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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 21 de setembro de 2024

Guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: A iniciativa de aceitar a imposição da Rússia teria que partir da Ucrânia - Demetrio Magnoli (FSP)

 A iniciativa de aceitar a imposição da Rússia teria que partir da Ucrânia

Em nome do "anti-imperialismo", o governo Lula escolhe o papel de amigo menor da China, oferecendo suas credenciais democráticas para conferir legitimidade à iniciativa diplomática de Xi Jinping

Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo, 21/09/2024

"O Brasil quer estar com a China, com a Índia, com os EUA, com a Venezuela, com a Argentina... Com todo mundo, de forma soberana, respeitável. Porque nós não aceitamos ser menores do que ninguém'.

Parte do desejo de Lula, expresso na formatura dos diplomatas, será realizado na cúpula dos Brics, em outubro. Xi Jinping e Putin articulam uma nova expansão do bloco, com o ingresso da Venezuela - e, de quebra, da Nicarágua. Os Brics tornam-se caixa de ressonância da China, enquanto o Brasil conforma-se com uma posição "menor" no seu interior.

"Nós queremos paz, não queremos guerra", proclamou Lula diante da mesma plateia, referindo-se à guerra na Ucrânia. Foi a senha para anunciar uma reunião patrocinada por Brasil e China, às margens da Assembleia-Geral da ONU, com o fim de divulgar um plano de paz sino-brasileiro às nações convidadas, do chamado Sul Global. Na forma delineada pela proposta, a paz interessa à Rússia, não à Ucrânia, e premia a guerra de agressão.

O plano não menciona, nem mesmo retoricamente, o conceito de soberania territorial ou as fronteiras ucranianas de 1991 reconhecidas pela Rússia no tratado de 1994. Como registrou Zelenski, seus pressupostos autorizariam a anexação dos territórios ucranianos ocupados pelas forças russas no momento de um cessar-fogo. Não foi por outro motivo que o Brasil, assim como a China, boicotou a conferência de paz realizada em junho, na Suíça, que operou com base nas normas do direito internacional.

Algum dia, a guerra terminará. Talvez, por falta de alternativa realista, a Ucrânia venha a ser obrigada a ceder territórios. Mas a iniciativa de aceitar a imposição imperial teria que partir do governo ucraniano, nunca de terceiros países. O plano sino-brasileiro representa, de fato, uma operação diplomática destina- da a reforçar a posição russa.

Os objetivos de Putin não se limitam à anexação do Donbass e do Sul ucranianos. A invasão foi deflagrada para, além disso, converter o país vizinho em Estado vassalo, nos moldes da Belarus. O Kremlin pretende inserir a Ucrânia na jaula do "mundo russo" (Russkiy Mir).

O plano sino-brasileiro contempla tal ambição, por meio de uma senha discursiva facilmente decifrável, que rejeita a "divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados". A paz que pregam China e Brasil proíbe a Ucrânia de, como qualquer Estado soberano, ingressar numa união político-econômica (União Europeia) e numa aliança militar (OTAN). Obviamente não haveria objeção a um futuro ingresso forçado na Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), a aliança militar comandada por Moscou.

O Brasil tem motivos geopolíticos e econômicos para praticar uma neutralidade ativa, evitando alinhamento a um dos polos da rivalidade global EUA-China. Contudo, em nome do "anti-imperialismo", o governo Lula escolhe o papel de amigo menor da China, oferecendo suas credenciais democráticas para conferir legitimidade à iniciativa diplomática de Xi Jinping.

A alegação "anti-imperialista" tem pernas curtas. Trump esclareceu que, de volta à Casa Branca, em purraria a Ucrânia a uma "paz chinesa" recebeu em troca um cumprimento de Putin. Nessa hipótese o Brasil estaria "com todo mundo" como deseja Lula, mas de modo pouco "respeitável".

 

domingo, 30 de junho de 2024

O crescimento da direita francesa visto sem as lentes de aumento do antifascismo - Demetrio Magnoli

 

Dica de leitura : "Le Pen rompe o 'cordão sanitário' (Demétrio Magnoli, um acadêmico que, na contramão dos jornalistas da Globonews, pensa, lê e se informa antes de dizer bobagens...)

MD

 

 

sábado, 29 de junho de 2024

Demétrio Magnoli - Le Pen rompe o 'cordão sanitário'

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Folha de S. Paulo, 29/06/2024

Política lidera intenções de voto porque desistiu do extremismo

"Os herdeiros políticos de Vichy chegam ao governo francês" —eis uma manchete sensacionalista possível para, caso se confirmem as pesquisas, sintetizar o resultado das eleições parlamentares antecipadas que começam neste domingo (30/6). Nas sondagens, a Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, tem 36% das intenções de voto, contra 28% para a Nova Frente Popular, de esquerda, e apenas 22% para os centristas liderados por Macron. Contudo, seja qual for o veredito das urnas, a manchete precisa é outra: a que intitula esta coluna.

Partidos não mudam seu nome por acaso. A RN nasceu em 1972, como Frente Nacional (FN), sob o comando do pai de Marine, Jean-Marie. O líder admirava o general Pétain, que governou, como colaboracionista, a parte da França não ocupada pela Alemanha nazista. Marine assumiu o controle do partido em 2011 e expeliu seu pai em 2015, reagindo a elogios a Pétain e à classificação das câmaras de gás como um "detalhe" histórico. A troca de nome veio em 2018.

O jornalismo continua a qualificar a RN como "extrema direita" ou "ultradireita". É um erro analítico grave, que decorre de preguiça intelectual ou vontade de externar um repúdio moral (ou da mistura de ambos), tornando inexplicável sua ascensão eleitoral. Extremistas buscam destruir as instituições políticas. Le Pen ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto justamente porque desistiu do extremismo, refundando a RN como partido da direita nacionalista.

Quase tudo mudou no programa partidário. Desapareceu a hostilidade à União Europeia. Le Pen tomou alguma distância de Putin, tentando revisar suas declarações de 2017, quando afirmou que compartilhava dos "mesmos valores" do autocrata russo. Mesmo a xenofobia e a islamofobia, marcas principais do partido, foram amainadas: no lugar da deportação em massa de imigrantes árabes e africanos, a RN passou a pregar limites estritos para o ingresso de migrantes.

Mas, sobretudo, a RN posicionou-se como "direita patriótica", ocupando o espaço antes dominado pelos gaullistas, que representavam o conservadorismo tradicional francês. A estratégia de reposicionamento provocou cisões e expurgos, consolidando-se num texto de Le Pen publicado em 2020 e consagrado a homenagear De Gaulle. No ano seguinte, a líder da direita nacionalista aproveitou o aniversário da morte do general para depositar flores aos pés da Cruz de Lorraine, na praia da Normandia onde De Gaulle pisou o solo francês em junho de 1944.

Fora Vichy, viva a "França eterna" do líder da resistência. O giro radical deu frutos, abrindo a via para uma incursão decisiva no eleitorado gaullista. O partido gaullista (Os Republicanos) desabou de 22% dos votos nas eleições parlamentares de 2017 para 7% em 2022, enquanto a RN saltava de 13% para 19%. Há pouco, o presidente dos Republicanos anunciou uma aliança com a RN, rompendo a política do "cordão sanitário", pela qual a direita tradicional prometia isolar Le Pen. A declaração deflagrou uma crise interna, mas foi seguida por expressiva minoria dos candidatos gaullistas.

