, Vico, Hume, Bodin, Hobbes Montesquieu, Kant, Tocqueville, Charles de Visscher e outros – até mestres do passado recente, inclusive alguns deles encontrados em carne e osso: Hans Kelsen, Carl Schmitt, Isaiah Berlin, Hanna Arendt, Norberto Bobbio, Raymond Aron, Hedley Bull, Martin Wight, Albert Hirschman, Stanley Hoffmann e muitos outros. Um desses “grandes mestres” aparece apenas marginalmente, ou episodicamente nos textos aqui coletados: Karl Marx, objeto de várias referências indiretas no exame da literatura especializada. Henry James, de seu lado, faz, em sua autobiografia, diversas referências ao pai do “socialismo científico” e afirmou ter seriamente considerado, junto com as teses ousadas de Darwin, os argumentos defendidos em O Capital, embora não demonstrasse entusiasmo com os anúncios precursores quando à derrocada do capitalismo. 
James, na verdade, demonstra certo esnobismo em relação à maior parte dos teóricos que digeriu, em Harvard ou em suas leituras posteriores. Ao referir-se, por exemplo, à necessidade de conhecer os ensinamentos de Marx, continua dizendo que o confronto também devia ser feito em relação à “satânica majestade do livre comércio de John Stuart Mill” (p. 72). Mais adiante, ao fazer o balanço de sua visita à Exposição Universal de Paris, em 1990, que representava o triunfo do capitalismo da belle Époque, ele revela que “tinha estudado Karl Marx e suas doutrinas da história com profunda atenção, mas que não podia aplicá-las a Paris” (p. 379). No caso de Lafer, não há menção a algum estudo sério da doutrina marxista, mas as referências não faltam, seja por meio de Raymond Aron, seja através de obras de Hélio Jaguaribe.
Ambos, porém, Henry James e Celso Lafer, exibem o mesmo compromisso incontornável com os princípios do liberalismo político e dos governos democráticos. James, ao conviver mais longamente com o sistema parlamentar inglês, considerava que “o governo de classe média da Inglaterra constituía o ideal do progresso humano” (p. 33). Por classe média, ele queria dizer, obviamente, burguesia, em oposição à velha aristocracia de títulos, que não existia no seu país natal; ela estava surgindo, em sua própria época, mas apenas a partir do exibicionismo ostensivo dos “barões ladrões”, enobrecidos financeiramente a partir da idade dourada do capitalismo americano. Celso Lafer, do seu lado, sempre foi um liberal doutrinal e filosófico, não obstante seu alinhamento pragmático com a socialdemocracia na política brasileira, no que, aliás, ele combina com um de seus mestres, o jurista e intelectual italiano Norberto Bobbio. 

Mais de uma centena de textos comparecem nos dois volumes, organizados em cinco partes bem identificadas, embora algumas repetições sejam detectáveis aqui e ali. O conjunto dos escritos constitui, sem dúvida alguma, um completo curso acadêmico e um amplo repositório empírico em torno dos conceitos exatamente expressos no título da obra: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Os artigos, ensaios, conferências e entrevistas podem servir, em primeiro lugar, a todos os estudantes desses campos, não restritos, obviamente, aos próprios cursos de Relações Internacionais, mas indo ao Direito, Ciência Política, Filosofia, Sociologia, História, além de outras vertentes das Humanidades. Mas, os diplomatas profissionais e os demais operadores consolidados trabalhando direta ou indiretamente nessas áreas também encontrarão aqui um rico manancial de ideias, argumentos e, mais importante, “recapitulações” em torno de conferências, negociações, encontros bilaterais, regionais ou multilaterais que figuraram na agenda internacional do Brasil nas últimas décadas. 
A diversidade de assuntos, inclusive em relação aos próprios personagens que aqui comparecem, em “diálogos”, homenagens, obituários ou relatos de encontros pessoais, possuem um inegável vínculo entre si, pois todos eles têm a ver, de perto ou de longe, com a interface externa do Brasil e com os voos internacionais do autor. Os textos não esgotam, obviamente, o amplo leque de interesses e de estudos do autor, que se estende ainda aos campos da literatura e dos assuntos culturais em geral, trabalhos que figuram em diversos outros livros publicados de Celso Lafer, vários monotemáticos e alguns na categoria de coletâneas, como por exemplo os três volumes publicados pela Atlas, em 2015, enfeixados sob o título comum de Um percurso no Direito do século XXI, mas voltados para direitos humanos, direito internacional e filosofia e teoria geral do direito. A sua produção variada, acumulada intensa e extensivamente em tão larga variedade de assuntos, permite o mesmo tipo de “assemblagem” ocasional efetuada na presente obra em dois volumes. Apresentando, por exemplo, seus escritos focados em Norberto Bobbio: trajetória e obra (São Paulo: Perspectiva, 2013), Celso Lafer começa por lembrar justamente essa prática do mestre italiano: 
Bobbio, ao fazer, em 1994, um balanço de sua trajetória, observou que a sua obra caracterizava-se por livros, artigos, discursos sobre temas diversos, ainda que ligados entre si [nota: a referência aqui é à obra de Bobbio, O Futuro da Democracia]. Parte muito significativa e relevante da sua obra é constituída por volumes que são coletâneas de ensaios, reunidos e organizados em função dos seus nexos temáticos. Esses volumes de ensaios cobre os diversos campos do conhecimento a que se dedicou: a teoria jurídica, a teoria política, a das relações internacionais, a dos direitos humanos e o vinculo entre política e cultura, rubrica que abrange a discussão do papel do intelectual na vida pública. Esses volumes são representativos do contínuo work in progress da trajetória intelectual de Bobbio, esclarecendo como, no correr dos anos, por aproximações sucessivas, foi aprofundando a análise dos temas recorrentes do seu percurso de estudioso. (p. 23)

