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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger (O Globo)

 Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger

Estudo estima as despesas dela em 3,1% do PIB e as dele em 0,2% — mas ambos recorreram a gastos ocultos

O Globo, 11/11/2024

 

O Brasil tem um longo e problemático histórico de incúria fiscal em anos eleitorais. Tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro, apesar das diferenças ideológicas, recorreram a gastos eleitoreiros em suas respectivas tentativas de reeleição. Ambos adotaram mecanismos de contabilidade criativa para ocultar despesas. Mas um olhar atento revela diferenças, constata um novo estudo dos economistas Alexandre Manoel, Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Samuel Pessôa, recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Para comparar os gastos, eles estimaram a variação entre os dois primeiros e os dois últimos anos de cada mandato. Constataram que, na tentativa de reeleição de Dilma em 2014, sua administração aumentara as despesas primárias em 1,4% do PIB. A maior extensão da prodigalidade fiscal, porém, ficou oculta. Pelos cálculos dos economistas, Dilma ainda acumulou 1,7% adicional do PIB em “gastos encobertos”, como adiamento de despesas para o próximo governo (restos a pagar) e manipulação da contabilidade das empresas estatais. Ao todo, entre o visível e o oculto, Dilma gastou 3,1% do PIB para se reeleger.

Bolsonaro adotou estratégia diferente em 2022. Em sua gestão, houve redução de 0,7% nos gastos primários visíveis, comparando o biênio 2021-2022 ao 2019-2020. Em contrapartida, ele também recorreu a “gastos encobertos” estimados em 0,9% do PIB. Isso inclui o atraso de pagamentos de precatórios no valor de R$ 27,2 bilhões ao longo de quatro anos e o aumento do estoque de contas não pagas em R$ 65,5 bilhões. Uma diferença crucial emerge na comparação: enquanto, sob Dilma, as despesas adicionais visíveis e ocultas atingiram 3,1% do PIB, sob Bolsonaro ficaram em apenas 0,2%.

Houve outra diferença crítica: a intervenção no mercado de câmbio. O governo Dilma, sem Banco Central (BC) independente, sustentou artificialmente o real antes da eleição de 2014, aumentando o estoque de contratos cambiais de zero para 4% do PIB entre 2013 e o terceiro trimestre de 2014, quando o déficit em conta-corrente comprovava a necessidade de desvalorização. Essa intervenção se revelou insustentável e prejudicou a economia. Em contraste, Bolsonaro se beneficiou da independência do BC, aprovada em 2021. Seu governo não se envolveu em manipulação cambial. A evolução institucional impôs uma restrição crucial ao populismo em ano eleitoral.

É verdade que é difícil definir com precisão gastos eleitorais. Para garantir uma comparação justa, os economistas exploraram vários ajustes nos cálculos, considerando fatores como subsídios aos combustíveis, incentivos fiscais, o ciclo econômico e diferentes classificações para as contas não pagas. Mesmo após aplicar os ajustes mais favoráveis a Dilma, concluem que os gastos dela antes da eleição superaram os de Bolsonaro.

Ambas as gestões priorizaram ganhos políticos de curto prazo em detrimento da estabilidade no longo prazo. Tanto Dilma quanto Bolsonaro exploraram fraquezas institucionais para manipular a política fiscal. O estudo revela a necessidade de maior transparência e de mecanismos de supervisão mais fortes para evitar a exploração de “gastos encobertos” à margem das regras fiscais, também frequentes agora, no governo Luiz Inácio Lula da Silva.

 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil - Marcos Lisboa, Marcos Mendes (Brazil Journal)

 Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil

Marcos Lisboa, Marcos Mendes

Brazil Journal, 21/01/2024

 

Nas últimas cinco décadas, a economia brasileira tem tido um comportamento ciclotímico: são sequências de anos bons seguidos por crises severas. De acordo com o Banco Mundial, entre 1980 e 2019, nos períodos em que tivemos variação positiva do PIB per capita, o nosso crescimento médio (2,8%) até superou o da economia líder do mundo, os EUA (2,2%). 

O problema é que levamos muito mais tombos: tivemos 14 anos de variação negativa do PIB per capita, contra apenas 7 dos EUA. E nossas quedas foram mais intensas: em média, de 2,6%, contra apenas 1,9% nos EUA. 

Essa volatilidade – que prejudica o investimento, a expansão da infraestrutura e o aumento recorrente da produtividade – tem origem numa política econômica igualmente ciclotímica. 

Em alguns momentos, surpreendentemente conseguimos aprovar reformas importantes, como a da Previdência e a Tributária, que há muito vinham sendo evitadas. Mas assim que o cenário econômico melhora, o Brasil aceita diversos retrocessos, concedendo benefícios a grupos organizados que fragilizam as contas públicas e pioram nossa eficiência produtiva. 

Neste artigo mostramos o risco de que esses retrocessos mantenham o nosso histórico de política econômica ciclotímica, causadora de volatilidade: alguns anos de crescimento razoável seguidos de crises – o clássico “voo de galinha” – resultando num desempenho medíocre no médio e longo prazos. 

