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segunda-feira, 7 de março de 2022

Uma renúncia infame: o abandono do Direito Internacional pelo Brasil - Paulo Roberto de Almeida (International Law Agendas)

Meu mais recente artigo, publicado no boletim eletrônico do ramo brasileiro da International Law Association (link: http://ila-brasil.org.br/blog/uma-renuncia-infame/).

Paulo Roberto de Almeida

Uma renúncia infame: o abandono 

do Direito Internacional pelo Brasil

Quando se fala em Direito Internacional, a primeira conexão a ser feita seria aquela que vincula o Itamaraty a essa outra ferramenta das relações internacionais, o que, entretanto, seria parcialmente inexato. Não foi o Itamaraty que abandonou o Direito Internacional, ato que eu chamei de renúncia infame, até uma acusação bastante grave quando se pensa que a ordem internacional do sistema onusiano, sobretudo do pós-Guerra Fria, está efetivamente organizada em função da adesão comum dos Estados membros da ONU à Carta fundadora e aos demais rituais que são observados em todos os seus órgãos e agências, ou seja, a moderna diplomacia multilateral. Mas, tampouco, seria justo acusar o Brasil, como Estado ou como nação, por esse ato infame em conexão com a agressão militar da Rússia contra um Estado soberano, o que nos desqualificaria como país membro dessa ordem que ajudamos a fundar nos estertores da Segunda Guerra Mundial, inclusive nos campos de batalha da Itália, que aliás apressou nosso retorno à democracia depois de oito anos da ditadura do Estado Novo.

Desde 1945, a despeito de altos e baixos, a diplomacia brasileira exibiu, manteve e desenvolveu uma notável adesão às bases conceituais e práticas de um dos princípios centrais do multilateralismo contemporâneo, que é a igualdade soberana dos Estados. Esse princípio foi expresso de maneira clara, em 1907, por Rui Barbosa, chefe da delegação brasileira à segunda conferência internacional da paz, realizada na Haia: ele defendeu praticamente sozinho esse eixo fundamental da ordem internacional, contra a vontade das grandes potências, que pretendiam criar, ou preservar, um sistema oligárquico de solução de controvérsias, no qual elas manteriam juízes permanentes, ao passo que as potências menores teriam apenas direito a cadeiras temporárias e rotativas. Esse princípio foi desenvolvido e defendido por todos os diplomatas brasileiros ao longo de décadas, notadamente por Oswaldo Aranha, no curso da Segunda Guerra Mundial, e, entre outras ocasiões, por San Tiago Dantas, na conferência interamericana de 1962 que decidiu, contra o voto do Brasil, pela suspensão de Cuba do sistema interamericano.

O abandono pelo Brasil de sua adesão inviolável aos grandes princípios do Direito Internacional foi extremamente raro, tão raro que as poucas ocasiões podem ser identificadas precisamente. Ocorreu, por exemplo, logo no primeiro ano da ditadura militar, quando apoiamos os Estados Unidos em sua intervenção na guerra civil da República Dominicana, em 1965. Ainda assim, nossa diplomacia, contra a pressa dos militares em “pagar” o apoio recebido quando do golpe de 1964, exigiu que essa intervenção tivesse pelo menos uma cobertura multilateral, em função do que se aprovou uma resolução da OEA criando uma Força Interamericana de Paz, ao abrigo da qual nossos militares seguiram para a ilha do Caribe. Depois, durante a ditadura, e confirmando as paranoias da Guerra Fria, exibimos uma espécie de “diplomacia blindada” – apenas parcialmente conduzida pelo Itamaraty –, através da qual manobras foram feitas para sufocar ou claramente derrubar governos esquerdistas ou ameaças guerrilheiras na região. Independentemente da famosa Operação Condor – um esquema de informação e de coordenação entre órgãos repressivos da América do Sul –, militares e diplomatas brasileiros estiveram ativamente envolvidos em manobras golpistas ou diretamente em golpes de Estado em países do Cone Sul, notadamente na Bolívia e no Chile.

