Marchas e manifestações ao longo da história brasileira
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
Hartford, 23 de janeiro de 2014
Ironias à parte – mas totalmente condizente com a contínua erosão registrada nos valores e princípios que guiam a nacionalidade, desde que ela começou a se afirmar de modo relativamente independente dos padrões e cânones estrangeiros, pouco menos de cem anos atrás –, parece que as grandes manifestações públicas também começaram a degenerar para algo incompatível com a grande ideia que nos fazemos da nação. Estou me referindo, obviamente, ao fato sumamente ridículo (para mim, pelo menos) de se estar atualmente discutindo, aparentemente de modo sério, o mais recente avatar de nossa decadência programada, os tais “rolezinhos” em shoppings de cidades brasileiras. Recuso-me a considerar essas manifestações de pura histeria coletiva como símbolo ou fenômeno representativo de qualquer outra coisa que não a mediocridade consumada, o atraso mental metabolizado pela era digital, com todos os incluídos-excluídos sendo apresentados como representantes sociais ou raciais de uma franja da sociedade que pretende frequentar o “mundo dos ricos”, ou pelo menos da classe média bem-posta na vida. O assunto é ridículo o suficiente para dele não tratar, mas isso me recordou (e confirmou) o quanto regredimos no pouco menos de cem anos que nos separa do primeiro aniversário da independência nacional.
O ano de 1922 ainda guardava os reflexos das campanhas civilistas de Ruy Barbosa durante toda a década anterior, quando ele ainda tinha disputado, por duas vezes, a presidência da República, no que parece ter sido a primeira mobilização consciente da classe média contra a corrupção na política e o péssimo funcionamento do Estado no Brasil. Cem anos depois parece que não avançamos nada, não é mesmo? Ou talvez tenhamos até piorado nesses dois quesitos. 1922 é o ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, quando a chamada intelligentsia resolver criar tipos e padrões brasileiros para expressar nossos problemas e percepções, recusando o molde engessado que nos vinha da Europa (os Estados Unidos ainda não estavam na moda, como logo estariam, através principalmente do cinema de Hollywood). Sobrou algo desse espírito?
1922 também é o ano da revolta dos 18 do Forte, já contra a corrupção na política, e que logo iria desembocar em outras manifestações de jovens tenentes pelo Brasil afora, para desdobrar-se, pouco depois, na primeira aventura militar peripatética da nossa história, a coluna Prestes, a grande marcha pelo interior do Brasil por parte de jovens idealistas que queriam reforma a política e a sociedade. Não, a coluna Prestes não foi uma antecessora da Longa Marcha de Mao Tsé-tung, e não tinha nada de socialista ou comunista, como uma releitura enviesada pretendeu interpretá-la, segundo cânones stalinistas de anos posteriores. Foi uma manifestação de liberalismo político, que iria desembocar na revolução de 1930, justamente, que os marxistas pretendem representar como uma “revolução burguesa”, no que eles continuam a estar errados.
Em todo caso, essas primeiras marchas e manifestações de massa tinham um sentido claro: contra o atraso, contra a corrupção das “elites carcomidas”, contra as eleições a “bico de pena”, contra o voto falso, sob o comando do coronel. Não, a revolta comunista de 1935, mais conhecido como Intentona, não foi uma manifestação de massa e tampouco uma marcha, mas apenas uma tentativa de putsch, mal preparado, mal guiado pelos conselheiros soviéticos, e totalmente mal implementado por Prestes e seu punhado de abnegados militares comunistas (nem todos conscientes sobre o que era, realmente, a União Soviética, por trás da propaganda do “mundo novo”, promovido até por intelectuais inteligentes como Caio Prado Júnior, ainda vários anos depois).
As grandes marchas e manifestações que tivemos, primeiro tímidas, pela entrada do Brasil na guerra e depois pela vitória das democracias contra o nazifascismo, depois mais entusiásticas, pela defesa dos recursos nacionais, entre eles o petróleo, considerado (certa ou erradamente) como a salvação da pátria. Não era, mas sua simbologia poderosa mobilizou milhares de pessoas nas manifestações que culminaram na criação da Petrobras e na decretação do monopólio estatal no setor (seria um grande erro, mas disso só os mais lúcidos se aperceberam no momento e muitos outros mais com o correr dos anos). Tivemos também manifestações em defesa de um ex-ditador demagogo, que pretendeu sair da vida para entrar na História, manipulando uma série de símbolos que permanecem até hoje como símbolos, justamente, do atraso mental nacional: os grandes lucros dos “trustes internacionais”, a “sangria de capitais”, a “cupidez dos investidores estrangeiros”, o saque das nossas “riquezas nacionais” e, sobretudo, a defesa dos mais “humildes”, contra os poderosos, essas “elites” malvadas que impedem o progresso da nação e o bem-estar do povo simples.
