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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Política externa e diplomacia brasileira na redemocratização, 1985-2010 (2023) - Paulo Roberto de Almeida

Política externa e diplomacia brasileira na redemocratização, 1985-2010

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor

  

Sumário: 

1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

2. A restauração constitucional e os erros econômicos

3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

Bibliografia e referências

 

 

1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo 

O ano de 1985 é o ponto de partida de um período marcado pela reconstrução constitucional do país, depois de mais de duas décadas de regime autoritário militar. Ele foi seguido pelos anos turbulentos de reformas econômicas e sociais, com a chamada ruptura do “neoliberalismo” – um termo profundamente equivocado, mas que pode contentar os mais estatizantes, ao risco de descontentar os verdadeiramente liberais. O período de constitucionalização foi marcado por algumas importantes mudanças conceituais e práticas nas relações internacionais do Brasil. 

Essa fase da era contemporâneo na história do Brasil foi especialmente conturbada em todas as frentes das políticas públicas, mas ela desembocou no processo de estabilização macroeconômica comandada por FHC – primeiro como ministro econômico, depois em dois mandatos como presidente –, ela mesma profundamente perturbada pelas crises financeiras dos anos 1994 a 2002, com todos os ajustes adicionais que o país teve de fazer para superar essas conjunturas difíceis nos contextos econômicos nacional e internacional. A partir de 2003, o país entrou numa fase bem diferente das precedentes, e que se prolongou com a sucessão de seu promotor e patrono, com políticas na área externa bastante distintas daquelas seguidas nos períodos anteriores da era lulopetista, mas que serão examinadas na segunda fase da Nova República, a do declínio e crise dos governos do PT.

Pode-se distinguir, metodologicamente, várias fases da vida política e econômica nacional, desde o final do regime militar, às quais não caberia, por enquanto, atribuir qualquer novo rótulo simplista, o que aliás denotaria uma falsa identidade entre, de um lado, os processos em curso nos terrenos da política e da economia, na frente doméstica e no plano internacional, e, de outro lado, nas relações internacionais do país, uma área que por vezes apresenta um comportamento de certa forma autônomo em relação aos desdobramentos que ocorrem no cenário interno no período contemporâneo imediato. 

Essa relativa autonomia das relações exteriores do país, em relação às duras realidades da conjuntura interna, pode ser vista como algo relativamente natural, considerando-se as distintas modalidades de tomada de decisões em cada frente, ou os procedimentos adotados na condução das relações exteriores, mais autocentrados, em face, por exemplo, das intensas pressões que se exercem em qualquer área das políticas públicas na frente interna. Ela também depende da personalidade e do engajamento do presidente, que dispõe de ampla margem de manobra nessa área, mas que também pode escolher para liderá-la um aliado político ou um profissional da própria diplomacia, casos nos quais se apresentam agendas e resultados eventualmente diferentes, em função das próprias personalidades e suas perspectivas políticas. Não se pode tampouco negligenciar os influxos ou demandas externas, já que a agenda internacional se faz, ou se constrói, a partir de outras forças e outras dinâmicas, às quais o país nem sempre consegue influenciar ou se adaptar de modo adequado, sem falar de crises externas, ou de desequilíbrios internos que se transformam em crises de transações correntes ou em outros desafios do gênero. 

Em qualquer hipótese, uma característica distingue profundamente as três primeiras fases deste exercício de periodização – Sarney, Collor e FHC – de uma das fases mais emblemáticas, a que se desenvolveu entre 2003 e 2010, enfeixada sob um rótulo puramente figurativo, o de “lulopetismo”. Nos três primeiros períodos – chamemo-los, simplificadamente de “redemocratização”, de “ruptura neoliberal” e de “reformas globalizadoras” – as relações exteriores do Brasil, no plano estritamente diplomático, estiveram enfeixadas, talvez dominadas, pelo staff diplomático, ou seja, o próprio corpo de profissionais do Itamaraty, que forneceu alguns ministros, conselheiros presidenciais e, mais importante, determinou grande parte da agenda externa, senão toda ela; ocorreu, também, o fato relativamente inédito, desde a ditadura do Estado Novo, de uma grande estabilidade na condução da política econômica sob o governo Fernando Henrique Cardoso, com um único ministro da Fazenda a permanecer durante dois mandatos presidenciais no comando da pasta. O período do “lulopetismo”, por sua vez, foi caracterizado por muitos observadores como sendo o de uma diplomacia partidária, o que parece evidente em muitas opções de política externa, com claro distanciamento em relação às linhas tradicionais de ação do Itamaraty, e também pelo fato de que o conselheiro presidencial era um funcionário do partido, bem menos identificado com as posturas relativamente neutras do corpo diplomático em diversas matérias da política internacional e regional (Almeida, 2014). 

