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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Acordo Mercosul-UE: enterrado por mais alguns anos. Vai ser difícil retomar a liberalização nos próximos anos

 Adeus, firewell, auf wiedersehn, adiós, adieu au traité Mercosud-UE:


https://www.lemonde.fr/economie/article/2024/11/15/michel-barnier-reaffirme-son-opposition-au-traite-de-libre-echange-du-mercosur-avant-des-mobilisations-agricoles_6395228_3234.html

Michel Barnier réaffirme son opposition au traité de libre-échange du Mercosur, avant des mobilisations agricoles
A l’occasion du G20 qui se tient à partir de lundi à Rio de Janeiro, la FNSEA et les Jeunes Agriculteurs ont appelé à une mobilisation pour s’opposer au traité de libre-échange entre l’Union européenne et des pays sud-américains.
Le Monde avec AFP, 16/11/2024, 14h37

Quelques jours avant une mobilisation nationale des agriculteurs, prévue pour lundi 18 novembre, le premier ministre, Michel Barnier, a de nouveau marqué son opposition vendredi au traité de libre-échange entre l’Union européenne et le Mercosur. « Il faut le refuser », a-t-il notamment lancé sur France Bleu, affichant son « inquiétude de voir un traité de libre-échange provoquer la destruction de pans entiers de notre agriculture ».
Ce texte, qui serait l’accord le plus important conclu par l’Union européenne, vise à faciliter les échanges commerciaux entre l’Europe et l’Amérique du Sud en supprimant progressivement la quasi-totalité des droits de douane appliqués aux échanges entre les deux blocs.
« Des dizaines de milliers de tonnes de bœuf rentreront avec des conditions d’élevage qui ne sont pas du tout les mêmes que celles que nous imposons à nos propres agriculteurs au titre de la santé publique », a déploré vendredi l’ancien ministre de l’agriculture, qui y voit une « concurrence déloyale ». A la veille d’un déplacement d’Emmanuel Macron en Amérique latine, où il sera notamment question de ce traité de libre-échange, Michel Barnier estime que « ni le président de la République ni le premier ministre que je suis n’accepterons cet accord en l’état actuel des choses ». « Le Mercosur, en l’état, n’est pas un traité qui est acceptable », avait réaffirmé à la mi-octobre Emmanuel Macron.
Des mobilisations dans les Bouches-du-Rhône
Cette interview de M. Barnier a lieu trois jours avant une mobilisation des agriculteurs à l’appel de l’alliance syndicale majoritaire de la FNSEA et des Jeunes Agriculteurs à partir de lundi, au moment où les membres du G20 se réuniront à Rio de Janeiro. Mais dès vendredi des paysans ont manifesté dans les Bouches-du-Rhône. A Tarascon, une trentaine d’agriculteurs, arrivés vers 6 h 30, ont déversé des déchets d’exploitations (fumier, bâches plastiques, etc.) à l’aide d’engins agricoles devant le centre des impôts, dont la plaque avait été recouverte d’un drapeau brésilien, sur lequel était inscrit « ambassade du Brésil ».
« Notre mobilisation s’inscrit en préambule du G20 qui se tient au Brésil pour dire notre opposition à un accord avec le Mercosur. Cet accord ferait entrer sur le territoire des produits qui sont interdits chez nous depuis des années », a expliqué à l’Agence France-Presse (AFP) Romain Blanchard, président de la FDSEA (syndicat majoritaire) des Bouches-du-Rhône.
« Ils veulent nous envoyer leurs déchets, on leur envoie les nôtres ! », a-t-il ajouté. A une vingtaine de kilomètres de là, à Châteaurenard, des agriculteurs de la FDSEA et des Jeunes Agriculteurs ont muré à l’aide de parpaings et de ciment l’accès du public au centre des impôts, avant de déverser en fin de matinée du lisier devant le bâtiment. « Le droit de manifestation existe, dans le respect des personnes, des biens privés, mais je suis aux côtés des agriculteurs », a fait savoir Michel Barnier au micro de France Bleu.
Le Monde avec AFP

domingo, 30 de junho de 2024

O crescimento da direita francesa visto sem as lentes de aumento do antifascismo - Demetrio Magnoli

 

Dica de leitura : "Le Pen rompe o 'cordão sanitário' (Demétrio Magnoli, um acadêmico que, na contramão dos jornalistas da Globonews, pensa, lê e se informa antes de dizer bobagens...)

MD

 

 

sábado, 29 de junho de 2024

Demétrio Magnoli - Le Pen rompe o 'cordão sanitário'

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Folha de S. Paulo, 29/06/2024

Política lidera intenções de voto porque desistiu do extremismo

"Os herdeiros políticos de Vichy chegam ao governo francês" —eis uma manchete sensacionalista possível para, caso se confirmem as pesquisas, sintetizar o resultado das eleições parlamentares antecipadas que começam neste domingo (30/6). Nas sondagens, a Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, tem 36% das intenções de voto, contra 28% para a Nova Frente Popular, de esquerda, e apenas 22% para os centristas liderados por Macron. Contudo, seja qual for o veredito das urnas, a manchete precisa é outra: a que intitula esta coluna.

Partidos não mudam seu nome por acaso. A RN nasceu em 1972, como Frente Nacional (FN), sob o comando do pai de Marine, Jean-Marie. O líder admirava o general Pétain, que governou, como colaboracionista, a parte da França não ocupada pela Alemanha nazista. Marine assumiu o controle do partido em 2011 e expeliu seu pai em 2015, reagindo a elogios a Pétain e à classificação das câmaras de gás como um "detalhe" histórico. A troca de nome veio em 2018.

O jornalismo continua a qualificar a RN como "extrema direita" ou "ultradireita". É um erro analítico grave, que decorre de preguiça intelectual ou vontade de externar um repúdio moral (ou da mistura de ambos), tornando inexplicável sua ascensão eleitoral. Extremistas buscam destruir as instituições políticas. Le Pen ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto justamente porque desistiu do extremismo, refundando a RN como partido da direita nacionalista.

Quase tudo mudou no programa partidário. Desapareceu a hostilidade à União Europeia. Le Pen tomou alguma distância de Putin, tentando revisar suas declarações de 2017, quando afirmou que compartilhava dos "mesmos valores" do autocrata russo. Mesmo a xenofobia e a islamofobia, marcas principais do partido, foram amainadas: no lugar da deportação em massa de imigrantes árabes e africanos, a RN passou a pregar limites estritos para o ingresso de migrantes.

Mas, sobretudo, a RN posicionou-se como "direita patriótica", ocupando o espaço antes dominado pelos gaullistas, que representavam o conservadorismo tradicional francês. A estratégia de reposicionamento provocou cisões e expurgos, consolidando-se num texto de Le Pen publicado em 2020 e consagrado a homenagear De Gaulle. No ano seguinte, a líder da direita nacionalista aproveitou o aniversário da morte do general para depositar flores aos pés da Cruz de Lorraine, na praia da Normandia onde De Gaulle pisou o solo francês em junho de 1944.