A vassoura de um outro demagogo arrastou multidões, durante a campanha presidencial de 1960, para a total frustração da maioria da população no ano seguinte, ante os gestos tresloucados e as decisões incompreensíveis de um Jânio que não chegou a vinte e quatro quadros, menos de seis meses depois. Depois? Depois foram os anos conturbados de manifestações, protestos, greves e conspirações, de esquerda e de direita, para finalmente desembocar no golpe militar de 1964, que seus próprios atores pretendem chamar de revolução, para ganhar ares de legitimidade, em face de uma suposta, imaginada, ou real revolução comunista, que se dizia estar sendo preparada na surdina, pelos famosos (mas totalmente inexistentes) esquemas “sindical” e “militar” do vice-presidente trabalhista, convertido em presidente no bojo da própria crise criada pelo renunciante trapalhão de poucos anos antes. Mas, tivemos uma marcha, sim, nessa conjuntura, e uma grande, que os jornais da “direita”, os jornalões do “partido da imprensa golpista” (avant la lettre), chamaram de “marcha do milhão” (de pessoas), mais apropriadamente chamada, por seus organizadores, de “Marcha da Família, com Deus, pela Propriedade”. De fato, se acreditava nessas coisas, mas não se pode denegar a importância da marcha, pois a direita golpista jamais conseguiria colocar centenas de milhares de pessoas nas ruas se não houvesse um estado de comoção nacional contra o estado de deterioração total a que tinha chegado a chamada República de 1946, nas mãos de demagogos consumados e de incompetentes (administrativamente falando).
A próxima marcha, a dos cem mil, na então Guanabara, era contra a ditadura dos militares, e tinha, portanto, um claro sentido liberal, ainda que os esquerdistas atrás de sua organização também sonhassem com uma virada socialista, no bojo dos ensaios de guerrilha rural e dos experimentos de guerrilha urbana que estavam sendo lançados no mesmo momento. Também fui um dos participantes dessas manifestações de jovens estudantes contra a ditadura (e o capital estrangeiro, o imperialismo, o latifúndio, etc.), já que não tinha tido qualquer participação relevante em 1964, por ser muito jovem e por ainda ser um “alienado” (conforme dizíamos na época, seguindo a terminologia do jovem Marx, uma leitura frankfurteana indispensável nesses anos de Marcuse).
Parece que não deu muito certo, pois em lugar de reforçarmos a resistência pacífica contra o regime militar e clamar por democracia política, simplesmente, pretendíamos derrubar os militares na ponta do fuzil, como recomendava o mesmo Mao Tse-tung (que já tinha eliminado uns 15 ou 20 milhões pela fome, poucos anos antes, e se preparava para eliminar mais algumas dezenas de milhares de outros na sua “revolução cultural”). Fui um dos quantos que saíram do Brasil, em exílio forçado ou voluntário, já que esses anos de chumbo foram realmente pouco saudáveis para quem enveredasse por essa via da revolução armada. “Patriotas equivocados”, assim nos chamava o Partidão, que permaneceu na velha política de resistência pacífica, de frentes democráticos e de conchavos com forças oposicionistas mais moderadas, o que na verdade desprezávamos: queríamos uma bela revolução à la cubana (ou à la Mao).
Em todo caso, a próxima grande manifestação, foi a da “Marcha das Diretas”, em 1984, que não resultou nas eleições diretas, mas pelo menos colocou os militares na defensiva, ou pelo menos isolou aqueles irredentistas que pretendiam continuar no regime de exceção, contra o projeto de transição tutelada, desenhado pelos militares mais lúcidos, como Geisel e Golbery. A volta à democracia também trouxe grandes manifestações de massa, a favor da “redenção” do povo e da correção de todos os males causados pela ditadura. O “entulho autoritário” deveria ter sido enterrado pela generosa Constituição, que prometia mundos e fundos a todos e a cada um, e que em lugar de prosperidade trouxe a aceleração da inflação, a volta de velhas oligarquias políticas, enfim, um “piorão” vindo do estado mais atrasado do Brasil (parece que ainda continua assim, pois não?).
Para compensar todas as decepções e frustrações com a democracia, tivemos as próximas manifestações “de massa” contra um presidente que, pelas comprovações de corrupção provadas em CPI, parecia ter sido a maior fraude política da história do país, desembocando gloriosamente no seu afastamento e renúncia da presidência. Mas, muito dessa movimentação já tinha sido orquestrada não tanto pela “opinião pública”, mas por certo partido de oposição radical (e pela “ética na política”) que depois se revelaria tão corrupto, ou mais, que os velhos partidos dos políticos tradicionais. Em matéria de fraudes políticas, estamos sempre regredindo, como se vê. Depois disso não tivemos mais marchas, nem grandes manifestações de massa, mas apenas movimentos guiados, dirigidos e orquestrados (muitos deles pagos) pela mesma organização que pretendeu representar o povo, e que acabou recolhendo o lumpesinato e subalternos urbanos – com aqueles gramsciano atrasados mentalmente que frequentam as academias – no seu grande curral eleitoral, que reconstrói, em grande medida, o cabresto disciplinado dos velhos coronelões da política corrupta e atrasada que tínhamos na velha República.
