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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 10 de junho de 2024

Mario Henrique Simonsen, um dos pais do Plano Real - Coriolano Gatto (Brazil Journal); comentário Maurício David

 BRAZIL JOURNAL

Simonsen, um precursor discreto do Plano Real 

Coriolano Gatto


Brasil Journal, 9 de junho de 2024 


Às vésperas de completar 30 anos, o Plano Real foi defendido logo no nascedouro por um dos maiores economistas brasileiros que, ainda nos anos 70, já demonstrava preocupação com a inflação crescente e a indexação da economia.

Mais ainda: uma década antes do Real, Mario Henrique Simonsen já apoiava a tese de desindexação de Persio Arida e André Lara Resende, que era o pilar central do plano.

Matemático refinado, arquiteto de grandes projetos, engenheiro, economista e professor por vocação, Simonsen foi o primeiro expoente do governo militar a mencionar o processo de realimentação da inflação, causado pela indexação introduzida pelo próprio regime em 1964. 

“Apesar da ortodoxia, o Simonsen pensava na formação keynesiana dentro da equação de preços: demanda, choques autônomos e a realimentação. Eu comecei a pensar na teoria inercial da inflação com ele,” me disse o economista Francisco Lopes em seu apartamento em Copacabana. “O Roberto Campos dizia que o Simonsen nunca foi um liberal ou um monetarista como ele e o Eugênio Gudin, e era mais um keynesiano, modestamente intervencionista.” 

Lopes conheceu Simonsen na adolescência. Aos 19 anos, levou seu pai – Lucas Lopes, um dos grandes artífices do desenvolvimento no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) – e o próprio Simonsen até a estação de trem, no Rio, dirigindo o carro de sua mãe. Eles iam para São Paulo por conta da Consultec, a primeira empresa de projetos do Brasil, da qual fazia parte também Roberto Campos. 

Mais tarde, Lopes seria estagiário da Consultec e teria um grande convívio na academia com Simonsen, que fundou em 1965 a pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, a tradicional FGV EPGE, a primeira do Brasil – antecedida, quatro anos antes, pelo Centro de Aperfeiçoamento de Economistas. 

À época, Simonsen tinha 30 anos. Ele deu uma contribuição decisiva para a redação do PAEG – o Plano de Ação Econômica do Governo, criado por Roberto Campos, então ministro do Planejamento do primeiro governo militar. Mais tarde, Simonsen foi ministro da Fazenda de Geisel (1974-1978) e por seis meses ministro do Planejamento de Figueiredo (1979-1985). 

Em um artigo publicado em novembro de 1984 pela revista Conjuntura Econômica, Simonsen propôs criar a UMB, a Unidade Monetária Brasileira. 

Em seu estilo criativo e muitas vezes ferino, Simonsen resumiu ali a ideia de combater a inflação por meio heterodoxo, em vez de insistir nos choques monetários defendidos por Octavio Gouvêa de Bulhões, o ministro da Fazenda de Castello Branco (1964-1967), que se baseava na teoria quantitativa da moeda. 

“A ideia central do projeto, a da desindexação pela própria indexação da moeda, parece mais pertinente a um libreto de ópera wagneriana do que a uma proposta de teoria econômica,” Simonsen escreveu no artigo acadêmico. “Sem dúvida, a ideia da criação da UMB deve ser objeto de muita discussão e meditação.” 

Nos parágrafos seguintes, Simonsen dá seu aval à proposta em gestação pelos economistas André Lara Resende e Persio Arida. Ainda corria o ano de 1984 – dez anos antes do Real.

Simonsen sabia que o processo de desindexação – em contraponto ao arrocho monetário que causaria uma recessão elevada e o aumento exponencial da taxa de desemprego – era anátema à ordem econômica vigente, que insistia em um gradualismo para frear a inflação. Mas aquele modelo já havia fracassado nos anos 80 e levou o país à beira da hiperinflação, desorganizando o processo produtivo. 

“Pelos padrões internacionais, o passo errado é o do sistema brasileiro, que gerou formidável inflação inercial, e que a política monetária combate com eficiência igual à dos soldados americanos na guerra do Vietnã. O Brasil precisa acertar o passo, e a ideia da UMB talvez forneça o mapa da mina,” Simonsen escreveu na revista.

De fato, dez anos depois seria criada a URV (Unidade Real de Valor), definida de forma precisa pelo advogado José Luiz Bulhões Pedreira (1925-2006): “moeda de curso legal sem poder liberatório.” 

Eram sete palavras mágicas que descreviam o DNA da URV, que foi convertida para o real em 1º de julho de 1994, finalmente quebrando a inércia da inflação brasileira.

“A inflação não volta,” Simonsen proclamou no início de fevereiro de 1996 durante um longo depoimento ao Jornal do Brasil. “Tradicionalmente, o Brasil achava que o político desejava inflação. A eleição de Fernando Henrique deixou claro o seguinte: ele foi um político que não quis a inflação, fez o Plano Real e virou presidente”.

No livro Conversas com Economistas Brasileiros (Editora 34, 1995), Simonsen dizia estar convencido desde o Governo Geisel de que uma terapia apenas ortodoxa, inspirada pelo FMI, não liquidaria a inflação. 

Por ocasião da preparação do Plano Real, ainda em 1993, foi figura de destaque nos debates que precederam e sucederam o programa de estabilização. Era próximo da equipe de economistas da PUC-Rio, a quem chamava, carinhosamente, de “EPGE do B”.

O economista Daniel Valente Dantas, considerado o melhor aluno de Simonsen na EPGE, ressalta a pluralidade no pensamento do seu mestre, que quebrou dogmas e rompeu com o padrão clássico da economia.

“O mais importante dos seus ensinamentos era tratar a economia como ciência. Ensinou a observar, a medir e a não deixar as preferências, as conveniências, ideologias ou crenças ocuparem o espaço da observação. Não confundir conhecimento com crença, axiomas com dogmas; contudo, ao mesmo tempo, era implacável e rigoroso na única evangelização que suas aulas continham, que eram os limites do conhecimento.”

Coriolano Gatto é jornalista

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Comentário de Mauricio David:  