A partir da transcrição desse introito se poderia perfeitamente dizer: Ecce homo (talvez menos na linhagem nietzscheiana, e mais na do original bíblico). A afirmação se aplica inteiramente à própria trajetória acadêmica e profissional de Celso, ao seu percurso intelectual, à sua visão do mundo, com uma vantagem adicional sobre o jurista italiano, devido ao fato de Lafer ter sido bem mais do que um “simples professor”, ao ter exercido por duas vezes (até aqui) o cargo de ministro das relações exteriores (e uma vez o de ministro do desenvolvimento e de comércio exterior), funções certamente mais relevantes, para o Brasil, do que o cargo largamente honorífico concedido a Norberto Bobbio, já quase ao final da sua vida, de senador da República italiana. 

O percurso de Celso Lafer, no Brasil e no mundo, sua postura filosófica, de defensor constante dos direitos humanos e da democracia política, suas aulas na tradicional Faculdade de Direito (e em muitas outras conferências em universidades e várias instituições em incontáveis oportunidades), sua luta pela afirmação internacional do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte da diplomacia nacional, todos esses aspectos estão aqui refletidos em mais de uma centena de trabalhos carinhosamente reunidos sob a direção do próprio mestre e oferecidos agora ao público interessado. Não apenas o reflexo de uma vida dedicada a construir sua própria trajetória intelectual, esses textos são, antes de qualquer outra coisa, aulas magistrais, consolidadas numa obra unitária, enfeixada aqui sob a tripla dimensão do título do livro. 
Mais do que uma garrafa lançada ao mar, como podem ser outras coletâneas de escritos dispersos oferecidos a um público indiferenciado, a centena de “mensagens laferianas” aqui reunidas constituem um útil instrumento de trabalho oferecido aos profissionais da diplomacia, ademais de ser uma obra de referência aberta à leitura dos pesquisadores, dos professores e dos estudantes dessas grandes áreas de estudos e de trabalho acadêmico. Ao disponibilizar essa massa de escritos da mais alta qualidade intelectual ao grande público, esta obra faz mais do que reunir estudos dispersos numa nova coletânea de ensaios conectados entre si: ela representa, também e principalmente, um tributo de merecido reconhecimento ao grande mestre educador que sempre foi, e continuará sendo, Celso Lafer.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2018

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Celso Lafer

Relações internacionais,política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
 (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1415 p.)

