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sábado, 6 de abril de 2024

Chocante placidez da diplomacia lulopetista em face dos crimes russos - Anne Applebaum

O Brasil, Lula, o PT, o Itamaraty (nessa ordem) consideram normal assistir passivamente um Estado agressor massacrar o povo e destruir completamente um outro Estado? Não teriam nada a dizer sobre esses crimes? Por que o silêncio estridente? Chocante!

From: Anne Applebaum

Looks like the Russian plan is now to treat Kharkiv, once a city of 2 million people, the same way Russia treated Grozny, Aleppo, Mariupol: turn it to rubble https://www.bbc.com/news/world-us-canada-68747752 


quarta-feira, 3 de abril de 2024

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: o que sabemos e o que não sabemos - Paulo Roberto de Almeida


O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: o que sabemos e o que não sabemos

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo sobre a postura do Brasil em face da guerra de agressão da Rússia à Ucrânia.

  

Nós sabemos quando e como a guerra de agressão da Rússia contra Ucrânia começou.

Não foi em fevereiro de 2022, mas bem antes disso: começou em 2014 com a invasão e a anexação ilegal da península ucraniana da Crimeia, e com os distúrbios fabricados simultaneamente pela Rússia na região do Donbas, mas essas invasões e a própria guerra de agressão já estavam, provavelmente, nos planos de Putin desde o início dos anos 2000, mais concretamente desde 2007-2008.

Não sabemos, ainda, quando ou como essa guerra terminará.

Mas já sabemos que ela provocou uma mudança radical nas relações internacionais, uma fratura por enquanto irremediável entre a potência invasora (e seus apoiadores diretos, como a Belarus) e todos os demais países que simplesmente defendem o Direito Internacional e a Carta da ONU e que, ipso facto, estão do lado da Ucrânia em sua ação defensiva contra a potência agressora. Estes não ultrapassam quatro dezenas de Estados, se tanto. 

Sabemos também, perfeitamente, que uma maioria de Estados, também membros da ONU, permanece, infelizmente, absolutamente indiferente à sorte da parte agredida, ainda que condenando formalmente a Rússia pela invasão. Nisso eles também contrariam a Carta da ONU, pois que esta comanda a solidariedade e o apoio de todos os membros à parte agredida e uma ação correspondente de todos eles contra a parte agressora. É um dever político e uma obrigação moral, ainda que não um requerimento jurídico.

Isso está no espírito e na letra da Carta da ONU, que, no entanto, se vê na tolhida pelo uso abusivo do direito de VETO, no tocante a uma possível e necessária ação do Conselho de Segurança, que é o PRINCIPAL (main) garantidor da paz e da segurança internacionais, mas que não é o ÚNICO, nem o EXCLUSIVO.

Esse “direito de veto” é arrogante e absurdo, uma vez que é um membro permanente o RESPONSÁVEL pela violação do principal artigo da Carta, que é a guerra de agressão. Nisso o Brasil já tinha sido pioneiro em sua posição contrária a essa falcatrua desde o debate, em 1945, em torno dos artigos da Carta. Essa posição estava expressa em parecer fo Consultor Jurídico da delegação brasileira em San Francisco, Hildebrando Accioly.

Também sabemos, infelizmente, que o Brasil, a sua diplomacia e os seus governos, o precedente e o atual, se alinham entre os “indiferentes”, condenando, formalmente, a Rússia, mas se eximindo de qualquer ação mais incisiva em defesa ou solidariedade à parte agressora e até renunciando a condenar de maneira mais explícita a parte agressora.

O dirigente anterior, um rústico em matéria de diplomacia e de política internacional chegou pateticamente a se dizer “solidário” com a parte russa, provavelmente por razões oportunistas e eleitoreiras: fornecimento de fertilizantes e de combustíveis, como se isso estivesse acima de considerações de natureza diplomáticas ou até morais.

Mas, o dirigente atual faz muito pior, pois que demonstra, já demonstrou, em inúmeras oportunidades, seu apoio objetivo à parte agressora, assim como sua total indiferença em face dos crimes de guerra, dos atos terroristas, e até dos crimes contra a humanidade (sequestro de crianças, por exemplo), perpetrados pela parte agressora contra o país e contra a população ucraniana.

Isso tudo já sabemos e já constatamos. Não sabemos ainda, como dito, quando a guerra terminará, ou se, numa outra vertente, a postura do governo do Brasil e de sua diplomacia continuará sendo de apoio objetivo à parte agressora, ou se tal posição poderá mudar, neste ou num próximo governo. 

Tenho, pessoalmente, minhas hipóteses, ou quase certezas, sobre as razões que estão na base das opções e escolhas do atual governo quanto à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia (cabe sempre insistir no conceito por inteiro, pois esse é o objeto do Artigo 1o. da Carta da ONU). Elas têm muito a ver com ideologia e interesses políticos do atual governo, o que pode ser expresso pelo termo alemão de Weltanschauung, ou “visão do mundo”. Essa visão do mundo sempre esteve impressa na diplomacia partidária, presidencial e pessoalíssima em todos os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desde o início do governo (e implicitamente desde sempre).

A postura se tornou “encomendada”, digamos assim, desde a concepção e formação do BRIC, entre 2006 e 2009, se viu confirmada na criação do BRICS, em 2011, e foi consolidada na aceitação, talvez de forma relutante, do BRICS+, em 2023-24, dobrando o número de seus membros.

Ela se tornou uma espécie de “gaiola de ferro” para o dirigente brasileiro, por razões que me parecem óbvias, mas que não explicitarei neste momento. Reservo a uma oportunidade posterior a análise de todas as implicações da atual postura, para o Brasil e para a sua diplomacia, da “gaiola de ferro” que foi criada a partir da guerra aberta de agressão da Rússia contra a Ucrânia. As consequências e desafios me parecem ponderáveis e relevantes. Por isso, retornarei ao assunto.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4624, 3 abril 2024, 3 p.