Na economia, a RN ostenta programa similar ao da esquerda reunida na Frente Popular: quebrar a banca. São árvores de Natal que empilham redução de taxas sobre energia, aumentos de salários e redução de idade de aposentadoria, elevando o déficit público para perto de 7% do PIB. Algo como uma Gleisi no posto de Haddad.

Na política externa, um triunfo da RN seria celebrado por Trump e por Putin. Não que Le Pen ofereça apoio à Rússia na sua aventura ucraniana. É que, de certo modo, repetindo De Gaulle em contexto diferente, ela enxerga a Rússia como contrapeso à influência dos EUA na Europa. Anos atrás, proclamou que o triângulo formado por Trump, Putin e ela mesma inauguraria uma "nova ordem mundial". Bolsonaro deve gostar de tudo isso. Lula, só da parte de Putin.


sábado, 4 de maio de 2024

A fraude “decolonial” e o “ O ópio dos estudantes” - Demetrio Magnoli (FSP)

Sempre considerei essa febre “decolonial” que atingiu de forma avassaladora as academias dos países outrora colonizadores, e que de lá se espalhou pelas nossas universidades, uma FRAUDE INACREDITÁVEL, e me perguntava como pessoas aparentemente inteligentes se deixaram seduzir pelo besteirol completamente sem sentido, sobretudo num país “colonizado” como o nosso. O mimetismo idiota desses “decoloniais” é algo surpreendente para pessoas aparentemente educadas, alfabetizadas e diplomadas como os nossos universitários lobotomizados por essa mania imbecil.

Paulo Roberto de Almeida 

O ópio dos estudantes

Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo, 04/05/2024

Tese 'decolonial' espalhou-se entre professores universitários e salas de aula

"O Ópio dos Intelectuais", obra do filósofo Raymond Aron publicada em 1955, referia-se ao marxismo e brincava com a caracterização da religião, por Karl Marx, como o "ópio do povo". A religião laica dos intelectuais fez seu caminho até os estudantes e, bem diluída nos líquidos do pacifismo e do terceiro-mundismo, deixou uma marca nas manifestações contra a Guerra do Vietnã. De lá para cá, porém, foi substituída por outra doutrina dogmática: a tese "decolonial".

Assim como o marxismo, a nova doutrina espalhou-se entre professores universitários, gotejou para as salas de aula e, finalmente, emergiu no palco das manifestações contra a guerra em Gaza nos campi dos EUA. Sua síntese aparece num cartaz exposto no acampamento de protesto da Universidade George Washington: "Palestina livre. Os estudantes voltarão para casa quando os israelenses voltarem para a Europa, os EUA etc (seus lares verdadeiros)".

Aron apontava o fracasso moral dos intelectuais marxistas, que desprezavam a "democracia burguesa" enquanto condescendiam com os regimes totalitários do "socialismo real". O movimento "decolonial" segue rumo paralelo, eximindo governos autoritários e organizações antidemocráticas que se apresentam como rivais do Ocidente. Nos campi dos EUA, brados estudantis misturam a reivindicação de interrupção da guerra com lemas clássicos do Hamas.

As religiões invocam a palavra sagrada: razão transcedental. Os marxistas e os "decoloniais" invocam a História, com H maiúsculo: as "leis históricas", no primeiro caso, ou a justiça histórica reparatória, no segundo. Mas, como as religiões tradicionais, as religiões políticas almejam a redenção – e é isso que as torna sedutoras.

O triunfo do proletariado e o advento do socialismo assinalam a redenção marxista. A tese "decolonial", um estilhaço da política identitária, enxerga o mal absoluto na expansão global europeia (isto é, "branca"), fonte da opressão sobre os "povos originários" e a "diáspora africana". Para eles, a redenção não está no futuro, mas num passado mítico que precisaria ser restaurado.

O grupo dirigente dos protestos na Universidade Columbia declara os EUA e o Canadá nações ilegítimas, formadas por colonos europeus que oprimem os negros e ocupam terras indígenas. O cartaz do acampamento na George Washington exige que os "invasores" judeus saiam do Oriente Médio. Daí, os cânticos de "Palestina livre do rio até o mar" (e, ainda, "por qualquer meio necessário", uma senha costumeira destinada a legitimar o terror do 7 de outubro).

A derrapagem "decolonial" dos protestos limitou o alcance da mobilização estudantil. Sonhava-se reeditar o movimento contra a Guerra do Vietnã. Não por acaso, invadiu-se o Hamilton Hall, palco de uma célebre ocupação em 1968. Há 56 anos, o movimento dos estudantes gerou passeatas imensas e uma crise política nacional. Os acampamentos atuais, pelo contrário, reuniram apenas minorias significativas. A nódoa do antissemitismo afastou a maioria dos estudantes, mesmo diante da criminosa punição infligida por Israel aos civis de Gaza.

A tese "decolonial", como o marxismo, oferece uma explicação unívoca sobre as injustiças sociais. Intelectuais adoram o poder de reduzir tudo a uma equação totalizante bastante simples – e os jovens, mais ainda. Contudo, o vício no marxismo tinha uma porta de saída que inexiste no ópio "decolonial".

O que fazer quando fica claro que a promessa brilhante do socialismo conduzia, inexoravelmente, à cinzenta realidade do totalitarismo? Havia uma saída consistente com o núcleo moral das ideias socialistas: o reformismo social-democrata. Mas para onde podem ir os jovens ativistas "decoloniais" ao descobrirem a impossibilidade de reverter a seta do tempo e cancelar o mundo nascido da expansão europeia? Resta-lhes, somente, angústia, desespero e cinismo.

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Grato a Augusto de Franco pela transcrição.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Demetrio Magnoli sobre equivocos de gregos e goianos (FSP)

 O Livres, em lugar de defender as liberdades em abstrato, deveria refletir a partir de alguns argumentos de Demetrio Magnoli.

 Folha de S. Paulo, 11/05/2023

Plataformas temem a corresponsabilização por discursos que publicam

Sempre que leio os argumentos dos que se opõem ao PL das Fake News, torço pela sua aprovação. Quando, porém, leio os argumentos dos defensores do PL, torço pela sua rejeição.

Se escrevo um texto criminoso neste espaço, a Folha partilha o ônus jurídico; se uma rede social difunde o mesmo texto, sofro sozinho as potenciais consequências, enquanto a plataforma contabiliza os lucros. As plataformas de internet temem, acima de tudo, o núcleo correto do PL: a corresponsabilização por discursos criminosos que publicam. O modelo de negócio delas organiza-se em torno do impulsionamento da palavra que acirra emoções primitivas –ou seja, no mais das vezes, o discurso extremista. Por isso, rejeitam as leis de responsabilidade que regulam a imprensa.

Os oponentes do PL alargam o conceito de liberdade de expressão até fazê-lo abranger o crime. O Facebook foi o veículo principal da campanha de limpeza étnica conduzida pelos militares de Mianmar contra os muçulmanos Rohingya. Foi, igualmente, o megafone da campanha de ódio do governo nacionalista hindu de Narendra Modi contra os muçulmanos indianos.