Sumário Volume 1


Apresentação: presidente da Funag
Prefácio: Gelson Fonseca Jr. 
Introdução geral: Celso Lafer
PARTE I
A reflexão da experiência
1.     Uma vida na diplomacia: entrevista ao CPDOC (1993)
2.     Reflexões sobre uma gestão: 2000-2002 (2003)
3.     Uma trajetória diplomática: entrevista à revista Sapientia(2012)

PARTE II
Itamaraty
A instituição
4.     A autoridade do Itamaraty (1992)
5.     O Palácio do Itamaraty: Rio-Brasília (2001)
6.     Uma diplomacia de fundação: O Itamaraty na cultura brasileira (2001)
7.     Rio Branco e o Itamaraty: 100 anos em 10 (2002)
8.     Rio Branco e a memória nacional (2012)
9.     Desatar nós: posse do secretário-geral Osmar Chohfi (2001)
10.  O retorno ao Itamaraty (2001)

Diálogos
11.  José Guilherme Merquior: A legitimidade na política internacional (1993)
12.  Gelson Fonseca Jr.: A legitimidade na vida mundial(1998)
13.  Sergio Danese: Diplomacia presidencial(1998)
14.  Synesio Sampaio Goes: Navegantes, bandeirantes e diplomatas (2000)
15.  Fernando Barreto: Os sucessores do Barão, 1912-1964(2001)
16.  Rubens Ricupero: A viagem presidencial de Tancredo (2010)
17.  Gelson Fonseca: A diplomacia multilateral do Brasil (2015)
17bis. Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil(2001)

Memórias
18.  Horácio Lafer (1900-1965): sua atualidade (2015)
19.  Diplomatas contra o Holocausto (2001)
20.  Saraiva Guerreiro: um empregado do Itamaraty (1992)
21.  As lições das memórias de Lampreia (2010)

PARTE III
Relações internacionais
A necessidade do campo
22. O estudo das relações internacionais: necessidade e perspectivas (1982)
23. Discurso de agradecimento pelo prêmio Moinho Santista (2001)
24. Discurso de agradecimento como professor emérito do IRI-USP (2012)

O campo teórico
25. A política externa, a paz e o legado da Grécia clássica (1982)           
26. Os dilemas da soberania (1982)
27. Karl Deutsch e as relações internacionais (1982)
28. Aron e as relações internacionais (2005)
29. A Escola Inglesa: suas contribuições (2013)
30. Andrew Hurrell: sobre a ordem global (2008) 
31. Zelotismo-Herodianismo na reflexão de Helio Jaguaribe (2013)

Tópicos específicos 
33. Guerra e Paz: o painel de Portinari na sede da ONU (2004)
34. O desarmamento e o problema da paz (1984)
35. Direito e legitimidade no sistema internacional (1989)
36. Obstáculos a uma leitura kantiana do mundo no século XXI (2005)
37. Direitos humanos e democracia no plano interno e internacional (1994)
38. O GATT, a cláusula de nação mais favorecida e a América Latina (1971)
39. Comércio internacional, multilateralismo e regionalismo (1991)
40. Reflexões sobre a OMC aos 50 anos do comércio multilateral (1998)
41. Perspectivas da Argentina: Felix Peña (2004)
42. Empresas transnacionais: Luiz Olavo Baptista (1987)
43. O significado da Rio-92 e os desafios da Rio+20 (2002)
44. Mundo, ciência, diplomacia (2015)
45. Cúpulas ibero-americanas (1992)      
46. O Diálogo Transatlântico: Carlos Fuentes (2013)
47. Armas nucleares (2017)
48. O mundo e os refugiados (2016)
49. União Europeia, 50 anos: lições do passado, desafios futuros(2007)
50. 60 anos do GATT e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (2008)
51. Proteção de nacionais no exterior: decisão da corte da Haia (2004)
52. A independência do Kosovo e a Corte de Haia (2010)
53. Sobre o Holocausto (2011)
55. Variações sobre o tempo (2011)

Sumário Volume 2


PARTE IV
A inserção internacional do Brasil: a política externa brasileira
O Brasil no mundo
56. Segurança e desenvolvimento: uma perspectiva brasileira (1972)
57. Panorama geral da situação internacional (1981)
58. Representação, controle e gestão em política externa (1984)
59. Dilemas da América Latina num mundo em transformação (1988)
60. A inserção internacional do Brasil (1992)
61. Diplomacia e parlamento (1992)
62. Relações internacionais do Brasil: palestra na ESG (1992)
63. O mundo mudou (2001)
64. Repúdio ao terrorismo (2001)
65. O Brasil, sua gente e o Oriente Médio (2012)
66. O Brasil num mundo conturbado (2016)