War in Ukraine: Conflict, Strategy, and the Return of a Fractured World
Hal Brands (ed.)
Johns Hopkins University Press, 2024.

Project MUSE. muse.jhu.edu/book/122782



quarta-feira, 27 de setembro de 2023

"Brasil pode liderar processo de paz entre Ucrânia e Rússia": entrevista com embaixador Andrii Melnyk (Deutsche Welle)

POLÍTICABRASIL

"Brasil pode liderar processo de paz entre Ucrânia e Rússia"

Nádia Pontes enviada a Brasília / com Jean-Philip Struck (Bonn)

Deutsche Welle, 27/09/2023

https://www.dw.com/pt-br/brasil-pode-liderar-processo-de-paz-entre-ucr%C3%A2nia-e-r%C3%BAssia/a-66927851

 

Recém-chegado ao Brasil, embaixador ucraniano Andrii Melnyk pede criatividade a diplomacia brasileira para criar paz duradoura na guerra na Ucrânia. Mas, segundo ele, iniciar negociações agora faria pouco sentido.


Andrii Melnyk é o novo embaixador da Ucrânia no Brasil

 

Recém-chegado a Brasília, o novo embaixador ucraniano Andrii Melnyk pretende mobilizar a diplomacia brasileira a "pensar fora da caixa" e liderar o processo de paz entre as vizinhas Ucrânia e Rússia. Desde fevereiro de 2022, os ucranianos enfrentam a invasão de tropas russas e tentam resistir com ajuda internacional.

Para o representante diplomático do governo ucraniano no Brasil, um dos primeiros passos para essa aproximação entre Kiev e Brasília foi organizar o encontro de mais de uma hora entre Luiz Inácio Lula da Silva e Volodimir Zelenski, em Nova York, na última semana, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas. Segundo Melnyk, a conversa franca entre líderes é vista como chance de o mandatário brasileiro entender melhor a situação e se aproximar do país do Leste Europeu.

Durante a entrevista concedida à DW na embaixada da Ucrânia, abrigada numa casa alugada em Brasília, Melnyk argumentou que seria importante receber armas do Brasil, o que, segundo ele, se constituiria numa ajuda humanitária.

DW: Na avaliação do senhor, quais são os maiores equívocos no Brasil sobre a guerra que a Rússia está travando contra a Ucrânia, na sociedade e no plano político? Como planeja combatê-los?

Andrii Melnyk: Os brasileiros sabem que existe o Estado independente da Ucrânia. Mas, basicamente, o conhecimento é muito escasso. Mas não é culpa dos brasileiros, é nosso trabalho que não tem sido feito de forma apropriada nas últimas três décadas.

É nosso trabalho e nossa missão nos aproximarmos da sociedade brasileira e da comunidade política, fazer este contato e explicar nossa causa. Ficamos sem embaixador aqui por um longo período e isso atrapalhou a comunicação sobre o que aconteceu quando ocorreu a grande invasão em fevereiro de 2022.

Essa guerra de agressão, que pode parecer distante dos brasileiros geograficamente falando, afeta também a essência do DNA do Estado brasileiro, e ameaça as fundações da ordem internacional. E o Brasil é um dos países líderes dentro da ONU que tenta fortalecer esta ordem.

Minha segunda tarefa é mostrar para os brasileiros que a Ucrânia é mais do que apenas uma vítima desta guerra terrível. Temos que contar as histórias das pessoas. Ano passado, eu estava em Kiev, eu vivenciei os bombardeios noturnos diários. Muitos amigos meus morreram na linha de combate, muitos se feriram. Civis perderam suas vidas, suas casas. Temos também que contar a história da Ucrânia, o maior país em termos geográficos da Europa. Isso é algo que temos em comum com o Brasil, como o maior país da América do Sul.

Na Alemanha, onde o senhor foi embaixador da Ucrânia de 2015 a 2022, ganhou a reputação de ser franco e de criticar abertamente a classe política do país, incluindo a liderança do governo. O senhor pretende adotar a mesma postura no Brasil?

Honestamente, eu não sei ainda o caminho que eu devo escolher. É fato que não haverá um cenário de 'copia e cola', cada situação é única. Eu me sinto honrado por ter servido na Alemanha, tive o privilégio trabalhar lá por sete anos antes da grande invasão russa.

Eu era muito franco quando a guerra começou. Era um apelo sincero meu. Eu não conseguia entender por que a Alemanha, que se envolveu tanto nas negociações de Minsk e que tentava nos ajudar a resolver a primeira agressão russa com a anexação da Crimeia, em 2014, sabendo de todos os riscos, não nos forneceu armas. Minha convicção pessoal é que isso teria prevenido a atual invasão russa, iniciada em 2022. Tendo esse enorme peso geopolítico e econômico, a Alemanha poderia ter desempenhado outro papel para conter a Rússia ou mesmo evitar a guerra, pelo menos naquele momento. Isso não aconteceu.

No Brasil, a tarefa é diferente porque a conexão, por assim dizer, não é tão forte. Há uma comunidade de imigrantes ucranianos aqui de mais de 130 anos no Paraná, existem mais de 600 mil brasileiros com raízes ucranianas. Mas, basicamente, para a maioria das pessoas aqui, a Ucrânia ainda não parece ter um grande significado por enquanto.

Minha meta aqui é contar a história da guerra. Há muitas coisas que precisam ser faladas. Podemos começar com o sequestro de crianças ucranianas: milhares delas foram levadas à força para a Rússia. Elas são dadas para adoção forçada a famílias russas para serem reeducadas. Isso está acontecendo agora, no século 21. É pura barbaridade. Há prisioneiros de guerra ucranianos sendo torturados.

"Pode-se até permanecer neutro de alguma forma"

Há muitos assuntos práticos que têm significado para nós, não só do ponto de vista político e diplomático. A diplomacia brasileira faz parte das mais fortes do mundo, com grande tradição. O Itamaraty é um templo da diplomacia, com todas as pré-condições para ter orgulho dessa tradição, mas a sociedade, o jornalismo, ativistas políticos, ONGs – todos podem desempenhar um papel para influenciar a liderança russa a libertar crianças, na troca de prisioneiros de guerra.

