Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil
Marcos Lisboa, Marcos Mendes
Brazil Journal, 21/01/2024
Nas últimas cinco décadas, a economia brasileira tem tido um comportamento ciclotímico: são sequências de anos bons seguidos por crises severas. De acordo com o Banco Mundial, entre 1980 e 2019, nos períodos em que tivemos variação positiva do PIB per capita, o nosso crescimento médio (2,8%) até superou o da economia líder do mundo, os EUA (2,2%).
O problema é que levamos muito mais tombos: tivemos 14 anos de variação negativa do PIB per capita, contra apenas 7 dos EUA. E nossas quedas foram mais intensas: em média, de 2,6%, contra apenas 1,9% nos EUA.
Essa volatilidade – que prejudica o investimento, a expansão da infraestrutura e o aumento recorrente da produtividade – tem origem numa política econômica igualmente ciclotímica.
Em alguns momentos, surpreendentemente conseguimos aprovar reformas importantes, como a da Previdência e a Tributária, que há muito vinham sendo evitadas. Mas assim que o cenário econômico melhora, o Brasil aceita diversos retrocessos, concedendo benefícios a grupos organizados que fragilizam as contas públicas e pioram nossa eficiência produtiva.
Neste artigo mostramos o risco de que esses retrocessos mantenham o nosso histórico de política econômica ciclotímica, causadora de volatilidade: alguns anos de crescimento razoável seguidos de crises – o clássico “voo de galinha” – resultando num desempenho medíocre no médio e longo prazos.
Tratamos da ciclotimia da política fiscal em diversos artigos. Com o crescimento da arrecadação, a despesa permanente com salários, aposentadorias e benefícios aumenta, como ocorreu em muitos municípios desde a pandemia. Mas quando os tempos ficam mais difíceis, essa despesa não pode ser reduzida, e a conta cai no colo da União.
Neste texto vamos nos concentrar nos retrocessos regulatórios recentes bem como nas distorções no ambiente de negócio que prejudicam a produtividade e o crescimento sustentável. Fizemos muitas reformas.
O país passou por reformas significativas, em especial a partir de 2015. Muitos analistas apontam indícios de que a reforma da legislação trabalhista tem parte do mérito pela queda do desemprego sem a correspondente pressão inflacionária. A reforma da previdência ajudou a tornar menos agudo o problema fiscal.
A autonomia do Banco Central colaborou com o bem-sucedido processo recente de desinflação. Muitas outras ajudarão no crescimento dos próximos anos, desde a Agenda BC# até os marcos regulatórios de infraestrutura.
O atual governo contribuiu de modo relevante. A aprovação da reforma tributária, discutida há mais de vinte anos, promete grande simplificação, redução de custos e incentivo à racionalização da produção. Um feito de primeira grandeza.
Além disso, deu-se continuidade a esforços do governo anterior, como na regulamentação de apostas esportivas, no marco regulatório do setor de ferrovias e de garantias de operações de crédito.
Mas o fato de termos feito muitas reformas não quer dizer que temos uma agenda claramente modernizadora. Pelo contrário. É espantosa a facilidade com que adotamos políticas que deterioram o ambiente de negócios, diminuem a concorrência, criam cartórios e fragilizam as contas públicas. Sinais preocupantes para o futuro O cenário internacional foi melhor em 2023 do que se esperava há um ano, com queda da inflação impondo, até agora, baixo custo sobre a produção e o emprego. Internamente, porém, nos encontramos na perigosa fase do ciclo em que as reformas recentes nos ajudam a tirar o nariz do ambiente de crise, e se abrem oportunidades para retrocessos. Os sinais emitidos desde o fim da pandemia têm sido preocupantes.
Vamos listar diversas questões regulatórias. O Poder Executivo acredita que o crescimento pode ser impulsionado por meio da distribuição de proteção e subsídios a setores organizados. O Congresso, por sua vez, é bastante sensível ao lobby desses setores. Isso deixa a porta aberta para a rápida aprovação de múltiplas políticas de proteção comercial e subsídios, além de decisões que desrespeitam a segurança jurídica.
Fernando Veloso sistematiza a evidência empírica das consequências negativas desse tipo de política sobre a produtividade e o crescimento. Retrocessos regulatórios A pesquisa acadêmica com micro dados identifica a importância da integração econômica para o crescimento.
No entanto, o governo oferece sinais ambíguos nessa área, como ao colocar freio no acordo com a União Europeia sob a justificativa de reservar o mercado de compras governamentais para empresas nacionais. Em especial, o governo está preocupado em manter as licitações do SUS restritas a fornecedores instalados no País, alimentando a ideia de criação de um Complexo Industrial da Saúde. Ou seja, a prioridade deixa de ser atender a população com o menor custo e a maior qualidade possível, e passa a ser a substituição de importações no fornecimento ao SUS.