Discursos exterministas circulam nas redes, mirando judeus, cristãos, negros e uma infinidade de outros grupos. No Brasil, as plataformas serviram à campanha antivacinal de Bolsonaro e à articulação dos atos golpistas do 8/1. O que é crime fora das redes, é crime nas redes. Os inimigos do PL almejam perpetuar a "liberdade" de disseminar discursos criminosos.

Mas queremos criminalizar o crime ou a mentira? No seu texto, acertadamente, o PL limita-se ao primeiro. Já seus defensores mais entusiasmados clamam pela eliminação da "mentira", da "desinformação". As freiras imaculadas esqueceram que a inverdade é parte do discurso político desde (pelo menos) os debates no Senado Romano no século anterior à Era Cristã?

O episódio Google evidenciou a extensão da ira santa. O Google violou a confiança de seus usuários ao transformar a página neutra de busca em suporte de um link editorial. Foi um gesto antiético de uma empresa na sua relação privada com os consumidores. Ela plantou a semente da desconfiança sobre seu bem mais precioso, que é o mecanismo de busca, mas não cometeu um crime contra a ordem pública.

Segundo a lógica do PL, o Google deve ser tratado como veículo de imprensa. Nesse caso, o que ele produziu foi, apenas, um editorial. As freiras reagiram enrolando-se no sagrado pendão auriverde e invocando nada menos que a Pátria e a Soberania (maiúsculas, aí). Juízes sem freios entraram no jogo, anunciando sanções preventivas e exigindo uma "imparcialidade" que não figura em nenhuma lei. Por algumas horas, o Brasil vestiu-se com as fantasias da China, da Rússia, do Irã ou da Arábia Saudita...

Banir a "desinformação"? Prenderemos o bolsonarista que qualificar o AI-5 como um instrumento da "guerra ao comunismo"? Encarceraremos o arauto brasileiro de Putin que justifica a invasão da Ucrânia pelo "combate ao nazismo"? Também sentenciaremos Lula por classificar um impeachment fiscalizado pelo STF como golpe de Estado?

As freiras histéricas não escondem sua utopia mais perigosa: entronizar a Verdade (com maiúscula). Entretanto, como se sabe, o Reino da Verdade é, invariavelmente, o outro nome do totalitarismo. A democracia recusa a verdade oficial. Nela, o que existe são verdades, no plural –e, justamente por esse motivo, admite-se a liberdade partidária e exigem-se eleições competitivas.

O PL tem defeitos óbvios, como a cláusula vergonhosa que permite à casta parlamentar a produção de discursos vedados aos demais e as ambiguidades sobre a fonte e natureza de um indefinido órgão regulador. Seus inimigos, contudo, encontraram um ponto mais frágil, que se situa fora dele: o discurso de seus defensores. É que, de fato, muitos deles sonham com a Censura do Bem.”



quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Demetrio Magnoli desmonta a hipocrisia dos poderosos (O Globo)

Tábuas da aliança

Demetrio Magnoli

O Globo, 26 de dezembro de 2022

 

Gilmar Mendes, operando monocrática e politicamente, torpedeou a chantagem de Arthur Lira, retirando o Bolsa Família do teto de gastos. Lula não precisava mais do Centrão para cumprir suas promessas centrais de campanha. Mas a PEC, explicaram os próceres do PT, era ''o Plano A, o B e o C''. Já não se tratava de colocar comida na mesa dos pobres. O plano obsessivo era - e é - cooptar uma ampla facção do bolsonarismo para o governo.

Foi por pouco, seis a cinco, e na última hora. A maioria do STF operou juridicamente, resistindo à tentação da politicagem, ao declarar a inconstitucionalidade do ''orçamento secreto''. Os negociadores de Lula usaram a decisão para concluir o pacto de aliança com Lira, repartindo ao meio o fruto envenenado.

''Genocida!'', ''pedófilo!'', ''canibal!'' - ninguém, exceto militantes fanáticos, tem o direito de continuar a levar a sério o rugido santo do lulismo. O agora camarada Lira funcionou como esteio indispensável de Jair Bolsonaro. As duas tábuas da aliança votadas no Congresso - a PEC da Transição e a divisão das verbas do extinto ''orçamento secreto'' - evidenciam que, se depender de Lula, o comandante parlamentar das forças bolsonaristas se tomará um baluarte do novo governo.

A imprensa afogou-se em eufemismos. Crédito extraordinário? Não: a PEC oferece segurança jurídica mais robusta. Pacto com o bolsonarismo? Sim: disso depende a sacrossanta ''governabilidade''. Tudo que era sólido desmancha-se no ar: o escandaloso converte-se em natural, necessário, quase sábio.

Só que é mentira.

A nova Câmara, embora bastante conservadora, propicia a construção de maioria sem o bolsonarismo. Uma base constituída pelos partidos que apoiaram Lula no turno final mais MDB, PSD, PSDB e Cidadania somaria 241 deputados, contra 194 dos cinco partidos bolsonaristas (PL, PP, Republicanos, PTB e PSC). Os 16 faltantes para a maioria absoluta encontram-se em facções dos demais partidos, especialmente no União Brasil. A paisagem não é diferente no Senado. Uma base constituída em linhas similares teria 41 cadeiras, contra 24 dos partidos bolsonaristas. Faltaria, para a maioria, apenas um voto entre os 16 senadores restantes.

Lula tinha, portanto, a oportunidade de governar sem Lira e sem o bolsonarismo, aprovando leis e medidas provisórias. Só faltariam votos para passar PECs - mas, num país normal, emendas constitucionais não devem ser vistas como ferramentas de governo. Dessa constatação, nasce a indagação: por que o presidente eleito escolhe, voluntariamente, a aliança com a direita bolsonarista?

Uma pista para a resposta encontra-se na aprovação da PEC do Calote, em dezembro de 2021, que adiou o pagamento de precatórios, e da PEC Kamikaze, em julho, que inventou uma ''emergência'' para ampliar o valor do Auxílio Brasil. No primeiro episódio, cinco dos seis senadores petistas votaram com o bolsonarismo. No segundo, as bancadas petistas no Congresso votaram em massa com o governo.

A aliança Lula/Lira assenta-se sobre uma plataforma comum: a captura dos recursos públicos por grupos de interesse privilegiados. Lula declarou, há pouco, que ''acabaram as privatizações''. De fato, porém, a privatização principal, a do Estado, continua a todo vapor.

É coisa antiga. O manejo das políticas fiscal e parafiscal e as concessões de subsídios abertos e ocultos para atender a interesses privados, assim como a proteção dos altos salários da elite do funcionalismo, inscrevem-se na tradição política brasileira. A novidade das últimas décadas é que os mecanismos de apropriação privada dos recursos públicos passaram a ser mascarados por programas de transferência de renda aos pobres.

O Estado-Financiador - eis o conceito central que configura o acordo entre Lula e Lira. Dele emana a necessidade de maiorias parlamentares excepcionais, capazes de promover frequentes mudanças constitucionais. Os arcabouços legais da responsabilidade fiscal, concebidos a partir do Plano Real, começaram a cair sob o fogo de Bolsonaro/Lira. A aliança Lula/Lira promete derrubar o pouco que resta.