São questões humanitárias. Pode-se até permanecer neutro de alguma forma. Há muito o que pode ser feito aqui para nos ajudar a aliviar as consequências desta guerra terrível. Há áreas enormes na Ucrânia que estão cheias de minas. O Brasil também poderia ajudar a liberar essas áreas, enviando especialistas que podem ajudar a tornar possível o retorno seguro dos moradores.

Na área de meio ambiente, o Brasil também pode ajudar. Nós estamos falando de crimes de guerra em escala industrial que foram cometidos desde o primeiro dia. Quase ninguém fala sobre os danos ecológicos: florestas destruídas, campos que não podem mais ser cultivados nos próximos anos ou décadas.

Como o Brasil, a Ucrânia é um celeiro mundial importante. Então não é só uma guerra nossa, é uma guerra que tem repercussão em outros países, [é uma] ameaça à segurança alimentar.

Liderança do Brasil e obrigação moral

O Brasil pode nos ajudar a garantir que haverá um julgamento de todos esses crimes humanitários. Todos aqueles que perpetraram crimes de guerra, estupro, tortura, que mataram civis, devem ser julgados. Se isso não for feito, se não recuperarmos as áreas ocupadas, haverá um problema, um mau exemplo ficará para outros países, que poderiam cometer os mesmos crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade.

O Brasil tem esta ambição de ter um papel de liderança, que é ancorada em seu tamanho geográfico, demografia, em sua economia, em sua cultura. Acho que é uma obrigação moral estar mais engajado e mostrar esta liderança para que outros possam seguir. 

Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a decisão de iniciar a guerra foi tomada tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia. Na semana passada, durante seu pronunciamento de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, ele optou por adotar um tom distante em relação à guerra na Ucrânia, segundo analistas ouvidos pela DW. Ele não mencionou especificamente a Rússia, apenas a guerra na Ucrânia, num contexto de outros conflitos no mundo – segundo os especialistas, não houve ênfase no conflito. Isto pode não ter agradado ao presidente ucraniano Zelenski, que não aplaudiu Lula. Como o senhor vê a posição do Brasil em relação à guerra na Ucrânia? Essa posição é equivocada?

Eu não diria isso. Em sua posição oficial, o Brasil pertence ao grupo, agora composto por 141 países, que, em fevereiro, na Assembleia Geral da ONU, condenou a invasão, condenou a violação das leis internacionais, além de fazer parte da ampla comunidade internacional que tenta nos ajudar a encontrar uma solução pacífica.

Eu estou muito contente e orgulhoso que pudemos organizar este primeiro encontro entre Lula e Zelenski em Nova York na semana passada. Até então, os dois haviam se falado apenas uma vez por telefone em março. Depois disso, houve muitas declarações, muitas emoções, e isso não foi útil. Ninguém se beneficia disso e ninguém conseguia entender o que estava acontecendo – tomando por base a posição oficial do Brasil, segundo a qual o Brasil está a bordo conosco.

Não foi fácil organizar este encontro devido a esse volume de emoções que foram criadas de forma artificial. Eles conversaram cerca de uma hora e dez minutos. Foi uma conversa franca e honesta entre dois líderes muito ambiciosos, sem grandes expectativas, mas com o desejo de entender melhor a posição de cada um. Foi um bom começo. Podemos chamar de grande avanço, depois deste círculo vicioso de concepções e interpretações equivocadas vividas no passado.

"Iniciar negociações agora faria pouco sentido"

Não temos um processo de paz. Nós só temos uma guerra brutal porque Putin não está disposto a negociar. E isso foi um dos tópicos do encontro. Meu presidente tentou explicar para Lula por que iniciar negociações [de paz] agora faria pouco sentido. Não há uma mínima confiança sobre o que o chefe do Kremlin diz ou faz. As promessas que ele faz são palavras vazias.

Nós queremos paz. O Brasil pode ajudar a preparar o terreno para essas negociações. Chegar a um cessar-fogo não é o suficiente para atingir uma paz duradoura. Poderia acontecer o mesmo que ocorreu com o Acordo de Minsk, que não foi implementado, e muitos países negligenciaram as consequências e uma grande guerra se instalou no nosso território.

O senhor então acredita que o Brasil poderia liderar este processo das negociações de paz?

Certamente. Para mim, o Brasil é predestinado a ter um papel mais ativo por diferentes razões. Este tem que ser um processo muito criativo, já que não há um exemplo similar no passado recente. Pela primeira vez, há um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU atacando, agredindo, invadindo um país vizinho e com um direito de vetar qualquer decisão política.

É um dos principais problemas da ordem legal atual que está ameaçada pela Rússia e não há um instrumento para forçar o país agressor a parar a invasão. Nosso apelo a todos os amigos e parceiros brasileiros é pensar fora da caixa, pensar de forma criativa. Esse é o maior desafio que a humanidade enfrenta depois da Segunda Guerra, um trauma que continua vivo para nós: na Segunda Guerra, perdemos cerca de 10 milhões de ucranianos.

Como na Segunda Guerra, os civis são os que mais sofrem, porque a Rússia usa táticas sinistras de colocar os civis como alvo, atacando vilas, hospitais, escolas, museus, empresas, portos. No campo de batalha, a Rússia não se mostra como um país com um grande Exército. Parece que, para compensar isso, eles atingem os civis para criar terror, forçar os ucranianos a deixar o país, ou ir para outras regiões mais distantes do conflito.

Atualmente, as estruturas existentes dentro da ONU não oferecem soluções para nos ajudar a parar a guerra por meio diplomático. Estamos pedindo ajuda para pensar nesta solução não só ao governo brasileiro, mas também a think tanks, ONGs, universidades.

O Brasil deveria fornecer armas para a Ucrânia?