Fora Vichy, viva a "França eterna" do líder da resistência. O giro radical deu frutos, abrindo a via para uma incursão decisiva no eleitorado gaullista. O partido gaullista (Os Republicanos) desabou de 22% dos votos nas eleições parlamentares de 2017 para 7% em 2022, enquanto a RN saltava de 13% para 19%. Há pouco, o presidente dos Republicanos anunciou uma aliança com a RN, rompendo a política do "cordão sanitário", pela qual a direita tradicional prometia isolar Le Pen. A declaração deflagrou uma crise interna, mas foi seguida por expressiva minoria dos candidatos gaullistas.

Na economia, a RN ostenta programa similar ao da esquerda reunida na Frente Popular: quebrar a banca. São árvores de Natal que empilham redução de taxas sobre energia, aumentos de salários e redução de idade de aposentadoria, elevando o déficit público para perto de 7% do PIB. Algo como uma Gleisi no posto de Haddad.

Na política externa, um triunfo da RN seria celebrado por Trump e por Putin. Não que Le Pen ofereça apoio à Rússia na sua aventura ucraniana. É que, de certo modo, repetindo De Gaulle em contexto diferente, ela enxerga a Rússia como contrapeso à influência dos EUA na Europa. Anos atrás, proclamou que o triângulo formado por Trump, Putin e ela mesma inauguraria uma "nova ordem mundial". Bolsonaro deve gostar de tudo isso. Lula, só da parte de Putin.


quarta-feira, 12 de junho de 2024

A extrema-direita europeia, suas relações com as duas grandes autocracias - Rodrigo da Silva, apresentação Paulo Roberto de Almeida

A extrema-direita europeia, suas relações com as duas grandes autocracias

Rodrigo da Silva (no X)


Apresentação e comentários iniciais de Paulo Roberto de Almeida


Copio, de um longo thread postado por Rodrigo da Silva no X, em 12 de junho de 2024, esta longuíssima postagem, extremamente (êpa, desculpem o termo) esclarecedora, sobre o reforço e a expansão da extrema-direita, sobretudo na Europa – mas com vínculos com os EUA e o próprio Brasil – e as relações extremamente (êpa, sic) amigáveis, talvez dependentes, em todo caso em grande medida clandestinamente (porque permeadas por dinheiro, adesão doentia e por ideologia), com as duas grandes autocracia do mundo atual, Rússia de Putin e China de Xi.

Meus cumprimentos ao Rodrigo da Silva por esta magnífica postagem. Muitas informações não eram do meu conhecimento, mas o cenário geral sim, eu tinha uma perfeita percepção desse tipo de promiscuidade, contaminação e aliança objetiva e subjetiva, direta e indireta, entre a extrema direita europeia e seus "mestres" no Kremlin, especificamente Putin, desde que o tirano de Moscou financiou Marine Le Pen em muitos milhões de euros, o que tornou seu partido um servo fiel de Moscou, assim como líderes do AfD. 

Estamos em face de uma situação bastante preocupante, na atualidade e também para os próximos anos. O mundo da extrema-direita é, de certa forma, o retorno do bolchevismo e do nazismo combinados a um mundo que se esperava liberto dos dois totalitarismos da primeira metade do século XX, ou seja, toda a destruição, opressão, genocídio e intolerância que caracterizaram a "segunda guerra de Trinta Anos". O não combate a essa ameaça no presente momento implica em enormes riscos nos anos e décadas seguintes, assim como o mundo nazista e soviético representou o triunfo momentâneo do extermínio da opressão, o nazismo por 12 anos terríveis, o bolchevismo durante setenta anos, cobrindo toda a Europa central por 45 anos dentro do totalitarismo soviético. Putin representa tudo isso, ao passo que a China representa um mundo "orwelliano normalizado" (explicarei o que é isso em outra postagem).

A despeito das deficiências formais da transcrição que aqui faço – resultado da cópia improvisada a partir de algumas dezenas de postagens separadas – o texto abaixo merece leitura atenta e reflexão aprofundada, pois estamos falando do futuro do mundo e do Brasil. Um último comentário: 

As postagens de Rodrigo da Silva se referem basicamente à extrema-direita europeia e seus "amores" com a Rússia e a China, mas não deixa de ser curioso, bizarro ou talvez extremamente (êpa!, tri-sic) constatar que a diplomacia lulopetista, especificamente a diplomacia presidencialista, personalista, megalomaníaca de Lula, exibe os mesmos "amores" (talvez por outras razões) com as duas grandes autocracias contemporâneas, muito pelas mesmas razões da extrema-direita europeia, que é o antiamericanismo e os impulsos autoritários, que esquerda e direita compartilham. Isso, repito, é extremamente preocupante, pois significa um distanciamento preocupante em relação a valores e princípios da nossa diplomacia e, mais do que isso, de cláusulas de relações internacionais que figuram em nossa constituição.

Tendo em vista a importância das informações e argumentos abaixo transcritos pretendo divulgá-los neste canal e por outras vias, sempre dando todo o crédito a Rodrigo da Silva, um intelectual que respeito muito.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de junho de 2024

 

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Thread

Conversation

Rodrigo da Silva - @rodrigodasilva

 

Nessa semana, fui provocado no X a falar sobre a extrema-direita. Muitos usuários dessa rede social não acreditam sequer que ela existe. Será verdade? O que é a extrema-direita? Essa é a maior thread que eu já publiquei aqui:

 

Em linhas gerais, esses são os maiores partidos de extrema-direita na Europa: 

Rassemblement National (conhecida até pouco tempo como “Front National”), da França. 

Alternative für Deutschland (AfD), da Alemanha. 

Lega Nord, na Itália.

Freiheitliche Partei Österreichs (FPÖ), na Áustria. 

E o Fidesz, na Hungria, sob a liderança de Viktor Orbán, o primeiro-ministro do país. 

 

Por que eles são considerados de extrema-direita – e o que define a extrema-direita – eu falarei mais à frente. Mas é um fato que muitos dos eleitores conservadores brasileiros se sentem pessoalmente ofendidos quando esses partidos são chamados de extrema-direita. A ironia é que essas organizações, e as suas lideranças políticas, estão umbilicalmente conectados a dois adversários geopolíticos históricos da direita: a Rússia e a China. Como eu mostrarei na sequência, muitos dos militantes conservadores brasileiros estão tão cegos por ideologia que são incapazes de perceber, mas espalham propaganda russa e chinesa nessa rede social sob a pretensa desculpa de defender o pensamento político conservador.