Sou de uma geração que pouco pode pode conviver com o Simonsen, porque tive (tivemos) a vida meio cortada por longos anos de exílio. Mas sempre tive um olhar à distância para o Mário (como o chamavam pelo prenome figuras mais velhas e mais jovens da minha geração, como a Conceição e José Alexandre Scheinkman, ambos produtos de uma Faculdade Nacional de Ciências Econômicas que, para o bem ou para o mal, era o que tínhamos no Brasil...). Quando voltei do exílio, em 1979, fui a um Seminário na EPGE, da Fundação Getúlio Vargas, creio que a meados de 1980 com o meu amigo e ex-colega José Alexandre, para assistir a uma palestra do Simonsen. Uma conferencia brilhante, como acontecia quando o Simonsen discorria sobre economia (ou sobre óperas e sobre o jogo de xadrez, pois era apaixonado por ambas). Nesta conferencia o Simonsen falou do porque a inflação havia “sky-rocketed” no Brasil e no mundo. Correu um frisson entre os jornalistas que cobriam o evento, todos saíram correndo para reproduzir parte da conferencia do Mário Henrique, em especial a expressão “sky-rocket” por ele utilizada.  Eu mesmo, chegando da Suécia, nunca tinha ouvido falar daquela expressão (propulsar, subir como um foguete, apurei depois). O Simonsen era assim... Eu também tinha um ex-colega do Pedro II que foi campeão brasileiro de xadrez (e o Simonsen, como já mencionei, era apaixonado por xadrez) que era amigo do Simonsen. Pois hoje compreendo em parte porque o Geisel tanto se afeiçoou a êle (foram até morar em casas próximas, em Teresópolis, quando saíram do governo).  Até hoje me lembro de duas fotos do Simonsen que vi em algum momento da vida : uma dele tomando banho de mar em Ipanema, quando saiu do governo e voltou de Brasília para o Rio, e outra dele que foi capa da revista VEJA, com êle completamente careca, fazendo quimioterapia, às vésperas de morrer aos 62 anos !!! 62 anos, tão ingrata a vida quando leva luminárias como o Simonsen numa idade em que a maioria ainda nem começou a curtir uma aposentadoria... O Simonsen era um liberal, liberal das antigas... Fundou a EPGE na FGV, a primeira pós-graduação de economia do Brasil. Quando saiu da EPGE para assumir as pastas da Fazenda (com o Geisel) e do Planejamento (no começo do governo Figueiredo), comenta-se que a escola caiu muito... Também se comenta a boca pequena que ele procurou o Geisel, quando a Conceição esteve presa por 48 horas nos porões da repressão, e pediu pela Conceição. Já outros dizem que foi o Veloso (talvez tenham sido os dois, nunca se saberá ao certo). Dois liberais – Simonsen e Veloso – que talvez tenham salvo a vida da nossa valente guerreira (no bom sentido da palavra, porque a Conceição nunca se meteu em aventuras guerrilheiras que seduziram a muita gente, como a Dilma e etc, no período. Era uma revolucionária da linha pacífica, incapaz de matar uma mosca...Mas o fato que o Geisel atendeu ao pedido dos dois e mandou liberar a Ceiça...

O Simonsen fumava como um tresloucado. E isto talvez o tenha levado ao câncer que o matou precocemente (se tivesse vivido 32 anos mais, teria completado o mesmo ciclo vital que a Conceição). O que teria passado então se a vida lhe tivesse proporcionado mais estes 32 anos, com a mente em seu apogeu ? Por ironia, me lembro de ter lido ou ouvido que o Simonsen, ao deixar o governo, teria assumido cadeiras nos Conselhos de Administração do City Bank e da British America Tobacco, ambas cotadas na Bolsa de Nova York. Cadeiras em conselhos de grandes bancos em geral não matam seus ocupantes cedo, já as de companhias de cigarro... são fulminantes (lembro que o Simonsen, assim como a Conceição, era fumantes inveterados, acendendo um cigarro atrás do outro. Um morreu com 62, a outra com 94. O cigarro mata ?

MD

P.S.: Uma anedota divertida : quando o general Costa e Silva foi “eleito” pelo sistema militar para suceder ao general Castelo Branco na Presidência da República, o Brasil foi tomado por centenas e centenas de piadinhas sobre a proverbial burrice do sucessor do Castelo Branco. O Costa e Silva, para amenizar talvez as piadas que o colocavam na berlinda, resolveu convidar o Simonsen para lhe dar umas aulas de economia. (É verdade sim, basta consultar os jornais da época...). Imaginem que o Simonsen tinha 30 anos na época ! Podem crer: 30 anos ! Todos achavam que o Costa e Silva ia nomear seu “professor de economia” para Ministro. Me imagino que o Simonsen tenha perdido a paciência com o general e em algum momento o chamado de “burro”, porque de fato o Simonsen chamou o Hélio Beltrão para ministro do Planejamento e o Delfim para a Fazenda. Estupor generalizado ! Eu tinha um amigo e professor aqui no Rio, vindo da UnB onde havia entrado na lista negra que me dizia : “Este tal de Simonsen deve ser muito incompetente, Mauricio... Ter dado aulas de economia para o Costa e Silva e não ser chamado para ministro...”. Mas acho que o incompetente era o Costa e Silva mesmo... Se bem que o Brizola me contou, em Montevidéu, onde eu e a Beatriz fomos visita-lo na nossa viagem para o Chile, quando eu, jovem estudante repeti o deboche que os estudantes do Rio tinham com relação ao general : “não creia nisto, em 1961, quando uma ligação telefônica caiu por engano no aparelho do então governador do Rio Grande, do outro lado da linha estava o general... Pude sentir na ocasião, disse-me o Brizola, a voz de autoridade e comando do outro lado da linha... Não era tão burro assim o general, agora promovido a marechal...”. Se bem que continuo achando, tantos anos depois, que o velho marechal era uma besta quadrada mesmo...

MD


quinta-feira, 23 de maio de 2024

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou - Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco (Brazil Journal)

Dica de leitura (grato a Maurício David)

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou

Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco

Brazil Journal, 23 Maio 2024 

“Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação,” diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos pais Real, o plano que deu fim ao inflacionismo brasileiro.  Essas recordações estão no livro 30 anos do Real – Crônicas no calor do momento, organização Gustavo Franco (História Real; 224 páginas), que será lançado em 10 de junho. 

O volume reúne textos de Edmar Bacha, Pedro Malan e do próprio Franco, que foi o organizador da coletânea em celebração às três décadas do programa de estabilização monetária. Hoje a preocupação dos economistas é se a inflação brasileira vai ficar acima da meta oficial de 3% ao ano. Os mais jovens, entretanto, não podem imaginar o que foi viver num país em que os preços subiram em média 16% ao mês nos 15 anos que antecederam o Real. No pico da hiperinflação, ela atingiu 82% em março de 1990.   Nos trechos abaixo, retirados do livro e antecipados ao Brazil Journal, Bacha fala dos desafios pós-estabilização e Franco rememora o ambiente inóspito quando o Real foi lançado. 

O plano recebeu torpedos de todos os lados. “Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos,” escreve Franco. Mas a nova moeda colou – e é a mais longeva da República.  ***  

Gustavo Franco: “A construção do Real partiu de condições iniciais muito difíceis. Não foi exatamente o resultado de um consenso ou pacto facilmente construído pelo triunfo da razão, ressalvados apoios nem sempre muito convictos que obtivemos no Congresso Nacional. Os interesses associados ao inflacionismo se mostraram fortes e vocais, além de bem dissimulados, pois jamais faziam uma defesa aberta da inflação. Eram apenas, como se dizia, a crítica (democrática) ao modelo de combate à inflação, dito ortodoxo e recessivo. As circunstâncias foram sempre difíceis, dentro e fora do País. O enfrentamento e a polêmica, bem como a paciência e a consistência, foram marcas inequívocas desse trajeto. 

Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos. Muitos políticos, inclusive alguns amigos, diziam que as soluções que propúnhamos eram de quem não conhecia Brasília nem nada sobre as vontades do povo.  Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação. Arnaldo Jabor era uma delas. Em 28 de junho de 1994, três dias antes da conclusão da reforma monetária que introduziu o Real, diante da quantidade e variedade de reparos à estabilização vindos de todos os lados, Jabor publicou uma crônica inesquecível, intitulada ‘País não merece vitória do Plano Real’.  A passagem mais comovente, ao menos para mim, ia ao coração do problema: ‘Não há solidão mais terrível do que ser da equipe econômica do governo.’ E a razão era simples, segundo dizia: ‘Ninguém ajudou.’ Congresso, economistas, Igreja, burguesia, artistas, intelectuais, Judiciário, conforme ele explicava em cores vivas, estavam consumidos pela descrença ou pelo torpor. Complexa a chamada ‘economia política’ da inflação. Mas o Plano avançou, transitando por duros debates e negociações. Seus resultados superaram as melhores expectativas, desarmaram as objeções e o País se encantou com a vida sem inflação. Tudo indica que fizemos uma opção para todo o sempre em 1994.”  (…)  

Edmar Bacha: “Em 1974, escrevi uma fábula sobre o reino de Belíndia, mistura de Bélgica com Índia, um País em que o crescimento econômico beneficiava somente a parcela mais rica da população. Era uma alegoria sobre a natureza do crescimento do PIB brasileiro durante a ditadura militar. Em 1984, quando da transição para a democracia, imaginei em nova fábula uma reunião de economistas no Sambódromo para discutir como dar fim à inflação no país dos contrários, em que tudo funcionava de trás para a frente, inclusive o próprio nome do país, Lisarb, e seu próximo presidente, Seven. Após a redemocratização, Mario Henrique Simonsen cunhou o termo Banglabânia, mistura de Bangladesh com Albânia, para expressar sua preocupação com o risco de empobrecimento do país como consequência das tendências autárquicas e estatizantes da Constituição de 1988. Em 1994, quando fui para o governo, Delfim Netto apresentou sua réplica à Belíndia, concebendo a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, para criticar o governo, que aumentava os impostos como se estivesse num país europeu enquanto oferecia serviços públicos de terceiro mundo. As manifestações de rua de 2013 trouxeram à tona outra caracterização, que denominei de Rumala, triste combinação de Rússia com Guatemala: uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade. Como se não bastasse, ao promover a devastação da Amazônia e a ocupação pelo garimpo ilegal dos territórios indígenas, o governo de Bolsonaro me sugeriu criar Brasa, um país em chamas, completando essa peculiar lista. Esses países imaginários designam males múltiplos presentes na atualidade brasileira: desigualdade, preços surreais, pobreza, introversão, estagnação, impostos sem contrapartida de serviços, corrupção e violência, ataques ao meio ambiente e aos povos originários. Sombrios como parecem ser os tempos atuais, é preciso manter o senso de perspectiva. Em 2019, comemoramos 130 anos de República. Na transição do Império para a República, na última década do século XIX, o Brasil tinha apenas 14 milhões de habitantes, dos quais 82% eram ágrafos e apenas 10% viviam em áreas urbanas. A renda por habitante era pouco maior do que US$ 1 mil em preços de hoje. Atualmente, o Brasil tem 203 milhões de habitantes, com o analfabetismo reduzido a 6% da população adulta: uma população em sua imensa maioria urbana (85%), dispondo de uma renda anual por habitante da ordem de US$ 15 mil. São avanços inegáveis, mas que empalidecem quando comparados aos níveis mais altos de bem-estar dos países ricos. Entre 1920 e 1980, o Brasil seguiu uma trajetória de alto crescimento e parecia destinado a se incorporar ao conjunto dos países mais avançados. Essa trajetória, entretanto, estancou-se na crise da dívida externa do início dos anos 1980, a qual gestou um processo de alta inflação de que só nos livramos com o Plano Real, em 1994. Avaliando o Plano Real em 1997, três anos após sua implantação, celebrei o fato de ele ter sido bem-sucedido em baixar as taxas de inflação e mantê-las baixas. Mas observei que ainda era preciso produzir uma tendência econômica na qual o controle inflacionário se conjugasse com crescimento econômico sustentado e equilíbrio das contas externas. O equilíbrio das contas externas pôde ser alcançado a partir da introdução, em 1999, do chamado tripé da política econômica: superávit primário no Orçamento do governo, câmbio flutuante e metas de inflação. Com a manutenção do tripé pelos governos do PT, a partir de 2003, e a ajuda do auge das commodities na primeira década do século XXI, o país conseguiu superar as crises de balanço de pagamentos da década de 1980. Isso ficou demonstrado no enfrentamento da crise financeira internacional de 2008, quando o governo pôde praticar uma política expansionista sem temer uma parada súbita na entrada de capitais externos. O Plano Real permitiu, assim, abolir dois males históricos da economia brasileira: a alta inflação e as crises de balanço de pagamentos, que ainda hoje tanto atormentam a Argentina. No entanto, afora curtos espasmos determinados pelo ciclo das commodities, o Brasil continuou a crescer a taxas muito baixas. Não se trata de fenômeno incomum. É conhecido como a armadilha da renda média na literatura internacional. Uma coisa é transitar da renda baixa para a renda média. Outra coisa é sair da renda média para alcançar o nível de renda dos países ricos.”


domingo, 10 de março de 2024

Brasil poderia deslanchar, mas Lula põe empresários na defensiva, diz Edmar Bacha - Cristiano Romero (Brazil Journal)

 A mais importante entrevista da atualidade politica e econômica brasileira. (PRA)


Brasil poderia deslanchar, mas Lula põe empresários na defensiva, diz Bacha

Cristiano Romero

Brazil Journal, 10 de março de 2024 


Eleitor de Lula no pleito de 2022, o economista Edmar Bacha diz que o Brasil tem oportunidades “extraordinárias,” mas não as está aproveitando por falta de confiança de empresários e investidores na economia.

E todo mundo sabe o que está gerando este clima: o próprio comportamento e as decisões do Presidente. 

“Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça,” Bacha disse nesta entrevista ao Brazil Journal.

É o caso da Vale, que Lula e trata como se ainda fosse estatal apesar de ter sido privatizada há 26 anos. 

O economista diz que o ministro do Trabalho “age como um sindicalista dos anos 1930” ao tentar regular os aplicativos, e que a política industrial anunciada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin vai afastar o Brasil ainda mais das cadeias internacionais de valor.

Mas para Bacha, nem tudo são espinhos no governo Lula. Ele elogia a gestão de Fernando Haddad – “Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal” – a nomeação de Nísia Trindade Lima para a Saúde e as iniciativas do presidente na área social. “Lula faz um bom trabalho nessa área.”

Bacha diz que o País terá que fazer a reforma do Estado, outra reforma da Previdência, e aumentar a eficiência dos programas sociais.

Mas se o Governo insistir nas ideias atrasadas, é o próprio PT que pagará o preço.  “O Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.”

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Como o senhor avalia a gestão do governo Lula?

Acho que o Haddad está conseguindo segurar as pontas. Basicamente, é disso que se trata, enfrentar o “fogo amigo” dentro do governo e o “fogo inimigo” no Congresso. Bolsonaro realmente deixou esse horrível legado. Outro dia vi o gráfico da proporção das emendas dos parlamentares no Orçamento Geral da União [R$37,6 bilhões, metade do total previsto para investimento em 2024].

Foi boa ideia acabar com o teto de gastos?

Não foi bom acabar com o teto, mas, tendo visto todos os furos de que o teto foi vítima, era preciso conceber alguma coisa nova. O Haddad conseguiu, dentro das circunstâncias, conceber algo aceitável para Lula e o PT. A gente não pode esquecer que este é um governo do Lula e do PT. Dentro desse constrangimento, acho que ele fez o melhor possível. O governo tem diversas dimensões. A política externa, por exemplo, é um absurdo.

Por quê?

Porque é um absurdo que Celso Amorim, que é antiamericano radical desde sempre, esteja no comando da política externa. Estamos apoiando Vladimir Putin, Nicolás Maduro e Xi Jinping, e fazendo coisas unilaterais no Oriente Médio, quando deveríamos tentar fazer o meio de campo.

Que papel o Brasil poderia ter no conflito entre Israel e Palestina?

