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segunda-feira, 22 de abril de 2024

O Brasil em 2023: avanços e retrocessos - Paulo Roberto de Almeida

 O Brasil em 2023: avanços e retrocessos 

Paulo Roberto de Almeida

diplomata, professor, membro do Conselho Acadêmico do Livres.

Revista Crusoé (22/12/2023; link: https://crusoe.com.br/edicoes/295/o-brasil-em-2023-avancos-e-retrocessos/)

 

O ano começou sob os melhores auspícios: uma festa de posse com diversidade social, assistida e saudada por número apreciável de convidados estrangeiros e de milhares de entusiastas na Praça dos Três Poderes. O Itamaraty comprovou sua expertise nessas grandes recepções e tudo parecia augurar uma saudável inversão de tendências e posturas depois de quatro anos de rebaixamento internacional, tensão golpista pairando no ar de Brasília e uma pesada herança fiscal, fruto do populismo econômico praticado expressamente por razões eleitorais. Nada empanava o início de um ano que se anunciava tão triunfal quanto o slogan escolhido naquele momento: “O Brasil voltou!” 

Algumas políticas teimavam, porém, numa insistente continuidade com o governo recém findo: a teimosia em dividir o país entre “nós” – os que aderiram ao líder carismático em seu terceiro mandato – e “eles”, os bolsonaristas, e todos os derrotados de outubro; uma chocante atitude objetivamente favorável ao ditador agressor da Ucrânia, a despeito da neutralidade formal proclamada na ONU; a mesma propensão ao gasto público infinito, apesar das promessas de reforma tributária e de despesas orçamentárias controladas. O ano avançou e as contrariedades começaram a se acumular na agenda interna e na externa. 

A política doméstica começou a refletir exatamente o que outubro havia reservado em termos de maioria congressual. A exiguidade de votos consolidou uma mudança já antevista desde o governo anterior: seria o Legislativo a determinar o que seria ou não seria aprovado, e o Executivo teve de se conformar ao novo parlamentarismo informal. O preço, prolongado ao longo do ano, foi a cessão de cargos ministeriais e a continuidade do estupro orçamentário sob a forma de emendas impositivas em volume e valores crescentes. Sem qualquer pudor ou contenção, os congressistas passaram a determinar o que eles precisariam receber em troca dos projetos de lei que o Executivo buscava fazer aprovar.

Na política externa, o brilho da antecipada liderança do Sul Global começou a ser empanado justamente em função da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, para cuja solução o presidente chegou até a sugerir cessão de território por parte da nação agredida. A recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima foi a pior possível e um esperado encontro com o presidente Zelensky foi sorrateiramente evitado. Os resultados de duas reuniões regionais sul-americanas, ainda no primeiro semestre, fugiram completamente ao projetado inicialmente: nem o retorno da Unasul, nem a promessas de redução da devastação florestal amazônica ou a prometida transição energética figuraram nas declarações finais das cúpulas integracionista e amazônica. Lula recebeu objeções dos próprios presidentes de esquerda, em especial devido a fato de ter recebido o estimado ditador venezuelano com honras de visita de Estado.

Ainda na frente externa, uma outra cúpula, a dos companheiros e aliados do Brics em Joanesburgo, terminou com um “bolinho da sorte chinês”: a ampliação a 120% dos membros, com seis novos países admitidos, todos eles do clube dos autoritários e antiocidentais, com exceção da Argentina, que acabou por rechaçar o convite de adesão desde a eleição do novo mandatário em novembro. O curioso é que, junto com a Índia, o Brasil afirmava que primeiro era necessário “definir os critérios de adesão” antes de acolher novos membros, ao passo que o chanceler oficioso se pronunciou em favor da adesão sem qualquer critério explícito. A agenda apresentada para a presidência do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, no mês de outubro tinha começado com todo o otimismo das causas sociais e da “reforma da governança global” para logo se chocar com a barbárie dos ataques terroristas do Hamas contra a população civil de Israel, sem que Lula e o PT fizessem, no início, qualquer alusão aos perpetradores das atrocidades, como se tudo fosse reação palestina à opressão do Estado de Israel. Pouco adiante, em face das reações dos aliados de Israel, Lula concedeu em identificar o agressor primeiro, designando os seus atos como terroristas, mas passando a condenar Israel como “genocida” de mulheres e crianças palestinas.

A postura do governo em relação ao drama terrível seguiu o mesmo padrão adotado no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: equiparar agressor e agredido, como se Putin não tivesse violado deliberadamente a Carta da ONU e as normas mais elementares do Direito Internacional, ou como se o Hamas representasse a legítima resposta do povo palestino contra o “apartheid israelense”. A mesma atitude prevaleceu no novo foco de tensão criado pela Venezuela contra a vizinha Guiana, recomendando “bom senso” aos dois lados, como se eles fossem equivalentes na solução dos problemas legados pelas antigas potências coloniais na região. Trata-se de um padrão costumeiro do lulopetismo: os aliados ideológicos podem atentar contra os direitos humanos, o que não é permitido aos ocidentais.

