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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger (O Globo)

 Dilma gastou mais que Bolsonaro para tentar se reeleger

Estudo estima as despesas dela em 3,1% do PIB e as dele em 0,2% — mas ambos recorreram a gastos ocultos

O Globo, 11/11/2024

 

O Brasil tem um longo e problemático histórico de incúria fiscal em anos eleitorais. Tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro, apesar das diferenças ideológicas, recorreram a gastos eleitoreiros em suas respectivas tentativas de reeleição. Ambos adotaram mecanismos de contabilidade criativa para ocultar despesas. Mas um olhar atento revela diferenças, constata um novo estudo dos economistas Alexandre Manoel, Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Samuel Pessôa, recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Para comparar os gastos, eles estimaram a variação entre os dois primeiros e os dois últimos anos de cada mandato. Constataram que, na tentativa de reeleição de Dilma em 2014, sua administração aumentara as despesas primárias em 1,4% do PIB. A maior extensão da prodigalidade fiscal, porém, ficou oculta. Pelos cálculos dos economistas, Dilma ainda acumulou 1,7% adicional do PIB em “gastos encobertos”, como adiamento de despesas para o próximo governo (restos a pagar) e manipulação da contabilidade das empresas estatais. Ao todo, entre o visível e o oculto, Dilma gastou 3,1% do PIB para se reeleger.

Bolsonaro adotou estratégia diferente em 2022. Em sua gestão, houve redução de 0,7% nos gastos primários visíveis, comparando o biênio 2021-2022 ao 2019-2020. Em contrapartida, ele também recorreu a “gastos encobertos” estimados em 0,9% do PIB. Isso inclui o atraso de pagamentos de precatórios no valor de R$ 27,2 bilhões ao longo de quatro anos e o aumento do estoque de contas não pagas em R$ 65,5 bilhões. Uma diferença crucial emerge na comparação: enquanto, sob Dilma, as despesas adicionais visíveis e ocultas atingiram 3,1% do PIB, sob Bolsonaro ficaram em apenas 0,2%.

Houve outra diferença crítica: a intervenção no mercado de câmbio. O governo Dilma, sem Banco Central (BC) independente, sustentou artificialmente o real antes da eleição de 2014, aumentando o estoque de contratos cambiais de zero para 4% do PIB entre 2013 e o terceiro trimestre de 2014, quando o déficit em conta-corrente comprovava a necessidade de desvalorização. Essa intervenção se revelou insustentável e prejudicou a economia. Em contraste, Bolsonaro se beneficiou da independência do BC, aprovada em 2021. Seu governo não se envolveu em manipulação cambial. A evolução institucional impôs uma restrição crucial ao populismo em ano eleitoral.

É verdade que é difícil definir com precisão gastos eleitorais. Para garantir uma comparação justa, os economistas exploraram vários ajustes nos cálculos, considerando fatores como subsídios aos combustíveis, incentivos fiscais, o ciclo econômico e diferentes classificações para as contas não pagas. Mesmo após aplicar os ajustes mais favoráveis a Dilma, concluem que os gastos dela antes da eleição superaram os de Bolsonaro.

Ambas as gestões priorizaram ganhos políticos de curto prazo em detrimento da estabilidade no longo prazo. Tanto Dilma quanto Bolsonaro exploraram fraquezas institucionais para manipular a política fiscal. O estudo revela a necessidade de maior transparência e de mecanismos de supervisão mais fortes para evitar a exploração de “gastos encobertos” à margem das regras fiscais, também frequentes agora, no governo Luiz Inácio Lula da Silva.

 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil - Marcos Lisboa, Marcos Mendes (Brazil Journal)

 Dois para frente, um para trás: os retrocessos e distorções que sabotam o Brasil

Marcos Lisboa, Marcos Mendes

Brazil Journal, 21/01/2024

 

Nas últimas cinco décadas, a economia brasileira tem tido um comportamento ciclotímico: são sequências de anos bons seguidos por crises severas. De acordo com o Banco Mundial, entre 1980 e 2019, nos períodos em que tivemos variação positiva do PIB per capita, o nosso crescimento médio (2,8%) até superou o da economia líder do mundo, os EUA (2,2%). 

O problema é que levamos muito mais tombos: tivemos 14 anos de variação negativa do PIB per capita, contra apenas 7 dos EUA. E nossas quedas foram mais intensas: em média, de 2,6%, contra apenas 1,9% nos EUA. 

Essa volatilidade – que prejudica o investimento, a expansão da infraestrutura e o aumento recorrente da produtividade – tem origem numa política econômica igualmente ciclotímica. 

Em alguns momentos, surpreendentemente conseguimos aprovar reformas importantes, como a da Previdência e a Tributária, que há muito vinham sendo evitadas. Mas assim que o cenário econômico melhora, o Brasil aceita diversos retrocessos, concedendo benefícios a grupos organizados que fragilizam as contas públicas e pioram nossa eficiência produtiva. 

Neste artigo mostramos o risco de que esses retrocessos mantenham o nosso histórico de política econômica ciclotímica, causadora de volatilidade: alguns anos de crescimento razoável seguidos de crises – o clássico “voo de galinha” – resultando num desempenho medíocre no médio e longo prazos. 