Cabe agora examinar, na sequência, os padrões e as características das relações internacionais do Brasil no período em questão, ou seja, na fase da redemocratização estrito senso, na fase da ruptura “neoliberal” e dos ajustes reformistas, ambos dos anos 1990, e, finalmente, na fase da diplomacia partidária iniciada com o “lulopetismo”, em seus dois primeiros mandatos. Serão igualmente sugeridos alguns elementos interpretativos sobre as grandes tendências da diplomacia brasileira em cada uma dessas fases, com considerações finais sobre as características do desenvolvimento brasileiro e seus desafios mais importantes. Uma recomendação factual e interpretativa essencial para acompanhar, em detalhe, as diferentes configurações da política externa e da diplomacia brasileira no período de cinco presidentes, em sete mandatos sucessivos no período de 1985 a 2010, é a obra em dois volumes de Fernando Paulo de Melo Barreto Filho: A Política Externa Após a Redemocratização; tomo 1: 1985-2002; tomo 2: 2003-2010 (2012), que se encontra inteiramente disponível na Biblioteca Digital da Funag.

 (...)


Ler a íntegra nestes links: 

Disponibilizado em Research Gate (3/11/2023); link: https://www.researchgate.net/publication/375236186_Politica_externa_e_diplomacia_brasileira_na_redemocratizacao_1985-2010 

na plataforma Academia.edu (22/04/2024); link: https://www.academia.edu/117850764/4503_Política_externa_e_diplomacia_brasileira_na_redemocratização_1985_2010_2023_

terça-feira, 18 de julho de 2023

A torturante e difícil, mais do que isso, incerta e duvidosa, redemocratização da Venezuela chavista - Nota do Itamaraty

 A linguagem é suficientemente ambígua para permitir à ditadura venezuelana a continuar abusando de seu arbítrio para afastar qualquer possibilidade de eleições verdadeiramente livre no país caribenho.

Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social 

Nota nº 301

18 de julho de 2023

 

Declaração Conjunta relativa à situação na Venezuela - Bruxelas, 18 de julho de 2023

Paralelamente à Terceira Cúpula de Líderes da União Europeia e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), o presidente da República Francesa, Emmanuel Macron, o presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da República da Colômbia, Gustavo Petro, o presidente da República Argentina, Alberto Fernandez, e o alto representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança, Josep Borrell, reuniram-se com Delcy Rodriguez, vice-presidenta do Governo da República Bolivariana da Venezuela, e Gerardo Blyde, negociador-chefe da Plataforma Unitária da oposição venezuelana. Essa iniciativa dá seguimento ao debate sobre a situação na Venezuela, organizado pelo presidente da República Francesa no Fórum pela Paz de Paris, em novembro de 2022.

Os presidentes da Argentina, Brasil, Colômbia e França, assim como o alto representante, expressaram sua solidariedade com os países que acolhem cidadãos venezuelanos que deixaram seu país. Eles saudaram a assinatura na Cidade do México de um acordo social inter-venezuelano, em 26 de novembro de 2022, e solicitaram sua implementação efetiva o mais rapidamente possível, em prol do povo venezuelano.