Na última reunião internacional do ano, a COP-28, Lula conseguiu ser reiteradamente contraditório: aceitou o convite para ser um associado na OPEP ao mesmo tempo em que preconizava a transição energética para combustíveis renováveis. Confrontado, finalmente, à esperada oposição da França ao acordo com a União Europeia, conformou-se ao fracasso de vinte anos de negociações – em parte provocadas pelo projeto americano da Alca, implodida por ele com a ajuda dos amigos Chávez e Kirchner – para retomar um aparente interesse, ao visitar o socialdemocrata Olaf Scholz, da Alemanha, a principal interessada na associação. Na verdade, não só os agricultores franceses tinham enormes restrições à abertura dos mercados aos competitivos produtores do Mercosul, mas outros protecionistas europeus também, sobretudo no setor das carnes; os próprios brasileiros e argentinos mantinham seu tradicional protecionismo industrial e Lula externou diversas vezes sua objeção à abertura das compras governamentais.

Entre avanços e retrocessos, o Brasil conheceu alguma estabilidade: na mediocridade do ensino, por exemplo, como refletido nos testes do PISA – programa de avaliação de jovens do ciclo médio, organizado pela OCDE e cobrindo seis dezenas de países – nos quais os estudantes brasileiros ficam sistematicamente nos últimos lugares, em matemáticas e ciências elementares e língua pátria, desde o início de nossa participação no exercício. Uma outra estabilidade das menos desejáveis situou-se num cenário bem conhecido desde a década perdida dos anos 1980: as taxas muito modestas de crescimento, numa estagnação de meio século, apenas moderadamente mais vigorosas na primeira década deste século, puxadas pela extraordinária demanda chinesa por nossos produtos de exportação.

Um outro tipo de retrocesso ocorreu na política externa. Depois da alegada autonomia pelo distanciamento da era militar, o país experimentou a chamada autonomia pela integração ao abrir-se relativamente ao mundo na redemocratização; um breve intervalo de submissão com desintegração seguiu-se no modelo “pária” antimultilateralista de Bolsonaro. Qualquer política externa mais ou menos normal depois disso seria saudada dentro em fora do país. O que se observou, no entanto, foi um ativismo seletivo caracterizado pela divisão do mundo entre um Ocidente supostamente declinante e um inexistente Sul global, por acaso incluindo duas grandes autocracias interessadas numa “nova ordem global” antiocidental.

Lula escolheu ser contraditório em várias frentes: uma reforma tributária que trará novo aumento da carga fiscal, uma duvidosa liderança ambiental associada a um cartel de produtores de petróleo, o entusiasta da transição energética quando o Brasil continua sendo um dos maiores responsáveis pelo aquecimento global, um defensor da democracia contra autoritários de direita, mas que apoia ditaduras de esquerda, enfim, a mesma metamorfose ambulante bem conhecida desde os anos 1980. Nos avanços, o golpismo foi vencido, embora a divisão do país tenha persistido. Nos retrocessos, o estatismo de retorno e uma diplomacia abertamente revisionista da atual ordem internacional. Finalmente, numa síntese sobre o ano de 2023 na frente externa, o chanceler, em discurso na CREDN-CD, conseguiu realizar a proeza de “esquecer” completamente da Ucrânia, inclusive do encontro Lula-Zelensky em Nova York, por ocasião da Assembleia Geral da ONU. Um “esquecimento” sintomático...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4523, 5 dezembro 2023, 3 p.; revisão em 27/12/2023.

Publicado em 22/12/2023 (link: https://crusoe.com.br/edicoes/295/o-brasil-em-2023-avancos-e-retrocessos/). Relação de Publicados n. 1537. 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil - Marcos Lisboa, Marcos Mendes (Brazil Journal)

 Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil

Marcos Lisboa, Marcos Mendes

Brazil Journal, 21/01/2024

 

Nas últimas cinco décadas, a economia brasileira tem tido um comportamento ciclotímico: são sequências de anos bons seguidos por crises severas. De acordo com o Banco Mundial, entre 1980 e 2019, nos períodos em que tivemos variação positiva do PIB per capita, o nosso crescimento médio (2,8%) até superou o da economia líder do mundo, os EUA (2,2%). 

O problema é que levamos muito mais tombos: tivemos 14 anos de variação negativa do PIB per capita, contra apenas 7 dos EUA. E nossas quedas foram mais intensas: em média, de 2,6%, contra apenas 1,9% nos EUA. 

Essa volatilidade – que prejudica o investimento, a expansão da infraestrutura e o aumento recorrente da produtividade – tem origem numa política econômica igualmente ciclotímica. 

Em alguns momentos, surpreendentemente conseguimos aprovar reformas importantes, como a da Previdência e a Tributária, que há muito vinham sendo evitadas. Mas assim que o cenário econômico melhora, o Brasil aceita diversos retrocessos, concedendo benefícios a grupos organizados que fragilizam as contas públicas e pioram nossa eficiência produtiva. 

Neste artigo mostramos o risco de que esses retrocessos mantenham o nosso histórico de política econômica ciclotímica, causadora de volatilidade: alguns anos de crescimento razoável seguidos de crises – o clássico “voo de galinha” – resultando num desempenho medíocre no médio e longo prazos. 