Primeiro, é uma decisão de total soberania do governo brasileiro, que tem que cuidar de seus interesses e formular sua própria agenda. Sob o nosso ponto de vista, podemos falar apenas da perspectiva de vítimas, de civis. Gostaria de ressaltar isso novamente, pois uma coisa que não é sempre compreendida aqui é a natureza maligna desta guerra. A propaganda russa diz todo o tempo aqui que se trata de um conflito menor, quase uma guerra civil, que a Rússia está lutando contra o Ocidente, contra a Otan – que seria má – que desejaria invadir o território dela.

E gostaria de repetir esse dado: esta é uma guerra que está sendo travada contra alvos que são 94% civis. Drones, foguetes e todas as outras armas que eles usam são direcionadas para civis em 94% dos casos. Isso muda tudo.

É uma guerra que está sendo travada contra idosos, crianças, mulheres. Se não fosse o sistema de defesa aéreo, fornecido por países como a Alemanha, que abate os drones e foguetes que voam literalmente sobre nossas cabeças na Ucrânia, mais escolas e casas teriam sido destruídas e mais pessoas teriam morrido.

Desse ponto de vista, são um pedido e uma expectativa justos por parte da sociedade ucraniana. O Brasil poderia ter um papel de liderança também aqui na América Latina nesse sentido. Enviar munição para sistemas de defesa como os Gepard, enviados pela Alemanha em 2022, poderiam salvar vidas, não seria participar das hostilidades, ou assumir um lado ou outro do conflito. Eles ajudam os nossos militares a "fechar o céu", deixar as cidades mais seguras.

"Ninguém espera que o Brasil se envolva nas zonas de conflito"

Ninguém espera que o Brasil se envolva nas zonas de conflito, mas que ajude de outras maneiras, como, por exemplo, com a retirada de minas, fornecendo munições para o sistema de defesa aéreo e veículos para transporte de feridos nas cidades bombardeadas. O Brasil também poderia nos ajudar na questão da energia, com geradores e outros equipamentos que poderiam ser enviados às cidades e que ajudariam os ucranianos a sobreviver ao próximo inverno [no Hemisfério Norte], que será uma estação muito difícil.

Por que a Ucrânia até agora praticamente não conseguiu mobilizar um apoio significativo no Sul Global?

É uma pergunta difícil, e ainda não temos uma resposta apropriada. Há muitos fatores que, infelizmente, nós deixamos de lado nestas três décadas depois de termos conquistado novamente a nossa independência.

Nós não investimos muito tempo e atenção em todos os países que agora são chamados de Sul Global, um termo do qual eu não gosto muito porque coloca países muito diferentes numa mesma denominação. Em parte, foi um erro nosso.

Nós estivemos muito concentrados em outras questões importantes, como entrar para a União Europeia e para a Otan. Se fizéssemos parte desta comunidade de defesa, a Ucrânia não teria sido agredida pela Rússia.

Não tínhamos recursos suficientes para prestar atenção a outros países. Agora, essa guerra abriu nossos olhos, tínhamos que ter sido mais ativos na América Latina, Ásia, em outras regiões. Ter uma embaixada não é suficiente. Ao mesmo tempo, os russos têm estado presentes não apenas diplomaticamente, mas com suas missões de negócios e cobertura de mídia.

Agora esta tarefa se tornou, talvez, cem vezes mais difícil. Estamos tentando corrigir isso. Estamos abrindo várias representações diplomáticas na África, mesmo gastando atualmente 60% do nosso PIB com Defesa. Não esperamos resultados rápidos. Precisamos investir pelo menos uma década nesta expansão diplomática, ajudando nossos negócios a estarem mais presentes também nestes países.

Lula disse recentemente que o Brasil não prenderia Vladimir Putin se ele comparecesse à cúpula do G20 no Rio de Janeiro em 2024. Mais tarde, ele disse que caberia às autoridades judiciais brasileiras decidir. O que o senhor acha disso?

Tudo o que eu posso dizer é que Ucrânia gostaria que o presidente Zelenski fosse convidado para a cúpula que reúne todos os grandes líderes das 20 nações mais ricas. É algo que nós já dissemos aos nossos amigos brasileiros.

Nós gostaríamos de nos engajar com a presidência brasileira para que esta presidência do G20 fosse bem-sucedida. E não estamos falando apenas da agenda da cúpula, que inclui combate à pobreza, às desigualdades, aborda questões da Amazônia, mas também de temas como restaurar a ordem mundial. Isso é do nosso interesse.

Se o Sr. Putin estará presente ou não, isso é uma decisão dos nossos amigos brasileiros. Nosso desejo é que, durante a presidência do Brasil, a Ucrânia possa estar entre os participantes, talvez como convidados especiais – já que não somos membros do grupo – para apresentar nossa causa, a de uma guerra que temos que travar por se tratar de uma questão de existência.

A partir desta perspectiva [de manutenção da ordem mundial], penso que seria de interesse do Brasil e de outros países-membros do G20, talvez até para a Rússia, estar presente no Rio para trocar visões. Espero que meu presidente possa visitar o Brasil em 2024 (antes ou durante a cúpula do G20). Seria um sinal de visão ampla sobre essa ordem global e ajudaria o Brasil a nos entender melhor.

Levando em consideração o interesse do Brasil em se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que deve ser reformado, o país vai precisar de aliados e amigos no Leste da Europa.

Como o senhor acha que essa guerra vai acabar?

Para mim, como cidadão da Ucrânia, não apenas como diplomata ou como embaixador, pode não haver outra saída do que a Ucrânia libertar todas as áreas que foram ocupadas, incluindo a Crimeia. Ou seja, só quando a Ucrânia tiver restaurado as suas fronteiras internacionalmente reconhecidas a partir de 1991 é que se poderá falar numa paz duradoura.

É importante enfatizar isso porque, como vocês provavelmente sabem e ouviram, e também aqui no Brasil, tem havido algumas discussões sobre possíveis linhas de compromisso, e uma das sugestões é que Crimeia deva ser colocada entre "colchetes" e a Ucrânia apenas tenha que se esforçar para libertar os territórios que foram ocupados depois de fevereiro de 2022.