Tratamos da ciclotimia da política fiscal em diversos artigos. Com o crescimento da arrecadação, a despesa permanente com salários, aposentadorias e benefícios aumenta, como ocorreu em muitos municípios desde a pandemia. Mas quando os tempos ficam mais difíceis, essa despesa não pode ser reduzida, e a conta cai no colo da União. 

Neste texto vamos nos concentrar nos retrocessos regulatórios recentes bem como nas distorções no ambiente de negócio que prejudicam a produtividade e o crescimento sustentável. Fizemos muitas reformas.

O país passou por reformas significativas, em especial a partir de 2015. Muitos analistas apontam indícios de que a reforma da legislação trabalhista tem parte do mérito pela queda do desemprego sem a correspondente pressão inflacionária. A reforma da previdência ajudou a tornar menos agudo o problema fiscal. 

A autonomia do Banco Central colaborou com o bem-sucedido processo recente de desinflação. Muitas outras ajudarão no crescimento dos próximos anos, desde a Agenda BC# até os marcos regulatórios de infraestrutura. 

O atual governo contribuiu de modo relevante. A aprovação da reforma tributária, discutida há mais de vinte anos, promete grande simplificação, redução de custos e incentivo à racionalização da produção. Um feito de primeira grandeza. 

Além disso, deu-se continuidade a esforços do governo anterior, como na regulamentação de apostas esportivas, no marco regulatório do setor de ferrovias e de garantias de operações de crédito. 

Mas o fato de termos feito muitas reformas não quer dizer que temos uma agenda claramente modernizadora. Pelo contrário. É espantosa a facilidade com que adotamos políticas que deterioram o ambiente de negócios, diminuem a concorrência, criam cartórios e fragilizam as contas públicas. Sinais preocupantes para o futuro O cenário internacional foi melhor em 2023 do que se esperava há um ano, com queda da inflação impondo, até agora, baixo custo sobre a produção e o emprego. Internamente, porém, nos encontramos na perigosa fase do ciclo em que as reformas recentes nos ajudam a tirar o nariz do ambiente de crise, e se abrem oportunidades para retrocessos. Os sinais emitidos desde o fim da pandemia têm sido preocupantes. 

Vamos listar diversas questões regulatórias. O Poder Executivo acredita que o crescimento pode ser impulsionado por meio da distribuição de proteção e subsídios a setores organizados. O Congresso, por sua vez, é bastante sensível ao lobby desses setores. Isso deixa a porta aberta para a rápida aprovação de múltiplas políticas de proteção comercial e subsídios, além de decisões que desrespeitam a segurança jurídica. 

Fernando Veloso sistematiza a evidência empírica das consequências negativas desse tipo de política sobre a produtividade e o crescimento. Retrocessos regulatórios A pesquisa acadêmica com micro dados identifica a importância da integração econômica para o crescimento. 

No entanto, o governo oferece sinais ambíguos nessa área, como ao colocar freio no acordo com a União Europeia sob a justificativa de reservar o mercado de compras governamentais para empresas nacionais. Em especial, o governo está preocupado em manter as licitações do SUS restritas a fornecedores instalados no País, alimentando a ideia de criação de um Complexo Industrial da Saúde. Ou seja, a prioridade deixa de ser atender a população com o menor custo e a maior qualidade possível, e passa a ser a substituição de importações no fornecimento ao SUS. 

A evidência empírica indica que a estratégia de fazer exigências de conteúdo local para desenvolvimento da indústria nacional teve algum sucesso em casos muito específicos, mas se mostrou ineficaz na maioria das experiências internacionais: quanto mais sensível é o Poder Público à ação de grupos de pressão, mais essa política tende a se degradar na proteção de empresas ineficientes, sem ganhos de produtividade no médio prazo, restringindo a competição e a inovação. Há anos temos esse tipo de exigência em diversas políticas: nos financiamentos concedidos por bancos públicos, nos benefícios da Zona Franca de Manaus, na lei de licitações. Não há avaliações de impacto que mostram saldo positivo entre benefícios e custos. 

No entanto, a orientação do governo é para aprofundar a política. Recente reunião do Conselho Nacional de Política Energética desfez parte da reforma de 2017, elevando os requisitos mínimos de compra de insumos nacionais por empresas de exploração de petróleo e gás. Em uma agenda de pesquisa aplicada sobre a regulação no setor de óleo gás, o núcleo de energia da UFRJ constatou que as políticas de conteúdo nacional prejudicam a produção e desestimulam a concorrência, tendo por vezes resultados opostos aos pretendidos. Diana Pietro mostrou que essa política derrubava significativamente as expectativas de retorno e eram determinantes para que uma operadora desistisse de dar lances num leilão ou abandonasse campos já adquiridos. Edmar Almeida e coautores mostraram que em um cenário sem exigência de conteúdo local os investimentos da indústria de petróleo gerariam 60 mil empregos a mais no ano de pico de produção. 