 

 

Demétrio Magnoli

 

 

 

 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Nova política externa de Lula é velha - Demetrio Magnoli (Globo)

Nova política externa de Lula é velha


Mensagem central do petista na campanha foi voltar à idade de ouro

Demétrio Magnoli
O Globo, 12/12/2022

Restauração — o retorno à “idade de ouro”. Na campanha eleitoral, foi essa a mensagem central de Lula. O Brasil embarcaria numa máquina do tempo, voltando à era supostamente gloriosa dos mandatos lulistas anteriores. A nomeação de Mauro Vieira para o Itamaraty indica que o discurso era para valer.

O martelo, porém, só foi batido após uma disputa subterrânea no círculo mais próximo do presidente eleito. Vieira, último ministro de Relações Exteriores de Dilma Rousseff, pertence à facção liderada por Celso Amorim, o chanceler de Lula 1 e Lula 2. Amorim preferia voltar à cadeira que ocupou entre 2003 e 2010 ou, ao menos, entregá-la à embaixadora Maria Laura Rocha, sua subordinada direta entre 2008 e 2010. Mas a escolha de Lula, um insucesso tático, evitou-lhe uma derrota estratégica.

A verdadeira alternativa à facção de Amorim era Jaques Wagner. O ex-governador da Bahia e ex-ministro da Casa Civil de Rousseff representava uma contestação dos paradigmas ideológicos que, no passado, orientaram a política externa lulista. No fim, apesar de tudo, prevaleceu o impulso de restauração.

As linhas gerais da nova/velha política externa de Lula 3 já estão escritas no muro. São quatro sinais, que formam um desenho.

1. Sabotagem da candidatura de Ilan Goldfajn ao BID
A operação fracassada foi conduzida publicamente pelo ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, mas derivou de articulação oculta de Amorim. Goldfajn, um economista que preza os fundamentos e despreza a inflação, não fará do BID uma plataforma econômica para a ideia terceiro-mundista da unidade latino-americana.

2. Adiamento da visita de Lula a Washington
Nesse caso, ao contrário da sabotagem a Goldfajn, a facção de Amorim aparentemente prevaleceu. Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, veio ao Brasil com a missão de promover um encontro entre Lula e Joe Biden ainda em dezembro, antes da posse.

A meta era oferecer um inequívoco respaldo americano ao desenlace eleitoral, ajudando a secar os delírios golpistas que circulam num setor minoritário das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, tratava-se de reativar a cooperação EUA-Brasil, assentando-a na política climática. O adiamento da visita presidencial veicula uma mensagem: o governo Lula não está interessado numa parceria estratégica com os Estados Unidos. Prefere, no lugar dela, o caminho que conduz ao “Sul Global” — na prática, o fórum do Brics, com destaque para China e Rússia.

3.Reforma do Conselho de Segurança da ONU
O Conselho da ONU, com seus cinco integrantes permanentes e direito a veto, nasceu da Segunda Guerra Mundial. A ideia de reforma entrou na agenda internacional na década de 1990, mas nunca decolou, devido à ausência de algum consenso mínimo: não se cede poder à toa.

Hoje, sob as nuvens de chumbo da rivalidade EUA-China e da guerra na Ucrânia, inexiste espaço para a retomada do debate. Mesmo assim, Amorim apressou-se em recolocar o tema no centro da agenda da política externa brasileira. A insistência obsessiva não se destina a descortinar novos horizontes, mas a fabricar um discurso “anti-imperialista” de denúncia das potências (ocidentais) e da ordem internacional.

4. Guerra e paz na Ucrânia
Na campanha, Lula colocou um sinal de equivalência entre Putin e Zelensky —entre a potência agressora e a nação agredida. Circula a ideia de que o novo presidente almeja desempenhar um papel de protagonista numa iniciativa internacional para encerrar a guerra na Ucrânia. Fala-se, no entorno lulista, em “negociações” e “paz”, mas nunca na integridade territorial ucraniana.

Paz sem desocupação: a fórmula coincide, exatamente, com os objetivos imediatos de Putin, que pretende congelar temporariamente o conflito, interrompendo a contraofensiva da Ucrânia e ganhando tempo para reorganizar as forças invasoras assediadas. Nesse ponto, Lula segue os passos de Bolsonaro, adotando uma espécie de “neutralidade pró-Rússia” que viola os princípios explícitos inscritos em nosso texto constitucional.

Restauração: “O tempo passou na janela e só Carolina não viu”.

https://oglobo.globo.com/opiniao/demetrio-magnoli/coluna/2022/12/nova-politica-externa-de-lula-e-velha.ghtml 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Como a esquerda pode apoiar o fascista do Putin? O antiamericanismo é maior que o antifascismo? - Demetrio Magnoli

 Creio que a esquerda tem, sim, um antiamericanismo tão anacrônico, míope e torpe, que o seu anti-imperialismo se esgota no antiamericanismo, e aceita qualquer coisa que tenha tido sabor de antiamericanismo, mesmo se é o fascismo de esquerda, de uma Venezuela chavista, de uma Nicarágua orteguista, de uma Rússia putinesca.


Stalingrado, versões de uma batalha!

Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em geografia humana pela USP

Folha de S.Paulo, 19/08/2022

 

No 23 de agosto de 1942, 80 anos atrás, começou a Batalha de Stalingrado, ponto de inflexão da guerra mundial no teatro europeu. Desde 2013, Volgogrado reverte a seu antigo nome nos aniversários da batalha crucial. O culto a Stalingrado descortina a evolução do nacionalismo russo, de Stálin a Putin.

 

A primeira versão sobre a batalha fixou-se em 1943, na Conferência de Teerã, quando Churchill passou às mãos de Stálin a Espada de Stalingrado, oferenda do rei George 6º à cidade heroica. Originalmente, a URSS traduziu a vitória como marco da unidade das potências aliadas contra o nazifascismo.

 

Durou pouco. Desde 1947, Stálin ergueu uma segunda versão, adaptada à nova rivalidade da Guerra Fria. Os antigos aliados foram reinterpretados como herdeiros do nazifascismo e a batalha transformou-se na certidão de batismo da Grande Rússia soviética. Duas décadas depois, numa cidade já renomeada, Kruschev inaugurou A Pátria Convoca, a estátua de 85 metros de altura, no estilo do realismo socialista, de uma mulher guerreira empunhando uma espada.

 

Putin, que qualificou a implosão da URSS como "a maior catástrofe geopolítica do século 20", conserva a versão grão-russa sobre a batalha, mas a recobre com uma tintura especial. A sua Grande Rússia substitui as referências comunistas por uma pasta ideológica inspirada no fascismo. No salto, ocupa lugar destacado o filósofo político cristão Ivan Illyn (1883-1954).

 

Illyn foi expulso da Rússia soviética em 1922. No exílio, em Berlim e depois na Suíça, conectou-se aos emigrados russos contrarrevolucionários e abraçou o pensamento fascista. Em 1950, escreveu um ensaio que viria a ser repetidamente citado por Putin. Nele, identificava um "experimento hostil", urdido pelas potências ocidentais, de fragmentação da Rússia num "gigantesco Bálcãs", que seria "enganosamente exibido como supremo triunfo da ‘liberdade’ e da ‘democracia’...".