Tratamos da ciclotimia da política fiscal em diversos artigos. Com o crescimento da arrecadação, a despesa permanente com salários, aposentadorias e benefícios aumenta, como ocorreu em muitos municípios desde a pandemia. Mas quando os tempos ficam mais difíceis, essa despesa não pode ser reduzida, e a conta cai no colo da União. 

Neste texto vamos nos concentrar nos retrocessos regulatórios recentes bem como nas distorções no ambiente de negócio que prejudicam a produtividade e o crescimento sustentável. Fizemos muitas reformas.

O país passou por reformas significativas, em especial a partir de 2015. Muitos analistas apontam indícios de que a reforma da legislação trabalhista tem parte do mérito pela queda do desemprego sem a correspondente pressão inflacionária. A reforma da previdência ajudou a tornar menos agudo o problema fiscal. 

A autonomia do Banco Central colaborou com o bem-sucedido processo recente de desinflação. Muitas outras ajudarão no crescimento dos próximos anos, desde a Agenda BC# até os marcos regulatórios de infraestrutura. 

O atual governo contribuiu de modo relevante. A aprovação da reforma tributária, discutida há mais de vinte anos, promete grande simplificação, redução de custos e incentivo à racionalização da produção. Um feito de primeira grandeza. 

Além disso, deu-se continuidade a esforços do governo anterior, como na regulamentação de apostas esportivas, no marco regulatório do setor de ferrovias e de garantias de operações de crédito. 

Mas o fato de termos feito muitas reformas não quer dizer que temos uma agenda claramente modernizadora. Pelo contrário. É espantosa a facilidade com que adotamos políticas que deterioram o ambiente de negócios, diminuem a concorrência, criam cartórios e fragilizam as contas públicas. Sinais preocupantes para o futuro O cenário internacional foi melhor em 2023 do que se esperava há um ano, com queda da inflação impondo, até agora, baixo custo sobre a produção e o emprego. Internamente, porém, nos encontramos na perigosa fase do ciclo em que as reformas recentes nos ajudam a tirar o nariz do ambiente de crise, e se abrem oportunidades para retrocessos. Os sinais emitidos desde o fim da pandemia têm sido preocupantes. 

Vamos listar diversas questões regulatórias. O Poder Executivo acredita que o crescimento pode ser impulsionado por meio da distribuição de proteção e subsídios a setores organizados. O Congresso, por sua vez, é bastante sensível ao lobby desses setores. Isso deixa a porta aberta para a rápida aprovação de múltiplas políticas de proteção comercial e subsídios, além de decisões que desrespeitam a segurança jurídica. 

Fernando Veloso sistematiza a evidência empírica das consequências negativas desse tipo de política sobre a produtividade e o crescimento. Retrocessos regulatórios A pesquisa acadêmica com micro dados identifica a importância da integração econômica para o crescimento. 

No entanto, o governo oferece sinais ambíguos nessa área, como ao colocar freio no acordo com a União Europeia sob a justificativa de reservar o mercado de compras governamentais para empresas nacionais. Em especial, o governo está preocupado em manter as licitações do SUS restritas a fornecedores instalados no País, alimentando a ideia de criação de um Complexo Industrial da Saúde. Ou seja, a prioridade deixa de ser atender a população com o menor custo e a maior qualidade possível, e passa a ser a substituição de importações no fornecimento ao SUS. 

A evidência empírica indica que a estratégia de fazer exigências de conteúdo local para desenvolvimento da indústria nacional teve algum sucesso em casos muito específicos, mas se mostrou ineficaz na maioria das experiências internacionais: quanto mais sensível é o Poder Público à ação de grupos de pressão, mais essa política tende a se degradar na proteção de empresas ineficientes, sem ganhos de produtividade no médio prazo, restringindo a competição e a inovação. Há anos temos esse tipo de exigência em diversas políticas: nos financiamentos concedidos por bancos públicos, nos benefícios da Zona Franca de Manaus, na lei de licitações. Não há avaliações de impacto que mostram saldo positivo entre benefícios e custos. 

No entanto, a orientação do governo é para aprofundar a política. Recente reunião do Conselho Nacional de Política Energética desfez parte da reforma de 2017, elevando os requisitos mínimos de compra de insumos nacionais por empresas de exploração de petróleo e gás. Em uma agenda de pesquisa aplicada sobre a regulação no setor de óleo gás, o núcleo de energia da UFRJ constatou que as políticas de conteúdo nacional prejudicam a produção e desestimulam a concorrência, tendo por vezes resultados opostos aos pretendidos. Diana Pietro mostrou que essa política derrubava significativamente as expectativas de retorno e eram determinantes para que uma operadora desistisse de dar lances num leilão ou abandonasse campos já adquiridos. Edmar Almeida e coautores mostraram que em um cenário sem exigência de conteúdo local os investimentos da indústria de petróleo gerariam 60 mil empregos a mais no ano de pico de produção. 

O Governo tenta reverter na Justiça a privatização da Eletrobras, questionando as regras aprovadas em lei. Também tentou interferir em decisões da empresa, agora privada, como no episódio da absorção de Furnas, uma subsidiária da Eletrobras, pela holding. 