 

Vamos à Alemanha. Maximilian Krah, um dos líderes do Alternative für Deutschland (AfD), membro do Parlamento Europeu, alimentou nos últimos anos laços inegáveis com a China. https://t-online.de/nachrichten/deutschland/innenpolitik/id_100247784/afd-maximilian-krah-das-geld-aus-china-und-die-geheimdienste.html

No último mês de abril, o chinês Jian Guo, o seu assistente no parlamento, foi preso em Dresden, acusado de espionar para Pequim. Jian passava informações sobre as negociações e as decisões do Parlamento Europeu para o serviço de inteligência chinês. https://bbc.com/news/world-europe-68880086 Para os alemães, nada disso impressiona. Ao contrário dos líderes da direita alemã, Maximilian Krah é um defensor de longa data de Pequim. Para ele, a Alemanha deveria usar o dinheiro chinês para se fortalecer numa zona de livre comércio com a Rússia e fazer frente aos Estados Unidos. Ele acusa a União Europeia de ser “vassala” dos americanos. Krah diz publicamente que todas as acusações que a China recebe da imprensa e de organizações internacionais não passam de “propaganda anti-chinesa”. Diferentes pessoas que trabalharam com Krah nos últimos anos já receberam financiamento chinês. Jian Guo, o assistente preso, chegou a se infiltrar em grupos anti-Pequim na Alemanha para relatar o que acontece nesses movimentos para a inteligência chinesa.

Muitos dos líderes do AfD falam mandarim e visitam a China com frequência. Alguns até já moraram na China. https://rnd.de/politik/alice-weidel-in-peking-warum-chinas-kommunisten-die-afd-hofieren-7PVFD7LHPVBU5NFFNBVDRMRGTU.html O próprio Maximilian Krah vive dando entrevistas para os jornais estatais chineses. E já produziu diferentes vídeos dando felicitações para o Partido Comunista Chinês (um deles pelo 70º aniversário da ocupação chinesa do Tibete). https://globaltimes.cn/page/202211/1278554.shtmlhttps://europeantimes.news/2021/05/member-of-the-european-parliament-maximilian-krah-congratulates-the-tibet-autonomous-region-on-its-70th-anniversary/ No Parlamento Europeu, Krah foi o vice-presidente de um grupo chamado “EU-China Friendship Group”, que defendia uma cooperação mais estreita dos europeus com os chineses, financiado diretamente pelo Partido Comunista Chinês. Uma reportagem publicada pelo Politico, de 2020, denunciou as intenções do grupo e, desde então, as suas atividades foram suspensas. https://politico.eu/article/china-influence-european-parliament-friendship-group/ O grupo ficou impedido de usar o logotipo e o nome do Parlamento Europeu. https://politico.eu/article/eu-china-friendship-group-suspended/ Adivinha só de onde vinha a maior parte dos seus membros? Pois é: da extrema-direita. https://sinopsis.cz/wp-content/uploads/2019/11/ep.pdf Em 2018, Maximilian Krah foi até a China palestrar para a Silk Road Think Tank Association (SRTA), uma organização liderada pelo Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista da China. https://spiegel.de/netzwelt/netzpolitik/maximilian-krah-und-sein-verdaechtiger-mitarbeiter-verkauft-die-afd-unser-land-kolumne-a-03df390a-8f59-47df-a88b-c3d939938335 Segundo o Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV, Gabinete Federal para a Proteção da Constituição), esse organismo é parte do aparelho dos serviços secretos chineses e desempenha um papel fundamental na “obtenção de informação política de alta qualidade e na influência dos processos de tomada de decisão no exterior”. Em 2019, Krah voou até Pequim, na classe executiva, e passou seis dias em hotéis luxuosos. Essa viagem foi financiada por empresas chinesas ligadas ao Estado, como a Huawei e a China National Petroleum Corporation (CNPC). Krah foi até o país para se reunir com o Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista da China.

No mês passado, Krah disse que o Ocidente não governa o mundo e deveria parar de ter paranoia com a China. Ele defende publicamente que a China reconquiste Taiwan e diz que as críticas contra os abusos de direitos humanos no país são “irrelevantes”. https://ft.com/content/712a4abd-66b3-4b83-bba1-012d5cc12f02 https://dw.com/en/china-courts-germanys-far-right-populist-afd/a-66504263 Maximilian Krah, como muitos membros do AfD, nasceu na Alemanha Oriental e, há muitos anos, estudou na China. Ele é acusado por outros membros do Parlamento Europeu de ser o “vassalo mais barulhento” de Pequim na instituição. https://barrons.com/news/maximilian-krah-german-mep-hit-by-china-russia-claims-cf1d90f1 Como relata a imprensa asiática, a China encontrou na extrema-direita europeia uma aliada no continente. O AfD não é o único grupo próximo de Pequim. https://asia.nikkei.com/Politics/International-relations/China-finds-unlikely-allies-in-Germany-s-far-right-and-far-left Viktor Orban, amigo de Trump e Bolsonaro, é um dos principais aliados da China na Europa. Sob o seu governo, a Hungria virou uma espécie de modelo de relacionamento para Pequim. https://politico.eu/article/xi-jinping-viktor-orban-china-hungary-diplomacy-love-letter-cooperation/ https://ft.com/content/5b55ef85-b884-449a-8ccc-c9273cc5e9ffhttps://nytimes.com/2024/05/09/world/europe/xi-jinping-china-hungary-orban.html Orban vive elogiando Pequim e diz que a China é “um dos pilares estruturais da nova ordem mundial”https://miniszterelnok.hu/en/statement-by-prime-viktor-orban-after-his-talks-with-xi-jinping-president-of-the-peoples-republic-of-china/ No mês passado, Xi Jinping foi recebido na Hungria literalmente num tapete vermelho. Ele e Orban assinaram 16 acordos de cooperação e Orban o chamou de “amigo de longa data”. https://eunews.it/en/2024/05/09/orban-rolls-out-the-red-carpet-for-longtime-friend-xi-jinping-china-and-hungary-sign-16-cooperation-agreements/

 

O presidente sérvio Aleksandar Vučić, outro líder da direita populista europeia, já chegou até a beijar a bandeira chinesa num evento público. https://news.cgtn.com/news/2020-03-22/Serbian-president-kisses-Chinese-flag-as-support-team-arrives--P3FlpiEMBa/index.html https://thetimes.com/uk/politics/article/serbian-president-vucic-regularly-spoke-to-leader-of-violent-far-right-group-mp-claims-r8m35kbnd No mês passado,Vučić disse que nenhum outro país no mundo reverencia tanto Xi Jinping como a Servia: https://politico.eu/article/xi-jinping-belgrade-serbia-china-aleksandar-vucic-investments/ “Eu disse a ele que, como líder de uma grande potência, ele será recebido com respeito em todo o mundo, mas a reverência e o amor que ele encontra na nossa Sérvia não serão encontrados em nenhum outro lugar.” Da perspectiva chinesa, a cooperação com a extrema-direita do leste e da região central da Europa é uma grande oportunidade. Mas falarei sobre isso mais adiante.

