Economia
“Que diabos Lula está fazendo?”
O Brasil e a diplomacia da corda esticada
Giuliano Guandalini
Brazil Journal, 24 de fevereiro de 2024
https://braziljournal.com/que-diabos-lula-esta-fazendo-o-brasil-e-a-diplomacia-da-corda-esticada/
A estratégia da política externa de Lula é tensionar a relação com os EUA e a Europa e, assim, conquistar concessões dos mais ricos para as nações mais pobres. “O grande risco disso tudo é que, ao esticar demais a corda, ela pode arrebentar do lado mais fraco – que, no caso, somos nós,” diz o especialista em relações internacionais Matias Spektor, professor da FGV.
Para Spektor, essa política – concebida por Celso Amorim – parte de “uma leitura equivocada a respeito de como funciona o sistema internacional.”
Spektor é o autor do ótimo 18 dias, livro publicado em 2014 que conta os bastidores do trabalho diplomático feito em 2002 para mitigar as desconfianças dos EUA em relação ao PT e conquistar o apoio de George W. Bush ao Governo Lula. Vinte anos depois, Lula foi recebido em fevereiro de 2023 por Joe Biden “com tapete vermelho” na Casa Branca, mas a relação Brasil-EUA permanece gélida.
O conjunto de declarações de Lula desde a posse – culpando a Ucrânia pela invasão russa, apoiando o ditador Nicolás Maduro, passando pano para Vladimir Putin e, mais recentemene, comparando a ação de Israel em Gaza ao Holocausto – contaminam suas credenciais como líder democrático capaz de fazer a ponte entre o Ocidente e o resto do planeta.
“Lula parece muito mais um justificador de ditaduras,” diz Spektor. Na estratégia de Amorim, os BRICS devem ser o bloco de pressão sobre os países ricos. Mas, segundo Spektor, o mundo vê os BRICS cada dia mais como “um projeto chinês para disputar poder com os EUA, não para fazer pontes com os ricos, que é a agenda do Lula.” Um ponto pouco notado, diz o professor, é que o Governo Biden já disse explicitamente que apoia uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, um pleito histórico de Lula-Amorim. “Quem breca a reforma hoje? A China, que, supostamente, é a nossa principal aliada.”
Na estratégia de Amorim, os BRICS devem ser o bloco de pressão sobre os países ricos. Mas, segundo Spektor, o mundo vê os BRICS cada dia mais como “um projeto chinês para disputar poder com os EUA, não para fazer pontes com os ricos, que é a agenda do Lula.” Um ponto pouco notado, diz o professor, é que o Governo Biden já disse explicitamente Spektor é também autor de Kissinger e o Brasil, de 2009, que trouxe novas informações sobre a colaboração dos EUA com a ditadura militar.
Abaixo, a íntegra da conversa.
Há 20 anos, quando Lula assumiu pela primeira vez o governo, o mundo era outro. A China havia acabado de entrar na OMC, os BRICS eram uma invenção de um executivo de um banco de investimentos, havia um ambiente de colaboração internacional após o 11 de setembro. Agora o contexto é de polarização lá fora entre potências e polarização interna. Os países e os políticos são forçados a escolher lados. Como isso impacta a atual política externa brasileira?
Antes havia uma única grande potência, os EUA. O mundo tem hoje três potências: EUA, China e Rússia, que demonstrou ser capaz de impedir que os EUA consigam impor o seu ordenamento na Europa do Leste. Essa mudança faz uma enorme diferença. Lá atrás a violência internacional pesada vinha da política externa americana, como foi na invasão do Iraque e do Afeganistão. Agora a violência pipoca pelo mundo, tem muitas áreas de tensão entre as potências. São diferenças importantes, mas é importante ressaltar que tanto o Lula de 2003 quanto o Lula de hoje têm uma visão comum e única do que deve ser a estratégia da política externa brasileira. É a ideia de que o papel do Brasil é organizar coalizões com países em desenvolvimento para aumentar as concessões dos ricos aos pobres. A visão é a mesma, de arrancar concessões do Norte Global para o Sul Global. No passado isso era feito, por exemplo, construindo uma coalizão para a Rodada Doha com a Índia, construindo uma coalizão na América do Sul para criar o Unasul (União de Nações Sul-Americanas), construindo diálogo com os países africanos, diálogo com os países da Ásia. Mais tarde, formando a coalizão dos BRICS. A estratégia era ter uma posição de força para obter concessões do Ocidente. Mas para isso, era preciso ter boas relações com o Ocidente. Por isso lá atrás o Lula saiu de sua zona de conforto, construindo um laço produtivo de trabalho com líderes com os quais ele não concordava em quase nada, a começar por Bush.
