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quarta-feira, 30 de março de 2022

O candidato do PT e a loucura agrícola europeia (2011) - Paulo Roberto de Almeida

 815. “O candidato do PT e a loucura agrícola europeia”, Washington, 5 outubro 2001, 4 p. Resposta a certos argumentos do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva justificando e defendendo a política agrícola europeia. Circulado de forma restrita, reelaborado em 5/10/2001 e publicado em O Estado de São Paulo, 9/10/01. Post-Scriptum em 13/10/2001, no seguimento de novas declarações do candidato do PT em defesa de suas posições em matéria de política agrícola. Relação de Publicados n. 288.


O candidato do PT e a loucura agrícola européia

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

O candidato do PT defendeu, em 4 de outubro, o o acertado da política agrícola europeia (PAC). A postura é equivocada, revelando desconhecimento da PAC. Segundo Lula:

1) “Do ponto de vista da realidade europeia, eles estão corretos.”

Ao contrário, eles estão errados, mesmo do ponto de vista europeu. Seria correto apenas se os europeus vivessem em circuito fechado, sem qualquer tipo de intercâmbio com o mundo, o que não é a realidade. O candidato Lula parece ignorar que os consumidores europeus poderiam ter um orçamento alimentar reduzido à metade se não houvesse a PAC e se o comércio agrícola fosse totalmente liberalizado.

 

2) “São países que passaram por guerras e mais guerras,..”

A última guerra que representou ruptura de abastecimento na Europa terminou em 1945 (a anterior em 1918). No pós-Segunda Guerra o abastecimento foi garantido por generosas doações alimentares dos EUA no quadro do Plano Marshall. Ou seja, há cinqüenta anos, ou duas gerações completas, que não há nenhuma ameaças ao abastecimento na Europa, e não se tem noticia de algum europeu que tenha morrido de fome nesse período.


3) Os europeus “não vêem a necessidade de tratar a comida como uma simples mercadoria,...”

Se isso fosse verdade, a comida deveria ter sido objeto de disposições especiais no Acordo Geral de 1947, o GATT. Ora, não existem tais dispositivos restritivos e os alimentos são considerados bens como quaisquer outros. Mediante expedientes abusivos, europeus e americanos lograram extorquir uma exceção “temporária” ao comércio agrícola, o que se prolonga há 50 anos. Hoje nada justifica a continuidade dessa situação, que penaliza os países mais pobres, justamente aqueles que o candidato Lula deveria defender e que são dependentes da agricultura. A imensa maioria dos agricultores pobres dos países em desenvolvimento deseja apenas que seus produtos agrícolas sejam tratados como simples mercadorias.


4) Os europeus “vêm (...) a comida (...) como uma questão de soberania nacional.”

Se abobrinha e cenoura são produtos que integram os cálculos de soberania nacional, então temos um problema de definição do que seja soberania, sobretudo em países altamente industrializados, não dependentes da produção agrícola. Como fazem o Vaticano, Andorra, Mônaco, ou países situados em zonas árticas ou tórridas, que não podem ter autonomia alimentar e dependem do comércio internacional para o essencial de seu abastecimento? Eles são menos soberanos por isso? Se esses países, ou outros maiores, como Bélgica ou Países Baixos, deixassem de produzir alimentos, estariam condenados à fome e à privação absolutas? Ou poderiam abastecer-se com seus vizinhos ou em países distantes? A segunda hipótese é a mais correta. A afirmação do candidato Lula revela uma incompreensão quanto às relações entre auto-produção e soberania nacional.


5) “Nós precisamos primeiro cumprir com a nossa parte para depois exigir alguma coisa.”

O que significa o Brasil cumprir a sua parte? Ficar calado e aceitar a loucura agrícola européia? Dizer aos nossos agricultores que tenham um pouco mais de paciência com os “pobres” agricultores europeus, que vivem traumatizados com uma suposta ameaça de desabastecimento alimentar motivada por não se sabe qual guerra possível? O que teríamos de exigir? Alguma concessão absurda dos europeus? Ou apenas um comércio leal, baseado em regras de reciprocidade, segundo as quais concordamos em abrir nossos mercados ao camembert e ao foie-gras francês, em troca da abertura dos mercados europeus de grãos e de carnes aos nossos produtos?


6) “Temos que ter uma boa política agrícola e investimento em tecnologia. É isso que vai nos dar competitividade”.

O que significa uma “boa” política agrícola? Uma subsidiada como a européia, a ponto de apresentar distorções e aberrações que fazem com que uma vaca européia ostente uma renda per capita superior à do brasileiro comum? Uma política que resulta em fraudes repetidas, em tomates “milionários” e, já que o pagamento da PAC é feito por cabeça de animal, em porcos e vacas com conta em banco? Seria isso de que necessita o Brasil? Nesse caso estaríamos dando dinheiro a uma fração de nossos concidadãos, retirando de outros milhões os investimentos necessários em saúde pública, educação, estradas pavimentadas, segurança pública etc. Qualquer dinheiro que se conceder a uma categoria de produtores teria de sair do mesmo orçamento que é considerado insuficiente, pelo próprio candidato Lula, para os indispensáveis investimentos sociais que ele reivindica com razão. A competitividade da agricultura brasileira não deixa nada a desejar à da Europa ou dos Estados Unidos, com exceção de poucos setores de notória especialização e de alta intensidade tecnológica. Mas, é justamente por sermos competitivos que estamos sendo penalizados no acesso ao mercado europeu de alimentos e insumos processados. 

O que faz um candidato como Lula, normalmente identificado com as causas do Terceiro Mundo e dos pobres em geral, defender um absurdo do tamanho da PAC? Que virtudes ele encontrou nessa imensa reserva de mercado que não apenas cerceia nosso direito de concorrer no próprio mercado europeu como também compete deslealmente, à custa de maciços subsídios, com nossos produtos em terceiros mercados? 