Os chefes de Estado e o alto representante instaram o governo venezuelano e a plataforma unitária da oposição venezuelana a retomar o diálogo e a negociação no âmbito do processo do México, com o objetivo de chegarem a um acordo, entre outros pontos da agenda, sobre as condições para as próximas eleições. Eles fizeram um apelo em prol de uma negociação política que leve à organização de eleições justas para todos, transparentes e inclusivas, que permitam a participação de todos que desejem, de acordo com a lei e os tratados internacionais em vigor, com acompanhamento internacional. Esse processo deve ser acompanhado de uma suspensão das sanções, de todos os tipos, com vistas à sua suspensão completa.

Os chefes de Estado e o alto representante concordaram que o relançamento das relações entre a UE e a CELAC representa uma oportunidade de trabalhar em conjunto em prol da resolução da situação venezuelana. Eles propuseram que os participantes da reunião continuem a dialogar, no marco das iniciativas estabelecidas, de forma a fazer um novo balanço no Fórum de Paz de Paris em 11 de novembro de 2023.

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/resultado-do-primeiro-turno-das-eleicoes-na-guatemala]

quarta-feira, 30 de março de 2016

O golpe militar de 31 de marco de 1964: trabalhos de Paulo Roberto de Almeida

Neste 31 de março de 2016, ecos do golpe militar de 1964 aparecem nos discursos governistas contra o processo de impeachment contra a atual incumbente, que deve perder o emprego em algumas semanas mais.
O discurso petista, ou petralha, neste caso, já está pronto, preventivamente: se houver impeachment, e deve haver, será um golpe, e os mais desonestos remetem ao golpe militar de 1964. Desta vez, afirmam, não será militar, mas "constitucional", seja lá o que isso queira dizer.
Como está marcado um protesto a favor, dos petistas, petralhas e assemelhados neste dia 31, e será inevitável referências -- desairosas, certamente -- contra o golpe militar de 1964, resolvi ver o que eu havia escrito em 2014 -- nos 50 anos do golpe -- sobre esse momento relevante da história política brasileira. Devo ter escrito mais algumas coisas em outros anos também, mas fiquei só em 2014.
Nem tudo o que está listado abaixo está disponível, notadamente minha exposição na Brown University, onde devo ter sido o único a me pronunciar num sentido diferente dos demais palestrantes, todos simplisticamente condenatórios do golpe militar (quando eu, contrariamente a todos eles, simplesmente afirmei que sse tratava de uma crise maior, quando a sociedade, especialmente a classe média, resolveu colocar para fora um presidente inepto, que permitiu inflação e corrupção, e agitação social, um pouco como agora, justamente). Depois vou disponibilizar esse trabalho.
Todos os demais estão linkados, menos um, que não conseguui terminar, e que por isso transcrevo abaixo, na sequência da lista. Um dia termino e coloco à disposição.
Divirtam-se, neste 31 de março. Explico que foi nesse dia que comecei a me politizar muito precocemente, e logo passei à oposição ao regime militar. Por essas e outras passei sete ano num autoexílio. Aprendi muito, lendo história, como recomendariam alguns...
Paulo Roberto de Almeida
30 de março de 2016


O golpe militar de 1964: 
trabalhos de Paulo Roberto de Almeida


2580. “O governo Goulart e o mito das reformas de base”, Hartford, 6 Março 2014, 15 p. Ensaio baseado no trabalho 1990, sobre as falácias em torno do golpe militar de 1964 (10/09/2009), para número especial da Revista Estudos em Jornalismo e Mídia (vol. 11 n. 1, janeiro-junho de 2014; Tema: 50 anos do Golpe Militar de 64; não aceito. Adaptado, ampliado, no trabalho 2590, para a revista do Clube Militar.

2581. “Governance in Brazil during Dictatorship and Democracy: 50 years since the 1964 Military Coup”, Hartford, 8 March 2014, 1 p. Outline of a presentation for a Seminar at Brown University, 9-12 April, 2014: “Brazil: From Dictatorship to Democracy (1964-2014); A Brown Student and Alumni Conference and International Symposium (April 9-12, 2014); Watson Institute for International Studies, Brown University (111 Thayer Street, Providence, Rhode Island); to be prepared as a PowerPoint presentation.