Tratamos da ciclotimia da política fiscal em diversos artigos. Com o crescimento da arrecadação, a despesa permanente com salários, aposentadorias e benefícios aumenta, como ocorreu em muitos municípios desde a pandemia. Mas quando os tempos ficam mais difíceis, essa despesa não pode ser reduzida, e a conta cai no colo da União. 

Neste texto vamos nos concentrar nos retrocessos regulatórios recentes bem como nas distorções no ambiente de negócio que prejudicam a produtividade e o crescimento sustentável. Fizemos muitas reformas.

O país passou por reformas significativas, em especial a partir de 2015. Muitos analistas apontam indícios de que a reforma da legislação trabalhista tem parte do mérito pela queda do desemprego sem a correspondente pressão inflacionária. A reforma da previdência ajudou a tornar menos agudo o problema fiscal. 

A autonomia do Banco Central colaborou com o bem-sucedido processo recente de desinflação. Muitas outras ajudarão no crescimento dos próximos anos, desde a Agenda BC# até os marcos regulatórios de infraestrutura. 

O atual governo contribuiu de modo relevante. A aprovação da reforma tributária, discutida há mais de vinte anos, promete grande simplificação, redução de custos e incentivo à racionalização da produção. Um feito de primeira grandeza. 

Além disso, deu-se continuidade a esforços do governo anterior, como na regulamentação de apostas esportivas, no marco regulatório do setor de ferrovias e de garantias de operações de crédito. 

Mas o fato de termos feito muitas reformas não quer dizer que temos uma agenda claramente modernizadora. Pelo contrário. É espantosa a facilidade com que adotamos políticas que deterioram o ambiente de negócios, diminuem a concorrência, criam cartórios e fragilizam as contas públicas. Sinais preocupantes para o futuro O cenário internacional foi melhor em 2023 do que se esperava há um ano, com queda da inflação impondo, até agora, baixo custo sobre a produção e o emprego. Internamente, porém, nos encontramos na perigosa fase do ciclo em que as reformas recentes nos ajudam a tirar o nariz do ambiente de crise, e se abrem oportunidades para retrocessos. Os sinais emitidos desde o fim da pandemia têm sido preocupantes. 

Vamos listar diversas questões regulatórias. O Poder Executivo acredita que o crescimento pode ser impulsionado por meio da distribuição de proteção e subsídios a setores organizados. O Congresso, por sua vez, é bastante sensível ao lobby desses setores. Isso deixa a porta aberta para a rápida aprovação de múltiplas políticas de proteção comercial e subsídios, além de decisões que desrespeitam a segurança jurídica. 

Fernando Veloso sistematiza a evidência empírica das consequências negativas desse tipo de política sobre a produtividade e o crescimento. Retrocessos regulatórios A pesquisa acadêmica com micro dados identifica a importância da integração econômica para o crescimento. 

No entanto, o governo oferece sinais ambíguos nessa área, como ao colocar freio no acordo com a União Europeia sob a justificativa de reservar o mercado de compras governamentais para empresas nacionais. Em especial, o governo está preocupado em manter as licitações do SUS restritas a fornecedores instalados no País, alimentando a ideia de criação de um Complexo Industrial da Saúde. Ou seja, a prioridade deixa de ser atender a população com o menor custo e a maior qualidade possível, e passa a ser a substituição de importações no fornecimento ao SUS. 

A evidência empírica indica que a estratégia de fazer exigências de conteúdo local para desenvolvimento da indústria nacional teve algum sucesso em casos muito específicos, mas se mostrou ineficaz na maioria das experiências internacionais: quanto mais sensível é o Poder Público à ação de grupos de pressão, mais essa política tende a se degradar na proteção de empresas ineficientes, sem ganhos de produtividade no médio prazo, restringindo a competição e a inovação. Há anos temos esse tipo de exigência em diversas políticas: nos financiamentos concedidos por bancos públicos, nos benefícios da Zona Franca de Manaus, na lei de licitações. Não há avaliações de impacto que mostram saldo positivo entre benefícios e custos. 

No entanto, a orientação do governo é para aprofundar a política. Recente reunião do Conselho Nacional de Política Energética desfez parte da reforma de 2017, elevando os requisitos mínimos de compra de insumos nacionais por empresas de exploração de petróleo e gás. Em uma agenda de pesquisa aplicada sobre a regulação no setor de óleo gás, o núcleo de energia da UFRJ constatou que as políticas de conteúdo nacional prejudicam a produção e desestimulam a concorrência, tendo por vezes resultados opostos aos pretendidos. Diana Pietro mostrou que essa política derrubava significativamente as expectativas de retorno e eram determinantes para que uma operadora desistisse de dar lances num leilão ou abandonasse campos já adquiridos. Edmar Almeida e coautores mostraram que em um cenário sem exigência de conteúdo local os investimentos da indústria de petróleo gerariam 60 mil empregos a mais no ano de pico de produção. 