A Vale, outra empresa privada, também está na mira do governo. Isso revela a fragilidade do marco legal do País, sujeito ao mando arbitrário de plantão em Brasília, o que prejudica os investimentos. O Congresso Nacional tem dado respaldo a lobbies de diversos participantes do mercado de energia. 

A lei que aprovou a privatização da Eletrobras continha “jabutis” criando mercados cativos ou reserva de recursos para remunerar fontes ou mecanismos de transmissão de energia que não são os mais eficientes, ou obrigando a construção de uma logística desnecessária, que beneficia alguns produtores, mas implicará custo adicional a ser pago na conta de energia das famílias. 

Atualmente discute-se um projeto de regulamentação de geração de energia eólica offshore (PL 11.247/2018), que se tornou um cabide para pendurar diversos outros interesses. O resultado é o aumento da conta de energia. Parlamentares usualmente buscam impedir aumentos de tarifas de energia determinados pela ANEEL, muitas vezes causados por subsídios que eles próprios patrocinaram. Mais uma vez, insegurança jurídica e desestímulo ao investimento. Ao final do ano foi aprovado o “Programa Mover” de estímulo à indústria automobilística. Trata-se de reencarnação de dois programas anteriores, o “Inovar-Auto” e o “Rota 2030”. Todos foram criados com o mote de estimular a inovação e a descarbonização, mas o objetivo principal sempre foi a proteção contra a concorrência internacional. Avaliação independente mostra as fragilidades e o alto custo das iniciativas. 

Simultaneamente, aumentou-se o imposto de importação sobre carros elétricos. A Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), ao longo de 2023, também aumentou a tributação na importação de produtos siderúrgicos, químicos, painéis solares e pneus, revertendo o tímido movimento de abertura dos governos anteriores. Foi enviado ao Congresso projeto de lei prevendo a depreciação acelerada de máquinas e equipamentos, para efeitos fiscais. Tenta-se gerar competitividade mediante subsídios, quando o que a economia precisa é de acesso a máquinas e equipamentos modernos, disponíveis no mercado internacional, como apontado por Lisboa e coautores. 

O governo anunciou um programa para vender passagens aéreas baratas a estudantes e aposentados. Será preciso dar contrapartidas às empresas. Abrir o balcão do BNDES com subsídio, garantir combustíveis mais baratos para este setor ou conceder benefícios tributários serão opções que, cedo ou tarde, serão colocadas sobre a mesa. Além disso, aposentados e muitos estudantes fazem parte de grupos de renda média, que receberão recursos extraídos da sociedade em vez dos grupos sociais mais vulneráveis. 

A Petrobras aprovou um plano de negócios com espaço para voltar a fazer política pública intervencionista. Simbolicamente, o Presidente da República deu início à retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, um símbolo bilionário do mau planejamento e uso político da estatal. A empresa também cancelou a privatização da refinaria Lubnor e sinalizou interesse em reestatizar Mataripe por meio de questionamento judicial da venda. Isso contraria acordo de reversão de conduta anticoncorrencial firmado como o CADE e fragiliza a segurança jurídica. A política de preços da estatal tornou-se opaca. 

Em 2023, com a ajuda da queda do petróleo no mercado internacional, foi possível puxar os preços internos para baixo sem prejudicar a lucratividade. Vejamos o que acontecerá quando os preços começarem a subir no exterior. A experiência passada mostra que essas políticas levaram à perda de valor da empresa, abuso de práticas monopolistas e perda de eficiência econômica. 

A marcha à ré nas privatizações não foi apenas no âmbito da Petrobras e Eletrobras. Houve também a simbólica desistência da extinção da empresa de produção de chips (CEITEC). Além disso, houve a volta das indicações de políticos com pouco conhecimento técnico para a gestão e os conselhos dessas empresas, com base em liminar concedida pelo STF que enfraqueceu a lei das estatais. 

O BNDES foi o motor da política de indução de crescimento no passado recente. Avaliação feita pelo próprio governo federal aponta que os subsídios creditícios oferecidos pelo Banco não tiveram impacto nos investimentos das grandes empresas beneficiárias, resultado similar ao obtido por Bonomo e coautores, a partir de extensa base de microdados sobre os créditos concedidos e o desempenho dessas empresas. Não obstante essas evidências, o Banco está construindo instrumentos para voltar a atuar como no passado, expandindo a concessão de crédito subsidiado para empresas selecionadas, à custa de dívida pública e dos recursos captados por meio de tributos: conseguiu, junto ao TCU, postergar devolução ao Tesouro de empréstimos irregulares e vai lançar título próprio, ganhando autonomia em relação ao Orçamento e, ao mesmo tempo, tornando-se concorrente do Tesouro na captação de recursos. Foi colocado sob gestão do Banco o recém-criado “Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico”. Um fundo privado, voltado a financiar política industrial, fora do Orçamento, mas que receberá recursos públicos. Com isso, aumenta a intervenção pública no mercado de crédito, o que trabalha contra a eficiência alocativa, diminui a potência da política monetária e prejudica as novas empresas em favor das grandes e já estabelecidas. O Banco também está desenhando uma política de proteção cambial a investidores estrangeiros que, ao fim e ao cabo, significa transferir para o contribuinte o custo e risco de oscilações cambiais, que deveriam ser suportados pelos investidores. Assim, se a volatilidade cambial ocorrer, o contribuinte passa a pagar a conta que caberia ao acionista. Foi estancada a venda de ações da carteira do BNDESpar, que seria a forma mais lógica e eficiente de prover funding ao banco, uma vez que não há sentido em manter participação em empresas já consolidadas no mercado. Aproveita-se essa participação acionária do BNDES para instalar políticos nos conselhos de empresas privadas. Abriu-se uma brecha para a realização de financiamentos com taxas subsidiadas, abaixo da TLP. A brecha pode ser ampliada, no futuro, por simples decisão do Conselho Monetário Nacional (Lei 14.592/23 e PL 6.235/23). Conclusões Ao final de 2023 vimos resultados macroeconômicos positivos em termos de crescimento, inflação e emprego. 