2589. “Governance in Brazil during Dictatorship and Democracy”, Hartford, 14 março 2014, 25 slides para apresentação no “Brazil: From Dictatorship to Democracy (1964-2014)”; A Brown Student and Alumni Conference and International Symposium (Watson Institute for International Studies, Brown University; 111 Thayer Street, Providence, Rhode Island; - April 9-12, 2014).

2590. “Deformações da História do Brasil: o governo Goulart, o mito das reformas de base e o maniqueísmo historiográfico em torno do movimento militar de 1964”, Hartford, 14 março 2014, 22 p. Reelaboração dos trabalhos 1990 e 2580, para fins de publicação, a convite do seu editor, na revista do Clube Militar (Rio de Janeiro: ano LXXXVI, no 452, fevereiro-março-abril de 2014; edição especial: “31 de Março de 1964 – A Verdade”, p. 107-122; ISSN: 0101-6547). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9430621/2590_Deforma%C3%A7%C3%B5es_da_Hist%C3%B3ria_do_Brasil_o_governo_Goulart_o_mito_das_reformas_de_base_e_o_manique%C3%ADsmo_historiogr%C3%A1fico_em_torno_do_movimento_militar_de_1964_2014_). Relação de Publicados n. 1127.

2591. “O Brasil de 1964, e mais além: perguntas e respostas”, Hartford, 18 março 2014, 7 p. Tentando restabelecer a balança dos equívocos deliberados ou involuntários, sobre o golpe e o período militar. Encaminhado aos mesmos interlocutores do trabalho precedente. Em desenvolvimento. [Não terminado, reproduzo abaixo, o que escrevi...]

2595. “O Brasil na crise de 1964 e a oposição armada ao regime militar: um retrospecto histórico, por um observador engajado”, Hartford, 30 março 2014, 15 p. Considerações sobre a conjuntura histórica de 1964 e os anos de contestação armada, aproveitando extratos dos trabalhos 2329 e 2470. Dividido em dez partes para o Instituto Millenium e para o Dom Total. Publicado nas Colunas Dom Total, a partir de 3/04/2014 até 2/05/2014, link: 1. http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4170; etc. até o 10. http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4179); divulgado no blog, sob o título geral de “O regime militar e a oposição armada” (1: 31/03/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-1.html; 2. 31/03/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-2.html; 3. 31/03/2014, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-3.html; 4. 31/03/2014, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-4.html; até o 10. http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-10.html).

2717. “Sobre as ‘causas’ do golpe militar de 1964”, Hartford, 23 novembro 2014, 7 p. Sobre artigo de Carlos Fico, “50 anos do golpe: balanço”, blog Brasil Recente, 20/11/2014; link: http://www.brasilrecente.com/2014/11/50-anos-do-golpe-balanco.html?spref=fb), criticando o suposto “medo” da classe média e das elites das reformas de base de João Goulart. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/sobre-as-causas-do-golpe-militar-de.html), no Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10006736/2717_Sobre_as_causas_do_golpe_militar_de_1964_2014_) e disseminado no Facebook.