A evidência empírica indica que a estratégia de fazer exigências de conteúdo local para desenvolvimento da indústria nacional teve algum sucesso em casos muito específicos, mas se mostrou ineficaz na maioria das experiências internacionais: quanto mais sensível é o Poder Público à ação de grupos de pressão, mais essa política tende a se degradar na proteção de empresas ineficientes, sem ganhos de produtividade no médio prazo, restringindo a competição e a inovação. Há anos temos esse tipo de exigência em diversas políticas: nos financiamentos concedidos por bancos públicos, nos benefícios da Zona Franca de Manaus, na lei de licitações. Não há avaliações de impacto que mostram saldo positivo entre benefícios e custos.
No entanto, a orientação do governo é para aprofundar a política. Recente reunião do Conselho Nacional de Política Energética desfez parte da reforma de 2017, elevando os requisitos mínimos de compra de insumos nacionais por empresas de exploração de petróleo e gás. Em uma agenda de pesquisa aplicada sobre a regulação no setor de óleo gás, o núcleo de energia da UFRJ constatou que as políticas de conteúdo nacional prejudicam a produção e desestimulam a concorrência, tendo por vezes resultados opostos aos pretendidos. Diana Pietro mostrou que essa política derrubava significativamente as expectativas de retorno e eram determinantes para que uma operadora desistisse de dar lances num leilão ou abandonasse campos já adquiridos. Edmar Almeida e coautores mostraram que em um cenário sem exigência de conteúdo local os investimentos da indústria de petróleo gerariam 60 mil empregos a mais no ano de pico de produção.
O Governo tenta reverter na Justiça a privatização da Eletrobras, questionando as regras aprovadas em lei. Também tentou interferir em decisões da empresa, agora privada, como no episódio da absorção de Furnas, uma subsidiária da Eletrobras, pela holding.
A Vale, outra empresa privada, também está na mira do governo. Isso revela a fragilidade do marco legal do País, sujeito ao mando arbitrário de plantão em Brasília, o que prejudica os investimentos. O Congresso Nacional tem dado respaldo a lobbies de diversos participantes do mercado de energia.
A lei que aprovou a privatização da Eletrobras continha “jabutis” criando mercados cativos ou reserva de recursos para remunerar fontes ou mecanismos de transmissão de energia que não são os mais eficientes, ou obrigando a construção de uma logística desnecessária, que beneficia alguns produtores, mas implicará custo adicional a ser pago na conta de energia das famílias.
Atualmente discute-se um projeto de regulamentação de geração de energia eólica offshore (PL 11.247/2018), que se tornou um cabide para pendurar diversos outros interesses. O resultado é o aumento da conta de energia. Parlamentares usualmente buscam impedir aumentos de tarifas de energia determinados pela ANEEL, muitas vezes causados por subsídios que eles próprios patrocinaram. Mais uma vez, insegurança jurídica e desestímulo ao investimento. Ao final do ano foi aprovado o “Programa Mover” de estímulo à indústria automobilística. Trata-se de reencarnação de dois programas anteriores, o “Inovar-Auto” e o “Rota 2030”. Todos foram criados com o mote de estimular a inovação e a descarbonização, mas o objetivo principal sempre foi a proteção contra a concorrência internacional. Avaliação independente mostra as fragilidades e o alto custo das iniciativas.
Simultaneamente, aumentou-se o imposto de importação sobre carros elétricos. A Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), ao longo de 2023, também aumentou a tributação na importação de produtos siderúrgicos, químicos, painéis solares e pneus, revertendo o tímido movimento de abertura dos governos anteriores. Foi enviado ao Congresso projeto de lei prevendo a depreciação acelerada de máquinas e equipamentos, para efeitos fiscais. Tenta-se gerar competitividade mediante subsídios, quando o que a economia precisa é de acesso a máquinas e equipamentos modernos, disponíveis no mercado internacional, como apontado por Lisboa e coautores.
O governo anunciou um programa para vender passagens aéreas baratas a estudantes e aposentados. Será preciso dar contrapartidas às empresas. Abrir o balcão do BNDES com subsídio, garantir combustíveis mais baratos para este setor ou conceder benefícios tributários serão opções que, cedo ou tarde, serão colocadas sobre a mesa. Além disso, aposentados e muitos estudantes fazem parte de grupos de renda média, que receberão recursos extraídos da sociedade em vez dos grupos sociais mais vulneráveis.
A Petrobras aprovou um plano de negócios com espaço para voltar a fazer política pública intervencionista. Simbolicamente, o Presidente da República deu início à retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, um símbolo bilionário do mau planejamento e uso político da estatal. A empresa também cancelou a privatização da refinaria Lubnor e sinalizou interesse em reestatizar Mataripe por meio de questionamento judicial da venda. Isso contraria acordo de reversão de conduta anticoncorrencial firmado como o CADE e fragiliza a segurança jurídica. A política de preços da estatal tornou-se opaca.