Em boa medida, estamos colhendo os frutos de esforços de reforma de governos anteriores, com a ajuda de um cenário externo favorável, e da não concretização de intenções anunciadas pelo novo governo, como a revisão da autonomia do Banco Central ou a revogação de outras reformas. No entanto, o que está sendo plantado hoje não traz bons augúrios para o futuro: temos uma sucessão de medidas contrárias ao crescimento da produtividade e à segurança jurídica. Não são iniciativas isoladas, de baixo impacto. Trata-se da retomada da agenda adotada pelo governo Geisel e resgatada no segundo mandato de Lula. Volta agora como um plano de “reindustrialização” baseado em “missões do governo.” Conteúdo antigo em embalagem nova. 

O fracasso do passado traz preocupação com a reincidência nas mesmas políticas. As perspectivas fiscais, não tratadas neste artigo, também pouco ajudam. Para 2024, há sinais de atividade econômica andando de lado. 

Como o governo reagirá se no primeiro semestre deste ano se confirmar o baixo crescimento? Ele terá a paciência de preservar ajustes e contenção para auxiliar na retomada sustentável da economia a médio prazo? Ou, como feito tantas vezes no passado, vai declarar que temos que estimular a economia no curto prazo e dobrar a aposta nas intervenções discricionárias e fragilizar ainda mais o fiscal, além de tornar o monetário leniente com a inflação? Vamos reincidir nas políticas do passado, como as adotadas a partir de 2008, que resultaram na grave crise iniciada em 2014, com tantos projetos fracassados, incluindo refinarias e estaleiros? Vamos continuar presos à ciclotimia das reformas e retrocessos ou conseguiremos romper com o passado de volatilidade do crescimento?

 

Marcos Lisboa é ex-presidente do Insper. Marcos Mendes é doutor em Economia.

Leia mais em https://braziljournal.com/dois-para-frente-um-para-tras-os-retrocessos-e-distorcoes-que-sabotam-o-brasil/ .

 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O Brasil em 2023: avanços e retrocessos - Paulo Roberto de Almeida (Revista Crusoé)

 O Brasil em 2023: avanços e retrocessos

Paulo Roberto de Almeida
diplomata, professor, membro do Conselho Acadêmico do Livres.

O ano começou sob os melhores auspícios: uma festa de posse com diversidade social, assistida e saudada por número apreciável de convidados estrangeiros e de milhares de entusiastas na Praça dos Três Poderes. O Itamaraty comprovou sua expertise nessas grandes recepções e tudo parecia augurar uma saudável inversão de tendências e posturas depois de quatro anos de rebaixamento internacional, tensão golpista pairando no ar de Brasília e uma pesada herança fiscal, fruto do populismo econômico praticado expressamente por razões eleitorais. Nada empanava o início de um ano que se anunciava tão triunfal quanto o slogan escolhido naquele momento: “O Brasil voltou!”
Algumas políticas teimavam, porém, numa insistente continuidade com o governo recém findo: a teimosia em dividir o país entre “nós” – os que aderiram ao líder carismático em seu terceiro mandato – e “eles”, os bolsonaristas, e todos os derrotados de outubro; uma chocante atitude objetivamente favorável ao ditador agressor da Ucrânia, a despeito da neutralidade formal proclamada na ONU; a mesma propensão ao gasto público infinito, apesar das promessas de reforma tributária e de despesas orçamentárias controladas. O ano avançou e as contrariedades começaram a se acumular na agenda interna e na externa.

(...)

Lula escolheu ser contraditório em várias frentes: uma reforma tributária que trará novo aumento da carga fiscal, uma duvidosa liderança ambiental associada a um cartel de produtores de petróleo, o entusiasta da transição energética quando o Brasil continua sendo um dos maiores responsáveis pelo aquecimento global, um defensor da democracia contra autoritários de direita, mas que apoia ditaduras de esquerda, enfim, a mesma metamorfose ambulante bem conhecida desde os anos 1980. Nos avanços, o golpismo foi vencido, embora a divisão do país tenha persistido. Nos retrocessos, o estatismo de retorno e uma diplomacia abertamente revisionista da atual ordem internacional. Finalmente, numa síntese sobre o ano de 2023 na frente externa, o chanceler, em discurso na CREDN-CD, conseguiu realizar a proeza de “esquecer” completamente da Ucrânia, inclusive do encontro Lula-Zelensky em Nova York, por ocasião da Assembleia Geral da ONU. Um “esquecimento” sintomático...