O Brasil de 1964, e mais além: perguntas e respostas

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor universitário

A passagem de meio século desde o movimento civil-militar de 31 de março de 1964, que derrocou um governo e inaugurou um outro, teve o efeito de reforçar a grande divisão política existente entre os defensores e os opositores daquele evento histórico e do processo que se lhe seguiu, ambos com enormes consequências para o Brasil atual. Essa divisão, na verdade, sempre existiu, mas ela parece não se refletir tanto no plano do regime constitucional em vigor, quanto se revela na mentalidade dos atores políticos.
O país mudou significativamente desde aquela época, mas aparentemente isso não repercutiu da mesma forma nas percepções respectivas dos dois grandes grupos de atores políticos que estiveram dos dois lados da contenda em 1964, e que hoje voltam a se digladiar na arena política: os militares, que estiveram no centro das transformações então ocorridas, e as esquerdas, as grandes derrotadas naquele processo, mas que, desde 2003, ocupam grande parte do cenário político, com maior intensidade nos meios de comunicação e no sistema educacional (aqui desde sempre, como se sabe). Como revelado nos inúmeros debates, nem sempre racionais ou objetivos, em torno desses processos, eles deixaram profundas marcas no Brasil contemporâneo, tanto positivas quanto negativas, mas os jovens de hoje não sabem discernir por que, exatamente.
Percebe-se um acirramento de posições e muitas diatribes, entre defensores e opositores da ruptura de regime e do longo período dominado pelos militares, nem sempre com posicionamentos didáticos, que poderiam esclarecer aos mais jovens o que foi, o que representou, e quais implicações tiveram os eventos e processos iniciados entre os anos 1961 e 1964 e que redundaram numa mudança fundamental da política e da economia no Brasil, com consequências que se estendem aos dias de hoje.
Tenho lido muita coisa sobre o período e suas consequências para os dias atuais, concordando com alguns escritos, discordando de outros, mas percebendo, sobretudo, o espírito maniqueísta que anima muitas dessas posições favoráveis ou contrárias ao movimento de 1964. Em função dessa constatação, resolvi elaborar esta livre digressão em torno do assunto, comentando, em formato de perguntas e respostas, o que se me afigura relevante em torno do assunto, ou seja, o que representou, exatamente, 1964 na vida do país, suas repercussões, bem além do que pensavam seus promotores imediatos, nos diversos campos de importância nacional, e dando a minha visão dos eventos e dos processos ligados a essa data. Espero que meus argumentos possam ajudar a esclarecer algumas dessas dúvidas que muitos jovens da atualidade mantém sobre o Brasil de meio século atrás.
Creio ser importante informar, por dever de honestidade e de transparência, que, em 1964, eu tinha apenas 14 anos, e não tinha, até então, uma posição definida sobre os eventos; justamente, em função deles, me politizei rapidamente, tornando-me um opositor decidido do regime militar então inaugurado; isso me levou a me ligar a grupos de esquerda que buscavam derrubar o regime, e depois a um longo exílio de sete anos na Europa, quando continuei a combater, por outros meios, o regime autoritário, mas também lendo, me informando e refletindo sobre todo o processo. Aos poucos fui revisando minhas concepções sobre a economia e a política, no Brasil e no mundo, e é com base em intensas leituras, uma grande experiência internacional adquirida em viagens a quase todos os continentes, e muita autocrítica, que cheguei a algumas das respostas que apresento aqui, em total independência em relação aos dois grupos de atores políticos acima mencionados.

1964 representou um golpe militar no Brasil?
Não exatamente. Golpes militares se manifestam sob a forma de quarteladas, controle do palácio presidencial, prisão ou envio para o exílio do chefe de Estado derrocado, e fechamento ou alteração dos demais poderes do Estado. Não foi o que ocorreu no país, pois o Congresso não foi fechado, o presidente decidiu sair do país, e nunca houve um planejamento centralizado para concretizar um golpe de Estado. O que ocorreu foi uma formidável crise política, aliás latente desde muitos anos, e as elites se revelaram incapazes de resolver suas diferenças pela via normal da democracia, fazendo apelo – ambos os lados – aos militares, para virar o jogo a seu favor. As várias crises foram criadas e mantidas basicamente pelos políticos, com eventual intervenção tópica de militares em diversos momentos do processo político brasileiro desde o início da Guerra Fria e no decorrer dos anos 1950. O período que sucedeu à renúncia do presidente Jânio Quadros, após menos de sete meses de governo, exacerbou todo o processo, sobretudo depois da revolução cubana e do envolvimento soviético na ilha convertida em bastião do socialismo na América Latina.
Os militares brasileiros, como vários outros na região, se opunham vigorosamente ao comunismo, com total apoio dos Estados Unidos, e no caso do Brasil havia a memória ainda vida da intentona comunista de novembro de 1935, que não apenas inaugurou o anticomunismo como política oficial do Estado brasileiro, como foi um dos fatores mais importantes para a instauração do Estado Novo, dois anos depois. Em 1964, porém, os militares mais do que iniciar um golpe, seguiram o movimento que partia de certas lideranças políticas – os governadores dos três principais estados do país – e que era alimentado pelo imenso temor da classe média em relação ao comunismo e à erosão inflacionária de seus ganhos e na poupança. As iniciativas de políticos golpistas ou de fato preocupados com os rumos do país – todos eles prováveis candidatos nas eleições de 1965 – na sensibilização das lideranças militares regionais, bem como a pressão de amplos setores da opinião pública empurraram os militares a ações não necessariamente coordenadas, mas que acabaram confluindo na queda do governo, que mais abandonou o poder do que foi expulso por um golpe.