Lições do passado
67. 1ª e 2ª conferências da paz de Haia, 1899 e 1907 (2010)
68. O Brasil e a Liga das Nações (2000)
69. Conferência do Rio de 1992 (1998)
70. Gerson Moura: a política externa de Vargas e Dutra (1992)
71. Diplomacia de JK: dualidade a serviço do Brasil (2001)
72. Política exterior brasileira: um balanço da década de 1970 (1981)
73. Brasil-EUA: história e perspectivas das relações diplomáticas (1982)
74. Possibilidades diplomáticas do governo Tancredo Neves (1985)
75. A viagem presidencial de Tancredo Neves: seu significado (1985)
76. A política externa do governo Collor (2017)
77. Reflexões sobre o 11 de setembro (2003)
78. Um olhar sobre o mundo atual (2015)
79. A herança diplomática de FHC (2004)
80. Ação, experiência e narração em FHC (2006)

Parceiros vitais do Brasil
81. Brasil-Argentina – uma relação estratégica (2001)
82. Relações Brasil-Portugal: passado, presente, futuro (2000)
83. A política externa do Brasil para a América Latina (2014)
84. O Brasil na América Latina (2013)
85. Reflexões sobre a CPLP: lusofonia, sonhos e realidade (2013)
86. Reflexões sobre o tratado de 1895 com o Japão (2015)

Questões polêmicas
87. A ONU, Israel e o sionismo (1975)
88. Entusiasmo no Itamaraty? (2003)
89. Partidarização da política externa (2009)
90. A política externa: necessidades internas, possibilidades externas (2006)
91. A política externa e a crise política (2005)
92. Variações sobre a política externa (2006)
93. Novas variações sobre a política externa (2007)
94. Diplomacia brasileira: novas variações críticas (2010)
95. Ahmadinejad no Brasil: um equívoco (2009)
96. O Brasil e a nuclearização do Irã (2010)
97. O Mercosul, a Venezuela e a cláusula democrática (2009)
98. Asilo diplomático: o caso do senador Roger Pinto (2013)


PARTE V
Personalidades
Personagens
99. Gerson Moura (1939-1992): In Memoriam (1992)
100. José Guilherme Merquior: diplomacia da inteligência (2001)
101. Sérgio Vieira de Mello: uma vida na construção da paz (2003)
102. Em louvor de Aristides de Souza Mendes (1885-1954) (2004)
103. Homenagem a Celso Furtado (1920-2004) (2005)
104. Gilberto Dupas: uma homenagem (2009)
105. Com coragem, Mandela fez o impossível (2013)
106. De Klerk: um herói da retirada (2014)
107. Octavio Paz: a democracia no mundo ibero-americano (2014)
108. Sergio Paulo Rouanet e a questão da democracia (2014)
109. Shimon Peres (1923-2016): um estadista diplomata (2016)
110. Rubens Ricupero: saudação ao professor emérito (2016)
111. Koffi Annan e as Nações Unidas (2001)
112. Antonio Guterres na ONU (2017)

Posfácio: Paulo Roberto de Almeida
Biobibliografia do autor 
Índice onomástico
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“Há quase quarenta anos tenho o privilégio de conviver e conversar com Celso Lafer sobre alguns dos temas sobre os quais escreve. Conhecia praticamente todos os textos aqui publicados. Sobre alguns, trocamos ideias antes de sua versão final. Ainda assim, a leitura dos artigos me surpreendeu. Em primeiro lugar, pelo volume. Mais de uma centena de textos, de formatos diversos, que foram apresentados em periódicos, conferências, depoimentos no Congresso e em jornais. Há ensaios acadêmicos mais longos, com vocação analítica e, de outro lado, textos curtos, jornalísticos, em cima de questões candentes e polêmicas. Estavam dispersos, publicados em veículos diversos, alguns de difícil acesso. Daí ser tão oportuna e bem-vinda a sua republicação.”

Do prefácio do embaixador Gelson Fonseca Jr., diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD-Funag).


“A trajetória intelectual de Celso Lafer se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística... (...) Estes textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui.”

Do posfácio do embaixador Paulo Roberto de Almeida, diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI-Funag).


domingo, 10 de março de 2024

O interno e o externo na política brasileira - Paulo Roberto de Almeida

 Todos os problemas brasileiros são made in Brazil; nenhum deles tem origem externa. 