O Governo tenta reverter na Justiça a privatização da Eletrobras, questionando as regras aprovadas em lei. Também tentou interferir em decisões da empresa, agora privada, como no episódio da absorção de Furnas, uma subsidiária da Eletrobras, pela holding. 

A Vale, outra empresa privada, também está na mira do governo. Isso revela a fragilidade do marco legal do País, sujeito ao mando arbitrário de plantão em Brasília, o que prejudica os investimentos. O Congresso Nacional tem dado respaldo a lobbies de diversos participantes do mercado de energia. 

A lei que aprovou a privatização da Eletrobras continha “jabutis” criando mercados cativos ou reserva de recursos para remunerar fontes ou mecanismos de transmissão de energia que não são os mais eficientes, ou obrigando a construção de uma logística desnecessária, que beneficia alguns produtores, mas implicará custo adicional a ser pago na conta de energia das famílias. 

Atualmente discute-se um projeto de regulamentação de geração de energia eólica offshore (PL 11.247/2018), que se tornou um cabide para pendurar diversos outros interesses. O resultado é o aumento da conta de energia. Parlamentares usualmente buscam impedir aumentos de tarifas de energia determinados pela ANEEL, muitas vezes causados por subsídios que eles próprios patrocinaram. Mais uma vez, insegurança jurídica e desestímulo ao investimento. Ao final do ano foi aprovado o “Programa Mover” de estímulo à indústria automobilística. Trata-se de reencarnação de dois programas anteriores, o “Inovar-Auto” e o “Rota 2030”. Todos foram criados com o mote de estimular a inovação e a descarbonização, mas o objetivo principal sempre foi a proteção contra a concorrência internacional. Avaliação independente mostra as fragilidades e o alto custo das iniciativas. 

Simultaneamente, aumentou-se o imposto de importação sobre carros elétricos. A Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), ao longo de 2023, também aumentou a tributação na importação de produtos siderúrgicos, químicos, painéis solares e pneus, revertendo o tímido movimento de abertura dos governos anteriores. Foi enviado ao Congresso projeto de lei prevendo a depreciação acelerada de máquinas e equipamentos, para efeitos fiscais. Tenta-se gerar competitividade mediante subsídios, quando o que a economia precisa é de acesso a máquinas e equipamentos modernos, disponíveis no mercado internacional, como apontado por Lisboa e coautores. 

O governo anunciou um programa para vender passagens aéreas baratas a estudantes e aposentados. Será preciso dar contrapartidas às empresas. Abrir o balcão do BNDES com subsídio, garantir combustíveis mais baratos para este setor ou conceder benefícios tributários serão opções que, cedo ou tarde, serão colocadas sobre a mesa. Além disso, aposentados e muitos estudantes fazem parte de grupos de renda média, que receberão recursos extraídos da sociedade em vez dos grupos sociais mais vulneráveis. 

A Petrobras aprovou um plano de negócios com espaço para voltar a fazer política pública intervencionista. Simbolicamente, o Presidente da República deu início à retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, um símbolo bilionário do mau planejamento e uso político da estatal. A empresa também cancelou a privatização da refinaria Lubnor e sinalizou interesse em reestatizar Mataripe por meio de questionamento judicial da venda. Isso contraria acordo de reversão de conduta anticoncorrencial firmado como o CADE e fragiliza a segurança jurídica. A política de preços da estatal tornou-se opaca. 

Em 2023, com a ajuda da queda do petróleo no mercado internacional, foi possível puxar os preços internos para baixo sem prejudicar a lucratividade. Vejamos o que acontecerá quando os preços começarem a subir no exterior. A experiência passada mostra que essas políticas levaram à perda de valor da empresa, abuso de práticas monopolistas e perda de eficiência econômica. 

A marcha à ré nas privatizações não foi apenas no âmbito da Petrobras e Eletrobras. Houve também a simbólica desistência da extinção da empresa de produção de chips (CEITEC). Além disso, houve a volta das indicações de políticos com pouco conhecimento técnico para a gestão e os conselhos dessas empresas, com base em liminar concedida pelo STF que enfraqueceu a lei das estatais. 