Ler a íntegra no site da revista Crusoé...
Bom Natal a todos, a Lula principalmente...

quarta-feira, 30 de março de 2022

Marchas e manifestações ao longo da história brasileira (2014) - Paulo Roberto de Almeida

 Marchas e manifestações ao longo da história brasileira

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Hartford, 23 de janeiro de 2014

 

 

Ironias à parte – mas totalmente condizente com a contínua erosão registrada nos valores e princípios que guiam a nacionalidade, desde que ela começou a se afirmar de modo relativamente independente dos padrões e cânones estrangeiros, pouco menos de cem anos atrás –, parece que as grandes manifestações públicas também começaram a degenerar para algo incompatível com a grande ideia que nos fazemos da nação. Estou me referindo, obviamente, ao fato sumamente ridículo (para mim, pelo menos) de se estar atualmente discutindo, aparentemente de modo sério, o mais recente avatar de nossa decadência programada, os tais “rolezinhos” em shoppings de cidades brasileiras. Recuso-me a considerar essas manifestações de pura histeria coletiva como símbolo ou fenômeno representativo de qualquer outra coisa que não a mediocridade consumada, o atraso mental metabolizado pela era digital, com todos os incluídos-excluídos sendo apresentados como representantes sociais ou raciais de uma franja da sociedade que pretende frequentar o “mundo dos ricos”, ou pelo menos da classe média bem-posta na vida. O assunto é ridículo o suficiente para dele não tratar, mas isso me recordou (e confirmou) o quanto regredimos no pouco menos de cem anos que nos separa do primeiro aniversário da independência nacional. 

O ano de 1922 ainda guardava os reflexos das campanhas civilistas de Ruy Barbosa durante toda a década anterior, quando ele ainda tinha disputado, por duas vezes, a presidência da República, no que parece ter sido a primeira mobilização consciente da classe média contra a corrupção na política e o péssimo funcionamento do Estado no Brasil. Cem anos depois parece que não avançamos nada, não é mesmo? Ou talvez tenhamos até piorado nesses dois quesitos. 1922 é o ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, quando a chamada intelligentsia resolver criar tipos e padrões brasileiros para expressar nossos problemas e percepções, recusando o molde engessado que nos vinha da Europa (os Estados Unidos ainda não estavam na moda, como logo estariam, através principalmente do cinema de Hollywood). Sobrou algo desse espírito?

1922 também é o ano da revolta dos 18 do Forte, já contra a corrupção na política, e que logo iria desembocar em outras manifestações de jovens tenentes pelo Brasil afora, para desdobrar-se, pouco depois, na primeira aventura militar peripatética da nossa história, a coluna Prestes, a grande marcha pelo interior do Brasil por parte de jovens idealistas que queriam reforma a política e a sociedade. Não, a coluna Prestes não foi uma antecessora da Longa Marcha de Mao Tsé-tung, e não tinha nada de socialista ou comunista, como uma releitura enviesada pretendeu interpretá-la, segundo cânones stalinistas de anos posteriores. Foi uma manifestação de liberalismo político, que iria desembocar na revolução de 1930, justamente, que os marxistas pretendem representar como uma “revolução burguesa”, no que eles continuam a estar errados.

Em todo caso, essas primeiras marchas e manifestações de massa tinham um sentido claro: contra o atraso, contra a corrupção das “elites carcomidas”, contra as eleições a “bico de pena”, contra o voto falso, sob o comando do coronel. Não, a revolta comunista de 1935, mais conhecido como Intentona, não foi uma manifestação de massa e tampouco uma marcha, mas apenas uma tentativa de putsch, mal preparado, mal guiado pelos conselheiros soviéticos, e totalmente mal implementado por Prestes e seu punhado de abnegados militares comunistas (nem todos conscientes sobre o que era, realmente, a União Soviética, por trás da propaganda do “mundo novo”, promovido até por intelectuais inteligentes como Caio Prado Júnior, ainda vários anos depois). 

As grandes marchas e manifestações que tivemos, primeiro tímidas, pela entrada do Brasil na guerra e depois pela vitória das democracias contra o nazifascismo, depois mais entusiásticas, pela defesa dos recursos nacionais, entre eles o petróleo, considerado (certa ou erradamente) como a salvação da pátria. Não era, mas sua simbologia poderosa mobilizou milhares de pessoas nas manifestações que culminaram na criação da Petrobras e na decretação do monopólio estatal no setor (seria um grande erro, mas disso só os mais lúcidos se aperceberam no momento e muitos outros mais com o correr dos anos). Tivemos também manifestações em defesa de um ex-ditador demagogo, que pretendeu sair da vida para entrar na História, manipulando uma série de símbolos que permanecem até hoje como símbolos, justamente, do atraso mental nacional: os grandes lucros dos “trustes internacionais”, a “sangria de capitais”, a “cupidez dos investidores estrangeiros”, o saque das nossas “riquezas nacionais” e, sobretudo, a defesa dos mais “humildes”, contra os poderosos, essas “elites” malvadas que impedem o progresso da nação e o bem-estar do povo simples. 