Se a comunidade internacional permitir que este falso compromisso seja alcançado, isso não garantiria uma paz duradoura. Essa ocupação já dura mais de nove anos. Se a questão da justiça for simplesmente deixada de fora deste futuro acordo de paz – que esperamos que seja universal e global –, qualquer que seja a forma que assuma, isso significaria que dezenas de milhares de crimes de guerra poderiam não ser levados à Justiça e isso não é nada bom para a ordem global.

E a última, mas não menos importante, questão é, obviamente, a questão das garantias futuras. Como prevenir, como garantir, por meios diplomáticos, que a Rússia não iniciará uma nova guerra semelhante ou talvez ainda mais brutal no futuro.


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

O que Putin quer de Lula? O que ele vai conseguir? (abril de 2023) - Paulo Roberto de Almeida

 O que Putin quer de Lula? O que ele vai conseguir? 

 

 Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25 de março de 2023

 

Em meados de abril próximo [2023], o eterno chanceler da Rússia, Sergei Lavrov deverá visitar o Brasil, e seu mais importante encontro não será, talvez, com o chanceler oficial, Mauro Vieira, mas provavelmente com o chanceler oficioso, Celso Amorim. Ambos se conhecem de longa data, antes ainda que tramassem conjuntamente a transmutação do BRIC original – uma mera plataforma de investimentos em economias emergentes, sugerida pelo economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs – em um BRIC diplomático, com a adjunção dos outros dois países incluídos no acrônimo, Índia e China. Tal transfiguração da lagarta do BRIC, antes da emergência do BRICS – que mais se parece com um ornitorrinco, dadas as suas bizarras características– transcorreu nos dois últimos anos do primeiro mandato de Lula (2003-2006), quando a sigla já tinha adquirido certa notoriedade de imprensa, em vista do grande dinamismo econômico então apresentado pelas quatro grandes economias emergentes. Foi um gesto ousado, pois a sigla estava concebida para apresentar não mais do que carteiras, ou portfólios, de investimentos com promessas de grandes retornos, voltados para alguns fundos sequiosos de boas oportunidades de mercado.

Depois de vários encontros entre os respectivos chanceleres, o BRIC diplomático foi oficialmente lançado numa reunião de cúpula realizada em Ecaterimburgo em 2009, mas não atravessou mais do que dois anos no seu formato inicial, passando a incorporar a República da África do Sul, pelas mãos da China, desde 2011. O sucesso de mídia foi enorme, desde essa fase inicial, pois que os países avançados do Ocidente ainda enfrentavam o rescaldo das crises imobiliária, securitária e bancária de 2008, que teve início nos Estados Unidos e logo se propagou para as outras economias de mercado, ao passo que os BRICS, pelo menos a China e a Índia, pareciam imunes às turbulências e mantinham suas taxas de crescimento relativamente satisfatórias. O novo BRICS navegava de vento em popa, e já na cúpula de Fortaleza, em 2014, fazia aprovar um banco de fomento a investimentos, o NDB, e um mecanismo de socorro contingente, vagamente similar aos mecanismos de ajuste existentes no FMI: os encontros anuais dos cinco líderes recebiam os holofotes da mídia e choviam as demandas de novos candidatos ao bloco que prometia ultrapassar o PIB do G7 antes da primeira metade do século. Depois disso, a dinâmica econômica do grupo se enfraqueceu.

O curioso é que nessa primeira fase, a Rússia ainda fazia parte de um puxadinho do G7, o G8, formado na fase de transição do socialismo ao capitalismo, nos anos 1990, para facilitar a acomodação da gigantesca e nuclearmente poderosa Rússia – mesmo depois da implosão e fragmentação do império soviético – às novas regras do velho e duro capitalismo. Não apenas isso, como deferência política especial a um grande, mas esfarrapado, “parceiro” da primeira Guerra Fria: na cúpula do G7 em Kananaskis, no Canada, em 2002, a Rússia foi reconhecida como “economia de mercado”, muito antes dela ser aceita no Gatt-OMC, ou sequer ser considerada apta a integrar a OCDE (o que ela não fez até hoje, mesmo tendo sido aceita na OMC em 2015, muito depois da bem mais capitalista China). Mas o fato é que o G8 tinha uma conformação exclusivamente política, e de menor relevância do que a alta agenda econômica e financeira do G7, que continuava se reunindo com os ministros de finanças das sete grandes economias de mercado, sem a contraparte russa.

Essa distinção diminutiva do G8 parecia incomodar o novo líder russo, Vladimir Putin (designado por Ieltsin para sucedê-lo desde 1999), tanto que, num pronunciamento à nação, no início de 2005, ele já declarava que o colapso da União Soviética tinha sido “a maior catástrofe geopolítica do século” e “uma tragédia para os russos”. Essa declaração foi feita quase às vésperas das comemorações do 60. aniversário da vitória final da finada URSS na Segunda Guerra Mundial, oficialmente chamada de “Grande Guerra Patriótica”. Que ela possa ter sido uma “tragédia para os russos” é compreensível, pois que alguns milhões deles ficaram além das fronteiras da nova República Federal da Rússia, que também passou a enfrentar revoltas separatistas, como na Chechênia, selvagem reprimida. Mas, se houve alguma “catástrofe”, ela foi certamente extremamente benéfica para milhões de outros europeus, e muitos habitantes das antigas satrapias da Ásia central, que passaram a dirigir os seus próprios destinos, não sem seguidas interferências do urso russo, sempre temido.