O Governo tenta reverter na Justiça a privatização da Eletrobras, questionando as regras aprovadas em lei. Também tentou interferir em decisões da empresa, agora privada, como no episódio da absorção de Furnas, uma subsidiária da Eletrobras, pela holding. 

A Vale, outra empresa privada, também está na mira do governo. Isso revela a fragilidade do marco legal do País, sujeito ao mando arbitrário de plantão em Brasília, o que prejudica os investimentos. O Congresso Nacional tem dado respaldo a lobbies de diversos participantes do mercado de energia. 

A lei que aprovou a privatização da Eletrobras continha “jabutis” criando mercados cativos ou reserva de recursos para remunerar fontes ou mecanismos de transmissão de energia que não são os mais eficientes, ou obrigando a construção de uma logística desnecessária, que beneficia alguns produtores, mas implicará custo adicional a ser pago na conta de energia das famílias. 

Atualmente discute-se um projeto de regulamentação de geração de energia eólica offshore (PL 11.247/2018), que se tornou um cabide para pendurar diversos outros interesses. O resultado é o aumento da conta de energia. Parlamentares usualmente buscam impedir aumentos de tarifas de energia determinados pela ANEEL, muitas vezes causados por subsídios que eles próprios patrocinaram. Mais uma vez, insegurança jurídica e desestímulo ao investimento. Ao final do ano foi aprovado o “Programa Mover” de estímulo à indústria automobilística. Trata-se de reencarnação de dois programas anteriores, o “Inovar-Auto” e o “Rota 2030”. Todos foram criados com o mote de estimular a inovação e a descarbonização, mas o objetivo principal sempre foi a proteção contra a concorrência internacional. Avaliação independente mostra as fragilidades e o alto custo das iniciativas. 

Simultaneamente, aumentou-se o imposto de importação sobre carros elétricos. A Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), ao longo de 2023, também aumentou a tributação na importação de produtos siderúrgicos, químicos, painéis solares e pneus, revertendo o tímido movimento de abertura dos governos anteriores. Foi enviado ao Congresso projeto de lei prevendo a depreciação acelerada de máquinas e equipamentos, para efeitos fiscais. Tenta-se gerar competitividade mediante subsídios, quando o que a economia precisa é de acesso a máquinas e equipamentos modernos, disponíveis no mercado internacional, como apontado por Lisboa e coautores. 

O governo anunciou um programa para vender passagens aéreas baratas a estudantes e aposentados. Será preciso dar contrapartidas às empresas. Abrir o balcão do BNDES com subsídio, garantir combustíveis mais baratos para este setor ou conceder benefícios tributários serão opções que, cedo ou tarde, serão colocadas sobre a mesa. Além disso, aposentados e muitos estudantes fazem parte de grupos de renda média, que receberão recursos extraídos da sociedade em vez dos grupos sociais mais vulneráveis. 

A Petrobras aprovou um plano de negócios com espaço para voltar a fazer política pública intervencionista. Simbolicamente, o Presidente da República deu início à retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, um símbolo bilionário do mau planejamento e uso político da estatal. A empresa também cancelou a privatização da refinaria Lubnor e sinalizou interesse em reestatizar Mataripe por meio de questionamento judicial da venda. Isso contraria acordo de reversão de conduta anticoncorrencial firmado como o CADE e fragiliza a segurança jurídica. A política de preços da estatal tornou-se opaca. 

Em 2023, com a ajuda da queda do petróleo no mercado internacional, foi possível puxar os preços internos para baixo sem prejudicar a lucratividade. Vejamos o que acontecerá quando os preços começarem a subir no exterior. A experiência passada mostra que essas políticas levaram à perda de valor da empresa, abuso de práticas monopolistas e perda de eficiência econômica. 

A marcha à ré nas privatizações não foi apenas no âmbito da Petrobras e Eletrobras. Houve também a simbólica desistência da extinção da empresa de produção de chips (CEITEC). Além disso, houve a volta das indicações de políticos com pouco conhecimento técnico para a gestão e os conselhos dessas empresas, com base em liminar concedida pelo STF que enfraqueceu a lei das estatais. 