O BNDES foi o motor da política de indução de crescimento no passado recente. Avaliação feita pelo próprio governo federal aponta que os subsídios creditícios oferecidos pelo Banco não tiveram impacto nos investimentos das grandes empresas beneficiárias, resultado similar ao obtido por Bonomo e coautores, a partir de extensa base de microdados sobre os créditos concedidos e o desempenho dessas empresas. Não obstante essas evidências, o Banco está construindo instrumentos para voltar a atuar como no passado, expandindo a concessão de crédito subsidiado para empresas selecionadas, à custa de dívida pública e dos recursos captados por meio de tributos: conseguiu, junto ao TCU, postergar devolução ao Tesouro de empréstimos irregulares e vai lançar título próprio, ganhando autonomia em relação ao Orçamento e, ao mesmo tempo, tornando-se concorrente do Tesouro na captação de recursos. Foi colocado sob gestão do Banco o recém-criado “Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico”. Um fundo privado, voltado a financiar política industrial, fora do Orçamento, mas que receberá recursos públicos. Com isso, aumenta a intervenção pública no mercado de crédito, o que trabalha contra a eficiência alocativa, diminui a potência da política monetária e prejudica as novas empresas em favor das grandes e já estabelecidas. O Banco também está desenhando uma política de proteção cambial a investidores estrangeiros que, ao fim e ao cabo, significa transferir para o contribuinte o custo e risco de oscilações cambiais, que deveriam ser suportados pelos investidores. Assim, se a volatilidade cambial ocorrer, o contribuinte passa a pagar a conta que caberia ao acionista. Foi estancada a venda de ações da carteira do BNDESpar, que seria a forma mais lógica e eficiente de prover funding ao banco, uma vez que não há sentido em manter participação em empresas já consolidadas no mercado. Aproveita-se essa participação acionária do BNDES para instalar políticos nos conselhos de empresas privadas. Abriu-se uma brecha para a realização de financiamentos com taxas subsidiadas, abaixo da TLP. A brecha pode ser ampliada, no futuro, por simples decisão do Conselho Monetário Nacional (Lei 14.592/23 e PL 6.235/23). Conclusões Ao final de 2023 vimos resultados macroeconômicos positivos em termos de crescimento, inflação e emprego. 

Em boa medida, estamos colhendo os frutos de esforços de reforma de governos anteriores, com a ajuda de um cenário externo favorável, e da não concretização de intenções anunciadas pelo novo governo, como a revisão da autonomia do Banco Central ou a revogação de outras reformas. No entanto, o que está sendo plantado hoje não traz bons augúrios para o futuro: temos uma sucessão de medidas contrárias ao crescimento da produtividade e à segurança jurídica. Não são iniciativas isoladas, de baixo impacto. Trata-se da retomada da agenda adotada pelo governo Geisel e resgatada no segundo mandato de Lula. Volta agora como um plano de “reindustrialização” baseado em “missões do governo.” Conteúdo antigo em embalagem nova. 

O fracasso do passado traz preocupação com a reincidência nas mesmas políticas. As perspectivas fiscais, não tratadas neste artigo, também pouco ajudam. Para 2024, há sinais de atividade econômica andando de lado. 

Como o governo reagirá se no primeiro semestre deste ano se confirmar o baixo crescimento? Ele terá a paciência de preservar ajustes e contenção para auxiliar na retomada sustentável da economia a médio prazo? Ou, como feito tantas vezes no passado, vai declarar que temos que estimular a economia no curto prazo e dobrar a aposta nas intervenções discricionárias e fragilizar ainda mais o fiscal, além de tornar o monetário leniente com a inflação? Vamos reincidir nas políticas do passado, como as adotadas a partir de 2008, que resultaram na grave crise iniciada em 2014, com tantos projetos fracassados, incluindo refinarias e estaleiros? Vamos continuar presos à ciclotimia das reformas e retrocessos ou conseguiremos romper com o passado de volatilidade do crescimento?

 

Marcos Lisboa é ex-presidente do Insper. Marcos Mendes é doutor em Economia.

Leia mais em https://braziljournal.com/dois-para-frente-um-para-tras-os-retrocessos-e-distorcoes-que-sabotam-o-brasil/ .

 

domingo, 26 de abril de 2020

Plano Marshall? - Marcos Mendes (FSP)


Plano Marshall?

Fórmula parece não diferir da política instituída em 2010, que levou país à queda de 7%

Marcos Mendes
Folha de S. Paulo, 25 abril 2020
O governo anunciou um “Plano Marshall” para recuperar a economia após a pandemia.
O Plano Marshall é visto como uma bem-sucedida injeção de dinheiro público na reconstrução da infraestrutura da Europa após a 2ª Guerra Mundial, que teria aberto as portas para mais de duas décadas de crescimento acelerado.
O primeiro esboço do plano brasileiro aponta para aumento do investimento público, isentando projetos prioritários do teto de gastos. Há sugestão de pular etapas do processo de planejamento para os investimentos saírem mais rápido. Serão colhidas opiniões de empresários sobre os incentivos a setores considerados prioritários.
Essa fórmula parece não diferir da política instituída a partir de 2010, que levou o país à queda de 7% no PIB entre 2014 e 2016. O que se viu foi investimento público malfeito, com base em projetos apressados, queda de produtividade e disparada da dívida pública.