 

"A propaganda alemã investe dinheiro e esforço singulares no separatismo ucraniano", alertava Illyn. Em 2005, ano do primeiro levante popular ucraniano contra um governo pró-russo, Putin obteve a transferência dos restos mortais do pensador fascista para a Rússia e, quatro anos mais tarde, depositou flores em sua tumba, no monastério Donskoy. Em 2013, o Kremlin indicou o livro "Nossas Tarefas", no qual encontra-se o ensaio, como leitura fundamental para os altos funcionários russos.

 

Segundo Illyn, Hitler cometera o equívoco fatal do ateísmo. As impurezas da modernidade –isto é, o pluralismo e o advento da sociedade civil– teriam exilado Deus e precisariam ser purgadas pela restauração do mundo antigo. A missão redentora caberia a uma nação justa (a Rússia) disposta a seguir um líder descomunal engajado na criação de uma nova totalidade política. Putin tem bons motivos para recomendar a seus cortesãos o estudo da obra de Illyn.

 

Otan? O pretexto inicial para a invasão da Ucrânia sobrevive apenas no discurso do "anti-imperialismo" ocidental. As vozes ligadas ao Kremlin empregam a linguagem exterminista típica do fascismo. Margarita Simonyan, chefe da rede estatal RT, explica que "a Ucrânia não pode continuar a existir. O ex-presidente Dmitri Medvedev refere-se aos ucranianos como "bastardos e degenerados". Vladimir Soloviov, âncora de TV premiado por Putin, prefere a palavra "vermes": "Quando um veterinário desparasita um gato, para ele é uma operação especial, para os vermes é uma guerra e para o gato é uma limpeza".

 

A versão antiocidental da Batalha de Stalingrado contada por Stálin celebrava uma Grande Rússia destinada pela história a ser a URSS. A retificação emanada de Putin glorifica uma Grande Rússia eterna: a espada purificadora que Deus cravará num mundo pecaminoso. A adoração devotada pela extrema direita a Putin é normal. Já a simpatia da esquerda solicita investigação.


quinta-feira, 14 de julho de 2022

No Chile, a Constituição da nova esquerda (vai destruir o governo atual e os seguintes) - Demetrio Magnoli (FSP)

No Chile, a Constituição da nova esquerda 

Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo sábado, 9 de julho de 2022

Se aprovada em plebiscito, proposta destruirá o governo de Gabriel Boric


            "O Chile é um Estado social e democrático de Direito. É plurinacional, intercultural, regional e ecológico." A Constituição emanada da Constituinte chilena é um retrato em 3 por 4 da nova esquerda: a coleção completa de suas utopias, doutrinas e dogmas. Se for aprovada em plebiscito, destruirá o governo de esquerda de Gabriel Boric – e qualquer governo que o suceder.

            Nos seus infindáveis 388 artigos, não se contenta em listar os direitos dos humanos, determinando até que o Estado promova uma "educação baseada na empatia e respeito pelos animais" (art. 131). Segundo o artigo 18, a "Natureza" torna-se um sujeito de direitos, ao lado dos cidadãos e das nações indígenas –mas, claro, o texto não define quem fala por ela.

            A Constituinte nasceu da onda de protestos sociais de 2019 e 2020. Sob o impulso das ruas, formou-se uma maioria de ativistas de movimentos sociais e partidos de esquerda que não reflete a balança de forças real da sociedade chilena. Nas eleições do ano passado, Boric conseguiu apenas 26% dos votos no turno inicial, e a esquerda obteve 27% dos assentos na Câmara, contra 48% dos partidos de centro-direita e direita. O texto constitucional, porém, reflete um país imaginário, habitado exclusivamente pela esquerda pós-moderna.

            A política identitária esparrama-se por todas as esferas. A palavra "gênero" é mencionada 39 vezes. Garante-se a "paridade de gênero" em todos os órgãos da administração estatal, na direção das empresas públicas e, inclusive, nas organizações políticas não estatais (artigos 2 e 163). A "paridade de gênero" aplica-se, ainda, a todos os órgãos eleitos de representação popular, o que viola o direito dos cidadãos de escolher livremente seus representantes.

            De acordo com o artigo 312, os tribunais "devem resolver com enfoque de gênero", uma regra subjetiva que ergue o espectro da potencial inconstitucionalidade sobre qualquer decisão judicial. O mesmo indefinido "enfoque" aplica-se ao "exercício das funções públicas", o que possibilita judicializar os mais corriqueiros atos administrativos.

            O Estado de Direito, consagrado no artigo inicial, é relativizado pela proclamação da plurinacionalidade. Os povos indígenas são declarados "nações" e ganham direito à "autonomia" e ao "autogoverno", o que inclui "instituições jurisdicionais tradicionais" (art. 34). Daí decorre que a proteção geral dos direitos individuais, civis e políticos não se estende aos indígenas.

            A nova Constituição ampara-se na crença implícita de que o Chile é um espaço edênico de abundância ilimitada, de cujo céu jorra leite e mel. A seguridade social pública deve proteger integralmente as pessoas do nascimento à morte, inclusive nos casos de "redução dos meios de subsistência" (art. 45). Estabelece-se um direito universal ao trabalho "de livre escolha" e proíbe-se "todas as formas de precarização no emprego" (art. 46). O seu elenco de direitos abrange "moradia digna" em "localização apropriada", assegurada por ações estatais (art. 51).

            Nem todos os direitos são acolhidos pelo texto constitucional. Fica "proibida toda forma de lucro" nas instituições de educação básica, média ou superior (artigos 36 e 37). O artigo 51 veta a especulação imobiliária "que ocorra em detrimento do interesse público", um critério aberto às mais bizarras interpretações das maiorias políticas de turno.

            Uma nuvem de incerteza paira sobre o plebiscito da nova Constituição. Sondagem recente registrou reprovação de 51%, contra aprovação de 34%, Na hipótese de rejeição, o país ficará com a Constituição herdada da ditadura de Pinochet. Na hipótese oposta, o Chile rumará à ingovernabilidade e se inviabilizará o mandato de Boric, um presidente de esquerda que recusa tanto o autoritarismo quanto o populismo. De um modo ou do outro, a nova esquerda cumprirá sua missão reacionária.

 

Primeiro comentário de um leitor:

Anônimo disse...

            O preconceituoso colunista exagerou como nunca. Gosto de lê-lo, pois às vezes ele tem análises corretas e interessantes, mesmo contrárias à Esquerda e ideologicamente comprometidas. Algumas preocupações levantadas neste texto são até verdadeiras, mas a quantidade de bobagens que ele incluiu é surpreendente. Ele deve estar mesmo bem revoltado com os rumos da progressista constituição chilena!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Ruínas da ponte chinesa: 50 anos de Nixon na China (já deu até ópera) - Demetrio Magnoli (FSP)

 Opinião 

Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli

Sociólogo e doutor em geografia humana


Ruínas da ponte chinesa

Por Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo, 21/02/2022 • 00:00 


‘Esta foi a semana que mudou o mundo’, disse Richard Nixon em Xangai, em fevereiro de 1972, numa referência direta ao livro-reportagem “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, sobre a Revolução Russa de 1917. Nas declarações, logo após a assinatura do Comunicado conjunto, o presidente dos EUA anunciou a construção de uma ponte imaginária “através de 16 mil milhas e 22 anos de hostilidades”. A ponte ajudou a encerrar a Guerra Fria e abriu caminho à integração da China ao mundo, mas não ficou em pé para celebrar seu aniversário de 50 anos.