O BNDES foi o motor da política de indução de crescimento no passado recente. Avaliação feita pelo próprio governo federal aponta que os subsídios creditícios oferecidos pelo Banco não tiveram impacto nos investimentos das grandes empresas beneficiárias, resultado similar ao obtido por Bonomo e coautores, a partir de extensa base de microdados sobre os créditos concedidos e o desempenho dessas empresas. Não obstante essas evidências, o Banco está construindo instrumentos para voltar a atuar como no passado, expandindo a concessão de crédito subsidiado para empresas selecionadas, à custa de dívida pública e dos recursos captados por meio de tributos: conseguiu, junto ao TCU, postergar devolução ao Tesouro de empréstimos irregulares e vai lançar título próprio, ganhando autonomia em relação ao Orçamento e, ao mesmo tempo, tornando-se concorrente do Tesouro na captação de recursos. Foi colocado sob gestão do Banco o recém-criado “Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico”. Um fundo privado, voltado a financiar política industrial, fora do Orçamento, mas que receberá recursos públicos. Com isso, aumenta a intervenção pública no mercado de crédito, o que trabalha contra a eficiência alocativa, diminui a potência da política monetária e prejudica as novas empresas em favor das grandes e já estabelecidas. O Banco também está desenhando uma política de proteção cambial a investidores estrangeiros que, ao fim e ao cabo, significa transferir para o contribuinte o custo e risco de oscilações cambiais, que deveriam ser suportados pelos investidores. Assim, se a volatilidade cambial ocorrer, o contribuinte passa a pagar a conta que caberia ao acionista. Foi estancada a venda de ações da carteira do BNDESpar, que seria a forma mais lógica e eficiente de prover funding ao banco, uma vez que não há sentido em manter participação em empresas já consolidadas no mercado. Aproveita-se essa participação acionária do BNDES para instalar políticos nos conselhos de empresas privadas. Abriu-se uma brecha para a realização de financiamentos com taxas subsidiadas, abaixo da TLP. A brecha pode ser ampliada, no futuro, por simples decisão do Conselho Monetário Nacional (Lei 14.592/23 e PL 6.235/23). Conclusões Ao final de 2023 vimos resultados macroeconômicos positivos em termos de crescimento, inflação e emprego. 

Em boa medida, estamos colhendo os frutos de esforços de reforma de governos anteriores, com a ajuda de um cenário externo favorável, e da não concretização de intenções anunciadas pelo novo governo, como a revisão da autonomia do Banco Central ou a revogação de outras reformas. No entanto, o que está sendo plantado hoje não traz bons augúrios para o futuro: temos uma sucessão de medidas contrárias ao crescimento da produtividade e à segurança jurídica. Não são iniciativas isoladas, de baixo impacto. Trata-se da retomada da agenda adotada pelo governo Geisel e resgatada no segundo mandato de Lula. Volta agora como um plano de “reindustrialização” baseado em “missões do governo.” Conteúdo antigo em embalagem nova. 

O fracasso do passado traz preocupação com a reincidência nas mesmas políticas. As perspectivas fiscais, não tratadas neste artigo, também pouco ajudam. Para 2024, há sinais de atividade econômica andando de lado. 

Como o governo reagirá se no primeiro semestre deste ano se confirmar o baixo crescimento? Ele terá a paciência de preservar ajustes e contenção para auxiliar na retomada sustentável da economia a médio prazo? Ou, como feito tantas vezes no passado, vai declarar que temos que estimular a economia no curto prazo e dobrar a aposta nas intervenções discricionárias e fragilizar ainda mais o fiscal, além de tornar o monetário leniente com a inflação? Vamos reincidir nas políticas do passado, como as adotadas a partir de 2008, que resultaram na grave crise iniciada em 2014, com tantos projetos fracassados, incluindo refinarias e estaleiros? Vamos continuar presos à ciclotimia das reformas e retrocessos ou conseguiremos romper com o passado de volatilidade do crescimento?

 

Marcos Lisboa é ex-presidente do Insper. Marcos Mendes é doutor em Economia.

Leia mais em https://braziljournal.com/dois-para-frente-um-para-tras-os-retrocessos-e-distorcoes-que-sabotam-o-brasil/ .

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Reformas (economia brasileira) - Marcos Lisboa (FSP)

Reformas

Marcos Lisboa

Folha de S.Paulo18/10/2020


Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

Aumentaram os sinais de preocupação com a paralisia da agenda de reformas. Os problemas recrudescem depois da recuperação dos últimos meses.

A desvalorização cambial afetou os índices de preços no atacado. Contratos indexados ao IGP, como aluguéis, terão reajustes perto de 20%. A inflação de alimentos está alta e, aos poucos, contamina outros preços.

Os indicadores de vendas no varejo começam a arrefecer. Os dados de atividade que sairão nas próximas semanas vão refletir o terceiro trimestre, mas não a desaceleração atual do consumo. A incerteza sobre a sustentabilidade da dívida pública leva ao aumento das taxas de juros, o que desestimula o investimento.

Reformas que reduzam o crescimento do gasto público obrigatório, contudo, são rejeitadas por sindicatos de servidores. A revisão de subsídios, por sua vez, encontra resistência no setor privado.

Há consenso sobre a disfuncionalidade do regime tributário. As muitas regras existentes distorcem os preços relativos e induzem decisões ineficientes de produção, prejudicando a produtividade e também o crescimento.

A maioria defende uma reforma que elimine as distorções, porém desde que não reduza seus próprios privilégios. Não atentam que já pagam mais tributos do que imaginam em razão das elevadas alíquotas incidentes sobre insumos essenciais, como energia.

Os grupos organizados se recusam a ser tratados como os demais e inviabilizam a adoção de uma alíquota única para todos os bens e serviços. O impasse preserva o regime que torna o país mais pobre.

Discute-se um novo tributo sobre pagamentos, assemelhado à CPMF, que prejudica o investimento e o crédito, em troca da redução da contribuição sobre a folha salarial, que financia a Previdência.