O retorno à redemocratização eliminou por completo esse tipo de atitude que os vizinhos chamavam de “subimperialista”, mas também levou a um maior envolvimento, pelo menos pelo lado da integração, com todos os países da América do Sul, conceito que, em substituição ao de América Latina, passou a ser privilegiado pela diplomacia brasileira a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso (que promoveu uma reunião de todos os chefes de Estado e de governo em Brasília, em 2000, quando se criou a Iniciativa de integração Regional Sul-Americana, destinada a nos integrar fisicamente com todos os nossos vizinhos). Os governos seguintes, dominados pelo PT e pela figura de Lula, ainda que recusando uma suposta “herança maldita” da administração anterior, se apropriou das várias políticas internas e externas que estavam sendo conduzidas, as ampliou, sob novos rótulos, mas introduziu um elemento indesejável em nossa política externa, uma característica que já tinha sido denunciada pelo Barão do Rio Branco desde 1902, e que sempre recusamos ao longo de todo o século: a “diplomacia partidária”, que no caso do PT significou uma aliança, parcialmente administrada pelo Foro de São Paulo, com todas as forças de esquerdas da América Latina, sob o escrutínio cerrado e a direção firme dos comunistas cubanos.

Pois foi nesse contexto que ocorreu uma grave violação do Direito Internacional, aceita de forma submissa, e até colaborativa, pelo governo petista, quando da nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia de Morales, um aliado do PT. Esse ato, que poderia ter sido conduzido perfeitamente em consonância com normas do Direito Internacional e até com pleno respeito a dispositivos do tratado bilateral Brasil-Bolívia regulando a cooperação nessa área, foi feito com violência – invasão de instalações da Petrobras no país vizinho – e rasgando esse tratado, assim como um acordo entre a empresa brasileira de petróleo e o governo boliviano. Tal ato violador das boas normas do Direito Internacional ocorreu no dia 1º de maio de 2006; pois no dia seguinte, uma nota do governo petista – felizmente não do Itamaraty – não apenas não repudiou a violação da legalidade nesse caso, como a apoiou explicitamente, trazendo sérios prejuízos à Petrobras (que de resto foi também impedida, pelo governo brasileiro, de recorrer aos dispositivos de garantia de investimentos previstos num acordo de proteção de investimentos estrangeiros então acatados, depois denunciados, pela Bolívia). Tratou-se, portanto, de uma renúncia infame, um abandono completo de nossa adesão aos princípios do Direito Internacional, que também estavam sendo violados, como também os da própria Constituição brasileira, no capítulo da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, em vista da contínua, recorrente, abusiva “torcida” do chefe de Estado em favor de seus amigos e aliados quando de campanhas eleitorais nos países vizinhos: Lula não apenas apoiou, politicamente, como praticamente fez campanha por alguns desses líderes, entre eles Hugo Chávez, da Venezuela, aliás violador serial da própria Constituição que vigorava após manobras por seu governo iliberal.

Ainda no terceiro governo petista, em 2014, assistiu-se a mais uma violação do Direito Internacional que ficou impune, pelo menos do ponto de vista moral, ao não se ter nenhuma nota, nenhuma denúncia, sequer um pronunciamento do governo brasileiro a respeito da invasão ilegal efetuada pelo governo de Vladimir Putin, ao sequestrar a península da Crimeia da soberania da Ucrânia, em total descumprimento de acordos efetuados quando da implosão da ex-União Soviética em 1991, seguida do surgimento de mais de uma dezena de repúblicas independentes, no lugar das antigas repúblicas federadas do finado império. Enquanto os membros da União Europeia e outros países ocidentais denunciavam a violação, e introduziam sanções contra a Rússia, o governo petista ficou silente a esse respeito. A razão aparente foi a existência do Brics, de toda forma um grupo informal, não dotado de qualquer instrumento definidor de seus princípios e objetivos de atuação, constituído justamente como uma espécie de espelho opositor ao G7 e aos países “hegemônicos” do Norte.

O governo Temer, em 2016-2018, representou um breve retorno aos princípios e valores da diplomacia brasileira, tal como defendidos historicamente pelo Itamaraty, tanto que, em acordo com os demais três membros do bloco, decidiu suspender a Venezuela do Mercosul, alegadamente porque ele não tinha conseguido honrar nenhum dos dispositivos de política comercial que decidiu aceitar quando foi nele admitida – aliás ilegalmente – em 2012. A Venezuela não foi suspensa por se tratar de uma ditadura, o que em 2017 já estava claramente configurado – uma vez que o Protocolo de Ushuaia, que regula o princípio democrático no bloco e extremamente débil, no confronto, por exemplo, com o compromisso democrático da OEA –, mas por não cumprir normas básicas de funcionamento do Mercosul. O PT conduziu uma mentirosa campanha internacional contra o governo Temer, acusando-o de “golpe”, dando início a uma fase de rebaixamento de nossa imagem no mundo, mas que ficou muito aquém da verdadeira demolição da credibilidade da diplomacia brasileira a que assistimos a partir de 2019, quando teve início o governo que, mais do que qualquer outro em toda a nossa história, violou e desrespeitou cláusulas de nossa Constituição e princípios consagrados do Direito Internacional.