Sem o encontro histórico de Nixon com Mao Tsé-tung, não é fácil enxergar a transição chinesa do fracassado modelo estatista à “economia socialista de mercado” que começou em 1979, sob Deng Xiaoping. Sem o Comunicado de Xangai, base da aproximação geopolítica entre China e EUA, quem sabe quanto tempo ainda viveria a URSS?

A reviravolta de 1972, fruto da iminente derrota no Vietnã e do gênio intelectual de Henry Kissinger, realmente “mudou o mundo”. Ironicamente, as duas potências engajam-se, atualmente, numa espécie de Guerra Fria 2.0, e a China alardeia uma parceria estratégica, política e militar com a Rússia.

“Não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”, explicou Deng, anunciando o advento da liberdade para as mercadorias e os capitais. A China pós-maoista, porém, nunca aceitou a extensão da liberdade a seus próprios cidadãos, como foi comprovado pelo esmagamento dos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989, e pelas reformas regressivas de Xi Jinping, um quarto de século depois.

A China da Olimpíada de 2008 não é a dos Jogos de Inverno de 2022. Na primeira, delineava-se a marcha rumo a um sistema autoritário moderado, capaz de tolerar espaços restritos de liberdades públicas e individuais. A segunda aboliu os direitos de Hong Kong, ameaça invadir a república democrática de Taiwan e arrasa a sociedade e a cultura dos uigures em Xinjiang. Contudo a implosão da ponte com os EUA não deve ser atribuída à brutal reafirmação do sistema totalitário.

O giro estratégico de Washington começou com Obama, acentuou-se com Trump e ossificou-se com Biden. Hoje, o paradigma de uma rivalidade estrutural com a China tornou-se consenso bipartidário. Mas a China de Xi Jinping não é pior, politicamente, que a miserável nação maoista de meio século atrás. A Guerra Fria 2.0 decorre, essencialmente, da percepção americana de uma ameaça fundamental à hegemonia alcançada no final da Guerra Fria original.

O elemento estratégico-militar da resposta de Washington à ascensão chinesa tem as cores da política de contenção aplicada contra a antiga URSS: a criação do Aukus, aliança trilateral com Reino Unido e Austrália, e a parceria privilegiada com a Índia. O elemento econômico deriva de uma concepção oposta: no lugar do estímulo ao internacionalismo (Plano Marshall, União Europeia), o recuo às trincheiras do nacionalismo.

De Trump a Biden, os EUA engajaram-se na formulação de políticas industriais protecionistas e numa guerra de atrito contra os avanços tecnológicos chineses (5G, inteligência artificial). É um caso típico da “armadilha de Tucídides”, descrita pelo historiador da Guerra do Peloponeso. A potência tradicional enxerga sua posição desafiada por uma potência emergente e tenta restringi-la. Como resultado, adota uma atitude defensiva, calcificando o sistema internacional em torno de seus interesses nacionais.

Na Guerra Fria original, a estratégia dos EUA baseava-se na noção de que a URSS era uma potência assentada em alicerces de barro. Na Guerra Fria 2.0, os EUA operam sob a ilusão da irresistível ascensão chinesa. O diagnóstico desfoca a paisagem, ocultando as fragilidades do competidor: uma crise demográfica de longo curso, as hemorragias internas no sistema financeiro, a desaceleração econômica, as tensões sociais que se acumulam, as fissuras crônicas no sistema de poder político.

Ninguém celebrará o aniversário da visita de Nixon. Da ponte que serviu aos interesses dos EUA, da China e do mundo, resta apenas um monte de ruínas.

Por Demétrio Magnoli

 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

A casta patrimonialista e extratora do funcionalismo federal contra a nação - Demetrio Magnoli

 A casta


Por Demétrio Magnoli
31/05/2021 • 01:00

São “parasitas” que estão matando o “hospedeiro”? A sentença emitida por Paulo Guedes, como quase tudo que fala o já não tão poderoso ministro, é uma generalização estúpida. Nas suas desigualdades internas, o funcionalismo público é quase um microcosmo do conjunto da sociedade brasileira. Mas sua elite forma, de fato, uma casta aristocrática que extrai recursos vitais dos brasileiros comuns, amplificando a concentração de renda.

A casta está incrustada no funcionalismo federal: segundo o Ipea, em 2017, os servidores municipais tinham salário médio de R$ 2,9 mil, contra R$ 5 mil dos estaduais e R$ 9,2 mil dos federais. O Congresso e, especialmente, o Poder Judiciário formam os ecossistemas da casta: no Executivo, o holerite médio era de R$ 3,9 mil, contra R$ 6 mil dos funcionários do Legislativo e R$ 12 mil dos servidores do Judiciário.

Raymundo Faoro iluminou, nos idos de 1958, a relação intrínseca entre o poder estatal e o estamento dos servidores públicos. A conversão patrimonial do bem nominalmente público em propriedade privada — a prática sistemática de “tosquiar” a sociedade — expressa-se, entre tantas formas, na remuneração da casta. Os funcionários federais ganhavam, em média, 96% mais que os trabalhadores de empresas privadas, sempre em 2017. No Judiciário, 4,2% dos funcionários recebiam salários superiores a R$ 30 mil.

Getúlio Vargas esculpiu a transição para a economia urbano-industrial criando a moderna burocracia estatal e lançando as sementes da casta. Os filhos dos fazendeiros tornaram-se bacharéis. O PT, partido apoiado nos sindicatos de servidores, completou a obra varguista. Nos governos Lula e Dilma, o gasto com pessoal saltou de cerca de R$ 200 bilhões para mais de R$ 300 bilhões, já descontada a inflação.

O país existe para servir os servidores? Em 2019, o Brasil gastou 12,9% do PIB com o funcionalismo, um dos maiores dispêndios do planeta, superior ao do Canadá (12,1%) ou da França (11,8%), para não mencionar Reino Unido (9%), EUA (8,7%), Alemanha (7,6%) ou Chile (7,1%). Só o Judiciário — e sem contar o MP — consumiu 1,5% do PIB, um assalto à arca pública que fica evidente no cotejo com Itália (0,18%), França (0,15%) ou EUA (0,14%). Por aqui, terra de fidalgos togados, o vale-refeição dos juízes supera o salário mínimo em 24 das 27 unidades da Federação.

O lulismo impulsionou a casta a um novo patamar — e seus arautos nem sequer admitem a discussão de uma reforma administrativa capaz de limitar as rendas públicas destinadas a sustentar seus privilégios. O sociólogo Jessé Souza, o mais autêntico formulador da visão lulista sobre o Estado e a sociedade no Brasil, sintetizou a alegação da casta na seguinte sentença: “Os bancos querem enxugar os gastos do Estado, para que o Estado possa ter seu orçamento dirigido aos bancos”. Ficamos sabendo, então, que, segundo Jessé, propor uma reforma administrativa implica defender os interesses dos bancos.