Não se discute, porém, reduzir a contribuição para o Sistema S, que onera igualmente a folha, só que para sustentar interesses privados e representações patronais, como Fiesp, CNI e CNS.

As reformas são combatidas pelos grupos organizados, públicos e privados, que sobrevivem graças aos favores do Estado patrimonialista.

A maioria da sociedade civil, aquela parte que trabalha e que paga a conta, por vezes se divide e se opõe às reformas para preservar seus pequenos privilégios, como subsídios.

As lideranças dessa maioria deveriam apoiar uma agenda que passe a tratar com isonomia os diversos setores produtivos, a começar pela tributação. Além disso, há o desafio de reduzir as imensas distorções do setor público, inclusive nos estados e municípios. Não será fácil, pois todos teremos que aceitar perdas pontuais.

Apenas dessa forma conseguiremos nos contrapor aos interesses cartoriais que nos condenam à mediocridade.

 

domingo, 1 de dezembro de 2019

Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista - Paulo Hartung, Marcos Lisboa, Samuel Pessôa




OPINIÃO
Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista
País precisa retomar diálogo para evitar radicalismos e reencontrar equilíbrio, afirmam autores
Folha de São Paulo, Ilustríssima, domingo 1//12/2019

Paulo Hartung, Marcos Lisboa, Samuel Pessôa


[RESUMO] Políticas equivocadas de governos petistas, hoje ignoradas por Lula e seu partido, produziram crise e alimentaram a ascensão da extrema direita. País precisa retomar diálogo para evitar radicalismos e reencontrar equilíbrio.

Lula foi solto e mobilizou o debate político nas últimas semanas. Em tempos conturbados na América Latina, havia a possibilidade de um discurso pacificador que convidasse ao diálogo. Afinal, quando eleito presidente pela primeira vez, em 2002, depois de seguidas derrotas, optou pela cautela na economia e pela negociação na política.
Em vez disso, resgatou frases de efeito dos tempos em que tratava a política como disputa sindical. O paraíso está logo ali, desde que se derrotem os inimigos, afirmou com a veemência dos mercadores de ilusões.
O ex-presidente preferiu a bravata, e não foi a primeira vez. Extasiado pelo sucesso de seu primeiro mandato conservador na política econômica, Lula resgatou a promessa populista que desconsidera as restrições para distribuir favores a grupos organizados, aos movimentos sociais aos setores empresariais.
Em tempos de vacas gordas, seu segundo mandato (2007-10) retomou os planos mirabolantes de desenvolvimento da ditadura militar, acreditando que a disseminação dos subsídios e proteções ao investimento local resultaria em crescimento sustentado.

Na América Latina, o populismo se caracteriza pela retórica dominada por referências a inimigos que devem ser derrotados. Há interesses escusos da elite e de forças externas, que exploram o país em meio a uma agenda de dominação.
Esse discurso procura congregar grupos diversos da sociedade, por vezes antagônicos, enfatizando o inimigo comum a ser combatido. Podem ser a agenda neoliberal e o imperialismo americano, para os mais à esquerda; ou o comunismo e seus países de origem, para os mais à direita.
No caso do petismo, há os vínculos do partido com as ditaduras de esquerda do continente. Há o apoio ao governo venezuelano responsável pela maior crise humanitária no continente (15% da população já emigrou), além de eventos obscuros, como a devolução dos dois boxeadores cubanos que buscaram asilo no Brasil ou a defesa veemente do italiano Cesare Battisti.
Quando esses eventos são lembrados, moderados ligados ao PT afirmam que se trata de “discurso para a militância”, de retórica sem muita importância. Discordamos. Parece ilustrar um sentimento genuinamente autoritário presente no partido. Se não for esse o caso, resta a pergunta: então mentir vale?
Frente a esses sinais autoritários, a figura sóbria de Fernando Haddad defendendo a social-democracia da Suécia não é convincente.

A outra face do populismo é o desprezo pelas evidências sobre o impacto das propostas econômicas.
Ambos os extremos populistas, à esquerda e à direita, supõem que os problemas se resumem a um conflito distributivo: de um lado, a imensa maioria da sociedade, oprimida; de outro, os inimigos exploradores. Por essa razão, para os líderes populistas interessa apenas a hegemonia na política e a implementação de medidas que protejam os interesses imediatos de seus apoiadores.
Uma característica importante dessa retórica é avaliar a política pública apenas pelos objetivos, sendo irrelevante discutir seus custos e eficácia. Em 2003, alguns economistas alertaram que a política do primeiro emprego fracassaria. A reação foi declarar que os críticos eram contra proteger os mais jovens.
Perón, um dos pais do populismo latino, certa vez escreveu ao então presidente do Chile, Carlos Ibáñez:
“Meu caro amigo: dê ao povo tudo o que for possível. Quando lhe parecer que você está dando muito, dê mais. Você verá o resultado. Todos irão apavorá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia, que todos temem tanto porque ninguém a entende”.
A má notícia é que os ganhos se revelam fugazes, e a conta chega em meio a desastres econômicos. A economia não é tão elástica assim. Perón inaugurou as décadas de decadência da economia argentina, e o governo Lula desperdiçou talvez a melhor oportunidade de desenvolvimento sustentado do país.
Lula livre falou contra a reforma da Previdência. Cometeu o erro crasso de afirmar que o projeto aprovado neste ano era a implantação do modelo chileno por capitalização. Falou contra as reformas em geral, entre as quais a trabalhista. Certamente, rejeita a administrativa.