A vassoura de um outro demagogo arrastou multidões, durante a campanha presidencial de 1960, para a total frustração da maioria da população no ano seguinte, ante os gestos tresloucados e as decisões incompreensíveis de um Jânio que não chegou a vinte e quatro quadros, menos de seis meses depois. Depois? Depois foram os anos conturbados de manifestações, protestos, greves e conspirações, de esquerda e de direita, para finalmente desembocar no golpe militar de 1964, que seus próprios atores pretendem chamar de revolução, para ganhar ares de legitimidade, em face de uma suposta, imaginada, ou real revolução comunista, que se dizia estar sendo preparada na surdina, pelos famosos (mas totalmente inexistentes) esquemas “sindical” e “militar” do vice-presidente trabalhista, convertido em presidente no bojo da própria crise criada pelo renunciante trapalhão de poucos anos antes. Mas, tivemos uma marcha, sim, nessa conjuntura, e uma grande, que os jornais da “direita”, os jornalões do “partido da imprensa golpista” (avant la lettre), chamaram de “marcha do milhão” (de pessoas), mais apropriadamente chamada, por seus organizadores, de “Marcha da Família, com Deus, pela Propriedade”. De fato, se acreditava nessas coisas, mas não se pode denegar a importância da marcha, pois a direita golpista jamais conseguiria colocar centenas de milhares de pessoas nas ruas se não houvesse um estado de comoção nacional contra o estado de deterioração total a que tinha chegado a chamada República de 1946, nas mãos de demagogos consumados e de incompetentes (administrativamente falando). 

A próxima marcha, a dos cem mil, na então Guanabara, era contra a ditadura dos militares, e tinha, portanto, um claro sentido liberal, ainda que os esquerdistas atrás de sua organização também sonhassem com uma virada socialista, no bojo dos ensaios de guerrilha rural e dos experimentos de guerrilha urbana que estavam sendo lançados no mesmo momento. Também fui um dos participantes dessas manifestações de jovens estudantes contra a ditadura (e o capital estrangeiro, o imperialismo, o latifúndio, etc.), já que não tinha tido qualquer participação relevante em 1964, por ser muito jovem e por ainda ser um “alienado” (conforme dizíamos na época, seguindo a terminologia do jovem Marx, uma leitura frankfurteana indispensável nesses anos de Marcuse). 

Parece que não deu muito certo, pois em lugar de reforçarmos a resistência pacífica contra o regime militar e clamar por democracia política, simplesmente, pretendíamos derrubar os militares na ponta do fuzil, como recomendava o mesmo Mao Tse-tung (que já tinha eliminado uns 15 ou 20 milhões pela fome, poucos anos antes, e se preparava para eliminar mais algumas dezenas de milhares de outros na sua “revolução cultural”). Fui um dos quantos que saíram do Brasil, em exílio forçado ou voluntário, já que esses anos de chumbo foram realmente pouco saudáveis para quem enveredasse por essa via da revolução armada. “Patriotas equivocados”, assim nos chamava o Partidão, que permaneceu na velha política de resistência pacífica, de frentes democráticos e de conchavos com forças oposicionistas mais moderadas, o que na verdade desprezávamos: queríamos uma bela revolução à la cubana (ou à la Mao).

Em todo caso, a próxima grande manifestação, foi a da “Marcha das Diretas”, em 1984, que não resultou nas eleições diretas, mas pelo menos colocou os militares na defensiva, ou pelo menos isolou aqueles irredentistas que pretendiam continuar no regime de exceção, contra o projeto de transição tutelada, desenhado pelos militares mais lúcidos, como Geisel e Golbery. A volta à democracia também trouxe grandes manifestações de massa, a favor da “redenção” do povo e da correção de todos os males causados pela ditadura. O “entulho autoritário” deveria ter sido enterrado pela generosa Constituição, que prometia mundos e fundos a todos e a cada um, e que em lugar de prosperidade trouxe a aceleração da inflação, a volta de velhas oligarquias políticas, enfim, um “piorão” vindo do estado mais atrasado do Brasil (parece que ainda continua assim, pois não?). 

Para compensar todas as decepções e frustrações com a democracia, tivemos as próximas manifestações “de massa” contra um presidente que, pelas comprovações de corrupção provadas em CPI, parecia ter sido a maior fraude política da história do país, desembocando gloriosamente no seu afastamento e renúncia da presidência. Mas, muito dessa movimentação já tinha sido orquestrada não tanto pela “opinião pública”, mas por certo partido de oposição radical (e pela “ética na política”) que depois se revelaria tão corrupto, ou mais, que os velhos partidos dos políticos tradicionais. Em matéria de fraudes políticas, estamos sempre regredindo, como se vê. Depois disso não tivemos mais marchas, nem grandes manifestações de massa, mas apenas movimentos guiados, dirigidos e orquestrados (muitos deles pagos) pela mesma organização que pretendeu representar o povo, e que acabou recolhendo o lumpesinato e subalternos urbanos – com aqueles gramsciano atrasados mentalmente que frequentam as academias – no seu grande curral eleitoral, que reconstrói, em grande medida, o cabresto disciplinado dos velhos coronelões da política corrupta e atrasada que tínhamos na velha República.