Temos condições internas para fazer o meio de campo no Oriente Médio porque essas questões estão razoavelmente pacificadas no Brasil. A lei antirracismo, por exemplo, foi proposta por Afonso Arinos de Melo Franco e aprovada em 1951. Naquela época, os EUA ainda tinham “apartheid”. Estamos purgando os pecados do passado, mas enfim, somos uma sociedade misturada e temos honra de sermos assim. Obviamente, há um problema terrível de distribuição de renda que a gente precisa enfrentar, mas que está sendo trabalhado. Lula faz um bom trabalho nessa área. Imagine ter a Nísia Trindade Lima no Ministério da Saúde. Isso é uma verdadeira prenda! Então, há coisas boas no governo.

O que o preocupa além da política externa?

Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça. Ele não tem mais as estatais na mão porque elas foram privatizadas. Lula quer entrar na Vale porque a companhia não está investindo tanto quanto ele queria. Ele entrou na Petrobras. O presidente [Jean Paul Prates] que ele nomeou quer comprar de volta refinarias privatizadas [durante os governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro]. Está querendo, também, comprar os postos de gasolina de volta [a BR Distribuidora foi privatizada em 2019]. Isso é absurdo! 

A Petrobras tinha que estar focada para fazer o que sabe fazer bem, que é a exploração de petróleo. É uma empresa estatal, então, precisa ter uma super governança. A Lei das Estatais [aprovada na gestão Temer] tentou fazer isso, mas, hoje, essa lei está sob ataque do Lula e dos petistas. Vejo problemas também no Ministério do Trabalho.

Por quê?

O ministro do Trabalho [Luiz Marinho] age como um sindicalista dos anos 1930. Ele acha que está fazendo a consolidação das leis do trabalho para um Brasil que estaria começando a se industrializar e a se urbanizar… Ele pressionou de todas as formas para fazer a chamada, entre aspas, regularização da atividade dos entregadores de aplicativos. Os entregadores reagiram, dizendo: “Não queremos essa regularização”. O pessoal do PT tem uma mentalidade atrasada.

Como o senhor avalia a política industrial lançada pelo governo?

A esta altura da partitura, aumentar a tarifa sobre importação, os requisitos de conteúdo local e a preferência para compras governamentais são decisões contrárias ao aumento da produtividade da economia. Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal. A reforma tributária passou muito bem no Congresso, mas eu me pergunto: se o Lula estivesse realmente interessado e não tivesse delegado o assunto totalmente para o pobre do Bernard Appy [secretário especial da Reforma Tributária], que teve que resolver tudo com o Congresso sem nenhum poder político, teriam aparecido tantos jabutis quanto apareceram? E agora, há o risco de termos ainda mais jabutis na regulamentação.

A reforma tributária manteve o IPI sobre produtos que tenham similares fabricados na Zona Franca de Manaus. Este é um jabuti?

Acho que eles vão restringir a lista de produtos sujeitos a essa regra. Espero que seja como a lista da cesta básica. Há a promessa de revisão daqui a cinco anos. Nos próximos anos, temos que ficar batendo em cima para que, de fato, daqui a cinco anos a gente possa tirar esses jabutis da árvore.

Quando a Constituição foi promulgada em 1988, fixou-se prazo de cinco anos para a revisão. Houve revisão?

Lembro-me perfeitamente. Mandamos 63 projetos de emenda constitucional e o Congresso rejeitou 62. Só passou a criação do Fundo Social de Emergência [que desvinculou 20% da arrecadação dos tributos federais atrelados a gastos com saúde e educação].

O PIB cresceu 2,9% no ano passado, mas a taxa de investimento recuou 3%. Falta confiança aos empresários?

Não há confiança. O que me irrita no Lula é que o país poderia estar deslanchando se houvesse confiança. Há oportunidades extraordinárias, mas é preciso ficar na defensiva com o Lula o tempo todo. Sabe-se lá como ele vai intervir na economia. E uma economia que joga na defesa não vai para frente.

O senhor defende há muitos anos a abertura da economia como medida necessária para o aumento da produtividade. Vê alguma chance para essa agenda?

Os “Mercadantes” estão muito exultantes com o fato de que, agora, os EUA começaram a praticar a política industrial. Mas é uma política voltada para a sua luta contra a China. E, aí, o pessoal do governo do PT diz: “Se eles fazem, a gente pode fazer também”. O Alckmin fala: “Olha quanto eles [os americanos] estão gastando”. Quando o mundo estava se globalizando, o Brasil não se globalizou. Agora, o mundo está se desglobalizando.

Durante a pandemia, cadeias globais de produção foram quebradas. Isso não criou oportunidade para o Brasil se reindustrializar?

Acho que sim. O país precisa repensar a indústria. A questão não é ter política industrial, e sim ter uma política industrial voltada para a integração do Brasil nas cadeias internacionais de valor.

A política industrial  anunciada pelo governo é o contrário: é para desintegrar ainda mais o Brasil das cadeias internacionais de valor. Vai na contramão do que precisa. Esse pessoal não entende que isso vai criar meia dúzia de empregos, mas a que custo fiscal e a que preço para os consumidores nacionais? Nós, que temos dinheiro para viajar ao exterior, podemos comprar tudo lá fora, sem pagar nenhum imposto aqui. E ainda nos deixam comprar mais US$1.000 no free shop, sem pagar imposto.

Mas e os brasileiros que não conseguem sair do país porque não têm dinheiro? Esses brasileiros descobriram que existe um canal chinês que vende produtos, de até US$ 50, sem imposto. Aí, vem o governo querendo taxar esse pessoal. Isso é falta de respeito com os consumidores brasileiros, especialmente os de baixa e média renda. Eles [o governo e os empresários contrários à abertura comercial] acham que o mercado interno é deles. Meu argumento é sempre produtividade, mas o que realmente me toca é a insensibilidade social com o consumidor de baixa renda no Brasil.

O senhor enxerga alguma saída política, capaz de romper esse “pacto” anti-aberturacomercial?

Essa coisa é muito difícil. Estava pensando politicamente o seguinte: todos nós somos produtores de alguma coisa e consumidores do resto. O que a gente produz a gente quer proteger. Para proteger o que produzo, eu sei como agir. Vou lá no meu sindicato, no meu deputado, no Ministério da Indústria e Comércio. Agora, para as coisas que eu consumo, a quem eu recorro, com quem me reúno?

Com quem?

Não tem! Não há agregação de interesses individuais em coletividades que possam exercer a pressão que os grupos de interesse operam sobre o governo. E, aí, nós somos prejudicados. Bem, nós não porque temos como fazer compras no exterior. Eu me lembro bem quando, em 1983, trouxe um computador dos EUA pela primeira vez e o José Serra olhou para mim e perguntou: “O que é isso, hein?”. Naquela época, tínhamos uma Lei de Informática que proibia a importação de computadores.

O Plano Real completa 30 anos em julho. O senhor vê alguma ameaça à estabilidade dos preços?

Não.

Acredita nisso porque os brasileiros aprenderam que inflação baixa é algo bom?

Não são os brasileiros, e sim a classe política. Os políticos aprenderam que, se não mantiverem a inflação sob controle, eles caem fora

Que reformas o país precisa fazer além de abrir a economia?

A reforma do Estado brasileiro, um tema que vem sendo bastante tratado pelo Arminio Fraga e a Ana Carla Abrão.

Qual é o aspecto mais importante dessa reforma?

