O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia
respostas a um questionário para tese de doutoramento
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões prévias a entrevista sobre o tema, por demanda de doutorando, seguida de entrevista oral, em 9/09/2021.
1) Qual é a sua avaliação da política comercial brasileira nas últimas décadas?
PRA: Poucas mudanças substantivas depois das grandes mudanças no curto governo Collor: reforma da Tarifa brasileira com rebaixa geral das alíquotas, que Itamar tentou interromper, mas não conseguiu, pois Collor também mudou a metodologia do Mercosul e deu início à negociação de uma Tarifa Externa Comum, base da união aduaneira e do mercado comum, que por sinal espelhava em grande medida a Tarifa brasileira (daí a fragmentação posterior).
Depois disso, não houve nenhuma mudança substantiva, a não ser ajustes tópicos, geralmente num sentido protecionista, ou seja, de retrocesso. Em 1994 foi assinado o compromisso de Miami, para a negociação da ALCA, que se levada a termo teria, sim, representado uma enorme mudança na política comercial do Brasil; mas os governos FHC foram relutantes e o lulopetismo se empenhou em sabotar deliberadamente, e por razões ideológicas, a ALCA. O acordo Mercosul-UE, que começou a ser negociado por causa da ALCA, ficou em estagnado por 20 anos. Em síntese, não houve mais avanços desde 1994.
2) O Itamaraty teve um papel importante na formulação da política comercial?
PRA: Sim: desde o início do Sistema Multilateral de Comércio teve papel extremamente relevante, não tanto na formulação, mas na negociação externa dessa política comercial, muitas vezes obstando intenções e medidas ainda mais protecionistas do setor econômico dos governos e do setor privado, sempre, e em todas as épocas extremamente protecionista. O Itamaraty sempre levou um combate de retaguarda, mas muito importante, tentando evitar que o Brasil fosse acusado de práticas desleais de comércio em Genebra (Gatt e depois OMC).
3) De maneira geral, qual é a sua impressão sobre o acordo entre o Mercosul e a União Europeia (MSL-EU)? Acredita que, caso ratificado, será benéfico para o Brasil?
PRA: Todo e qualquer acordo de liberalização comercial é potencialmente benéfico para o país, sobretudo para os consumidores, mas também para o setor produtivo, exposto à concorrência. O problema é que, salvo acordos gerais de abertura econômica e liberalização comercial, os acordos bilaterais ou plurilaterais de livre comércio são sempre discriminatórios em sua essência, e podem mais desviar comércio do que criar novos fluxos: ocorre uma mudança na estrutura geografia pelo abatimento de tarifas, não porque tenha havido modernização da oferta; essa é a maldição do minilateralismo.
No caso do acordo com a União Europeia, seria importante pela dimensão dos fluxos de comércio e de investimentos, mas sempre nessa perspectiva de desvio de comércio, com cláusulas especificamente talhadas para proteger ou promover setores politicamente fortes dentro de cada bloco. Aliás, ele só estava sendo negociado, por causa da ameaça da ALCA: quando esta foi implodida pelos petistas, a negociação birregional estagnou completamente, e só foi retomada por causa dos problemas criados por Trump no SMC e com a China; foi a maneira dos europeus dizerem: “estamos vivos, vamos negociar alguma coisa”.
Ele, se e quando for ratificado (o que não ocorrerá sob Bolsonaro) será de fato importante para o Brasil, mas ele empalidece em face de outros grandes acordos regionais e plurilaterais de comércio que existem e que consolidam importantes cadeias globais de valor já existentes em outras regiões (TPP e RCEP, por ex.).
4) Na sua opinião, qual foi a importância do Itamaraty durante as negociações?
PRA: Ela sempre foi extremamente relevante desde o início, nas várias etapas, mas depois o Itamaraty teve de se dobrar às idiossincrasias petistas nas áreas da economia e da política comercial e suas fantasmagorias Sul-Sul. Praticamente, só decolou depois com o governo Temer, que preparou todo o terreno para a conclusão do acordo, quando a posição da Economia foi talvez mais importante.
5) O senhor acredita que o Itamaraty perdeu protagonismo para outros ministérios ao longo dos anos?