O Brasil estava ameaçado de ter um regime comunista?
Improvável que isso ocorresse; os militares, justamente, jamais o permitiriam, e os próprios comunistas não estavam preparados, nunca estiveram, para tomar o poder e assumir o comando do país. Mas, como em 1935, provavelmente, havia a enorme ilusão de que tal mudança fosse possível, em parte estimulada por impulsos externos, em grande medida alimentada pelos próprios comunistas, que queriam forçar mudanças no Brasil, sem necessariamente apostar novamente na tomada de poder. O fantasma do comunismo estava em todas as partes, com o aparente fortalecimento pós-guerra da União Soviética, a grande simpatia gerada pela revolução cubana em todos aqueles que explicavam o subdesenvolvimento da América Latina pela “exploração imperialista”, ou nos que acreditavam que os problemas do Brasil eram a existência do latifúndio, a ausência de uma reforma agrária e a incapacidade da “burguesia industrial” em fazer o país avançar de modo autônomo e rapidamente. Percepções são, por vezes, mais poderosas do que processos reais, e as percepções apontavam para a possibilidade de um regime comunista no Brasil, sem que houvesse chances reais disso ocorrer.
Da mesma forma, muitos militares daquela geração, ainda ativos atualmente, acreditam que os atuais detentores o poder estejam comprometidos com o projeto de um Brasil comunista, mas essa percepção não tem qualquer fundamento na realidade, ainda que existam muitos comunistas entre os companheiros do partido hegemônico. Não pelo alegado “fim da História”, mas pela lógica elementar dos processos econômicos, tal possibilidade está excluída completamente, o que não significa que o projeto atual não passe pelas mesmas concepções de Estado e sociedade que os militares alimentaram durante a maior parte de seu itinerário dentro dos processos decisórios que criaram o Brasil contemporâneo: um Estado forte, intervencionista e dirigista, comprometido com uma versão conhecida do nacionalismo econômico, que passa pelo protecionismo e pela autonomia quase completa da oferta nacional em relação ao abastecimento externo. Em outros termos, o Brasil atual não é muito diferente do “socialismo” estatal.

Era o Governo Goulart era uma administração reformista, democrática, comprometida com reformas importantes para a sociedade brasileira?
Talvez em intenção, mas totalmente inepto para o que pretendia fazer, inclusive partindo de diagnósticos equivocados sobre a realidade brasileira e propondo soluções que tornariam o Brasil pior, não melhor, do que já era: uma economia atrasada, fechada sobre si mesma, dotada de um Estado ineficiente, sem uma visão clara do que era preciso empreender para transformar o Brasil num sentido progressista e moderno. Isto não quer dizer que o movimento que derrubou o governo Goulart e implantou um novo regime no Brasil tivesse ideias precisas sobre o que era preciso fazer. Os militares, estimulados pelos civis conspiradores (vários golpistas, de fato), estavam antes de tudo evitando o que se imaginava um mal maior, que era a imposição de um regime de tipo socialista no Brasil. Goulart dava sinais – empurrado por espíritos mais radicais como Brizola – de que faria tudo para implantar as suas “reformas de base”, com o Congresso ou sem ele, “na lei ou na marra”, como proclamava Brizola.
Por um determinado momento, tanto do lado dos “reformistas”, quando do lado dos golpistas, se pensou que o Brasil estava, de fato, e na “melhor” das hipóteses, no limiar de um golpe ao estilo peronista ou nasserista, o que teria sido inaceitável para capitalistas e líderes militares; na pior, seria a inauguração de um regime cubano ou maoísta, improvável, sob vários aspectos, mas essa era uma das percepções em voga entre os militares; elas provavelmente os induziram a passar decisivamente à ação.
Goulart poderia encarnar tendências reformistas sinceras, mas no fundo era um líder não só timorato, mas basicamente incompetente para as grandes tarefas reformistas que estavam na agenda dos movimentos da esquerda moderada. Ao final, ele acabou buscando apoio nos líderes sindicais e em lideranças comunistas que tinham um outro projeto para o Brasil. As “reformas de base” que tinham sido propostas por reformistas como San Tiago Dantas não tinham nenhuma chance de serem implementadas na forma como ele pretendia. Elas terminaram sendo gradualmente efetivadas pelo novo regime.