Como todo populista latino-americano, Lula defende os interesses dos grupos organizados, sem mencionar seus efeitos colaterais sobre o restante da população, como obter surtos de expansão da atividade e do emprego à custa de comprometer o crescimento sustentado do país. Trocam-se alguns anos de expansão moderada da economia por uma década de retrocesso.
Entre os anos de 2003 e 2010, o Brasil cresceu, segundo dados do FMI, 4,0%, ante 4,1% do restante da América Latina e 4,2% da economia mundial. Enquanto isso, os demais países emergentes cresciam a taxas bem mais elevadas.
De 2011 até 2014, o Brasil ficou para trás. A taxa média de crescimento da economia mundial caiu para 3,6%, bem próxima da média do restante da América Latina. No caso do Brasil, porém, o crescimento anual médio caiu para 2,2% nesse período, com tendência de queda. A renda aumentou apenas 0,5% em 2014, na transição para uma das mais severas recessões da nossa história.
Os sinais de perda de dinamismo de nossa economia são bem anteriores ao agravamento da crise em 2015. Entre 2010 e 2014 a lucratividade das empresas negociadas na Bovespa e das principais empresas de capital fechado, segundo levantamento do Cemec (Centro de Estudo de Mercado de Capitais) conduzido pelo professor Carlos Rocca, caiu de 5,3% do PIB para 1,2% em meio à queda da produtividade.

Lula não falou sobre seu legado, mas fica a pergunta: o intervencionismo de seu governo foi positivo?
A política para desenvolver a indústria naval, a terceira tentativa em 60 anos, funcionou? Foi eficaz a agenda do PT de transferir mais de R$ 500 bilhões ao BNDES para fomentar a concessão de crédito direcionado com subsídio? Deu certo estimular a construção de inúmeras refinarias de petróleo pelo Brasil, sem que a proposta atendesse a critérios mínimos de viabilidade econômica?
A mudança do marco regulatório do petróleo e o atraso de cinco anos nos leilões do pré-sal atenderam aos interesses nacionais? As políticas de desoneração tiveram sucesso? Foi benéfico para o país ter rejeitado o ajuste fiscal estrutural proposto por Antonio Palocci em 2005? A política de conteúdo nacional resultou em desenvolvimento? 
Gostaríamos imensamente que Lula respondesse a essas perguntas em seus próximos pronunciamentos.
Melhor ainda seria se Lula e seus assessores descrevessem que políticas adotadas desde 2009 foram bem-sucedidas. Quais empresas apoiadas pelo seu governo continuam produzindo eficientemente ou estão isentas de escândalos de corrupção?
Não se trata de descartar de antemão a necessidade de intervenção estatal em várias circunstâncias; afinal, muitos países desenvolvidos se beneficiaram de políticas públicas durante a crise de 2008. Trata-se apenas de reconhecer que os instrumentos e políticas adotados pelo petismo fracassaram, revelando erro de diagnóstico ou falta de técnica. 
A opção por intervenções públicas discricionárias, em que o burocrata de plantão escolhe a quem beneficiar, resultou em investimentos ineficientes e baixa produtividade que comprometem o crescimento da economia brasileira.
Serão precisos muitos anos para corrigir as imensas decisões de produção fracassadas do petismo, dos estaleiros ineficientes aos estádios de futebol vazios, das empresas pouco competitivas beneficiadas pela proteção oficial aos projetos de logística que prometiam muito e entregam pouco.
Nos últimos anos, as lideranças do PT inventaram uma narrativa sobre a história recente. A economia vinha bem, porém Dilma cometeu pequenos erros ao atender à agenda Fiesp de intervenções setoriais, como no setor elétrico, e ao conceder desonerações a setores selecionados. Aécio não aceitou o resultado eleitoral e estimulou as pautas-bomba. A Operação Lava Jato e seu impacto sobre a construção civil, em conjunto com o “austericídio” de Joaquim Levy, completaram o serviço. O resultado foi a maior crise dos últimos 120 anos.