 

Pequim não é o principal governo alimentando relações com a extrema-direita europeia. A extrema-direita europeia é umbilicalmente ligada à Rússia. Vou contar uma história que ajuda a ilustrar como esse vínculo funciona. Em abril desse ano, a República Tcheca anunciou o congelamento dos bens de dois homens que o governo tcheco acusa de dirigir uma operação de influência na Europa para apoiar “os interesses de política externa da Federação da Rússia”– as palavras são do Ministério dos Negócios Estrangeiros do país. https://mzv.gov.cz/jnp/en/issues_and_press/press_releases/the_czech_government_approves_listings.html A primeira pessoa listada se chama Viktor Medvedchuk. A segunda é Artem Marchevsky. Medvedchuk é um magnata ucraniano pró-Rússia, e por muito tempo foi o aliado mais próximo de Vladimir Putin na Ucrânia. Por uma década, Medvedchuk foi o fundador e presidente da organização política pró-Rússia Escolha Ucraniana (Український вибір), criada para se opor a uma eventual adesão do país à União Europeia. Medvedchuk chegou a comparar o bloco europeu ao Terceiro Reich. https://ukrainianweek.com/kremlin-imposed-ukrainian-choice/ https://rbc.ua/rus/news/evropa-pryachet-svoi-istinnye-namereniya-za-tak-nazyvaemymi-24092013105000 Em 2021, a Ucrânia acusou Medvedchuk de financiar atos terroristas no país. Ele estava canalizando dinheiro para separatistas em Luhansk e Donetsk, no leste do país. Medvedchuk chegou a ser condenado à prisão domiciliar em Kyiv, acusado de alta traição, mas escapou pouco depois da Rússia invadir a Ucrânia, em 2022, numa troca de prisioneiros entre os dois países.

 

Em abril, a República Tcheca disse que reprimiu uma “operação de influência russa dirigida por Viktor Medvedchuk diretamente da Rússia”. O objetivo de Medvedchuk “era espalhar narrativas pró-Rússia que minavam a soberania da Ucrânia enquanto se infiltravam no Parlamento Europeu”. Como ele fez isso? Com a ajuda de Artem Marchevsky, um cidadão ucraniano-israelense, diretor de um site chamado Voz da Europa, registrado na República Tcheca. Não se engane com o nome. O Voz da Europa é uma plataforma de propaganda e desinformação que ecoa a voz da Rússia em inglês. Medvedchuk financiou a operação do site a partir da Rússia. A inteligência da República Tcheca descobriu que o Voz da Europa era bem mais que um site de propaganda: era uma estrutura robusta de propaganda usado pelo governo russo para financiar políticos da Alemanha, da França, da Polônia, da Bélgica, da Holanda e da Hungria para promover os interesses russos no Parlamento Europeu. Entre os políticos na lista do Voz da Europa estão Maximilian Krah (o mesmo ligado à China, citado anteriormente) e Petr Bystron, membro do parlamento alemão. Os dois estão entre as principais lideranças do Alternative für Deutschland. https://spiegel.de/politik/deutschland/afd-spendenaffaere-neue-enthuellungen-ueber-geldfluesse-aus-russland-a-0633977a-c07f-484b-b6f7-b826b52ed8ad?sara_ref=re-so-app-sh Krah e Bystron recebiam dinheiro russo através de bolsas de criptomoedas ou em espécie, em reuniões secretas em Praga. Há até uma gravação de Bystron contando as cédulas de dinheiro que recebeu de Medvedchuk em Praga: 20 mil euros para espalhar propaganda russa no parlamento. https://spiegel.de/politik/deutschland/afd-verdacht-auf-russische-geldzahlungen-videoaufnahmen-sollen-petr-bystron-belasten-a-9722ca66-9ddd-4027-8ea5-b115ac57c9d4

Segundo a investigação tcheca, pelo menos 500 mil euros foram gastos por Moscou para sustentar a operação. Mas a casa caiu para Bystron. No mês passado, a polícia alemã invadiu o seu escritório no parlamento, e o acusou de lavagem de dinheiro e suborno ligados à Rússia. Quase 70 policiais e 11 promotores estiveram envolvidos na operação. O Bundestag concordou em retirar a imunidade parlamentar de Bystron para permitir que ele fosse processado. https://bbc.com/news/articles/cd13114xwkqo

Enquanto esteve no ar, o canal no YouTube do Voz da Europa apresentou entrevistas com diferentes políticos europeus de partidos de extrema-direita da Bélgica, França, Alemanha, Itália, Polônia e Holanda.

Há anos, a Rússia é acusada de financiar as operações de grupos de extrema-direita na Europa. Petr Bystron é só mais uma das lideranças dessa lista. Grande parte do Alternative für Deutschland apoia a Rússia. O serviço secreto alemão acusa a Rússia (e a China) de tentar desestabilizar a Alemanha (e a Europa) usando o AfD. https://tagesschau.de/inland/verfassungsschutz-sabotage-russland-china-afd-100.htmlhttps://zeit.de/politik/deutschland/2023-05/thomas-haldenwang-afd-russische-propaganda Essa reportagem do Organized Crime and Corruption Reporting Project, de 2023, mostra como a Rússia gastou um caminhão de dinheiro nos últimos para comprar o apoio de políticos europeus. Diferentes membros e ativistas do AfD são citados na reportagem. https://occrp.org/en/investigations/kremlin-linked-group-arranged-payments-to-european-politicians-to-support-russias-annexation-of-crimea Por anos, líderes do Alternative für Deutschland foram flagrados viajando para Moscou em aviões particulares. https://dw.com/en/report-afd-members-flight-sponsored-with-russian-money/a-43872774 A ala jovem do AfD chegou a estabelecer uma aliança com o movimento juvenil do partido Rússia Unida, controlado por Putin. https://spiegel.de/politik/wie-putin-die-afd-fuer-seine-zwecke-missbraucht-a-00000000-0002-0001-0000-000163279501Markus Frohnmaier, membro do parlamento alemão e fundador do movimento juvenil do Alternative für Deutschland em Baden-Württemberg, é uma das figuras centrais dessa história. Frohnmaier é um russófilo de carteirinha, casado com uma jornalista russa, funcionária de um jornal pró-Putin. No passado, ele defendeu ferozmente a anexação da Crimeia pela Rússia como uma “conquista da independência” e colaborou para um site russo ligado a Alexander Dugin. https://kritiknetz.de/images/stories/texte/Umland_Dugin.pdf Frohnmaier e Marcus Pretzell (ex-membro do Parlamento Europeu pelo Alternative für Deutschland) chegaram a ir à Crimeia ocupada numa viagem financiada por uma fundação russa. https://spiegel.de/politik/deutschland/marcus-pretzell-russische-stiftung-bezahlte-krimreise-des-afd-politikers-a-1130921.html Frohnmaier foi, por anos, muito próximo de Manuel Ochsenreiter, o seu assistente no parlamento alemão. https://zdf.de/politik/frontal-21/der-fall-frohnmaier-100.html Manuel Ochsenreiter era um pupilo de Alexander Dugin (a quem já descreveu como uma figura parental e um amigo de longa data) e o fundador da revista de extrema-direita alemã “Zuerst!”, além de membro frequente de fóruns neofascistas. https://zeit.de/2017/34/osteuropa-wahlbeobachtung-afd-wladimir-putin/seite-2