O que regime que se instalou no Brasil em 1964, e que acabou durando 21 anos, era um regime militar?
Era certamente um regime dominado por militares, mas dificilmente se poderia chamá-lo de militar, no sentido clássico da palavra. Nem se pretendia, ao início, que ele durasse duas décadas, pois o projeto imediato era afastar os perigos presumidos e inverter o caos político e administrativo que caracterizou os dois últimos anos de Goulart. Castelo Branco, o primeiro general presidente, empossado pelo Congresso, chegou a pensar que as eleições previstas para 1965 pudessem ser realizadas, mas o cenário político se inverteu, com eventuais ameaças de reações armadas por grupos de esquerda ou brizolistas. Por um conjunto de circunstâncias, inclusive derivadas dessas percepções e de uma direita militar bem mais radical do que as posições basicamente civilistas e democráticas de Castelo Branco, o regime continuou a ler comandado por militares – exclusivamente generais do Exército, com uma espécie de colegiado militar a endossar as decisões sobre os “sucessores” – mas os governos não eram dominados por militares, mas essencialmente por técnicos civis, tecnocratas, e alguns políticos.
O Congresso só foi fechado em circunstâncias excepcionais, e as medidas mais drásticas – como repressão violenta, censura e violações repetidas dos direitos humanos, como o uso da tortura, pela polícia e pelos militares – ocorreu concomitantemente aos ataques deslanchados pela guerrilha urbana e rural. A esquerda armada não reconhece até hoje que ela foi responsável em grande medida pelo endurecimento do regime, e por sua “militarização” nos momentos de maiores enfrentamentos contra os grupos guerrilheiros. Mesmo assim, o governo não se tornou mais militar, pois as políticas econômicas e setoriais continuaram a serem pautadas por objetivos de desenvolvimento econômico, não perseguindo metas exageradas de potência militar. De fato, os militares queriam transformar o Brasil numa “grande potência”, mas tal objetivo era perseguido mediante instrumentos basicamente civis, de fortalecimento econômico e de capacitação tecnológica. Igualmente no plano político, os militares brasileiros eram essencialmente legalistas, buscando sempre dourar o arbítrio que praticavam por meio de atos institucionais, ou mudanças na Constituição.
Fora dos ministérios propriamente militares, os únicos profissionais da carreira que exerceram cargos ministeriais eram da reserva, ou passavam a ela quando assumiam algum cargo numa autarquia, com muito poucas exceções. Uma comparação do regime “militar” brasileiro com seus congêneres no resto da América Latina comprovaria o caráter essencialmente civilista dos governos brasileiros mesmo em momentos de quase completa militarização no continente. Os orçamentos militares, por uma medida, nunca corresponderam a um regime verdadeiramente militarista.