O general Braga Netto (Casa Civil) e Paulo Guedes (Economia) durante evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 31.mar.2020/Folhapress
Naquela ocasião, estávamos em melhor forma fiscal, colhíamos os benefícios do boom de commodities, e a economia mundial estava em crescimento. Será que daria certo agora, em condições mais adversas?
Não só o diagnóstico que embasa a proposta parece equivocado. Também inadequada é a sua comparação com o Plano Marshall.
Esse plano representou uma injeção de dinheiro dos EUA nos países da Europa. Que país seria o patrono do Brasil?
Nós, mesmos, é que vamos financiar os projetos? Mas vamos sair da pandemia com a dívida e o déficit do governo em 90% e 8% do PIB, respectivamente!
Não contabilizar os investimentos no limite de gastos não significa que eles não vão aumentar a dívida. Haverá, isso sim, descrédito dos indicadores fiscais. Outro problema da fracassada tentativa recente.
Pressionar ainda mais o Tesouro provocará fuga de capital e aumento do custo de financiamento da dívida, travando a retomada do crescimento.
J. Bradford de Long e Barry Eichengreenmostram que a real importância do Plano Marshall foi ter funcionado como um atrativo oferecido pelos EUA para induzir a Europa Ocidental a retornar para a economia de mercado.
Durante a guerra, os governos se acostumaram a políticas intervencionistas. Havia o temor de que deixar o mercado voltar a funcionar poderia gerar outra depressão, como a dos anos 1930.
O comunismo prosperava na vizinhança e induzia os políticos a manter as práticas de guerra, tais como controles de preços, racionamentos de divisas e o planejamento central.
Na Europa pós-guerra, todos os segmentos sociais queriam recuperar renda e patrimônio destruídos e pressionavam seus governos por ajudas e subvenções, levando a endividamento público e inflação.
O dinheiro dos EUA aumentou o tamanho do bolo, permitindo uma distribuição de perdas menos draconiana entre os diversos setores da sociedade. Viabilizou a estabilização macroeconômica, a construção de um novo pacto social e reformas pró-mercado.
Muito pouco foi gasto em infraestrutura. A maior parte da ajuda financiou déficit preexistente.
Ao lado da “cenoura”, a ajuda havia um “porrete”. O uso do dinheiro tinha que ser aprovado pelos americanos, que eram os gestores do plano, e o faziam com mão de ferro. A França teve seus fundos retidos enquanto não adotou uma política de equilíbrio fiscal. Da Alemanha exigiu-se o saneamento da estatal de transporte ferroviário.
Os gestores do plano também induziram a abertura econômica e a integração dos países europeus, bem como a construção de um bom ambiente de negócios. O investimento privado e a produtividade dispararam. O setor privado foi o responsável pelo sucesso econômico.
O Plano Marshall foi indutor das reformas de que o Brasil precisa. Teremos que fazê-las por iniciativa própria, sem a tutela de um interventor externo. Não será fácil desenhar um acordo social de repartição dos custos com a renda em contração. Fundamental não reincidir em erro que cometemos tão recentemente.
Marcos Mendes
Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'

sábado, 17 de agosto de 2019

Vitimização (Previdência dos Estados) - Marcos Mendes

04:04:02 | 17/08/2019 | Economia | Folha de S.Paulo | Marcos Mendes | BR

Marcos Mendes

    Vitimização
    Marcos Mendes
    Em seu novo livro, "Upheaval", o historiador Jared Diamond mostra as condições necessárias para que indivíduos e nações superem crises. Ressalta a importância de fazer uma avaliação honesta, ainda que dolorosa, das causas dos próprios problemas. E encarar o desafio de resolvê-los. Negar a responsabilidade, culpar terceiros e assumir papel de vítima são a fórmula do fracasso.
    Recomendo o livro aos nossos governadores e deputados estaduais.
    Os estados estão em uma crise fiscal e administrativa que decorre tanto de decisões equivocadas de seus próprios gestores, ao longo de vários mandatos, quanto de uma legislação federal que lhes impõe despesas obrigatórias.
    Virada a página da Previdência, a crise dos estados é o nosso maior problema fiscal e social. Só se resolve a crise com a combinação de gestão responsável e reformas fiscais.
    A folha de pagamento estadual pulou de 50% para 63% da receita corrente líquida entre 2008 e 2017. Crescimento médio de 4% ao ano acima da inflação.
    Estados pobres, com renda per capita abaixo de R$ 1.000, remuneram servidores em mais de R$ 30 mil. Professores, policiais e bombeiros se aposentam antes dos 50 anos. E vemos governadores na TV dizendo que a reforma da Previdência não lhes interessa.
    Muitos lutam contra a privatização de ineficientes estatais de saneamento, de energia e bancos. Há os que tentam reverter privatizações já realizadas. Tribunais e Assembleias de estados falidos acumulam incríveis saldos de caixa, apesar de não economizarem em suas sedes, consumo e salários. A renúncia de receitas do ICMS come parcela elevada da arrecadação de alguns estados.
    E o que se ouve no discurso público? Que a culpa é da União. Na coluna passada, já mostrei que não existe a propalada concentração de receitas fiscais na União. Mas há mais munição na cartucheira da vitimização. A preferida de muitos é dizer que a dívida que têm com a União é injusta e cara.
    É comum ouvir argumentos do tipo: "A dívida era de R$ 400 bilhões. As parcelas já pagas pelos estados somam R$ 500 bilhões. E os estados ainda devem R$ 500 bilhões". Espertamente ignoram-se os juros devidos. E que o saldo só não caiu mais rápido porque, por demanda estadual, houve limitação no valor das prestações mensais e sucessivos aumentos de prazos. Apesar disso, o passivo estadual com a União caiu de 17,8% do PIB em 2002 para 9,8% em 2018.
    A história do endividamento dos estados com a União começa nos anos 1980, e o roteiro é de irresponsabilidade fiscal estadual, com socorro federal arrancado mediante pressão política. Foram nada menos que dez episódios de renegociação desde 1987. Todas as renegociações envolveram ou desconto no valor da dívida ou juros camaradas. Na maior das renegociações, feita em 1997 (lei 9.496), o desconto concedido no saldo devedor chegou a 20% para alguns estados, com a União assumindo esse custo junto aos credores originais.
    Já passou da hora de os representantes estaduais encararem a realidade e deixarem de se vitimizar e empurrar a responsabilidade para a União. Alguns poucos já o estão fazendo.
    O governo federal também já viveu seu período de vitimização e responsabilização de terceiros. O auge desse comportamento foi a moratória da dívida externa de 1987, que nos conduziu à hiperinflação. Só quando assumimos nossa responsabilidade, reformando as instituições fiscais e monetárias, conseguimos estabilizar a economia.
    Se não estamos bem, a Argentina é um alerta de que poderíamos estar pior, caso persistíssemos no autoengano.
    Na próxima coluna falarei da obra-prima da vitimização: as contas fantasmas da Lei Kandir.