Ochsenreiter também já foi ligado a Yevgeny Prigozhin, o fundador do Wagner Group. Frohnmaier e Ochsenreiter, junto com o polonês Mateusz Piskorski (preso na Polônia acusado de trabalhar, por anos, como espião para a Rússia e a China na Europa) fundaram, em 2016, o “Centro Alemão de Estudos Eurasiáticos” (Deutsche Zentrum für Eurasische Studien). https://vsquare.org/leak-emails-mateusz-piskorski-kremlin-plans/ Foi com essa organização que Ochsenreiter organizou viagens para membros do Alternative für Deutschland para o leste da Ucrânia ocupada pela Rússia. https://tagesschau.de/investigativ/ochsenreiter-afd-russland-101.html

No dia 18 de agosto de 2021, Ochsenreiter morreu em Moscou vítima de um ataque cardíaco. https://endstation-rechts.de/news/rechter-publizist-manuel-ochsenreiter-gestorben Poucos anos antes, ele havia participado de um atentado terrorista na Ucrânia, numa operação de false flag russa no país. https://welt.de/politik/deutschland/article187288076/Vorwuerfe-AfD-Mitarbeiter-im-Bundestag-nach-Berichten-ueber-Anschlag-entlassen.html Em seu obituário, Dugin o descreveu como seu “filho espiritual” e um “inimigo da sociedade aberta”https://zeit.de/2022/19/afd-russland-krieg-manuel-ochsenreiter Markus Frohnmaier ainda é membro do parlamento alemão pelo Alternative für Deutschland.

Diferentes líderes políticos do Alternative für Deutschland são próximos da Rússia. Dá pra dizer que a relação do partido com Moscou não é nada discreta. Ontem mesmo, Zelensky discursou no parlamento alemão e, em protesto, os membros do Alternative für Deutschland se retiraram do parlamento. Políticos de todos os outros partidos – da esquerda à direita alemã – aplaudiram o discurso do presidente ucraniano. https://politico.eu/article/germany-russia-friendly-parties-afd-bsw-skip-zelenskyy-ukraine-speech/ Em 2023, Steffen Kotré, membro do parlamento alemão pelo AfD, foi convidado para participar de um programa de tv russo, em meio à guerra na Ucrânia, e disse, no ar, que a grande mídia alemã estava fazendo de tudo para virar os alemães contra a Rússia. Ele aproveitou a ocasião para criticar o envio de armas da Alemanha para a Ucrânia. https://insightnews.media/deputy-of-the-political-party-alternative-for-germany-on-russian-state-television/

Dias depois, Tino Chrupalla, outro membro do parlamento alemão pelo AfD, apareceu em um talk show russo, ao lado do embaixador da Rússia na Alemanha, defendo uma aproximação do país com Moscou. https://tagesschau.de/inland/ukraine-krieg-russland-afd-101.html Chrupalla disse que os Estados Unidos eram os responsáveis ​​pela guerra e os maiores aproveitadores do conflito. https://aspistrategist.org.au/how-germanys-far-right-politicians-became-the-kremlins-voice/ E ainda há a história de Eugen Schmidt, outra figura eleita para o parlamento alemão pelo Alternative für Deutschland. Schmidt, nascido na União Soviética, passou anos reproduzindo propaganda estatal russa na Alemanha, ao mesmo tempo em que acusava a Alemanha, nos programas de tv da Rússia, de não ser uma democracia. https://tagesschau.de/investigativ/kontraste/afd-ukraine-russland-101.html

Por anos, Schmidt empregou um cidadão russo chamado Vladimir Sergiyenko no seu escritório no parlamento alemão. https://spiegel.de/international/germany/germany-pro-russian-afd-worker-moscow-s-man-in-the-bundestag-a-5fb8d1ef-ee5b-44d2-9cce-850d19651be8 Em fevereiro desse ano, Sergiyenko foi acusado de trabalhar para o Serviço Federal de Segurança da Rússia (o FSB, substituto do KGB soviético). E renunciou ao cargo no parlamento após a acusação. https://meduza.io/en/news/2024/02/04/advisor-to-german-lawmaker-steps-down-after-allegations-of-working-for-russian-fsb Nos últimos anos, Sergiyenko trabalhou escrevendo discursos para diferentes parlamentares do Alternative für Deutschland. Os discursos eram corrigidos e aprovados pelo Kremlin.https://theins.ru/politika/268808 Ele também persuadiu o Alternative für Deutschland a abrir uma ação judicial contra o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha para impedir o fornecimento de tanques à Ucrânia. Além do apoio à Rússia, muitos membros do AfD também apoiam os aliados da Rússia. Por exemplo: Udo Hemmelgarn, membro do parlamento alemão pelo Alternative für Deutschland de 2017 a 2021, passou anos apoiando o governo Assad e exigindo o apoio alemão ao envolvimento russo na Síria. Assad é o maior parceiro de Putin no Oriente Médio. Em 2019, Hemmelgarn organizou uma viagem de membros do AfD até a Síria, onde o AfD foi recebido com pompas de Estado pelo governo Assad. https://corporate.dw.com/en/far-right-german-afd-lawmakers-meet-assad-representatives-in-syria/a-51376553 https://spiegel.de/politik/ausland/syrien-afd-politiker-verbruedern-sich-mit-grossmufti-hassun-a-1196698.htmlUm dos membros do partido elogiou a Síria dizendo que se sente mais inseguro quando visita o Brasil. https://spiegel.de/politik/deutschland/afd-politiker-erklaeren-ihre-syrien-reise-zum-assad-regime-a-1198854.html

Ao longo do seu mandato, Hemmelgarn esteve intimamente associado à Rússia. Em 2019, ele viajou até a Crimeia ocupada pela Rússia com outros membros do AfD. https://brusselswatch.org/udo-hemmelgarn-a-pro-russian-influence-in-german-politics/ Há um zilhão de histórias como a dele no Alternative für Deutschland.