Não coloco na linhagem das grandes manifestações de massa o leve espocar de vozes inquietas da classe média durante o breve mês de junho dos descontentamentos, pois não havia, de verdade, consciência contra o que lutar, exatamente, embora houvesse, e bem clara, uma insatisfação nítida contra tudo o que ali estava: políticos corruptos (inclusive os do poder), serviços públicos deploráveis e impostos extorsivos. Não coloco, porque o movimento começou igualmente por uma manipulação de grupelhos organizados na mesma linha dos falsos movimentos de massa orquestrados pelo partido totalitário (o mesmo que braveja, pelos seus mercenários de comunicações, contra um inexistente “partido da imprensa golpista”) e que pretendia tão somente ganhos eleitorais circunscritos, e acabou sendo temporariamente desviado dos objetivos iniciais por uma adesão inesperada, e não organizada, da verdadeira classe média descontente. Com a intromissão dos novos lumpen, blocos negros e coisas do gênero, a movimentação degenerou para a violência gratuita, e a classe média refluiu para os seus lares, onde continua a participar do, e a alimentar o atraso mental nacional pelos canais de voyeurismo televisivo altamente vulgares (mas conheço acadêmicos que também assistem a esses espetáculos verdadeiramente patéticos). 

Enfim, não temos mais marchas e manifestações porque a inteligência nacional regrediu totalmente, bastando verificar projetos, discursos e entrevistas de quem nos governa, nos vários escalões e instituições das esferas políticas e administrativas. O que sobrou parece totalmente compatível com o ridículo nacional dos “rolezinhos”, um espetáculo deprimente que políticos e acadêmicos ainda têm a pretensão de interpretar em termos sociológicos. O Brasil, pelo atraso mental extraordinário de nossas elites, e pela fraude generalizada que nos é servida pelo partido totalitário, com todos os recursos do poder, não promete grandes mudanças positivas no futuro previsível. Se ouso prever qualquer coisa, é a continuidade do processo de degradação dos costumes, de degeneração da moral pública – quando um chefe de poder mobiliza um avião oficial para cuidar dos cabelos é o sinal definitivo que não temos mais nenhuma ética na cúpula do poder, nem entre os que prestam o serviço, por sinal – e de total erosão de qualquer sentido de “valores republicanos”, como cinicamente invocado por aqueles mesmos que os conspurcam a cada momento. 

Das marchas dos tenentes nos anos 1920, aos “rolezinhos” ridículos de jovens da periferia na segunda década deste século, acho que o Brasil desceu várias escalas do processo civilizatório. Esse tipo de involução já foi observada em outras formidáveis decadências ao longo da história – penso na Roma dos últimos césares, por exemplo, ou na dinastia Qing da China, ou talvez, bem mais perto de nós, em certos populismos civis e militares que também confirmam esse atraso mental, sem esquecer, ainda, a não menos formidável decadência britânica antes dos anos 1980 – e o Brasil não será uma exceção entre tantas sociedades que regrediram por causa da absoluta incompetência de suas elites dirigentes (ou dominantes) e da total inconsciência da parcela mais esclarecida da população, essa mesma classe média que conduziu manifestações e marchas no passado, contra a corrupção na política e por um Brasil mais digno. 

Acho que qualquer renovação do combalido espirito da nossa classe média vai demorar certo tempo para voltar aos velhos tempos da justa indignação – o que parecia ter começado a ocorrer nos distúrbios de junho de 2013, mas que logo refluiu – e de impulso moral em favor de um novo projeto de país. O fascismo corporativo que se instalou nos corações e mentes da maioria da população – a partir dos mandarins que assessoram os círculos do poder – torna bem mais difíceis novas mobilizações em favor de “outra coisa”, inclusive porque nossa incompetente oposição sequer sabe o que propor, além de mais do mesmo (ou seja, Estado, subsídios, ajudas, bolsas, favores).

Estamos condenados a uma lenta decadência? Talvez, mas historicamente isso não seria surpreendente, nem inédito. Os que conhecem a história sabem que nenhum percurso social é retilíneo, como a marcha irrecorrível do tempo e o envelhecimento inevitável dos seres humanos (e das instituições). Impor um outro ritmo, adotar um novo percurso, retificar os velhos métodos e corrigir os erros mais evidentes não está ao alcance de medíocres, e sim exige o tirocínio de estadistas. Aparentemente, o Brasil atual tem uma abundância dos primeiros e uma escassez dos segundos. Acidentes acontecem, para o bem, ou para o mal. Esperemos que, da próxima vez, não seja como da última...

 

 

Hartford, 23 de janeiro de 2014