A oposição que atuou nos “anos de chumbo” do regime militar, tentando derrubar o governo de armas na mão, estava lutando pela democracia?
 Absolutamente, e isso eu posso afirmar por conhecimento direto. Nenhuma das organizações que adotou o caminho das armas, recusando a via política, de acumulação de forças, proposta pelos políticos de oposição e pelo Partido Comunista de linha soviética, estava lutando apenas para derrubar o governo; a intenção era transformar completamente o regime político e econômico no sentido da “ditadura do proletariado”. Obviamente, o cálculo estratégico dessas organizações era completamente equivocado e nunca correspondeu ao que a sociedade brasileira esperava como regime politico e como sistema econômico. A alegação de que o regime militar não deixou nenhuma outra via de atuação aos seus opositores é totalmente falsa, inclusive porque o início de atentados, de assaltos, sequestros e mesmo assassinatos a sangue frio se deu numa fase anterior ao endurecimento do regime, tendo sido uma estratégia traçada em Havana pelas lideranças castristas, como forma de aumentar a pressão sobre o imperialismo, durante a fase mais aguda da guerra do Vietnã. O Brasil se tornou pior, durante os “anos de chumbo”, por causa da esquerda armada, não por causa do regime militar.

O retorno a um regime civil no Brasil, a partir de 1985, representou uma melhoria de padrões na administração pública ou maior crescimento econômico?
O regime autoritário modernizador do Brasil foi essencialmente reformista, em todas as áreas passíveis de serem transformadas no sentido da eficiência burocrática – que costuma caracterizar todas as estruturas militares, feitas de planejamento, muita logística e cálculo quanto aos resultados – e acelerou os processos de criação de riqueza, aumentando a carga fiscal, mas também a taxa de investimentos e a concentração de capital. Na primeira metade do regime, o Brasil conheceu as maiores taxas de crescimento econômico de sua história, fase que foi interrompida pelos dois choques do petróleo e pela relutância dos governantes civis e militares em fazer os ajustes necessários, o que provocou o super-endividamento e as pressões inflacionarias, que acabaram precipitando as crises dos anos 1980.
A segunda fase, final, foi errática, o deveria ter sido corrigido por um governo comprometido com a estabilidade e a responsabilidade fiscal, o que infelizmente não ocorreu. Ao contrário, não apenas os governos que se seguiram não souberam adotar as ferramentas estabilizadoras requeridas para aquele momento, mas o próprio Congresso Constituinte agravou a situação ao aprovar um rol imenso de benefícios sociais sem qualquer sustentação na base fiscal. Desde então, o Brasil vem se arrastando no baixo crescimento, tanto em função desse compromisso estrutural com a redistribuição, em lugar da acumulação para fins de investimento, quanto em virtude de uma quebra de padrões de qualidade na administração pública (com exceção do governo reformista de Fernando Henrique Cardoso, ele também vítima de crises financeiras externas).
Obviamente não foi o regime autoritário, ou militar, que produziu altas taxas de crescimento econômico nos anos 1970, assim como não foi exatamente a democracia, em si, que atenuou o ritmo do crescimento, mas políticas econômicas desajustadas aos desafios internos e externos a cada momento da conjuntura nacional e internacional. O principal erro dos militares foi, provavelmente, a exagerada estatização e autarquia que marcaram as políticas econômicas, que eram essencialmente desenhadas por civis, ou seja, tecnocratas, embora os militares indubitavelmente pressionavam por altas taxas de expansão do produto, como forma de trazer o Brasil para o pelotão de frente da economia mundial (o que de certa forma foi logrado, com algumas distorções). Os governos civis que se seguiram não corrigiram os erros mais visíveis, ao mesmo tempo em que agravaram os desequilíbrios fiscais, que só seriam corrigidos depois de fortes impulsos inflacionários pela equipe econômica reunida pelo ministro Fernando Henrique Cardoso, sob o governo Itamar Franco. Como presidente, FHC conduziu o maior processo de reformas do Estado e das estruturas econômicas do país desde o regime militar, mas os padrões de qualidade da administração pública foram novamente e dramaticamente reduzidos sob os governos petistas que se seguiram, sem que se tenha recuperado o impulso de crescimento (temporariamente elevados apenas por indução externa, graças à demanda chinesa por produtos primários brasileiros de exportação).
  
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Hartford, 18 de Março de 2014.