Independentemente e em acréscimo a violações de ambos os instrumentos em várias ocasiões – notadamente em relação à Venezuela chavista, quando o chanceler desrespeitou tradições consagradas em nossa diplomacia desde Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha e San Tiago Dantas –, o caso da invasão da Ucrânia pela Rússia configura um grave desrespeito, pelo governo Bolsonaro, de normas basilares do Direito Internacional, sendo que o Itamaraty atuou mais pelo silêncio e omissão do que pelo desrespeito claro a princípios e normas da Carta da ONU. Para todos os efeitos, o mundo em geral, as democracias do Ocidente em particular, já não consideram como legítima expressão do Brasil palavras incoerentes do presidente com respeito a uma suposta “solidariedade” à Rússia, antes da invasão e agressão à Ucrânia, depois uma ainda mais bizarra “neutralidade” em face do conflito, finalmente substituída, pelo novo chanceler, pela noção de “imparcialidade”. Tais contorcionismos verbais não são sequer considerados pelas democracias consolidadas como representando uma postura política aceitável por parte da diplomacia brasileira. O mundo já não presta atenção a Bolsonaro, já incorporado à categoria risível dos dirigentes bizarros.

Em contrapartida, o mundo presta atenção ao que diz nosso representante nas Nações Unidas, suposto expressar a palavra e a postura oficial do Brasil no contexto das sérias discussões e tomadas de posição que são levadas a efeito no âmbito do seu Conselho de Segurança e no seio da Assembleia Geral. E o que vem dizendo esse representante ao longo da mais grave violação dos princípios do Direito Internacional e dos dispositivos da Carta da ONU desde o final da Segunda Guerra Mundial e da aprovação da Carta de San Francisco? Em nenhum momento se identificou e se qualificou o agressor, como tampouco se apontou a clara transgressão de artigos, quando não de capítulos inteiros da Carta da ONU, assim como o desrespeito mais brutal a normas consagradas do Direito Internacional, ou as condutas mais agressivas e desumanas registradas pela ofensiva guerreira, que de resto ferem as leis da guerra e até adentram no domínio dos crimes contra a humanidade. Em seu lugar, quais foram os posicionamentos mais comuns?

O que se pode ler, nas burocráticas leituras do representante na ONU, certamente instruído por Brasília, foram banalidades patéticas, do tipo “cessação de hostilidades” – como se elas fosse recíprocas e igualmente conduzidas – ou “legítimas preocupações de segurança das partes” – como se ambas estivessem em pé de igualdade nessas “preocupações”, ou então desconformidade com a “aplicação de sanções” – pois que elas complicariam a busca de uma “solução pacífica”, ou ainda a contrariedade com o fornecimento de armas defensivas à parte agredida, sob a alegação absolutamente patética de que elas agravariam o sofrimento da população, como se a parte agredida devesse ser isolada de qualquer ajuda externa, pelo simples desejo de se defender. São várias as expressões tortuosas e torturadas que confirmam o total abandono, não pelo Itamaraty ou pelo Brasil, pelo governo Bolsonaro de nossa velha e atualmente enterrada adesão ao Direito Internacional.

Trata-se de um momento de vergonha, para a nação, quando o seu governo, no seu círculo decisório mais relevante – que não compreende a diplomacia – resolve desrespeitar o Direito Internacional e cobrir com um véu de desprezo nossas mais caras tradições na área externa, os valores e princípios que foram defendidos durante décadas por estadistas que honraram a dignidade do Brasil. A renúncia infame ao Direito Internacional não foi feita pelo Brasil, nem pelo Itamaraty, mas pelo governo Bolsonaro, enxovalhando, cobrindo de opróbio a nossa diplomacia; em algum momento do futuro, estadistas terão de empreender enormes esforços para limpar as estrebarias da presidência desse tipo de degradação tão vexaminosa.

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