    segunda-feira, 6 de maio de 2019

    Por que o Brasil nao consegue se reformar? - Marcos Mendes

    Como a França, mas com uma renda per capita cinco vezes menor, e uma escola pública cinco vezes pior, o Brasil é um país dificilmente “reformável”. Enxames de políticos, alcateias de corporações, xusmas de capitalistas promíscuos, maltas de prebendalistas e rentistas em todas as partes disputam o privilégio questionável de extorquir os únicos agentes econômicos produtivos que existem: empresas comuns, sem vínculos no governo, diretamente ou via associações setoriais (que costumam ser sindicatos de ladrões) e os trabalhadores do setor privado, simples contribuintes compulsórios de um Estado voraz, transformado em ogro famélico, em sanguessuga eterno dos verdadeiros criadores de riqueza na nação.
    Paulo Roberto de Almeida

    Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?

    País tem características que dificultam mudanças

    Para voltar a crescer e diminuir a desigualdade de renda, o Brasil precisa fazer um conjunto amplo de reformas. Previdência, tributos, mercado de crédito, ambiente de negócios, segurança jurídica, abertura comercial, privatização, políticas sociais e educação. 
    Não é fácil fazer reformas em nenhum lugar do mundo. Reformar significa tirar privilégios de alguns grupos, que obviamente resistem. Os custos são concentrados em poucos, e os benefícios são difusos. Os prejudicados se organizam e resistem, enquanto os beneficiários muitas vezes nem sequer sabem que estão ganhando com aquela medida. 
    Reformas também provocam incerteza: ainda que todos saibam que o país ficará melhor no futuro, cada indivíduo enfrenta a incerteza de qual será a sua situação particular após a reforma. Afinal, empregos menos eficientes tendem a ser destruídos e outros são criados, requerendo novas habilidades. Muitas pessoas temem não se adaptar à nova realidade, em especial os mais velhos.
    Os resultados das reformas também demoram a aparecer. No Chile, por exemplo, em 1985, dez anos após o início das reformas, a renda per capita ainda era a mesma de 1969. Somente nos anos 1990 a renda começou a subir de forma consistente. 
    Na Nova Zelândia, uma reforma radical, que transformou o país em uma das sociedades mais prósperas do mundo, gerou, inicialmente, uma taxa de desemprego de 14%, que só voltou ao padrão pré-reforma depois de dez anos. 
    O calendário das eleições é mais curto que o prazo para o efeito das reformas. O próximo pleito acontece antes de as reformas elevarem a popularidade do governante reformista. 
    Apesar dessas dificuldades, ao longo dos últimos 50 anos, muitos países fizeram reformas abrangentes. Estudando essas experiências, podemos observar características desses países que ajudaram a quebrar resistências. Infelizmente, o Brasil não possui nenhuma dessas características "facilitadoras" de reformas.
    Em primeiro lugar, é mais fácil reformar economias de países pequenos. Estes não têm mercado interno significativo e precisam se abrir para o mundo. Com economia aberta, são mais vulneráveis a oscilações da economia internacional e, por isso, precisam manter a macroeconomia saudável. Para atrair capitais externos, precisam de uma Justiça rápida e segura. 
    Além disso, têm uma elite menos numerosa, o que diminui o custo de transação para realizar acordos. Também têm governo unitário, não sofrendo os conflitos e bloqueios gerados nos sistemas federativos. Singapura, Malta, Hong Kong, Estônia, Nova Zelândia e Irlanda seriam exemplos nesse grupo. 
    O Brasil, grande, fechado e com uma Federação conflituosa, está longe desse perfil.
    Outra característica importante está na transição de ditaduras para democracias. Países que fizeram reformas econômicas antes da abertura política geraram uma economia dinâmica, capaz de elevar a renda, ampliar a classe média, criar ambiente de mercado estável e consolidar o liberalismo econômico, conduzindo a mais investimentos e crescimento. Com o tempo, a melhoria das condições de vida induz a transição para regime democrático, como ocorreu na Coreia do Sul, no Chile, na Malásia e na Indonésia, por exemplo. 
    Por outro lado, redemocratizar antes de reformar a economia pode levar ao populismo e a mecanismos de apropriação de renda por grupos de interesse. 
    Em uma economia fechada e estatizada, há grande espaço para a inscrição de privilégios e políticas inconsistentes na legislação. Esse parece ter sido o caso de Brasil, Argentina e Filipinas. Fazer reformas nesses países é muito mais difícil agora, pois significa desmontar benefícios a grupos organizados, cristalizados na Constituição e nas leis. 
    Também facilitam as reformas os sistemas político-eleitorais que induzem a geração de maioria no Legislativo, dando maior governabilidade ao Poder Executivo. 