A técnica de acusar o interlocutor de nutrir maléficas motivações ocultas, típica de espíritos autoritários, destina-se a circundar a argumentação histórica e factual, substituindo o debate informado por um torneio de insultos. Na maioria das nações democráticas, governos de diversos matizes políticos evitaram que a alta burocracia de Estado abocanhasse parcela da riqueza nacional similar à que alimenta a “nossa” casta. Seriam todos esses governos meros agentes do capital financeiro?

Na base do funcionalismo, especialmente nos níveis estadual e municipal, encontra-se a parcela dos servidores públicos de maior valor social. São, em grande parte, funcionários mal-remunerados da saúde e da educação que atendem à população de baixa renda. É a casta, não os malvados banqueiros, que desvia para si mesma os recursos necessários para a qualificação e modernização dos serviços públicos universais.

Uma reforma administrativa equilibrada — que, obviamente, não é a de Paulo Guedes — interessa à maioria dos brasileiros. Pena que, 90 anos depois de Vargas, os representantes políticos da casta ainda consigam se fantasiar como amigos do povo.

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/casta.html

terça-feira, 13 de abril de 2021

Eu acuso, de Demetrio Magnoli, sobre o anacronismo dos historiadores do politicamente correto

Um tema sempre atual, o do racismo reverso, embora guiado pelo politicamente correto, essa outra ditadura americana que se espalha igualmente pelas universidades brasileiras e do resto do mundo. Um artigo do Demetrio Magnoli que me havia passado despercebido.

Paulo Roberto de Almeida

Eu acuso

Primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo

Demetrio Magnoli

FSP, 19.fev.2021 às 23h15

 

Na Califórnia, o Conselho de Educação de São Francisco mudou os nomes de 44 escolas, varrendo figuras racistas do passado e, de passagem, também Abraham Lincoln. Na Folha (19/1), Marcelo Coelho reativou a campanha pelo cancelamento de Monteiro Lobato, rotulando-o como um “racista delirante”. Ezra Klein tem razão ao concluir que, por essas vias, transforma-se a política mais em estética que em programa (Folha, 12/2).

Cada geração tende a reinventar a história à sua imagem, atribuindo aos personagens do passado as virtudes ou pecados que tocam nas sensibilidades do presente. O Lincoln oficial é Grande Emancipador; o dos dirigentes escolares de São Francisco é o político que se opunha tenazmente ao exercício do sufrágio pelos negros. Depois de cancelar os líderes da Confederação, a esquerda identitária americana precisa seguir adiante, condenando ao opróbrio todos os que não abraçam seus valores. O primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo, inscrevendo os personagens que estuda na moldura de sua própria época.

Mas o anacronismo constitui a ferramenta imprescindível dos emissários da atual política simbólica. Lincoln simplesmente compartilhava as ideias predominantes no seu tempo. Lobato debatia-se com as encruzilhadas reais ou imaginárias da metade inicial do século 20. O método de pinçar frases racistas em suas obras ou cartas pessoais serve, exclusivamente, para obter aplausos da plateia cúmplice que milita no

identitarismo acadêmico.

Que tal democratizar o anacronismo? Eu acuso W.E.B. Du Bois, “pai fundador” do movimento negro americano, de nutrir certas simpatias pelo nazismo. Acuso Abdias do Nascimento, prócer do moderno movimento negro brasileiro, de propagar as ideias fascistas da Ação Integralista Brasileira. E acuso milhares de negros do Brasil do século 19 de terem sido proprietários de escravos. Minhas cápsulas de verdades fora de contexto, artimanhas no palco do ilusionismo, esclarecem tanto quanto a sentença inquisitorial lançada contra Lobato.

As musas da Sorbonne costumavam soprar nos ouvidos dos intelectuais brasileiros. Não mais. Hoje, os cavaleiros andantes da política identitária seguem gurus americanos –e querem que o Brasil seja os EUA. O problema é que, quando se trata de nação e raças, a América Latina tomou rumo diferente. Enquanto os EUA praticavam a segregação racial oficial, o mexicano José Vasconcelos (1882-1959) e o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) enalteciam a miscigenação. Lobato não adotou nenhum dos dois polos, ensaiando um raciocínio inclinado à conciliação de raças. Os três, porém, pisavam um chão ladrilhado por conceitos raciais que só seriam superados na metade final do século 20. A acusação a Lobato nada diz sobre o escritor, mas pinta um retrato preciso de seus acusadores. 

A crítica literária Ana Lúcia Brandão recolocou o debate sobre Lobato no seu devido lugar (Folha, 15/2), descortinando amplos horizontes para divergências civilizadas. Vã esperança: Coelho retrucou comparando-a aos terraplanistas. Se não rezam pela cartilha de Bolsonaro, são comunistas; se contestam o manual de cancelamento da política identitária, serão terraplanistas. Vamos mal.

A política estetizada ignora os dilemas que interessam às pessoas comuns. As escolas de São Francisco permanecem fechadas –mas seus nomes foram devidamente sanitizados. O Pisa revela que o ensino público brasileiro continua a sonegar o direito à educação aos filhos de famílias de baixa renda de todas as cores – mas temos cotas raciais nas universidades e cercaremos com bandeiras de alerta as frases suspeitas de

Lobato. São Paulo empurra seus pobres a periferias cada cada vez mais distantes – mas logo removerá a Estátua do Empurra da entrada do Ibirapuera.

A estética nos consome: lancetamos símbolos. Sorte da direita populista.

 

sábado, 5 de setembro de 2020

Políticas racialistas são políticas racistas, ponto! - Demétrio Magnoli, Paulo Roberto de Almeida

Sempre me insurgi contra políticas racialistas, e isto desde FHC, ou seja, antes de Lula, e antes do STF. Concordo apenas em parte em que é preciso promover algumas chances de vida e a autoestima dos negros brasileiros, dando a eles as chances que não tiveram pela persistência do racismo, da desigualdade no acesso à escola, pela má qualidade da educação de que sempre sofreram ao longo de décadas.
Mas sempre julguei que isso deveria ser limitado, temporário, e de preferência ampliado a todos os carentes de chances, como os pobres em geral, com o que se atenderia a um número proporcionalmente maior de negros e pardos. 
Eu sempre clamei contra a criação de um novo Apartheid, que essas políticas racialistas poderiam criar, que é a reação de brancos (que se tornam mais racistas, por se acharem prejudicados) e pela criação de uma cultura negra, artificial, separada da cultura mainstream, que deve ser a de um Brasil único em suas qualidades e deformações, mas sem separação racial.
Paulo Roberto de Almeida

Avanço da doutrina racialista para a representação política golpeia a soberania popular

Benedita da Silva e Luís Roberto Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como uma carreira