Essa narrativa responsabiliza terceiros pela crise e tenta salvar o populismo de esquerda. Afirma que o intervencionismo petista não foi ineficaz nem custou centenas de bilhões de reais ao Tesouro. A crise da Petrobras não seria o resultado de suas dificuldades financeiras (a dívida ficou cinco vezes maior do que a geração de caixa), mas da Lava Jato. Ainda, a queda do investimento público não teria decorrido do esgotamento dos recursos do Tesouro Nacional ou dos bancos públicos. 
De acordo com essa narrativa, não há desequilíbrio no Estado brasileiro. Um coronel da PM pode se aposentar aos 50 anos de idade, com proventos vitalícios de R$ 30 mil mensais. Funcionários do setor privado podem parar de trabalhar com menos de 55 anos de idade e acumular aposentadoria com pensão. Os professores da rede pública podem se aposentar após 25 anos de serviço com remuneração integral.
Entre os anos de 2003 e 2015, o governo dobrou a despesa por aluno do ensino fundamental, descontada a inflação. O Brasil atualmente gasta bem mais com educação que outros países emergentes, porém temos resultados constrangedores nos exames internacionais de aprendizado no ensino médio.
Para o velho populismo, no entanto, nenhuma reforma na gestão pública é necessária. Basta tributar os mais ricos e teremos recursos para tudo. Hugo Chávez, com petróleo acima de US$ 100, deixou como herança um país bem pior do que recebera. Não faltavam recursos, faltava racionalidade e sobrava populismo.
Alguns ainda duvidam que a reforma da Previdência atenda aos interesses dos mais necessitados e corrija parte da nossa injustiça. Os céticos deveriam ler o relatório do Instituto Mercado Popular sobre o tema.
Vale lembrar que o período do presidente Lula se iniciou com forte ajuste fiscal e uma agenda extensa de reformas liberais. No seu primeiro ano de governo, houve aumento da meta de superávit primário e da taxa de juros para equilibrar as contas públicas e controlar a inflação. Foi encaminhada ao Congresso a reforma da Previdência dos servidores públicos, em meio a diversas medidas para aperfeiçoar o mercado privado de crédito.

A política econômica ortodoxa do primeiro governo Lula foi bem-sucedida em reduzir a inflação e em retomar o crescimento econômico, além de ter se beneficiado da expansão do comércio mundial.
O sucesso do governo, no entanto, resultou em escolhas trágicas. 
A retomada do crescimento permitiu a volta do populismo e dos delírios de grandeza. A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, reagiu violentamente à proposta de controle dos gastos públicos, que aumentavam bem mais do que a renda. “Gasto é vida”, disse a ministra, apoiada pelo presidente.
Nos anos seguintes, a gestão Lula retomou a agenda desenvolvimentista do governo Geisel (1974-79), revelando uma perturbadora semelhança entre as políticas econômicas da direita e a da esquerda. Ambos acreditaram que a disseminação de estímulos à produção local conduziria ao crescimento econômico sustentado. Ambos legaram um país com contas públicas desorganizadas e uma crise econômica anunciada.
Todos os grandes projetos iniciados pelo segundo governo Lula fracassaram. Ele passou o bastão para Dilma, deixando como herança obras de infraestrutura caras, muitas vezes inoperantes, e empresas ineficientes, em meio a um impressionante desperdício de recursos públicos. Nada diferente do que ocorrera com os delírios do período militar.
Esse populismo e seus resultados catastróficos foram o que terminou por fortalecer a extrema direita, que não hesita em justificar a truculência do AI-5 como reação aceitável frente a manifestações democráticas.
Para agravar, existe uma imensa parte da elite brasileira beneficiada pelos favores oficiais, mas que acredita ser parte da classe média de um país rico, apenas desigual.
O excesso de discricionariedade da política econômica favorece empresas que se beneficiam de regimes tributários especiais, além de entidades privadas que recebem recursos compulsoriamente arrecadados da sociedade, como o Sistema S.

A imensa desigualdade de oportunidades no país explica o apoio da parte importante da população ao discurso populista. Famílias com crianças sem acesso a serviços públicos essenciais, como saneamento ou educação fundamental, produzem novas gerações à margem da sociedade formal.
As periferias das grandes cidades, com jovens que não estudam nem trabalham, que optam pelo crime ou engravidam precocemente, revelam a fonte da tragédia que alimenta discursos oportunistas e violentos.
A imensa pobreza no Brasil tem muitas causas, mas a principal, segundo a evidência disponível, é a falta de acesso das novas gerações ao cuidado na primeira infância e à educação fundamental de qualidade, que garanta o aprendizado em português e matemática. Sem a aquisição dessas competências, os resultados são baixa produtividade e pouca mobilidade social.
A direita se revela indignada com os equívocos da social-democracia; no entanto parece ignorar o desastre de um país que descuida das novas gerações. Numa nação com tamanha desigualdade de oportunidades, não deve surpreender o apelo persistente da velha retórica.
O discurso da extrema direita contra as escolhas individuais e a liberdade de expressão acaba por conferir legitimidade à oposição raivosa da esquerda, que alega se preocupar com os mais pobres e a solidez da democracia. Essa direita é filha do populismo irresponsável patrocinado pelo PT, porém, com sua insensibilidade e brutalidade, acaba por favorecer o renascimento da esquerda autoritária.
A arrumação do desastre produzido pelo petismo, de um lado, e pelo primarismo de certa direita que rejeita a ciência, de outro, requer a opção pelo diálogo e o reconhecimento dos nossos problemas. Temos um Estado caro em meio a um país pobre. Três horas do dia de trabalho de um brasileiro são apropriadas pelo poder público, boa parte usada para pagar servidores ou distribuir as incontáveis meias-entradas da nossa sociedade.
Podemos continuar nessa trajetória disfuncional, em que os muitos setores organizados disputam as benesses do poder público. Ou podemos optar por outro caminho, que permita a retomada do crescimento sustentado com solidariedade social.
Essa agenda passa pela reforma do Estado e pela reconstrução do centro progressista. Sem maior eficiência do poder público na provisão dos serviços de saúde, educação e segurança, além do cuidado com a imensa população das periferias urbanas, não avançaremos em direção à maior igualdade de oportunidade.
A reforma administrativa é essencial para essa agenda. Novos aumentos da carga tributária não resultarão em melhoria da qualidade da educação fundamental, caso não se alterem a estrutura de incentivos dos servidores públicos e os instrumentos de gestão, como reconhecer os melhores servidores públicos com maior remuneração.
A política pública deve ser avaliada por seus resultados. A criação de municípios desde a redemocratização melhorou o acesso a políticas públicas em regiões antes não atendidas? Os alunos passaram a aprender mais? A saúde da população melhorou?