 

Nem todos os líderes da extrema-direita europeia estão associados ao Kremlin, mas há um grande número deles nessa direção. Como contou o Le Monde na semana passada, desde 2023, sete países da União Europeia investigam uma operação russa que visava desestabilizar as eleições para o Parlamento Europeu do último dia 9 de junho. Parte importante das forças políticas utilizadas pelo Kremlin estavam na extrema-direita europeia. https://lemonde.fr/en/international/article/2024/06/06/europe-russian-connections-of-several-far-right-meps-become-clearer_6674028_4.html Além da Alemanha, a Rússia influencia movimentos de extrema-direita na Áustria, República Checa, França, Hungria, Itália, Polônia, Sérvia, Eslováquia e Suéciahttps://icct.nl/publication/russia-and-far-right-insights-ten-european-countries O Partido da Liberdade da Áustria tem um “tratado de amizade” assinado com o Rússia Unida, de Putin, desde 2016. https://lemonde.fr/europe/article/2016/12/20/l-extreme-droite-autrichienne-s-allie-a-russie-unie-le-parti-de-vladimir-poutine_5051746_3214.html A Liga Norte, da Itália, assinou um acordo com o Rússia Unida em 2017. https://ilpost.it/2017/03/07/lega-nord-accordo-cooperazione-russia-unita-putin/ Esse aqui é Matteo Salvini, do Liga Norte, o vice-primeiro-ministro de Itália:

 

A Hungria de Orban, amigo de Trump e Bolsonaro, é a maior aliada de Vladimir Putin na União Europeia. https://politico.eu/article/kremlin-russia-hungary-viktor-orban-oil-gazprom-media-gabor-kubatov-fidesz-party/https://dw.com/en/vladimir-putin-and-viktor-orbans-special-relationship/a-45512712https://edition.cnn.com/2024/01/28/europe/orban-hungary-eu-unity-ukraine-russia-intl-cmd/index.html Orbán é indiscutivelmente uma quinta-coluna na União Europeia e na Otan, obstruindo há anos, com o apoio de Putin, os esforços do Ocidente para conter Moscou.

 

Marine Le Pen é outra figura próxima de Putin. Em 2023, um inquérito multipartidário produzido pelo parlamento francês – que tomou seis meses e mais de 50 audiências para ser finalizado – concluiu que o Rassemblement National, de Le Pen, serviu nos últimos anos como um “canal de comunicação” para o Kremlin. O inquérito diz que as posições políticas de Le Pen ecoam a “linguagem oficial do regime de Putin”. https://france24.com/en/france/20230603-le-pen-s-far-right-served-as-mouthpiece-for-the-kremlin-says-french-parliamentary-report Em 2014, o seu partido recebeu um empréstimo milionário (de 9,4 milhões de euros) de um banco russo para financiar a campanha para as eleições regionais de 2015 – algo que, segundo Le Pen, só aconteceu porque nenhuma entidade europeia queria emprestar o dinheiro.https://euractiv.com/section/politics/news/le-pens-party-claims-to-have-repaid-russian-loan/ Em 2017, às vésperas das eleições presidenciais francesas, Le Pen, candidata à presidente, viajou a Moscou para se reunir com Vladimir Putin. Na época, ela se vangloriou do apoio que recebeu dele à sua candidatura. https://edition.cnn.com/2017/03/24/europe/putin-le-pen-kremlin/index.html

Desde a invasão da Rússia à Ucrânia, Le Pen vem fingindo moderar os seus discursos em relação a Moscou como parte de uma estratégia eleitoral – do contrário, seria engolida pela opinião pública francesa. Mas a relação do seu partido com Moscou permanece inabalada. Nesse mês, às vésperas do 80º aniversário do Dia D, Sébastien Chenu, o vice-presidente do Rassemblement National, lamentou que Putin não tivesse sido convidado para o evento. https://x.com/dimpolitique/status/1797250335150317995?s=46 Em maio, Le Pen criticou a postura crítica de Macron contra Putin. https://trt.net.tr/portuguese/europa/2024/05/31/marine-le-pen-presidente-macron-pretende-que-a-franca-entre-em-guerra-com-a-russia-2146929 Há dois anos, ela já havia dito que as sanções contra a Rússia “não têm outro propósito senão fazer o povo da Europa sofrer”. E no ano passado, chamou de “irresponsáveis” as entregas francesas de armas à Ucrânia. https://politico.eu/article/french-far-right-marine-le-pen-cabal-after-new-report-on-russian-ties/ Assim como ocorre com outros movimentos de extrema-direita, o Rassemblement National, de Le Pen, é o porta-voz do Kremlin na França. https://washingtonpost.com/world/2023/12/30/france-russia-interference-far-right/

 

Ok, mas como definir o que é extrema-direita? E por que esse grupo é tão próximo da Rússia e da China? Antes de mais nada: é verdade que figuras influentes do debate político brasileiro – sobretudo no campo da esquerda e nas colunas de opinião da imprensa – costumam jogar qualquer posição conservadora para o campo do extremismo fascista, buscando deslegitimar a direita política em nome de uma falsa proteção à democracia, como se nenhuma posição conservadora fosse democraticamente válida (o que é, por si só, uma postura antidemocrática). Mas se há um oportunismo à esquerda para julgar tudo que há de ruim no universo político como ação de uma extrema-direita fantasiosa, também há um constante estado de negação à direita (sobretudo no Brasil) para fingir que a extrema-direita não existe. De fato, nem tudo é extrema-direita. Pelo contrário. Nesse momento, a direita e a centro-direita governam Reino Unido, Suécia, Portugal, Finlândia e inúmeros outros países da Europa. Em 2024, há mais países europeus governados por conservadores do que por progressistas e socialistas. Ninguém chama esses governos de extremistas. Mas isso não significa que não haja lideranças autoritárias à direita na Europa.

 

O que difere a direita da extrema-direita? Considere a história recente da direita americana. Desde a década de 1950 – e especialmente desde a eleição de Ronald Reagan em 1980 – os conservadores americanos têm aderido a um consenso de quatro princípios: 1) livre mercado, 2) antitotalitarismo, 3) defesa de valores cristãos e 4) governo limitado. Por décadas, o Partido Republicano sustentou uma visão internacional muito clara: a promoção da segurança e do poder econômico dos Estados Unidos através da construção do exército mais poderoso do mundo, da cooperação com aliados para viabilizar interesses em comum e de um aumento do poder de Washington nas instituições internacionais (quase todas construídas pelos próprios americanos). Por décadas, isso significou a defesa do livre comércio, a promoção do Estado de direito na política de imigração e a oposição ao autoritarismo (sobretudo quando os autocratas desafiavam diretamente os interesses americanos). Como os Estados Unidos foram o principal vetor ideológico do Ocidente na segunda metade do século 20, estes foram os preceitos que estiveram ligados à direita política mundo afora nas últimas décadas. Mas isso já não é mais verdade. Nesse momento, inúmeros figurões conservadores americanos enxergam a Rússia como a grande defensora do mundo livre, e não os Estados Unidos. Para a direita americana, o livre comércio já não é mais tão popular quanto o protecionismo. O desejo de projetar o poder americano no mundo foi suplantado por um isolacionismo que enxerga qualquer integração entre os povos como um “globalismo” arquitetado por vilões de desenho animado. E autocratas declaradamente antiamericanos, como Putin, são exaltados nos mesmos bolsões ideológicos conservadores que juram trabalhar dia e noite para proteger os valores ocidentais.