O mundo nos oferece oportunidades que nós desprezamos estupidamente. Se Lula cuidar dos problemas brasileiros nossa situação externa vai melhorar consideravelmente. 

Não adianta sair gritando pelo mundo afora! 

Alguém poderia dizer: “macaco, olha o teu rabo!’ 

Algum aspone precisa dizer isso ao Lula! 

Tem alguém?

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Existem coisas simples como a Carta da ONU, a Declaração de DH de 1948, as convenções sobre genocídio e a Carta Democrática da OEA. 

Seria muito difícil pedir a Lula para se ater a isso e assim guiar a sua política externa? 

Por que defender ditadores e invasores? Alguma razão para tratar  bem quem invade território alheio ou pretende ameaçar eleições livres no seu país? 

O Brasil concorda com esse tipo de postura?

Paulo Roberto de Almeida


domingo, 14 de janeiro de 2024

Contradições travam reinserção do Brasil no cenário internacional - Ingrid Soares (Correio Braziliense, O Estado de Minas)

 RELAÇÕES EXTERNAS

Contradições travam reinserção do Brasil no cenário internacional

Primeiro ano de governo foi marcado por muitas viagens do presidente ao exterior, com declarações polêmicas e posições conflitantes

O Estado de Minas, 14 de janeiro de 2024

https://www.em.com.br/politica/2024/01/6786350-contradicoes-travam-reinsercao-do-brasil-no-cenario-internacional.html

Original:  

Ao longo de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) realizou uma série de viagens internacionais por quatro continentes: América, Ásia, Europa e África. No total, o chefe do Executivo visitou 24 países. Ao mesmo tempo em que conseguiu retomar a diplomacia brasileira, colecionou declarações polêmicas e discursos ambíguos que geraram desgastes nas relações internacionais e locais.

O petista esteve nos Estados Unidos, na China, na França, na Argentina, na Alemanha e em nações africanas, como Cabo Verde e Angola, por exemplo. Foi à Cúpula do G20, na Índia, visitou Joanesburgo para a Cúpula do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e liderou a delegação brasileira na COP28, em Dubai.

No último dia 5, ao ser criticado pela quantidade de dias fora do país, Lula disse que era preciso recuperar a imagem do Brasil no exterior e destacou que o país "voltou a ser respeitado".

"Eu tenho combinado viagens aqui dentro com viagens para o exterior porque é importante recuperar a capacidade do mercado interno brasileiro, e o Brasil estava alijado da política internacional", explicou.

Em várias oportunidades, porém, Lula deu declarações que contrastaram com a posição histórica de neutralidade defendida pelo Brasil em questões diplomáticas. Em abril, esteve na China, onde afirmou que a ajuda ocidental à Ucrânia estaria prolongando e incentivando a guerra. A posição foi interpretada como um apoio a Vladimir Putin e uma oposição a Washington, gerando reações negativas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia. Um porta-voz do governo americano chegou a dizer que Lula estava "papagueando propaganda russa e chinesa".

Na mesma viagem, Lula sugeriu que a Ucrânia cedesse parte de seu território para uma eventual negociação de paz e afirmou que tanto o líder ucraniano, Volodymyr Zelenski, como o presidente russo, Vladimir Putin, tinham responsabilidade pelo conflito. Também em abril, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, voltou a dizer que a guerra foi uma decisão tomada pelos dois países.

"Colocar a culpa no país invadido foi um erro que ele mesmo teve que recuar depois. Não trouxe nenhuma vantagem e mostrou amadorismo. Defender (o presidente da Venezuela, Nicolás) Maduro também constrange o presidente Lula tanto internamente quanto nos foros internacionais. Todas essas polêmicas foram dispensáveis, já que, no geral, a saída de Bolsonaro foi bem recebida pela comunidade internacional", analisou Wagner Parente, consultor em relações internacionais e CEO da BMJ Consultores Associados.

Em maio passado, na Cúpula de Chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, Lula considerou a presença do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, como um momento "histórico" e chamou de "narrativa" a visão do país vizinho ser uma ditadura. Por isso, foi criticado pela oposição e por outros chefes de estado, como os presidentes de Uruguai e Chile, Luis Alberto Lacalle Pou e Gabriel Boric, respectivamente.