PRA: Provavelmente sim, talvez não na parte operacional da representação, mas certamente na questão da fundamentação substantiva da postura negociadora. O Itamaraty não fixa tarifas, não trata de defesa comercial, não decide sobre políticas setoriais da área econômica (indústria, agricultura, saúde, normas, etc.). O Itamaraty vinha perdendo terreno paulatinamente nos últimos anos, em função da qualificação de funcionários preparados nas demais áreas setoriais, mas a derrocada maior ocorreu certamente com o governo Bolsonaro, que praticamente retirou do Itamaraty qualquer competência negociadora efetiva, deslocando-o para o Ministério da Economia, na Secretaria de Comércio Exterior e (atenção para o acréscimo) Assuntos Internacionais. Foi ela quem negociou o final do acordo com a União Europeia, junto com a Agricultura.
6) O acordo MSul-UE foi retomado pelo governo Dilma e não teve êxito; depois, já no governo de Michel Temer, o tema voltou com força. De qual ministério partiu essa retomada? Em sua avaliação, qual seria o interesse do governo Temer?
PRA: O governo Temer representou a normalização da diplomacia brasileira, nas bases em que ela sempre funcionou até o advento do PT, que introduziu deformações ideológicas na condução da política externa, inclusive com um G20 comercial esquizofrênico, na reunião ministerial da OMC em Cancún (2003) e depois implodindo a ALCA (2005), achando que se chegaria a um acordo melhor com os europeus, o que era uma completa ilusão. Quando terminaram os desvios petistas, o governo Temer (antes com Joaquim Levy) retomou o processo negociador, ou seja, de iniciativa da Fazenda, e não do Itamaraty, que continuou operando na parte negociadora, mas com uma pauta fixada pela área econômica, que na verdade responde aos conhecidos lobbies protecionistas.
7) Qual ministério liderou a conclusão do acordo no governo Bolsonaro e qual foi a participação do Itamaraty?
PRA: Claramente o ministério da Economia, pela Secretaria de Comércio Exterior, na época dirigida pelo Marcos Troyjo (hoje no banco do Brics), com o Itamaraty operando em todas as fases, já que tinha toda a memória das fases anteriores e mantendo contato direto entre Brasília e Bruxelas (Comissão).
8) Qual foi o impacto da junção dos ministérios da Fazenda, do Planejamento e do MDIC no início do governo Bolsonaro para a política comercial brasileira?
PRA: Pode ter facilitado o processo decisório interno, ao ter unificado três grandes agências relevantes (menos o Planejamento, que é menos relevante), mas os lobbies protecionistas empresariais operam da mesma forma, com um ou quatro ou cinco ministérios. Quem manda na política econômica, macro e setorial, é o Grande Capital, de forma centralizada (CNI, CNA, Fiesp, etc.) ou nas associações produtoras (Abinee, Abimaq, Anfavea, Abint, Abifina, etc.)
9) O atual ministro da Economia mudou de opinião sobre o Mercosul desde a campanha eleitoral de 2018. Antes refratário, em 2019 comemorou o encerramento das negociações. Na sua visão, quais ganhos o governo Bolsonaro vislumbrou no acordo?
PRA: O Ministro Paulo Guedes sempre foi um completo ignorante em matéria de política externa, de política econômica externa, e de políticas governamentais de maneira geral. Um simples negociador de investimentos de mercado, não tinha nenhuma competência tecnocrática, e desprezava o Mercosul, como a própria Argentina. Mas, o acordo Msul-UE foi vendido pelo governo como cortina de fumaça, como uma grande pauta liberal do governo, junto com a demanda de ingresso na OCDE (feita pelo governo Temer), o que nunca foi, e tem dificuldades para se concretizar, pois o governo é caótico, sem qualquer direção definida nas grandes definições de política externa. Pode-se dizer, sem sombra de erro, que o governo é uma barata tonta em quase todas as áreas que requerem grandes definições de políticas estratégica, só se salvando em áreas específicas – agricultura, energia e transportes – porque estão praticamente dominadas pelos interesses do Grande Capital em cada um dos setores. O “governo Bolsonaro” NÃO EXISTE como governo, e ele só está interessado em gestos propagandísticos, sem qualquer conexão com algum planejamento integrado da ação governamental (que praticamente não existe).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8/09/2021
Leitura recomendada:
Rogério S. Farias: A palavra do Brasil no Sistema Multilateral de Comércio (disponível na Biblioteca Digital da Funag).