Dois anos depois, dirigindo-se diretamente aos países ocidentais na conferência sobre segurança de Munique, em fevereiro de 2007, Putin alertava duramente os países ocidentais com respeito às preocupações de segurança de seu país, e já fazia referência ao BRIC, então em formação, da seguinte forma: 

O PIB combinado, em paridade de poder de compra, de países como Índia e China já é maior do que o dos Estados Unidos. Um cálculo similar com o PIB dos países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – ultrapassa o PIB total da UE. E, segundo os especialistas, esse diferencial só vai crescer no futuro. (Discurso e debate de Putinna Conferência de Munique sobre Política de Segurança, 10/02/2007; disponível: http://www.en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034).

 

O debate que se seguiu a esse discurso franco e contundente de Putin, já assumindo os ares de um novo czar, foi extremamente revelador do espírito com que ele contemplou o ingresso de diversos países vizinhos, ex-integrantes do império soviético, às estruturas políticas e militares da Otan, chegando praticamente às portas de São Petersburgo: a Estônia e a Letônia, rapidamente aceitas, com a Lituânia e vários outros da Europa central e oriental, na organização do tratado do Atlântico Norte. Esse processo continuou moderadamente até que a tentativa da Georgia de aderir à Otan, em 2008, despertou a violenta reação da Rússia, que ocupou partes do seu território setentrional; na verdade, essa iniciativa se devia não à Otan, mas a um referendo realizado em janeiro daquele ano, na Georgia, que revelou que 77% da população era favorável ao ingresso na organização de segurança coletiva. 

O caso mais complicado, obviamente, se referia ao segundo maior país da Europa, depois da própria Rússia. A Ucrânia, formalmente independente desde 1991, mas não considerada para adesão à Otan, tinha inclusive firmado com a Rússia, em 1997, um tratado de amizade, cooperação e parceria, pelo qual eram fixados o princípio de uma “parceria estratégica”, o reconhecimento da inviolabilidade das fronteiras existentes, o respeito pela integridade territorial e o compromisso mútuo de não ser usado o território de nenhuma das partes para afetar a segurança da outra. Depois da invasão da Crimeia, em 2014, poucos meses antes da cúpula do BRICS de Fortaleza, a Ucrânia declarou sua intenção de não renovar esse tratado em setembro de 2018. Mas, já imediatamente após a invasão da península, em fevereiro de 2014, os principais países do Ocidente adotaram sanções, ainda que moderadas, contra a Rússia; ela foi expulsa do G8, que voltou ao seu formato original.

Nesse tempo, e desde antes, forças russas já atuavam provocativamente nas províncias separatistas do Donbas, ameaçando, portanto, a integridade territorial da Ucrânia. O Brasil, teoricamente conhecido como possuindo uma diplomacia de estrita adesão à Carta da ONU e ao direito internacional, permaneceu estranhamente à margem do conflito, sem tomar qualquer posição sobre uma das mais graves violações ao princípio onusiano de não interferência nos assuntos internos de outros países. À época, a presidente Dilma Rousseff, não querendo dificultar a vinda de Putin para a cúpula do BRICS, evitou, deliberadamente, manifestar qualquer posicionamento oficial do Brasil sobre a flagrante ruptura de uma das cláusulas basilares das relações internacionais, inclusive inscrita no Artigo 4º da CF-1988. Mais adiante, questionada sobre a questão numa reunião do G20 na Austrália, no final de 2014, Dilma disse que não iria se manifestar sobre um “assunto interno” da Ucrânia, como se a invasão de seu território por uma potência estrangeira pudesse ser assim classificada. A Rússia ficou, obviamente, satisfeita com essa estranha neutralidade da parte do Brasil.

A mesma postura, já no governo Bolsonaro, foi adotada em fevereiro de 2022, quando da invasão maciça deslanchada por forças russas a partir da sua fronteira com a Ucrânia, mas também a partir da vizinha Belarus, causando a mais dramática ruptura na paz e na segurança internacionais desde o término da Segunda Guerra Mundial, superando mesmo os conflitos na ex-Iugoslávia, uma federação de povos e religiões diversas, envolvidos em guerras civis. Ainda que condenando formalmente, mas não nominalmente, a Rússia pela invasão, o Brasil de Bolsonaro evitou cuidadosamente responsabilizar diretamente a Rússia pela inaceitável violação dos principais artigos da Carta da ONU. Pouco tempo antes do início da guerra de agressão – já anunciada muitas semanas antes pelo presidente americano Joe Biden – o presidente brasileiro, contra recomendações contrárias insistentes da diplomacia profissional, fez questão de visitar Putin e, na sua presença, declarar-se “solidário” à Rússia. No retorno ao Brasil, declarou que tinha afastado o perigo da guerra: uma semana depois teve início a maior operação de guerra desde os grandes combates da Segunda Guerra, eufemisticamente apelidada por Putin de “operação militar especial”. 

A despeito de formalmente seguir a maioria dos membros da ONU, no CSNU, na AGNU e no Conselho de Direitos Humanos, nas resoluções que denunciaram a Rússia por violar dispositivos da Carta, o Brasil evitou acusar diretamente o país agressor: falou em favor de uma “solução pacífica das controvérsias”; recomendou a “cessação de hostilidades” entre as partes, como se estas fossem recíprocas; considerou que se deveria contemplar as “preocupações de segurança das partes”, como se, mais uma vez, estas fossem equivalentes; sobretudo, opôs-se à adoção de sanções – sob a escusa de que elas seriam “unilaterais”, como se o direito de veto estivesse sendo utilizado legitimamente, ou alegando que sanções não contribuiriam para uma “solução ao conflito”; também opôs-se ao fornecimento de armas e outros meios de defesa ao país atacado, para não “provocar maior número de vítimas”, como se a Ucrânia devesse se render ao agressor mais poderoso. Estas foram, basicamente, as posições adotadas pela diplomacia sob o comando de Bolsonaro desde o início do conflito; mas cabe registrar que elas não mudaram fundamentalmente, ou em nada, no governo Lula.