"Estaremos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores." O ministro Luís Roberto Barroso anunciou, por essa frase capciosa, a pretensão dos altos tribunais de tutelar os partidos políticos e os eleitores, determinando uma distribuição racial dos fundos públicos eleitorais.
O inevitável avanço da doutrina racialista para a esfera da representação política golpeia o conceito de soberania popular, pilar da democracia.
Mas, como é de seu feitio, prontificou-se a legislar de outro jeito, no mesmo rumo racialista, gerenciando o caixa dos partidos com vistas a um "equilíbrio racial".
As leis de cotas raciais para ingresso nas universidades apoiam-se na justificativa da promoção social de grupos excluídos. As cotas raciais dividem os estudantes de escolas públicas segundo a cor da pele, alavancando ressentimentos que nutrem o racismo. O consenso partidário formado em torno delas destina-se a mascarar a ruína do ensino público, raiz da desigualdade de oportunidades no umbral das universidades. Quando a raça chega ao terreno do voto, o racialismo retira sua máscara, exibindo a face que precisava ocultar.
Benedita e Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como o ingresso na universidade —ou seja, como uma carreira. A política é definida, aí, como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio.
"Escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores" significa, para eles, alçar "negros" a empregos bem remunerados. O problema do raciocínio é que, no fim, a seleção desses "profissionais" depende dos eleitores. Que tal, então, dirigir a mão que digita o voto para o lugar "certo"?
Os programas pioneiros de cotas raciais nas universidades foram introduzidos em 2003. Seus defensores alegavam, à época, que o expediente seria provisório, esgotando-se no horizonte de dez ou, no máximo 20 anos. Hoje, quase duas décadas depois, não só esqueceram-se do prazo limítrofe como engajaram-se na introdução de cotas raciais na pós-graduação e na administração pública.
A fraude da vontade popular na esfera eleitoral também caminhará por etapas. A primeira, em curso, define a distribuição de fundos de campanha. Numa segunda, cotas "raciais" dentro dos partidos. A conclusiva, pelo estabelecimento de cotas raciais nos próprios órgãos legislativos. No Líbano, a representação parlamentar é repartida segundo linhas sectárias, com a divisão de cadeiras entre cristãos, sunitas e xiitas. No Brasil, a lógica racialista aponta para uma divisão entre as "raças oficiais" —isto é, basicamente, entre "brancos" e "negros", pois os autodeclarados "pardos" já foram administrativamente suprimidos do universo legal.
A "voz dos negros" deve ser ouvida —eis a tradução conceitual da frase de Barroso. Os "negros", porém, participam de diferentes partidos, exprimindo ideologias diversas. Quem é a "voz dos negros"? Benedita, que é uma "voz de Lula", ou Sérgio Camargo, uma "voz de Bolsonaro"
A racialização dos órgãos legislativos nada tem a ver com a "voz dos negros". Expressa a voz das elites brasileiras que recobrem, com uma mão de tinta fresca, o racismo institucional praticado pelas polícias e a exclusão social de pobres de todas as cores.
A política é o campo dos valores, das visões de mundo —não das raças. A "voz dos negros" exigiria a constituição de um Partido Negro. Os arautos do racialismo não vão criá-lo, pois sabem que seriam rejeitados inclusive pelo eleitorado não branco. A estratégia deles é tutelar o voto por meio de leis restritivas da soberania popular.

sábado, 21 de setembro de 2019

Demetrio Magnoli: um novo julgamento para Lula (FSP)

Lula livre
DEMÉTRIO MAGNOLI
Folha de S. Paulo, 21/09/2019

O STF examinará, logo mais, as condenações impostas a Lula. Hoje sabemos, graças à Vaza Jato, que os processos tinham cartas marcadas. O conluio entre Estado-julgador e Estado-acusador violou as leis que regulam o funcionamento do sistema de Justiça. A corte suprema tem o dever de preservar o Estado de Direito, declarando a nulidade dos julgamentos e colocando o ex-presidente em liberdade. Lula livre. Evito adicionar o clássico ponto de exclamação porque, sob a minha ótica, Lula é politicamente responsável pela orgia de corrupção que se desenrolou na Petrobras.
A corrupção lulopetista nasce de uma tese política elaborada, em versões paralelas, por José Dirceu e Luiz Gushiken. O PT, no poder, deveria modernizar o capitalismo brasileiro, encampando o programa que uma “burguesia nacional” submissa ao “imperialismo” recusava-se a conduzir. Lula converteu a tese em estratégia, articulando a aliança entre empresas estatais, fundos de pensão e setores do alto empresariado privado que reativaria nosso capitalismo de Estado. Numa segunda volta do parafuso, parte da renda gerada pelo mecanismo financiaria o projeto de poder, assegurando ao lulopetismo uma maioria parlamentar estável e a hegemonia perene na arena eleitoral. O mecanismo corrupto provocou uma erosão nos alicerces da democracia. Lula e o PT devem ser julgados por isso, mas no tribunal certo, que é o das urnas. Não creio em bruxas. Do Planalto, Lula avalizou pessoalmente a colonização de diretorias da Petrobras por agentes do PT, do PMDB e do PP que aplicaram as regras do jogo da corrupção, distribuindo contratos ao cartel de empreiteiras e cobrando propinas destinadas tanto a seus amos políticos quanto a formar patrimônios próprios.
A promiscuidade entre o presidente e as empreiteiras estendeu-se para além das fronteiras nacionais, gerando contratos corruptos, financiados pelo BNDES, com governantes amigos na América Latina e na África. Lula beneficiou-se diretamente do mecanismo, por meio de palestras no exterior patrocinadas pelas empreiteiras. Nelas, um ex-presidente que detinha a palavra final no governo da sucessora traficava influência, trocando seus bons ofícios por remunerações milionárias. Segundo minha convicção, o tribunal dos eleitores não cobre toda a responsabilidade de Lula. Acho que ele deve responder perante a lei por uma cadeia de atos de corrupção que lhe propiciaram benefícios políticos e materiais. Mas, felizmente, na esfera jurídica, o que eu penso —e o que você, leitor, pensa— não tem valor nenhum. No Estado de Direito democrático, juízes independentes ignoram o “clamor popular”, escrevendo sentenças embasadas na lei e informadas por um processo delimitado por formalidades que protegem os direitos do réu. Fora disso, ingressamos no mundo da Justiça politizada, que é o de Putin, Erdogan e Maduro.
​​Sergio Moro agiu como juiz de instrução italiano, uma espécie de coordenador dos procuradores —mas no Brasil, onde inexiste essa figura, não na Itália, onde um juiz diferente profere a sentença. 


Batman e Robin
Moro e Dallagnol, comparsas, esculpiram juntos cada passo do processo, nos tabuleiros judicial e midiático. No Partido dos Procuradores, milita também a juíza Gabriela Hardt, que copiou a sentença de Moro para fabricar a do sítio —e que, num trecho original de sua peça plagiária, trata José Aldemário Pinheiro e Leo Pinheiro, nome e apelido da testemunha-chave, como pessoas distintas. Batman, Robin e cia merecem sentar no banco dos réus sob a acusação de fraudar o sistema de Justiça. Lula livre, não por ele ou pelo PT, mas em defesa de um precioso bem público, de todos nós, ao qual tantos brasileiros pobres precisam ter acesso: o Estado de Direito. Que o ex-presidente seja processado novamente, segundo os ritos legais, e julgado por magistrados sem partido.