Em 2023, com a ajuda da queda do petróleo no mercado internacional, foi possível puxar os preços internos para baixo sem prejudicar a lucratividade. Vejamos o que acontecerá quando os preços começarem a subir no exterior. A experiência passada mostra que essas políticas levaram à perda de valor da empresa, abuso de práticas monopolistas e perda de eficiência econômica.
A marcha à ré nas privatizações não foi apenas no âmbito da Petrobras e Eletrobras. Houve também a simbólica desistência da extinção da empresa de produção de chips (CEITEC). Além disso, houve a volta das indicações de políticos com pouco conhecimento técnico para a gestão e os conselhos dessas empresas, com base em liminar concedida pelo STF que enfraqueceu a lei das estatais.
O BNDES foi o motor da política de indução de crescimento no passado recente. Avaliação feita pelo próprio governo federal aponta que os subsídios creditícios oferecidos pelo Banco não tiveram impacto nos investimentos das grandes empresas beneficiárias, resultado similar ao obtido por Bonomo e coautores, a partir de extensa base de microdados sobre os créditos concedidos e o desempenho dessas empresas. Não obstante essas evidências, o Banco está construindo instrumentos para voltar a atuar como no passado, expandindo a concessão de crédito subsidiado para empresas selecionadas, à custa de dívida pública e dos recursos captados por meio de tributos: conseguiu, junto ao TCU, postergar devolução ao Tesouro de empréstimos irregulares e vai lançar título próprio, ganhando autonomia em relação ao Orçamento e, ao mesmo tempo, tornando-se concorrente do Tesouro na captação de recursos. Foi colocado sob gestão do Banco o recém-criado “Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico”. Um fundo privado, voltado a financiar política industrial, fora do Orçamento, mas que receberá recursos públicos. Com isso, aumenta a intervenção pública no mercado de crédito, o que trabalha contra a eficiência alocativa, diminui a potência da política monetária e prejudica as novas empresas em favor das grandes e já estabelecidas. O Banco também está desenhando uma política de proteção cambial a investidores estrangeiros que, ao fim e ao cabo, significa transferir para o contribuinte o custo e risco de oscilações cambiais, que deveriam ser suportados pelos investidores. Assim, se a volatilidade cambial ocorrer, o contribuinte passa a pagar a conta que caberia ao acionista. Foi estancada a venda de ações da carteira do BNDESpar, que seria a forma mais lógica e eficiente de prover funding ao banco, uma vez que não há sentido em manter participação em empresas já consolidadas no mercado. Aproveita-se essa participação acionária do BNDES para instalar políticos nos conselhos de empresas privadas. Abriu-se uma brecha para a realização de financiamentos com taxas subsidiadas, abaixo da TLP. A brecha pode ser ampliada, no futuro, por simples decisão do Conselho Monetário Nacional (Lei 14.592/23 e PL 6.235/23). Conclusões Ao final de 2023 vimos resultados macroeconômicos positivos em termos de crescimento, inflação e emprego.
Em boa medida, estamos colhendo os frutos de esforços de reforma de governos anteriores, com a ajuda de um cenário externo favorável, e da não concretização de intenções anunciadas pelo novo governo, como a revisão da autonomia do Banco Central ou a revogação de outras reformas. No entanto, o que está sendo plantado hoje não traz bons augúrios para o futuro: temos uma sucessão de medidas contrárias ao crescimento da produtividade e à segurança jurídica. Não são iniciativas isoladas, de baixo impacto. Trata-se da retomada da agenda adotada pelo governo Geisel e resgatada no segundo mandato de Lula. Volta agora como um plano de “reindustrialização” baseado em “missões do governo.” Conteúdo antigo em embalagem nova.
O fracasso do passado traz preocupação com a reincidência nas mesmas políticas. As perspectivas fiscais, não tratadas neste artigo, também pouco ajudam. Para 2024, há sinais de atividade econômica andando de lado.
Como o governo reagirá se no primeiro semestre deste ano se confirmar o baixo crescimento? Ele terá a paciência de preservar ajustes e contenção para auxiliar na retomada sustentável da economia a médio prazo? Ou, como feito tantas vezes no passado, vai declarar que temos que estimular a economia no curto prazo e dobrar a aposta nas intervenções discricionárias e fragilizar ainda mais o fiscal, além de tornar o monetário leniente com a inflação? Vamos reincidir nas políticas do passado, como as adotadas a partir de 2008, que resultaram na grave crise iniciada em 2014, com tantos projetos fracassados, incluindo refinarias e estaleiros? Vamos continuar presos à ciclotimia das reformas e retrocessos ou conseguiremos romper com o passado de volatilidade do crescimento?
Marcos Lisboa é ex-presidente do Insper. Marcos Mendes é doutor em Economia.
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