 

Doutor em Ciências Sociais, autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo: Editora Senac, 2001)

 

Publicado:

http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2001/10/09/pol018.html

Terça-feira, 9 de outubro de 2001 

O candidato do PT e a loucura agrícola européia 

 

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA 

O candidato do PT defendeu, em 4 de outubro, o acertado da política agrícola européia (PAC). A postura é equivocada, revelando desconhecimento da PAC. Segundo Lula: 

1) "Do ponto de vista da realidade européia, eles estão corretos." 

Ao contrário, eles estão errados, mesmo do ponto de vista europeu. Seria correto apenas se os europeus vivessem em circuito fechado, sem qualquer tipo de intercâmbio com o mundo, o que não é a realidade. O candidato Lula parece ignorar que os consumidores europeus poderiam ter um orçamento alimentar reduzido à metade se não houvesse a PAC e se o comércio agrícola fosse totalmente liberalizado. 

2) "São países que passaram por guerras e mais guerras..." 

A última guerra que representou ruptura de abastecimento na Europa terminou em 1945 (a anterior em 1918). No pós-Segunda Guerra o abastecimento foi garantido por generosas doações alimentares dos EUA no quadro do Plano Marshall. Ou seja, há 50 anos, ou duas gerações completas, que não há nenhuma ameaça ao abastecimento na Europa, e não se tem notícia de algum europeu que tenha morrido de fome nesse período. 

3) Os europeus "não vêem a necessidade de tratar a comida como uma simples mercadoria..." 

Se isso fosse verdade, a comida deveria ter sido objeto de disposições especiais no Acordo Geral de 1947, o GATT. Ora, não existem tais dispositivos restritos e os alimentos são considerados bens como quaisquer outros. Mediante expedientes abusivos, europeus e americanos lograram extorquir uma exceção "temporária" ao comércio agrícola, o que se prolonga há 50 anos. Hoje nada justifica a continuidade dessa situação, que penaliza os países mais pobres, justamente aqueles que o candidato Lula deveria defender e que são dependentes de agricultura. A imensa maioria dos agricultores pobres dos países em desenvolvimento deseja apenas que seus produtos agrícolas sejam tratados como simples mercadorias. 

4) Os europeus "vêem (...) a comida (...) como uma questão de soberania nacional." 

Se a abobrinha e cenoura são produtos que integram os cálculos de soberania nacional, então temos um problema de definição do que seja soberania, sobretudo em países altamente industrializados, não dependentes da produção agrícola. Como fazem o Vaticano, Andorra, Mônaco, ou países situados em zonas árticas ou tórridas, que não podem ter autonomia alimentar e dependem do comércio internacional para o essencial de seu abastecimento? Eles são menos soberanos por isso? Se esses países, ou outros maiores, como Bélgica ou Países Baixos, deixassem de produzir alimentos, estariam condenados à fome e à privação absolutas? Ou poderiam abastecer-se com seus vizinhos ou em países distantes? A segunda hipótese é a mais correta. A afirmação do candidato Lula revela uma incompreensão quanto às relações entre auto-produção e soberania nacional. 

5) "Nós precisamos primeiro cumprir com a nossa parte para depois exigir alguma coisa." 

O que significa o Brasil cumprir a sua parte? Ficar calado e aceitar a loucura agrícola européia? Dizer aos nossos agricultores que tenham um pouco mais de paciência com os "pobres" agricultores europeus, que vivem traumatizados com uma suposta ameaça de desabastecimento alimentar motivada por não se sabe qual guerra possível? O que teríamos de exigir? Alguma concessão absurda dos europeus? Ou apenas um comércio leal, baseado em regras de reciprocidade, segundo as quais concordamos em abrir nossos mercados ao camembert e ao foie-gras francês, em troca da abertura dos mercados europeus de grãos e de carnes ao nossos produtos? 

6) "Temos que ter uma boa política agrícola e investimento em tecnologia. É isso que vai nos dar competitividade." 

O que significa uma "boa" política agrícola? Uma subsidiada como a européia, a ponto de apresentar distorções e aberrações que fazem com que uma vaca européia ostente uma renda per capita superior à do brasileiro comum? Uma política que resulta em fraudes repetidas, em tomates "milionários" e, já que o pagamento da PAC é feito por cabeça de animal, em porcos e vacas com conta em banco? Seria isso de que necessita o Brasil? Nesse caso estaríamos dando dinheiro a uma fração de nossos concidadãos, retirando de outros milhões os investimentos necessários em saúde pública, educação, estradas pavimentadas, segurança pública, etc. Qualquer dinheiro que se conceder a uma categoria de produtores teria de sair do mesmo orçamento que é considerado insuficiente, pelo próprio candidato Lula, para os indispensáveis investimentos sociais que ele reivindica com razão. A competitividade da agricultura brasileira não deixa nada a desejar à da Europa ou dos Estados Unidos, com exceção de poucos setores de notória especialização e de alta intensidade tecnológica. Mas, é justamente por sermos competitivos que estamos sendo penalizados no acesso ao mercado europeu de alimentos e insumos processados. 

O que faz um candidato como Lula, normalmente identificado com as causas do Terceiro Mundo e dos pobres em geral, defender um absurdo do tamanho da PAC? 

Que virtudes ele encontrou nessa imensa reserva de mercado que não apenas cerceia nosso direito de concorrer no próprio mercado europeu como também compete deslealmente, à custa de maciços subsídios, com nossos produtos em terceiros mercados? 

 

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo, Editora Senac, 2001).

 

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