Ao contrário, o candidato Lula chegou a demonstrar uma postura ainda pior, ao acatar velhas e conhecidas posições da maioria da esquerda antiamericana do seu partido, no sentido de proclamar a culpa da Otan no conflito, assim como, de maneira ainda mais inaceitável, a responsabilidade pessoal do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky pela deflagração da guerra. Eleito presidente, ele evitou de tomar posição de maneira explícita sobre essas questões, mas começou a agitar a ideia de um “clube da paz”, que seria proposto por ele ao assumir a presidência. Também reincidiu na esquisitice folclórica ao afirmar uma “sabedoria” de senso comum: “quando um não quer, dois não brigam”. A mesma arenga foi repetida, quando já presidente, ao receber a visita em Brasília do chanceler alemão Olaf Scholz, numa frase que deve ter sido acolhida com estranheza ao redor do mundo. A proposta do “clube da paz” mostrou-se naturalmente natimorta, antes mesmo de sua visita ao presidente Joe Biden. Contudo, o Brasil de Lula continuou opondo-se, como no governo anterior de Bolsonaro, à adoção de sanções ou ao fornecimento de equipamentos bélicos à Ucrânia, na justificativa canhestra que tampouco o fazia em direção da Rússia (como se esta tivesse pedido, como fez, ao contrário, a Ucrânia, recebendo uma negativa de Bolsonaro, mantida sob Lula).

Nessas condições, o que pode pretender Lavrov em sua visita ao Brasil, depois de já ter visitado a África do Sul e de ter combinado com a presidência do país alguns temas da agenda do BRICS em sua próxima cúpula, e que chegou até a incluir uma fantástica moeda comum do bloco para os seus intercâmbios comerciais? Certamente vai querer a continuidade da política de “neutralidade” ou de “imparcialidade” do Brasil, no tocante à guerra de agressão que seu país leva adiante de forma criminosa na Ucrânia. O chanceler russo já havia saudado uma inexistente proposta de paz do Brasil para a “solução” do conflito (que nunca chegou a ser apresentada), bem como os 12 pontos apresentados pela China como base para uma discussão a respeito, plano já considerado inconsistente pelos países ocidentais. 

Ambas as iniciativas pecam pela absoluta falta de exigência da retirada das tropas russas do território ucraniano, sendo que uma resolução adotada na AGNU – portanto, nada mais do que simbólica – requerendo essa mesma premissa, recebeu um pequeno adendo do Brasil pedindo a “cessação de hostilidades”, o que representaria, de fato, o virtual congelamento da ocupação ilegal conduzida pelas tropas russas em 20% do território ucraniano. Não se sabe se os diplomatas brasileiros que apresentaram esse acréscimo coraram de vergonha pela contradição explícita da demanda em relação ao teor da resolução.

Existe a dúvida se Putin comparecerá à cúpula do BRICS na África do Sul, pois existe uma ordem de detenção do presidente russo por “crimes de guerra”, feita pelo Tribunal Penal Internacional, de cujo Estatuto de Roma o país africano é membro, o que o obrigaria a deter o dirigente russo e enviá-lo à Haia. Não parece haver esse risco, como não ocorreu quando o antigo ditador sudanês Omar al-Bashir ali compareceu numa reunião africana de cúpula. Mas, certamente, seria um enorme constrangimento pelo menos para o Brasil, para a África do Sul, e, talvez, para a Índia (embora esta não seja parte do TPI). Diplomatas brasileiros ouvidos em off pela imprensa minimizaram a importância do pedido de detenção de Putin pelo TPI, o que pode ser um reconhecimento realista quanto às limitações do TPI (e da CIJ, que não possuem os “dentes” do CSNU), mas também já pode significar uma adesão submissa à presumida postura do presidente Lula de evitar causar embaraços ao grande aliado original na formação do BRICS, uma das iniciativas das quais parecer orgulhar-se o presidente brasileiro, ao lado do IBAS (bloco político integrando a Índia, o Brasil e a África do Sul) e da Unasul. 

Tal postura parece ser exatamente o que Putin gostaria de ter da parte de Lula: uma “neutralidade” que, no plano objetivo, é inteiramente favorável à Rússia. Vai conseguir? Muito provavelmente, pois que o Brasil parece aderir, ainda que discretamente ou não assumidamente, ao tal de “Não Alinhamento Ativo”, inventado por alguns partidários de um “desalinhamento passivo e inativo” em relação à mais grave questão afetando a paz e a segurança internacionais desde décadas. Tal postura, supostamente identificada a um fantasmagórico “Sul Global” – que se considera ser neutro ou indiferente em face dessa cruel guerra de agressão –, reproduz, em diferentes circunstâncias e em outra dimensão, a falácia do pacifismo dos anos 1930, ou seja, a inação de importantes membros da comunidade internacional em resposta ao ativismo dos expansionistas, o que levou quase toda o planeta ao maior desastre humanitário e civilizatório de toda a história humana. 

Seria uma outra maneira, não confessada, de limitar essa cruel guerra de agressão ao contexto exclusivamente europeu, como se a violação da Carta da ONU e das normas mais elementares do Direito Internacional, e como se as transgressões dos tratados humanitários e das próprias leis da guerra fossem um assunto exclusivamente europeu, não universal. A diplomacia brasileira enfrenta aqui o seu mais relevante desafio das últimas décadas, talvez desde sempre: permanecer nessa “neutralidade” hipócrita, de indiferença, que só serve ao agressor, sob risco de negar seus mais solenes compromissos com o Estado de Direito no plano internacional, como já haviam peremptoriamente defendido o Barão do Rio Branco e o delegado Rui Barbosa na segunda conferência da paz da Haia, em 1907. Cem anos depois da morte do grande jurisconsulto baiano, aliás convidado para integrar a Corte Internacional de Justiça em 1923, a abstenção nessa causa representaria mais uma derrota do grande civilista e campeão da Justiça no plano internacional, em sua luta por uma verdadeira postura dos “neutros” em caso de crimes de guerra. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4344: 25 março 2023, 6 p.