Uma reforma administrativa entendida amplamente. A gente tem que reduzir o peso que o gasto de pessoal exerce hoje sobre o orçamento.

Há também a questão da Previdência, que vai voltar, uma vez que o Lula está corrigindo o salário mínimoacima da inflação. Com o piso da Previdência indexado ao salário mínimo, essa situação vai se deteriorar ao longo do tempo.

Mesmo os programas sociais poderiam ser melhorgerenciados. O ex-senador Tasso Jereissati apresentou proposta de lei de responsabilidade social dando um pouquinho mais de consistência e integração às transferências sociais. Estas poderiam ser feitas de forma muito mais efetiva, com muito menos custo e mais benefícios para quem de fato necessita.

De que forma?

Unificar os programas, ter portas de entrada e saída, criar poupança para quem necessita no setor informal, para uso durante momentos de desemprego. Enfim, teria muito o que fazer para tornar o Estado mais leve e ágil, e mais voltado para o que deve fazer pelo país.

Como o senhor analisa a polarização política que caracteriza hoje a política brasileira?

Aqui, o problema foi o afundamento do PSDB. O partido surgiu como alternativa ao petismo, mas só foi bem-sucedido por causa do real. O Plano Real criou essa possibilidade de o PSDB ficar no governo federal por oito anos e, no governo de São Paulo por 20. O PSDB se desintegrouO governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, está tentando alguma coisa, vamos ver o que ele consegue.

Por que o encolhimento do PSDB explica a polarização?

Porque isso criou um vácuo no espectro anti-lulistaanti-PT. A direita se apropriou desse espaço. No passado recente e na época do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso [1995-2002], o centro tinha controle sobre suas partes. Estou pensando aqui em Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Eduardo Campos e outros grandes líderes que tivemos. O PMDB, de onde nasceu o PSDB, era uma força que também se diluiu em inúmeros partidos com aspectos fisiológicos e muito pouco caráter programático.

O PSDB é um partido de centro-esquerda. Por que seu espaço foi ocupado pela extrema-direita?

Acho que aí tem um problema de personalidade. De vez em quando a história é determinada por indivíduos. O líder carismático que apareceu [Jair Bolsonaro] é um líder de extrema-direita.

Que grupos a extrema-direita representa?

O agronegócio moderno e as igrejas pentecostais. Não consigo ver muitas outras características que possam ser identificadas. Por que o Lula ganhou a eleição? Porque, na última hora, muita gente, inclusive eu e os pais do Real, declarou voto nele. Foi isso, até mais do que os votos da Simone Tebet, que garantiu a vitória. Mas o Lula não entendeu isso até hoje.

O quê, exatamente?

Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.

O senhor vê riscos à democracia brasileira?

Com Trump, sim. Da vez que o Bolsonaro tentou, eu estava tranquilo porque, pensei, se ele quiser fazer alguma coisa, os americanos não deixam.

No cenário externo, que riscos o senhor vê adiante?

O maior é a eleição de Donald Trump. É complicada a situação. Os americanos se acostumaram a ter uma taxa de juros muito baixa por muito tempo. A dívida pública não importava muito porque qualquer crescimento do PIB compensava a elevação da dívida. Agora, com os juros a 5,5% ao ano, não mais. O mundo é muito sensível aos juros americanos. O problema do Trump é seu discurso super radical, dizendo, por exemplo, que quer classificar imigrantes como terroristas. É inacreditável!

Ele disse que não indicará Jay Powell para novo mandato no comando do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA]. Isso preocupa?

Pois é, sabe-se lá qual será a política monetária, embora a estrutura do Fed seja muito sólida. Não dá para colocar muitos “pombos” [economistas subservientes ao governo] na diretoria. Ele está falando em colocar imposto de 150% sobre o que se compra da China. Isso não depende tanto do Congresso para fazer. E tem a questão da geopolítica.

Qual, exatamente?

Trump está ameaçando enfraquecer a OTAN, além de todas as outras organizações multilaterais. Seriam os EUA se voltando para si mesmo. O isolacionismo se manifestando a esse nível pode ser muito ruim para o mundo.Os europeus terão que reagir de alguma maneira porque a ameaça da Rússia está aí. Matéria do “The New York Times” revelou a atração, por Vladimir Putin, de uma importante ala do partido Republicano. Não é só o Trump. É um grau muito grande de deterioração em relação ao que se espera do país líder do mundo ocidental.

Com a possível volta de Trump, voltamos para a era das incertezas?

Essa é a questão. O retorno de Trump é algo que, obviamente, não vai ser bom. O que podemos discutir é o quão ruim será porque os interesses comerciais e empresariais americanos no exterior são muito relevantes. A dependência da força do dólar, tendo em vista que os EUA são um país deficitário e que sua dívida externa precisa se manter sólida, é muito importante. Ainda hoje é impossível imaginar uma corrida contra o dólar. Todas as crises internacionais, inclusive, as mais recentes, foram uma corrida para o dólar, que continua sendo o ativo mais seguro. Isso expõe o mundo.

Por quê?

Seria um risco enorme você não dispor da moeda básica, um ativo sobre o qual os investidores não têm a menor dúvida. Este seria o limite que um governo Trump, isolacionista e muito aguerrido, poderia provocar no mundo. Temos que nos preparar para essa situação.

E como estamos?

O saldo comercial do Brasil é bem favorável [US$98,8 bilhões em 2023, recorde histórico]. Temos boa perspectiva tanto em termos de safra agrícola quanto de petróleo e gás. E temos reservas internacionais bastante fortes [US$ 354 bilhões]. A gente tem que se preocupar com a solidez fiscal porque o que pode ocorrer de pior é uma crise financeira, que vai nos atingir diretamente.

De que forma?

Atinge a colocação da dívida pública aqui no país, mesmo esta sendo interna. Haveria fuga de capitais. Se você olhar a composição das reservas internacionais ao longo dos últimos anos, há uma queda da importância do dólar. Ao contrário do que alguns previam, isso não ocorre por causa do renminbi. Há uma diversificação de portfólio em relação a países ocidentais sólidos, mas a dimensão desses mercados é muito pequena. Você pode diversificar 5%, 10% ou 15% do portfólio das reservas, mas, logo, logo, chega ao limite porque não existe outro país, com exceção da China, com a dimensão econômica dos EUA. Dependendo do que ocorra na Europa, temos que imaginar como seria porque, lá, não há mais líderes com a qualidade da Angela Merkel [ex-premiê da Alemanha]. Isso é preocupante porque, se não forem os EUA, têm que ser a Europa para segurar o mundo ocidental.

Como o senhor vê a situação econômica da China? 

Enquanto continuar o controle político que o Partido Comunista possui, os chineses têm os instrumentos em mãos [para lidar com uma possível crise]. Eles não têm problema fiscal como o nosso. Têm um superávit fiscal considerável. A taxa de poupança da China é extraordinária [45% do PIB]. O Brasil [cuja taxa de poupança em 2023 foi de 15,4%] tem um problema de excesso de demanda, enquanto na China falta demanda. É por isso que os chineses dependem tanto das exportações e dos investimentos em construção civil. Mas, os governantes têm os instrumentos e é mais fácil combater falta de demanda do que falta de oferta. O fato é que acabou o milagre chinês. A discussão neste momento é a que taxa de crescimento eles vão pousar.