    No Reino Unido, por exemplo, as eleições para o Parlamento seguem o modelo distrital, com voto majoritário, que induz a disputa entre dois grandes partidos, com o vencedor quase sempre sendo majoritário no Legislativo e, portanto, capaz de aprovar reformas sem precisar contar com o apoio de outros partidos.
    Além disso, é mais fácil fazer reformas em Parlamentos unicamerais, onde uma medida não precisa passar pelo referendo de Câmara e Senado. Também facilita o fato de cada um dos três Poderes ter claramente delimitado o seu raio de ação, não havendo espaço para o Judiciário interferir em decisões do Legislativo.
    Mais uma vez o Brasil não tem tais características. Nosso sistema eleitoral gera grande fragmentação partidária no Parlamento, temos sistema bicameral e frequente judicialização das decisões legislativas e das políticas públicas. 
    A literatura também mostra que sociedades mais coesas são mais capazes de gerar os acordos sociais necessários para realizar reformas. Essas são sociedades em que a classe média tem uma parcela grande da renda (e, portanto, a desigualdade geral é baixa) e na qual há baixo grau de violência. 
    Em geral, são sociedades em que as pessoas têm padrões de vida similares, não temem agressões físicas ou aos seus direitos. Por isso têm maior confiança umas nas outras e nas instituições públicas.
    Confiança é essencial para o sucesso de reformas. Afinal, estas ​nada mais são que um acordo em que todos fazem sacrifícios no curto prazo com vistas a ter um futuro melhor. Se há baixa coesão e desconfiança, cada grupo de interesse tentará empurrar os custos da reforma para o outro, e a negociação emperra ou a reforma tem seus custos colocados nas costas dos mais fracos.
    A figura acima mostra que o grau de coesão social no Brasil é extremamente baixo. No eixo horizontal, temos a participação da classe média na renda (percentual da renda total que vai para os 60% dos indivíduos no centro da distribuição de renda). Somente África do Sul, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Guiné-Bissau têm classe média "mais magra" que a brasileira, ficando mais à esquerda no gráfico.
    No eixo vertical temos um índice de violência e confiança mútua. Nesse quesito, o Brasil só supera Camarões e Costa do Marfim. E fica um pouco abaixo de Quênia, El Salvador e Libéria.
    A localização do país na parte inferior esquerda do gráfico é uma imagem clara da nossa baixa coesão social. Somos inequivocamente um país desigual, violento, em que as pessoas não confiam umas nas outras. No canto superior direito do gráfico estão os países mais coesos. 
    A importância da coesão social como fator de estabilidade tem ficado clara nos recentes episódios de radicalização política vividos em diversos países. O encolhimento da participação da classe média na renda tem gerado desconforto com a representação política tradicional, e novos partidos extremistas têm ganhado espaço em vários países. Há crescente fragmentação partidária, levando a governos minoritários, como na Espanha e na Itália.
    O Brexit surgiu de movimento de descontentamento de uma classe trabalhadora ameaçada pela abertura comercial. Donald Trump e sua política externa mercantilista têm origem semelhante. 
    No Brasil, o baixo consenso social alimenta um ambiente antirreformas por uma combinação de populismo, conflito distributivo em torno de rendas intermediadas pelo Estado, fragmentação política e protecionismo comercial e regulatório.
    Não obstante todas essas dificuldades "estruturais" para fazer reformas no Brasil, sempre surgem algumas janelas de oportunidade. Em geral, elas são criadas por crises, que evidenciam a necessidade de mudanças e enfraquecem a defesa de interesses corporativos específicos.
    Também abre espaço para reformas o "efeito lua de mel", que existe nos primeiros meses de gestão de um governante recém-eleito.
    Desde os anos 1980, o Brasil aproveitou essas situações para fazer reformas. Assim, por exemplo, a crise de balanço de pagamentos de 1982-83 gerou reformas fiscais e monetárias. A hiperinflação criou condições para o sucesso do Plano Real. 
    O efeito lua de mel no governo Collor permitiu um movimento de abertura comercial, e nos governos FHC e Lula viabilizaram-se duas reformas da Previdência. 
    Da crise de balanço de pagamentos de 1998 vieram o sistema de metas de inflação, o câmbio flutuante e o regime de metas fiscais.
    Porém, recentemente o Brasil andou na direção contrária. De 2005 a 2015 vivemos um período de reversão de reformas. A crise política do mensalão levou à expansão do gasto público como forma de sustentar politicamente o governo. Uma expansão no preço internacional de commodities deu impulso ao crescimento e criou a ilusão de que os desequilíbrios fiscais estruturais estavam resolvidos. 
    Relaxou-se o equilíbrio fiscal e praticou-se política pública na direção oposta das reformas de que o país necessita: aumentou a interferência estatal nas decisões privadas, a exploração do petróleo foi praticamente reestatizada, houve generalizada interferência do governo nos preços de energia e combustíveis, proteção setorial e fechamento da economia, grande desperdício de recursos públicos e privados em investimentos inviáveis.