Não basta, porém, corrigir os graves desvios do setor público. É necessário também que a economia volte a crescer.
Nos últimos 35 anos, a produtividade do trabalho no Brasil cresceu 0,5% ao ano, bem menos que na economia americana, a mais rica do mundo, afastando-nos ainda mais da fronteira do desenvolvimento, da qual, em tese, deveríamos estar nos aproximando, como tem ocorrido com tantos países emergentes.
A melhoria da educação contribui para aumentar a produtividade. A agenda para a retomada do crescimento inclui ainda a redução das distorções tributárias. As decisões de investimento devem ser motivadas pela sua rentabilidade para a sociedade, não por benefícios decorrentes do menor pagamento de impostos.
A abertura da economia ao comércio exterior permitiria o maior acesso a bens de capital mais eficientes ou a insumos mais baratos, contribuindo para o aumento da produção e da renda.
A desigualdade é tão profunda em nossa sociedade, no entanto, que não bastam políticas de igualdade de oportunidade e de aumento da produtividade. É necessário que o poder público intervenha, reduzindo a inequidade de renda entre os adultos por meio da progressividade dos impostos. Essa agenda, além de reduzir a desigualdade, ajuda a dotar o Estado de orçamento para financiar suas ações.

O caminho aqui é escorregadio. A retórica populista afirma que os ricos pagam pouco imposto, afinal dividendos são isentos de tributação. Não é bem assim. Lucros são tributados da mesma forma que salários. A sutileza decorre da nossa escolha por um modelo mais prático de arrecadação: tributar a geração de renda na fonte, na pessoa jurídica. Isso vale tanto para os trabalhadores quanto para os acionistas, que recebem salários e lucros já descontados os tributos devidos.
Nos últimos anos, diversos países têm optado por reduzir a cobrança de impostos sobre os lucros nas empresas, aumentando, por outro lado, a tributação na distribuição de dividendos. A conta, porém, deve considerar o total do imposto pago pelo lucro, quando gerado pela empresa, e do quanto é pago pelo acionista ao receber o dividendo.
As maiores distorções na tributação se encontram nas empresas que optam pelos regimes tributários especiais, Simples e lucro presumido, que, tudo considerado, pagam bem menos tributos que assalariados ou acionistas das empresas tributadas pelo lucro real.
O populismo dá voltas. Na Argentina, os descendentes de Perón herdarão uma economia em recessão, inflação de 60% ao ano e déficit primário de 1% do PIB. Néstor e Cristina Kirchner desorganizaram a economia que Eduardo Duhalde havia arrumado. A desconstrução foi lenta, pois as condições eram favoráveis, com o aumento no preço das commodities e uma economia que partia do fundo do poço da mais profunda recessão do século 20.
Mauricio Macri optou por não enfrentar os problemas, enganou a turma do mercado financeiro e agora passa o bastão de uma economia em crise severa. A conta ficou para o peronismo, que terá de enfrentar o dilema entre fazer o ajuste ou assistir à volta da hiperinflação.
No Brasil, tangenciamos o abismo nesta década. Lula solto recupera a sua velha retórica populista. Num país em que radicais de esquerda e de direita se alimentam mutuamente, existe a opção pelo resgate da agenda social-democrata, que procura equilibrar os benefícios de uma economia de mercado com políticas públicas que cuidem dos mais vulneráveis.
Podemos continuar a repetir compulsivamente a retórica populista do passado ou optar pelo diálogo, reconhecendo erros e aprendendo com a experiência. 

Paulo Hartung, economista, foi por duas vezes governador do Espírito Santo (2003-11 e 2015-19).
Marcos Lisboa, presidente do Insper e colunista da Folha, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-05).
Samuel Pessôa, doutor em economia pela USP, pesquisador do Ibre da FGV e sócio da Julius Bär Family Office, é colunista da Folha.
Ilustração de André Stefanini, artista gráfico e ilustrador.