Hoje, na essência, a direita americana é muito mais parecida com a extrema-direita europeia que com o partido de Lincoln e Reagan. 

 

Mas o que é a extrema-direita europeia?

A filosofia que rege a visão da extrema-direita é conhecida como organicismoO organicismo é a ideia de que toda sociedade funciona como um ser vivo – um organismo completo, organizado e homogêneo. Na Europa, a extrema-direita é o grupo político mais avesso à livre imigração e aos fóruns internacionais (como a ONU e a União Europeia). O grupo rejeita esses princípios – e qualquer forma de universalismo – porque está interessado em proteger a sociedade de influências externas (consideradas “estranhas” e até “doentias” para o corpo social). Essa rejeição neurótica à influência externa não é parte da tradição do pensamento político conservador. Mas sempre esteve presente na extrema-direita (basta lembrarmos a história dos judeus na Europa no século 20).

 

Direita e extrema-direita também divergem na definição de nacionalismo. Para a direita, o nacionalismo é uma ferramenta ideológica de promoção da soberania, do orgulho e dos interesses nacionais, comprometido com o convívio harmônico com a comunidade internacional. Para a extrema-direita, o nacionalismo é uma ferramenta de controle político e social para construir uma pureza nacional hostil à influência estrangeira. A diferença não é pequena. Em linhas gerais: 1) o principal adversário da extrema-direita não é a extrema-esquerda, mas o globalismo e o multiculturalismo(leia-se: políticas que enfatizam a cooperação internacional e a mistura de culturas e identidades); 2) a extrema-direita está disposta a apoiar partidos e governos autoritários, inclusive de extrema-esquerda, para enfrentar o globalismo e o multiculturalismo; 3) a principal bandeira da extrema-direita europeia é o eurocentrismo – a rejeição à integração da Europa; e 4) a extrema-direita é cética em relação a qualquer organismo internacional (ONU, FMI, Banco Mundial, etc). O problema dessa identidade isolacionista é que a ênfase na harmonia e na ordem organicista é um vetor de governos autoritários, onde a violência política é encarada como um mal necessário para manter a integridade, a pureza e a saúde do “organismo” social contaminado. Quando Trump disse, em 2023, que muitos imigrantes alcançavam os Estados Unidos trazendo “doenças” e “contaminando o sangue americano”, estava expressando genuinamente a sua concepção racialista de construção de nação. https://nbcnews.com/politics/2024-election/trump-says-immigrants-are-poisoning-blood-country-biden-campaign-liken-rcna130141 A extrema-direita justifica essa postura fingindo que não é contrária à imigração, mas à imigração ilegal e o radicalismo islâmico. O problema é que líderes de extrema-direita têm um farto histórico de declarações racistas em defesa de uma unidade nacional étnica. A justificativa não condiz com o mundo real. Nas eleições desse final de semana para o Parlamento Europeu, o Alternative für Deutschland ficou em primeiro lugar no leste da Alemanha.

Não é uma coincidência que o partido seja tão popular numa região com décadas de passado autoritário (seja com o nazismo ou o comunismo), com muito menos imigrantes que a parte ocidental do país. Quase 70% dos alemães que moram no leste da Alemanha dizem que os estrangeiros – qualquer estrangeiro, de qualquer nacionalidade – só se mudam para a Alemanha para explorar o Estado de bem-estar social; e quase um em cada três diz que a influência dos judeus é grande demais no país. https://dw.com/en/half-of-eastern-germans-want-authoritarian-rule/a-66068519 Quase 1/4 dos entrevistados também diz que o nacional-socialismo tinha o seu lado bom, e 33% dos entrevistados concordam com a afirmação: “deveríamos ter um líder que governe a Alemanha com mão forte para o bem de todos”. A pesquisa identificou a presença de uma “mentalidade conspiratória” generalizada (muito comum entre os eleitores de extrema-direita e de partidos populistas) e o desejo de um “Estado autoritário”.

 

Outra característica que diferencia a extrema-direita da direita é o uso do populismo. Políticos de direita costumam adotar discursos mais moderados e pragmáticos porque o conservadorismo, em essência, valoriza a ordem e a estabilidade institucional. A direita faz parte do establishment político do Ocidente. Historicamente, partidos de direita defendem a importância das instituições democráticas e do Estado de direito (sobretudo nos países desenvolvidos). Historicamente, na contramão, a extrema-direita adota um discurso anti-establishment, se posicionando como a única voz genuína dos interesses da população contra as elites políticas, econômicas e culturais, menosprezando as outras identidades políticas. A extrema-direita recorre ao populismo para mobilizar sentimentos de insatisfação popular contra os seus inimigos (imigrantes, minorias, elites políticas e culturais, etc), apresentando soluções simplistas e autoritárias para proteger a pureza do organismo social (leia-se: a manutenção da sociedade fechada). E é tão boçal que, com frequência, acusa partidos tradicionais de direita de serem, na verdade, de esquerda, como se ela – longe de representar uma posição extrema – fosse, de fato, a única posição genuína de direita. Da mesma forma, ao contrário dos políticos de direita – que historicamente defendem o liberalismo econômico – políticos de extrema-direita levantam bandeiras protecionistas, supostamente em defesa das classes mais pobres. Nos Estados Unidos, esse grupo (da ala trumpista do Partido Republicano) é conhecido como populistas “de colarinho azul”. “Colarinho azul” (do inglês “blue-collar”) faz referência aos operários que desempenham trabalhos que exigem esforço físico. No contexto americano, a expressão é usada para descrever os trabalhadores de setores como manufatura, construção, mineração e manutenção, famosos por usarem uniformes azuis. Os populistas de colarinho azul, como Trump, prometem defender os interesses desses trabalhadores e entendem que os imigrantes – não apenas os ilegais – ameaçam a estabilidade das suas famílias. Trump foi eleito, em 2016, graças ao apoio desses trabalhadores, no Rust Belt americano – um grupo de eleitores altamente ressentido e conspiracionista.