Source: https://braziljournal.com/brasil-poderia-deslanchar-mas-lula-poe-empresarios-na-defensiva-diz-bacha/?utm_source=Brazil+Journal&utm_campaign=928212ade3-weekendjournal-10032024-1_COPY_03&utm_medium=email&utm_term=0_850f0f7afd-928212ade3-427950289

 



Entrevista de Edmar Bacha (Brazil Journal): Declarações-bomba contra Lula e o PT - comentários de Maurício David

Brasil poderia deslanchar, mas Lula põe empresários na defensiva, diz Bacha


Entrevista ao Brazil Journal, 10/03/2024


Eleitor de Lula no pleito de 2022, o economista Edmar Bacha diz que o Brasil tem oportunidades “extraordinárias,” mas não as está aproveitando por falta de confiança de empresários e investidores na economia. E todo mundo sabe o que está gerando este clima: o próprio comportamento e as decisões do Presidente. “Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça,” Bacha disse nesta entrevista ao Brazil Journal. É o caso da Vale, que Lula e trata como se ainda fosse estatal apesar de ter sido privatizada há 26 anos. O economista diz que o ministro do Trabalho “age como um sindicalista dos anos 1930” ao tentar regular os aplicativos, e que a política industrial anunciada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin vai afastar o Brasil ainda mais das cadeias internacionais de valor. Mas para Bacha, nem tudo são espinhos no governo Lula. Ele elogia a gestão de Fernando Haddad – “Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal” – a nomeação de Nísia Trindade Lima para a Saúde e as iniciativas do presidente na área social. “Lula faz um bom trabalho nessa área.” Bacha diz que o País terá que fazer a reforma do Estado, outra reforma da Previdência, e aumentar a eficiência dos programas sociais. Mas se o Governo insistir nas ideias atrasadas, é o próprio PT que pagará o preço. “O Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.” Abaixo, os principais trechos da entrevista. 

 

Como o senhor avalia a gestão do governo Lula? 

 

Acho que o Haddad está conseguindo segurar as pontas. Basicamente, é disso que se trata, enfrentar o “fogo amigo” dentro do governo e o “fogo inimigo” no Congresso. Bolsonaro realmente deixou esse horrível legado. Outro dia vi o gráfico da proporção das emendas dos parlamentares no Orçamento Geral da União [R$37,6 bilhões, metade do total previsto para investimento em 2024].

 

Foi boa ideia acabar com o teto de gastos?

 

Não foi bom acabar com o teto, mas, tendo visto todos os furos de que o teto foi vítima, era preciso conceber alguma coisa nova. O Haddad conseguiu, dentro das circunstâncias, conceber algo aceitável para Lula e o PT. A gente não pode esquecer que este é um governo do Lula e do PT. Dentro desse constrangimento, acho que ele fez o melhor possível. O governo tem diversas dimensões. A política externa, por exemplo, é um absurdo. 

 

Por quê?

 

Porque é um absurdo que Celso Amorim, que é antiamericano radical desde sempre, esteja no comando da política externa. Estamos apoiando Vladimir Putin, Nicolás Maduro e Xi Jinping, e fazendo coisas unilaterais no Oriente Médio, quando deveríamos tentar fazer o meio de campo. 

 

Que papel o Brasil poderia ter no conflito entre Israel e Palestina?

 

Temos condições internas para fazer o meio de campo no Oriente Médio porque essas questões estão razoavelmente pacificadas no Brasil. A lei antirracismo, por exemplo, foi proposta por Afonso Arinos de Melo Franco e aprovada em 1951. Naquela época, os EUA ainda tinham “apartheid”. Estamos purgando os pecados do passado, mas enfim, somos uma sociedade misturada e temos honra de sermos assim. Obviamente, há um problema terrível de distribuição de renda que a gente precisa enfrentar, mas que está sendo trabalhado. Lula faz um bom trabalho nessa área. Imagine ter a Nísia Trindade Lima no Ministério da Saúde. Isso é uma verdadeira prenda! Então, há coisas boas no governo.

 

O que o preocupa além da política externa?

 

Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça. Ele não tem mais as estatais na mão porque elas foram privatizadas. Lula quer entrar na Vale porque a companhia não está investindo tanto quanto ele queria. Ele entrou na Petrobras. O presidente [Jean Paul Prates] que ele nomeou quer comprar de volta refinarias privatizadas [durante os governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro]. Está querendo, também, comprar os postos de gasolina de volta [a BR Distribuidora foi privatizada em 2019]. Isso é absurdo! A Petrobras tinha que estar focada para fazer o que sabe fazer bem, que é a exploração de petróleo. É uma empresa estatal, então, precisa ter uma super governança. A Lei das Estatais [aprovada na gestão Temer] tentou fazer isso, mas, hoje, essa lei está sob ataque do Lula e dos petistas. Vejo problemas também no Ministério do Trabalho. 

 

Por quê?

 

O ministro do Trabalho [Luiz Marinho] age como um sindicalista dos anos 1930. Ele acha que está fazendo a consolidação das leis do trabalho para um Brasil que estaria começando a se industrializar e a se urbanizar… Ele pressionou de todas as formas para fazer a chamada, entre aspas, regularização da atividade dos entregadores de aplicativos. Os entregadores reagiram, dizendo: “Não queremos essa regularização”. O pessoal do PT tem uma mentalidade atrasada. 

 

Como o senhor avalia a política industrial lançada pelo governo? 

 

A esta altura da partitura, aumentar a tarifa sobre importação, os requisitos de conteúdo local e a preferência para compras governamentais são decisões contrárias ao aumento da produtividade da economia. Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal. A reforma tributária passou muito bem no Congresso, mas eu me pergunto: se o Lula estivesse realmente interessado e não tivesse delegado o assunto totalmente para o pobre do Bernard Appy [secretário especial da Reforma Tributária], que teve que resolver tudo com o Congresso sem nenhum poder político, teriam aparecido tantos jabutis quanto apareceram? E agora, há o risco de termos ainda mais jabutis na regulamentação. A reforma tributária manteve o IPI sobre produtos que tenham similares fabricados na Zona Franca de Manaus.

 

Este é um jabuti?

 

Acho que eles vão restringir a lista de produtos sujeitos a essa regra. Espero que seja como a lista da cesta básica. Há a promessa de revisão daqui a cinco anos. Nos próximos anos, temos que ficar batendo em cima para que, de fato, daqui a cinco anos a gente possa tirar esses jabutis da árvore. Quando a Constituição foi promulgada em 1988, fixou-se prazo de cinco anos para a revisão. Houve revisão? Lembro-me perfeitamente. Mandamos 63 projetos de emenda constitucional e o Congresso rejeitou 62. Só passou a criação do Fundo Social de Emergência [que desvinculou 20% da arrecadação dos tributos federais atrelados a gastos com saúde e educação]. O PIB cresceu 2,9% no ano passado, mas a taxa de investimento recuou 3%.

 

Falta confiança aos empresários?

 

Não há confiança. O que me irrita no Lula é que o país poderia estar deslanchando se houvesse confiança. Há oportunidades extraordinárias, mas é preciso ficar na defensiva com o Lula o tempo todo. Sabe-se lá como ele vai intervir na economia. E uma economia que joga na defesa não vai para frente. 

 

O senhor defende há muitos anos a abertura da economia como medida necessária para o aumento da produtividade. Vê alguma chance para essa agenda?

 

Os “Mercadantes” estão muito exultantes com o fato de que, agora, os EUA começaram a praticar a política industrial. Mas é uma política voltada para a sua luta contra a China. E, aí, o pessoal do governo do PT diz: “Se eles fazem, a gente pode fazer também”. O Alckmin fala: “Olha quanto eles [os americanos] estão gastando”. Quando o mundo estava se globalizando, o Brasil não se globalizou. Agora, o mundo está se desglobalizando. 