    A crise daí decorrente abriu nova oportunidade de reformas, e o governo Temer avançou nessa agenda, criando um teto de gastos, fazendo reformas relevantes no mercado de crédito, revertendo a estatização do setor de petróleo, retomando o controle dos gastos públicos e as privatizações e concessões, desmontando equivocadas políticas de créditos subsidiadas.
    Porém, as reformas necessárias ainda são muitas. O que fazer para continuar avançando? 
    Em primeiro lugar, temos de reconhecer que, no ambiente adverso em que vivemos, elas levarão décadas para se concretizar. A Nova Zelândia, que fez reformas radicais em tempo recorde, com condições políticas e institucionais favoráveis, consumiu dez anos. Na Austrália foram 20 anos. No Brasil será muito mais. 
    As reformas serão um tema presente por muitas décadas. Não é uma corrida de 100 m, em que se faz reforma durante um mandato e o país passa a crescer aceleradamente. É uma maratona, que requer persistência. Se não for possível aprovar reforma ampla hoje, aprove-se algo mais restrito, mas na direção correta, e retome-se mais adiante.
    Não podemos desperdiçar oportunidades: as propostas de reforma precisam estar prontas, na prateleira. Se a condição política para uma reforma ficar difícil, muda-se a agenda e parte-se para outra. Foi o que ocorreu no governo Temer, quando a reforma da Previdência se inviabilizou e, rapidamente, a agenda mudou para a reforma do mercado de crédito.
    Mais importante que não perder oportunidades é não dar espaço para retrocessos. O Brasil não pode ter outro período nefasto de contrarreformas como o do passado recente.
    Para que as reformas ganhem crescente apoio social, é preciso que elas sejam capazes de reduzir a desigualdade e ampliar a classe média. 
    Felizmente temos espaço para isso. O Estado brasileiro é concentrador de renda, e as reformas podem fazer o país mais igualitário, gerando clima favorável a novas rodadas de modernização. O desenho das diversas reformas sempre precisará ter essa preocupação redistributiva e de criação de empregos para os mais pobres.
    Como esse processo de redistribuição e aumento de coesão é lento, é essencial uma convincente política de comunicação, para já no curto prazo induzir a cooperação e apoio. 
    É preciso olhar, também, a dimensão da violência e da baixa confiança. Já passou da hora de o Brasil ter um plano sério e consistente de redução da violência, que deve ser conduzido simultaneamente às reformas econômicas. 
    Em relação à confiança, é preciso investir em sistemas eletrônicos de certificação e garantias nos negócios, em agilização e maior previsibilidade da Justiça. A digitalização dos serviços públicos aumenta a confiança no governo e o controle a fraudes nos programas sociais. 
    O combate à corrupção, tão demandado pela sociedade, precisa ser usado como argumento a favor da reforma. Privatizar reduz espaço para o uso corrupto de empresas públicas. Também reduzem a corrupção: o fortalecimento das agências regulatórias, a melhoria da governança dos fundos de pensão das estatais ou o aperfeiçoamento e transparência das contas públicas.
    No âmbito do Legislativo, dada a alta resistência política às reformas, deve-se preferir sempre a tramitação mais curta, para diminuir as chances de uma crise política paralisar o processo, como ocorreu com a reforma da Previdência no governo Temer. Uma vitória parcial em um tema abre a agenda para que se trate de outra reforma. 
    As relações entre os três Poderes precisam evoluir, para que haja clara delimitação das fronteiras dos poderes de decisão, para evitar tanto a judicialização da política quanto a politização do Judiciário.
    Na arena política, a experiência de reformas econômicas bem-sucedidas na Austrália, na Índia, na Coreia e na Nova Zelândia indicam que um ingrediente essencial é a liderança do processo pelo presidente da República (ou primeiro-ministro). A terceirização da responsabilidade enfraquece e mutila as reformas.
    Também é preciso reconhecer que formar governo de coalizão não é crime. Em qualquer lugar do mundo onde o Parlamento é importante na aprovação de reformas, um Poder Executivo minoritário compartilha o poder para poder ter maioria e aprovar seus projetos. 
    Se há atos criminosos por parte de algum ministro indicado por partido aliado, demite-se o ministro, entrega-se o caso à Justiça, e o partido responsável por aquele ministro indica substituto. 
    O atual momento de crise e de lua de mel é propício para reformas. Mas não há automatismos, e o ambiente continua hostil. Será preciso muita arte e habilidade política para que não se perca essa oportunidade histórica para avançar em direção a um país mais rico e civilizado.