 

O ressentimento, aliás, é uma arma poderosa da extrema-direita. Se na primeira metade do século 20, a extrema-direita alemã explorava o ressentimento generalizado no país pela derrota na Primeira Guerra Mundial, a extrema-direita alemã deste século alcança bons índices de popularidade no leste do país explorando o ressentimento pós-reunificação. A ampla maioria dos alemães do leste não se sentem inteiramente integrados à Alemanha e entendem que preenchem a parte perdedora da reunificação (todos os indicadores da região estão bem abaixo da parte ocidental do país). Nos territórios da extinta Alemanha Oriental há um sentimento generalizado anti-Ocidente, anti-União Europeia e anti-Estados Unidos, com uma população altamente ressentida e vulnerável aos discursos populistas do Alternative für Deutschland. Se a direita alemã pretende conservar as políticas que transformaram a Alemanha num dos países mais bem sucedidos da Terra, o Alternative für Deutschland quer literalmente uma Alternativa para a Alemanha, como se a maior economia da Europa precisasse da extrema-direita para se tornar um país respeitável. A presunção não surpreendente. A extrema-direita prospera mediante a interpretação de que a sociedade vive num estado de decadência projetado pelas elites dominantes – forasteiras e artificiais (como os judeus no passado) – e a promessa de que os membros da própria extrema-direita são uma elite natural perspicaz, comprometida com a missão redentora de salvar a sociedade da sua destruição e devolver o país à grandeza de um passado idílico inventado, quando os imigrantes ainda não haviam dado as caras e as minorias viviam presas a um silêncio clandestino.

 

Por que a Rússia e a China mantêm um vínculo umbilical com a extrema-direita? 

1) Porque Moscou e Pequim são os maiores interessados no processo de isolamento que a extrema-direita promove no Ocidente. Quanto mais frágil for a aliança dos países ocidentais, e mais isolada estiver a Europa e os Estados Unidos, distante dos fóruns internacionais, melhor para Moscou e Pequim. Quanto maior for a rejeição popular à União Europeia e à OTAN, melhores são as condições de russos e chineses projetarem os seus poderes. 

2) Porque Moscou e Pequim são os maiores interessados no processo de imbecilização que a extrema-direita promove no Ocidente. Se no passado, os eleitores conservadores debatiam as grandes questões da humanidade, dando um peso importante à influência da geopolítica e da economia na vida cotidiana, hoje preferem combater a “cultura woke” dedicando longos discursos sobre temas exóticos repetidíssimos, como banheiro trans, feminismo e a produção cinematográfica americana, presos a uma guerrinha cultural de hashtags nas redes sociais. Para boa parte dos eleitores desses grupos políticos, a Parada Gay é uma ameaça mais perigosa à sociedade ocidental que o Kremlin. 

3) Porque Moscou e Pequim são os maiores interessados no processo de deterioração que a extrema-direita promove nas instituições políticas do Ocidente. A extrema-direita vive num profundo estado de mau humor em rejeição à imprensa, à classe artística, à democracia, às minorias, à livre imigração, às empresas, ao sistema educacional, à justiça e a qualquer valor da sociedade aberta. E quanto mais popular for essa sensação generalizada de mal-estar com os valores da sociedade aberta – e mais polarizada for a sociedade – melhor para Moscou e Pequim. 

4) Porque Moscou e Pequim são os maiores interessados no processo de banalização dos direitos humanos que a extrema-direita promove no Ocidente. E quanto menos popular for a defesa dos direitos humanos no Ocidente, menor será a rejeição nos organismos internacionais a Moscou e Pequim, dois dos maiores violadores de direitos humanos da Terra. 

5) Porque Moscou e Pequim são os maiores interessados no processo de disputa que a extrema-direita promove contra a própria direita no Ocidente. Nos últimos cem anos, os eleitores conservadores representaram o maior grupo adversário de russos e chineses no mundo. Quanto maior é a influência de Moscou e Pequim nas lideranças políticas que alcançam esses eleitores, menor será a resistência ocidental contra Rússia e China. 

 

Por que a extrema-direita mantém um vínculo umbilical com Rússia e China? 

1) Porque Moscou e Pequim financiam as suas operações.

2) Porque a extrema-direita não é coerente com a tradição do pensamento político conservador.

3) Porque esses grupos – lotados de eleitores ressentidos – têm fascínio pelo autoritarismo como uma expressão de imposição de um respeito que eles não encontram em outras áreas da vida.

4) Porque Moscou e Pequim, ao contrário de Washington, prometem respeitar o isolamento que esses grupos almejam em seus países, protegendo a sociedade da ameaça do “globalismo” e da “cultura woke”.

5) Porque, em muitos grupos, já não é mais possível separar o que é propaganda russa do que é ideologia de extrema-direita.

 

Foi o conservador Ronald Reagan, num discurso definidor da Guerra Fria, em 1983, quem disse que a Rússia era oImpério do Mal. Segundo ele: https://voicesofdemocracy.umd.edu/reagan-evil-empire-speech-text/ “O maior mal não é feito agora naqueles 'covis de crime' sórdidos que Dickens adorava pintar. Não é nem mesmo feito em campos de concentração e campos de trabalho forçado. Nesses lugares vemos o seu resultado final, mas ele é concebido e ordenado; movido, apoiado, realizado e registrado em escritórios limpos, acarpetados, aquecidos e bem iluminados, por homens tranquilos com colarinhos brancos e unhas cortadas e bochechas bem barbeadas que não precisam levantar a voz.”“Bem, porque esses ‘homens tranquilos’ não ‘levantam a voz’, porque às vezes falam em tons suaves de fraternidade e paz, porque, como outros ditadores antes deles, estão sempre fazendo a sua ‘última demanda territorial’, alguns nos fariam aceitá-los em sua palavra e nos acomodar aos seus impulsos agressivos. Mas, se a história ensina algo, ensina que apaziguamento simplista ou pensamento ilusório sobre os nossos adversários é uma tolice. Isso significa a traição do nosso passado, o desperdício da nossa liberdade.” Seria cômico se não fosse trágico. Nem Ronald Reagan poderia imaginar do que os russos eram capazes. Como não é segredo para qualquer pessoa minimamente informada, há um século, Moscou exerce influência sobre diferentes movimentos e partidos políticos à esquerda. Mas essa não é a notícia de última hora. A grande manchete política da nossa geração é o exército de idiotas úteis que o Kremlin conseguiu formar do outro lado do espectro político. O estrago que a Rússia fez na direita precisará de décadas para ser reparado.

 

Parte do que escrevi aqui, já havia dito para os assinantes do Spotniks nos últimos meses. Todas as semanas, escrevo sobre Rússia, China e Estados Unidos no Spotniks, e envio esse conteúdo por email aos assinantes. Quer ler mais sobre esses assuntos?

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Rodrigo da Silva (copyright)

Organização e apresentação: 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de junho de 2024