 

Durante a pandemia, cadeias globais de produção foram quebradas. Isso não criou oportunidade para o Brasil se reindustrializar?

 

Acho que sim. O país precisa repensar a indústria. A questão não é ter política industrial, e sim ter uma política industrial voltada para a integração do Brasil nas cadeias internacionais de valor. A política industrial anunciada pelo governo é o contrário: é para desintegrar ainda mais o Brasil das cadeias internacionais de valor. Vai na contramão do que precisa. Esse pessoal não entende que isso vai criar meia dúzia de empregos, mas a que custo fiscal e a que preço para os consumidores nacionais? Nós, que temos dinheiro para viajar ao exterior, podemos comprar tudo lá fora, sem pagar nenhum imposto aqui. E ainda nos deixam comprar mais US$1.000 no free shop, sem pagar imposto. Mas e os brasileiros que não conseguem sair do país porque não têm dinheiro? Esses brasileiros descobriram que existe um canal chinês que vende produtos, de até US$ 50, sem imposto. Aí, vem o governo querendo taxar esse pessoal. Isso é falta de respeito com os consumidores brasileiros, especialmente os de baixa e média renda. Eles [o governo e os empresários contrários à abertura comercial] acham que o mercado interno é deles. Meu argumento é sempre produtividade, mas o que realmente me toca é a insensibilidade social com o consumidor de baixa renda no Brasil. 

 

O senhor enxerga alguma saída política, capaz de romper esse “pacto” anti-abertura comercial?

 

Essa coisa é muito difícil. Estava pensando politicamente o seguinte: todos nós somos produtores de alguma coisa e consumidores do resto. O que a gente produz a gente quer proteger. Para proteger o que produzo, eu sei como agir. Vou lá no meu sindicato, no meu deputado, no Ministério da Indústria e Comércio. Agora, para as coisas que eu consumo, a quem eu recorro, com quem me reúno? Com quem? Não tem! Não há agregação de interesses individuais em coletividades que possam exercer a pressão que os grupos de interesse operam sobre o governo. E, aí, nós somos prejudicados. Bem, nós não porque temos como fazer compras no exterior. Eu me lembro bem quando, em 1983, trouxe um computador dos EUA pela primeira vez e o José Serra olhou para mim e perguntou: “O que é isso, hein?”. Naquela época, tínhamos uma Lei de Informática que proibia a importação de computadores. 

 

O Plano Real completa 30 anos em julho. O senhor vê alguma ameaça à estabilidade dos preços? 

 

Não.

 

Acredita nisso porque os brasileiros aprenderam que inflação baixa é algo bom?

 

Não são os brasileiros, e sim a classe política. Os políticos aprenderam que, se não mantiverem a inflação sob controle, eles caem fora.

 

Que reformas o país precisa fazer além de abrir a economia?

 

A reforma do Estado brasileiro, um tema que vem sendo bastante tratado pelo Arminio Fraga e a Ana Carla Abrão. Qual é o aspecto mais importante dessa reforma? Uma reforma administrativa entendida amplamente. A gente tem que reduzir o peso que o gasto de pessoal exerce hoje sobre o orçamento. Há também a questão da Previdência, que vai voltar, uma vez que o Lula está corrigindo o salário mínimo acima da inflação. Com o piso da Previdência indexado ao salário mínimo, essa situação vai se deteriorar ao longo do tempo. Mesmo os programas sociais poderiam ser melhor gerenciados. O ex-senador Tasso Jereissati apresentou proposta de lei de responsabilidade social dando um pouquinho mais de consistência e integração às transferências sociais. Estas poderiam ser feitas de forma muito mais efetiva, com muito menos custo e mais benefícios para quem de fato necessita. 

 

De que forma? 

 

Unificar os programas, ter portas de entrada e saída, criar poupança para quem necessita no setor informal, para uso durante momentos de desemprego. Enfim, teria muito o que fazer para tornar o Estado mais leve e ágil, e mais voltado para o que deve fazer pelo país.

 

Como o senhor analisa a polarização política que caracteriza hoje a política brasileira? 

 

Aqui, o problema foi o afundamento do PSDB. O partido surgiu como alternativa ao petismo, mas só foi bem-sucedido por causa do real. O Plano Real criou essa possibilidade de o PSDB ficar no governo federal por oito anos e, no governo de São Paulo por 20. O PSDB se desintegrou. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, está tentando alguma coisa, vamos ver o que ele consegue.

 

Por que o encolhimento do PSDB explica a polarização?

 

Porque isso criou um vácuo no espectro anti-lulista e anti-PT. A direita se apropriou desse espaço. No passado recente e na época do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso [1995-2002], o centro tinha controle sobre suas partes. Estou pensando aqui em Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Eduardo Campos e outros grandes líderes que tivemos. O PMDB, de onde nasceu o PSDB, era uma força que também se diluiu em inúmeros partidos com aspectos fisiológicos e muito pouco caráter programático. O PSDB é um partido de centro-esquerda. Por que seu espaço foi ocupado pela extrema-direita? Acho que aí tem um problema de personalidade. De vez em quando a história é determinada por indivíduos. O líder carismático que apareceu [Jair Bolsonaro] é um líder de extrema-direita.

 

Que grupos a extrema-direita representa? 

 

O agronegócio moderno e as igrejas pentecostais. Não consigo ver muitas outras características que possam ser identificadas. 

 

Por que o Lula ganhou a eleição? 

 

Porque, na última hora, muita gente, inclusive eu e os pais do Real, declarou voto nele. Foi isso, até mais do que os votos da Simone Tebet, que garantiu a vitória. Mas o Lula não entendeu isso até hoje. 

 

O quê, exatamente?

 

Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.

 

O senhor vê riscos à democracia brasileira? 

 

Com Trump, sim. Da vez que o Bolsonaro tentou, eu estava tranquilo porque, pensei, se ele quiser fazer alguma coisa, os americanos não deixam. 

 

No cenário externo, que riscos o senhor vê adiante?

 

O maior é a eleição de Donald Trump. É complicada a situação. Os americanos se acostumaram a ter uma taxa de juros muito baixa por muito tempo. A dívida pública não importava muito porque qualquer crescimento do PIB compensava a elevação da dívida. Agora, com os juros a 5,5% ao ano, não mais. O mundo é muito sensível aos juros americanos. O problema do Trump é seu discurso super radical, dizendo, por exemplo, que quer classificar imigrantes como terroristas. É inacreditável!

 

Ele disse que não indicará Jay Powell para novo mandato no comando do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA]. Isso preocupa? 

 

Pois é, sabe-se lá qual será a política monetária, embora a estrutura do Fed seja muito sólida. Não dá para colocar muitos “pombos” [economistas subservientes ao governo] na diretoria. Ele está falando em colocar imposto de 150% sobre o que se compra da China. Isso não depende tanto do Congresso para fazer. E tem a questão da geopolítica. 

 

Qual, exatamente? 

 

Trump está ameaçando enfraquecer a OTAN, além de todas as outras organizações multilaterais. Seriam os EUA se voltando para si mesmo. O isolacionismo se manifestando a esse nível pode ser muito ruim para o mundo.Os europeus terão que reagir de alguma maneira porque a ameaça da Rússia está aí. Matéria do “The New York Times” revelou a atração, por Vladimir Putin, de uma importante ala do partido Republicano. Não é só o Trump. É um grau muito grande de deterioração em relação ao que se espera do país líder do mundo ocidental. 