Para o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, "a recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima foi a pior possível, e um esperado encontro com o presidente Zelensky foi sorrateiramente evitado". Ele avalia que a atitude ambígua do chefe de Estado brasileiro prevaleceu no novo foco de tensão criado pela Venezuela, que ameaçou invadir a vizinha Guiana. Lula recomendou "bom-senso" aos dois lados, como se fossem equivalentes. "Trata-se de um padrão costumeiro do lulopetismo: os aliados ideológicos podem atentar contra os direitos humanos, o que não é permitido aos ocidentais", disse Almeida.

O chefe do Executivo ainda esteve duas vezes na Argentina, principal parceiro comercial na América do Sul: em janeiro, para a reunião da Celac, e na cúpula do Mercosul, em julho, mas não foi à posse do novo presidente argentino, Javier Milei. Nos Estados Unidos, encontrou-se com o presidente Joe Biden, em fevereiro. Em setembro, voltou ao país para a sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.

No mesmo mês, embarcou para Nova Delhi, na Índia, para a Cúpula do G20. Na ocasião, disse que Putin não seria preso caso viesse ao Brasil para participar da reunião do Brics, e questionou a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que, em março, havia expedido documento para que o presidente russo seja julgado por crimes de guerra.

Fechando o ano, em dezembro, o presidente esteve na Arábia Saudita, no Catar, nos Emirados Árabes e na Alemanha. Em meio à principal agenda, da COP28, tentou concluir o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, sem sucesso. Na data, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse ser contra o acordo de livre comércio — chamado por ele de antiquado e "mal remendado". "Se não tiver acordo, paciência. Não foi por falta de vontade", retrucou Lula, que depois, já no Brasil, disse ser "um sonho" ver, em sua presidência, o acordo chegar a bom termo.

Neste ano, o presidente promete viajar mais pelo Brasil, mas já programou visitas à Etiópia, para participar da reunião de cúpula da União Africana, e à Guiana, para a conferência do Mercado Comum e Comunidade do Caribe (Caricom).

Concerto sem maestro

A agenda internacional de Lula tem sido positiva em relação à reinserção do Brasil na esfera internacional, observa Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia e vice-presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). No entanto, ressalta que o conteúdo da agenda de Lula parece estar "datado".

"Isso mostra que a nossa diplomacia, em termos de teor, está ultrapassada. Lula discute temas que não estão na pauta internacional, como a reorganização do sistema internacional, reorganização do Conselho de Segurança da ONU. Não é o momento de se discutir essa pauta", aponta Coimbra. Para ele, "existe um vácuo que o Brasil poderia ocupar, um vácuo econômico que seria o diálogo entre o meio ambiente e aquilo que o Brasil poderia oferecer na esfera internacional. Mas essa agenda está negligenciada tratando de temas ultrapassados".

Para a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso, a agenda internacional de Lula chama a atenção, mas não apresenta estratégia clara. "Deixa a impressão de que estamos assistindo a um concerto sem maestro. Embora as viagens e os encontros tenham sido inúmeros e importantes, não veremos resultados concretos a curto prazo, sejam políticos ou comerciais. As gafes e discursos de improviso enfraquecem as ambições do Brasil de aumentar seu 'soft power' e sua liderança regional e global", avalia a acadêmica.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres e em Washington, Rubens Barbosa ressalta que Lula perseguiu prioridades como a volta do Brasil ao cenário internacional, meio ambiente e mudanças climáticas e integração da América do Sul. Conseguiu trazer a COP para Belém, o G20 e o Brics, "porém, deu declarações equivocadas, como quando disse que Zelensky era tão responsável quanto Putin pela guerra. A segunda prioridade foi a mais bem-sucedida, com mudanças internas em relação à Amazônia, os compromissos do Brasil no tocante ao desmatamento, às emissões de gás de efeito estufa, à convocação da reunião do Tratado de Cooperação Amazônica e participação positiva nas COPs. Com relação à América do Sul, convocou, depois de mais de 20 anos, reunião de cúpula com os presidentes, mas escorregou no tratamento a Maduro", observou, acrescentando que Lula enfrenta agora dois grandes desafios: a relação com o presidente da Argentina, Javier Milei, e a disputa entre Venezuela e Guiana pelo território de Essequibo, na fronteira norte do Brasil.