Não coloco na linhagem das grandes manifestações de massa o leve espocar de vozes inquietas da classe média durante o breve mês de junho dos descontentamentos, pois não havia, de verdade, consciência contra o que lutar, exatamente, embora houvesse, e bem clara, uma insatisfação nítida contra tudo o que ali estava: políticos corruptos (inclusive os do poder), serviços públicos deploráveis e impostos extorsivos. Não coloco, porque o movimento começou igualmente por uma manipulação de grupelhos organizados na mesma linha dos falsos movimentos de massa orquestrados pelo partido totalitário (o mesmo que braveja, pelos seus mercenários de comunicações, contra um inexistente “partido da imprensa golpista”) e que pretendia tão somente ganhos eleitorais circunscritos, e acabou sendo temporariamente desviado dos objetivos iniciais por uma adesão inesperada, e não organizada, da verdadeira classe média descontente. Com a intromissão dos novos lumpen, blocos negros e coisas do gênero, a movimentação degenerou para a violência gratuita, e a classe média refluiu para os seus lares, onde continua a participar do, e a alimentar o atraso mental nacional pelos canais de voyeurismo televisivo altamente vulgares (mas conheço acadêmicos que também assistem a esses espetáculos verdadeiramente patéticos).
Enfim, não temos mais marchas e manifestações porque a inteligência nacional regrediu totalmente, bastando verificar projetos, discursos e entrevistas de quem nos governa, nos vários escalões e instituições das esferas políticas e administrativas. O que sobrou parece totalmente compatível com o ridículo nacional dos “rolezinhos”, um espetáculo deprimente que políticos e acadêmicos ainda têm a pretensão de interpretar em termos sociológicos. O Brasil, pelo atraso mental extraordinário de nossas elites, e pela fraude generalizada que nos é servida pelo partido totalitário, com todos os recursos do poder, não promete grandes mudanças positivas no futuro previsível. Se ouso prever qualquer coisa, é a continuidade do processo de degradação dos costumes, de degeneração da moral pública – quando um chefe de poder mobiliza um avião oficial para cuidar dos cabelos é o sinal definitivo que não temos mais nenhuma ética na cúpula do poder, nem entre os que prestam o serviço, por sinal – e de total erosão de qualquer sentido de “valores republicanos”, como cinicamente invocado por aqueles mesmos que os conspurcam a cada momento.
Das marchas dos tenentes nos anos 1920, aos “rolezinhos” ridículos de jovens da periferia na segunda década deste século, acho que o Brasil desceu várias escalas do processo civilizatório. Esse tipo de involução já foi observada em outras formidáveis decadências ao longo da história – penso na Roma dos últimos césares, por exemplo, ou na dinastia Qing da China, ou talvez, bem mais perto de nós, em certos populismos civis e militares que também confirmam esse atraso mental, sem esquecer, ainda, a não menos formidável decadência britânica antes dos anos 1980 – e o Brasil não será uma exceção entre tantas sociedades que regrediram por causa da absoluta incompetência de suas elites dirigentes (ou dominantes) e da total inconsciência da parcela mais esclarecida da população, essa mesma classe média que conduziu manifestações e marchas no passado, contra a corrupção na política e por um Brasil mais digno.
Acho que qualquer renovação do combalido espirito da nossa classe média vai demorar certo tempo para voltar aos velhos tempos da justa indignação – o que parecia ter começado a ocorrer nos distúrbios de junho de 2013, mas que logo refluiu – e de impulso moral em favor de um novo projeto de país. O fascismo corporativo que se instalou nos corações e mentes da maioria da população – a partir dos mandarins que assessoram os círculos do poder – torna bem mais difíceis novas mobilizações em favor de “outra coisa”, inclusive porque nossa incompetente oposição sequer sabe o que propor, além de mais do mesmo (ou seja, Estado, subsídios, ajudas, bolsas, favores).
Estamos condenados a uma lenta decadência? Talvez, mas historicamente isso não seria surpreendente, nem inédito. Os que conhecem a história sabem que nenhum percurso social é retilíneo, como a marcha irrecorrível do tempo e o envelhecimento inevitável dos seres humanos (e das instituições). Impor um outro ritmo, adotar um novo percurso, retificar os velhos métodos e corrigir os erros mais evidentes não está ao alcance de medíocres, e sim exige o tirocínio de estadistas. Aparentemente, o Brasil atual tem uma abundância dos primeiros e uma escassez dos segundos. Acidentes acontecem, para o bem, ou para o mal. Esperemos que, da próxima vez, não seja como da última...
Hartford, 23 de janeiro de 2014
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