 

Com a possível volta de Trump, voltamos para a era das incertezas?

 

Essa é a questão. O retorno de Trump é algo que, obviamente, não vai ser bom. O que podemos discutir é o quão ruim será porque os interesses comerciais e empresariais americanos no exterior são muito relevantes. A dependência da força do dólar, tendo em vista que os EUA são um país deficitário e que sua dívida externa precisa se manter sólida, é muito importante. Ainda hoje é impossível imaginar uma corrida contra o dólar. Todas as crises internacionais, inclusive, as mais recentes, foram uma corrida para o dólar, que continua sendo o ativo mais seguro. Isso expõe o mundo.

 

Por quê?

 

Seria um risco enorme você não dispor da moeda básica, um ativo sobre o qual os investidores não têm a menor dúvida. Este seria o limite que um governo Trump, isolacionista e muito aguerrido, poderia provocar no mundo. Temos que nos preparar para essa situação. E como estamos? O saldo comercial do Brasil é bem favorável [US$98,8 bilhões em 2023, recorde histórico]. Temos boa perspectiva tanto em termos de safra agrícola quanto de petróleo e gás. E temos reservas internacionais bastante fortes [US$ 354 bilhões]. A gente tem que se preocupar com a solidez fiscal porque o que pode ocorrer de pior é uma crise financeira, que vai nos atingir diretamente.

 

De que forma?

 

Atinge a colocação da dívida pública aqui no país, mesmo esta sendo interna. Haveria fuga de capitais. Se você olhar a composição das reservas internacionais ao longo dos últimos anos, há uma queda da importância do dólar. Ao contrário do que alguns previam, isso não ocorre por causa do renminbi. Há uma diversificação de portfólio em relação a países ocidentais sólidos, mas a dimensão desses mercados é muito pequena. Você pode diversificar 5%, 10% ou 15% do portfólio das reservas, mas, logo, logo, chega ao limite porque não existe outro país, com exceção da China, com a dimensão econômica dos EUA. Dependendo do que ocorra na Europa, temos que imaginar como seria porque, lá, não há mais líderes com a qualidade da Angela Merkel [ex-premiê da Alemanha]. Isso é preocupante porque, se não forem os EUA, têm que ser a Europa para segurar o mundo ocidental. 

 

Como o senhor vê a situação econômica da China?

 

Enquanto continuar o controle político que o Partido Comunista possui, os chineses têm os instrumentos em mãos [para lidar com uma possível crise]. Eles não têm problema fiscal como o nosso. Têm um superávit fiscal considerável. A taxa de poupança da China é extraordinária [45% do PIB]. O Brasil [cuja taxa de poupança em 2023 foi de 15,4%] tem um problema de excesso de demanda, enquanto na China falta demanda. É por isso que os chineses dependem tanto das exportações e dos investimentos em construção civil. Mas, os governantes têm os instrumentos e é mais fácil combater falta de demanda do que falta de oferta. O fato é que acabou o milagre chinês. A discussão neste momento é a que taxa de crescimento eles vão pousar.


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Citações do dia : em bombástica entrevista publicada no dia de hoje, Edmar Bacha (o principal economista da área direita do PSDB, ex-presidente do BNDES) usa seus drones para bombardear Lula, Alckmin, Aloizio Mercadante e à população civil em geral...

 

Algumas das suas pérolas : (há pérolas de sabedoria, outras parecem que saídas de um bombardeio israeli da Faixa de Gaza...) 

Mauricio David


Declarações de Edmar Bacha:

 

“Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça”

 

a política industrial anunciada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin vai afastar o Brasil ainda mais das cadeias internacionais de valor

 

se o Governo insistir nas ideias atrasadas, é o próprio PT que pagará o preço

 

A política externa (...do PT) , por exemplo, é um absurdo

 

é um absurdo que Celso Amorim, que é antiamericano radical desde sempre, esteja no comando da política externa

 

O ministro do Trabalho [Luiz Marinho] age como um sindicalista dos anos 1930

 

 O pessoal do PT tem uma mentalidade atrasada

 

aumentar a tarifa sobre importação, os requisitos de conteúdo local e a preferência para compras governamentais são decisões contrárias ao aumento da produtividade da economia. Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal

 

O PIB cresceu 2,9% no ano passado, mas a taxa de investimento recuou 3%.

 

O que me irrita no Lula é que o país poderia estar deslanchando se houvesse confiança. Há oportunidades extraordinárias, mas é preciso ficar na defensiva com o Lula o tempo todo. Sabe-se lá como ele vai intervir na economia. E uma economia que joga na defesa não vai para frente

 

Os “Mercadantes” estão muito exultantes com o fato de que, agora, os EUA começaram a praticar a política industrial. Mas é uma política voltada para a sua luta contra a China. E, aí, o pessoal do governo do PT diz: “Se eles fazem, a gente pode fazer também”. O Alckmin fala: “Olha quanto eles [os americanos] estão gastando”. Quando o mundo estava se globalizando, o Brasil não se globalizou. Agora, o mundo está se desglobalizando.

 

A questão não é ter política industrial, e sim ter uma política industrial voltada para a integração do Brasil nas cadeias internacionais de valor. A política industrial anunciada pelo governo é o contrário: é para desintegrar ainda mais o Brasil das cadeias internacionais de valor. Vai na contramão do que precisa. Esse pessoal não entende que isso vai criar meia dúzia de empregos, mas a que custo fiscal e a que preço para os consumidores nacionais? Nós, que temos dinheiro para viajar ao exterior, podemos comprar tudo lá fora, sem pagar nenhum imposto aqui. E ainda nos deixam comprar mais US$1.000 no free shop, sem pagar imposto. Mas e os brasileiros que não conseguem sair do país porque não têm dinheiro?

 

. A gente tem que reduzir o peso que o gasto de pessoal exerce hoje sobre o orçamento. Há também a questão da Previdência, que vai voltar, uma vez que o Lula está corrigindo o salário mínimo acima da inflação. Com o piso da Previdência indexado ao salário mínimo, essa situação vai se deteriorar ao longo do tempo.

 

Por que o Lula ganhou a eleição? Porque, na última hora, muita gente, inclusive eu e os pais do Real, declarou voto nele. Foi isso, até mais do que os votos da Simone Tebet, que garantiu a vitória. Mas o Lula não entendeu isso até hoje. 

 

Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.

 

. A dependência da força do dólar, tendo em vista que os EUA são um país deficitário e que sua dívida externa precisa se manter sólida, é muito importante. Ainda hoje é impossível imaginar uma corrida contra o dólar. Todas as crises internacionais, inclusive, as mais recentes, foram uma corrida para o dólar, que continua sendo o ativo mais seguro. Isso expõe o mundo.

 

. Atinge a colocação da dívida pública aqui no país, mesmo esta sendo interna. Haveria fuga de capitais. Se você olhar a composição das reservas internacionais ao longo dos últimos anos, há uma queda da importância do dólar. Ao contrário do que alguns previam, isso não ocorre por causa do renminbi.

 

A taxa de poupança da China é extraordinária [45% do PIB]. O Brasil [cuja taxa de poupança em 2023 foi de 15,4%] tem um problema de excesso de demanda, enquanto na China falta demanda.

 

. O fato é que acabou o milagre chinês. A discussão neste momento é a que taxa de crescimento eles vão pousar.