 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

A paz impossível de Putin: só depois de destruir a Ucrânia (O Globo, com agências internacionais)

 Rússia só falará de paz quando Ucrânia estiver exaurida de soldados, equipamentos e munição, diz Putin

Presidente russo disse que envio de armamentos ocidentais só vai prolongar a guerra e culpou Kiev por ausência de negociações de paz

O Globo, com agências internacionais — Vladivostok, Rússia

12/09/2023 14h43 


Em uma série de raras declarações sobre a guerra na Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, expôs brevemente seus pensamentos sobre o fim do conflito. De acordo com o líder russo, apenas quando Kiev estiver exaurida de soldados, equipamentos e munição, será possível um cessar-fogo duradouro.

Ao contrário de seu rival ucraniano, Volodymyr Zelensky, Putin não fala publicamente sobre os detalhes da guerra no Leste Europeu com frequência. As impressões russas, sobretudo do Kremlin, costumam ser comunicadas por porta-vozes e interlocutores. No entanto, em meio a um Fórum Econômico sediado em Vladivostok e recebendo a visita do líder norte-coreano, Kim Jong-un, que atraiu a atenção do mundo, Putin comentou em primeira mão vários detalhes da guerra.

Putin estimou que a Ucrânia já havia perdido cerca de 71 mil soldados durante a atual contraofensiva que avança lentamente no sul e no nordeste do país, afirmando que, não fosse em caso de exaustão, Kiev utilizaria qualquer cessar-fogo russo para reorganizar suas tropas e planejar novos ataques. Para o presidente russo, apenas quando Kiev parar com sua "proibição autoimposta" à negociação, conversas sobre paz poderão tomar lugar.

— Então nós veremos — disse Putin, em frase registrada pela agência britânica Reuters.

Em paralelo, o líder russo criticou as remessas de ajuda bélica e militar enviadas pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), sobretudo pelos EUA, a Kiev. Referindo-se diretamente às bombas de fragmentação já enviadas por Washington e aos caças F-16, de fabricação americana, que os aliados se preparam para mandar para a Ucrânia, ele disse que elas apenas prolongariam o conflito, dificultando a resolução da guerra.

— Vão entregar caças F-16. Vai mudar algo? Não acredito. Isso apenas prolongará o conflito — disse Putin. — Outra coisa é preocupante: já não há limites. Não faz muito tempo, o governo americano considerava o uso de bombas de fragmentação um crime de guerra. E afirmou isto de maneira pública.

Mil alistamentos por dia

Mais raro do que os comentários gerais sobre a guerra e as críticas ao Ocidente, Putin comentou também sobre os esforços russos para manter o volume de tropas em ação no país vizinho.

O presidente russo estimou que cerca de 500 mil pessoas se alistaram no Exército russo desde que a operação na Ucrânia foi lançada, incluindo os 300 mil anunciados publicamente pelo Kremlin no ano passado. De lá para cá, uma média de 1 mil a 1,5 mil pessoas teria se alistado por dia, segundo Putin.

 – Fizemos uma mobilização parcial, e 300 mil pessoas se alistaram. E, nos últimos seis ou sete meses, 270 mil pessoas assinaram voluntariamente contratos nas Forças Armadas e em unidades de voluntários — detalhou.

A Rússia nunca revelou quantos homens participaram da operação inicial da ofensiva na Ucrânia em fevereiro de 2022, mas fontes ocidentais estimam o número em entre 150 mil e 190 mil. Nenhum lado do conflito revela suas baixas, mas, segundo fontes ocidentais, são consideráveis.

 

 

 

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Ukraine genocide by Russian troops in Mariupol - March 2022

 "Russia broke their lives forever."

Matter from March 2022


In March 2022, I interviewed four Ukrainians who'd managed to escape Russia's massacre of Mariupol. 

Some of their words are below. 


Stas, 29: 


"Relatives, acquaintances, and neighbors — these people are buried in their yards and in mass graves. Some have to be left just on the street. They have remained lying outside in common areas for the entire time of the war."


"We wanted to bury our friend, but the hospitals wouldn’t accept any bodies. The morgues were overflowing, the bodies of people were lying in the street or in supermarket baskets. We wanted the best for our friend. Therefore, we were able to leave his body in one of the pits at a service station and covered him with sand. It was too dangerous to go to the burial place outside of the city."


"The Russians do not spare anyone. They shoot at schools, maternity hospitals, universities. They use delayed-action bombs on ordinary residential buildings to reach the basements where people are hiding. They do not follow any rules, neither military nor moral. They know exactly where they are shooting, and what they are doing."


"This is the genocide of the Ukrainian people. We will never forgive or forget what Russia has done."


Karina, 28: 


"Bodies were everywhere. Some people managed to bury their neighbors under explosions, some simply sought shelter from the frequent airstrikes. It all started with artillery, Grad rocket attacks — after that airstrikes, which are repeated every two to three minutes. And street fights were added."


"This is the genocide of the Ukrainian people."


Tymur, 37: 


"What the Russians call a 'special operation' is a terrible war in Ukraine and Russia is the aggressor and initiator of hostilities [...] they themselves drop bombs on Ukrainian maternity hospitals, schools, kindergartens, and hospitals — on ordinary civilians."


"We decided that we can no longer stay — this is direct death. We decided to try to get out. We made it. But hundreds of thousands of Mariupol residents remained there, under the rubble, under incessant airstrikes, hungry and frozen."


Diana, 28:


"People in Mariupol are now dying not only from airstrikes, but also from hunger and thirst. It used to be possible to draw water from wells, but they were also bombed. Those wells that remained intact are now outside the access zone of residents. Because airstrikes happen every two to four minutes, people are simply too afraid to look for water, which is so needed right now."


"The corpses are just lying on the streets. There is no possibility for their burial, since you can be killed, too, right beside the bodies."


"Now it is difficult to count the victims and those who died under the rubble. Since there is no way to clear this rubble, people are buried alive."


"Those people who managed to evacuate from Mariupol are difficult to talk to now. People stutter, they have shell shock and tremors. Russia broke their lives forever."


Full story: 

https://coffeeordie.com/mariupol-survivors-stories