Como operar essa mesma visão de política externa em um mundo fragmentado?
O Lula escolheu como pedra angular dessa estratégia a dobradinha G20 em 2024 e COP 30 em 2025. Serão dois fóruns nos quais ele vai tentar repetir o que fez lá atrás. Algumas das prioridades serão o perdão da dívida dos países mais pobres e o maior financiamento dos ricos aos pobres na transição energética. Para essa estratégia vingar, Lula precisa se apresentar como um estadista experiente, com reputação para fazer a coalizão com o Sul e a negociação com o Norte – e que seja um líder político com credenciais democráticas impecáveis, algo que o Narendra Modi, da Índia, não tem. Há um ambiente favorável para isso. O desmatamento na Amazônia diminuiu, a economia brasileira está mais forte do que se imaginava, e o País superou uma tentativa de golpe.
Com Bolsonaro afastado pelo Supremo, Lula tem uma perspectiva de poder até 2030. Conseguiu trazer o G20 e a COP para cá. Então, a pergunta que fica é: que diabos Lula está fazendo?
A tática utilizada desde a sua posse não poderia ser pior. A maior ameaça para a sua visão de política externa tem sido a sua própria diplomacia.
Por quê?
Dou vários exemplos. Biden fez de tudo e mais um pouco para apoiar Lula contra Bolsonaro. Quando Lula ganhou, a Casa Branca estendeu um tapete vermelho. A viagem a Washington, entretanto, acabou sendo uma visita completamente frustrada em função dos comentários de Lula sobre a Ucrânia. Primeiro colocou a culpa no Zelensky, depois colocou a culpa na Ucrânia, que é a vítima. Por fim, colocou a culpa da guerra na OTAN e nos EUA, fechando o diálogo com a Casa Branca. Hoje em dia, os países mantêm uma relação gelada, como vimos na visita de Antony Blinken (o secretário de Estado dos EUA) na última semana. Lula fez coisa parecida com os europeus. O Brasil tem dois grandes aliados na Europa: Portugal e Alemanha. Chefes de governo de ambos os lados se sentiram humilhados com as falas do Lula quando o Lula os encontrou. As falas do Lula sobre Israel reforçam esse ponto, assim como as declarações sobre Alexei Navalny, dando justificativas para Putin. Ou ainda quando ele passa pano para o Maduro, o chefe de uma cleptocracia que expulsou da Venezuela mais de 10% da população.
O Lula do primeiro governo buscava uma maior posição de equilíbrio, e hoje ele pende mais para um lado?
Minha percepção é que ele está esticando a corda. Um projeto interessante, progressista, de emplacar um G20 que seja a consagração do Sul Global, arrancando concessões do Norte, poderá fracassar por causa disso. É interessante, porque, pela primeira vez, ele está esticando a corda não só com os EUA e a Europa, mas com governos de esquerda na América do Sul. Criou fricções com o Boric, do Chile, e o Petro, da Colômbia. A tentativa de reviver a Unasul não deu em nada. Na Argentina, Lula saiu abertamente em campanha pelo governo de situação – e, quando a oposição ganhou, não foi à posse do presidente eleito. Quando a relação Brasil e Argentina está quebrada, não há a menor chance de o Brasil construir uma diplomacia regional que funcione. Na Venezuela, Lula incitou Maduro a permanecer no poder e resistir às pressões para liberalizar o regime. A ideia de que o Lula é o líder democrático com credenciais impecáveis – que é central para esse projeto dele de ser a ponte entre o Ocidente e o resto do planeta – fica contaminada. Faz Lula parecer muito mais um justificador de ditaduras. Essa percepção internacional se consolida em um momento no qual o mundo inteiro vê nos BRICS, a cada dia mais, um instrumento da China.
Por que essa atitude do Lula? Agora, ao contrário do passado, ele não vê mais a necessidade de cultivar o apoio do Ocidente?
O Lula de hoje parece estar mais convicto de que o Ocidente somente faz concessões quando o Sul Global tensiona a corda. Tensionar a corda é essencial, segundo essa visão. Isso foi muito bem colocado numa entrevista de Celso Amorim ao Valor Econômico. Amorim diz assim: o Ocidente não dava a menor bola para o G20 até aparecerem os BRICS. Na hora que a gente criou os BRICS, o Ocidente se assustou. Então, a precondição para o Ocidente dar algo aos países em desenvolvimento é ter a ameaça de pressão global via BRICS. Amorim concluiu que os BRICS foram a melhor coisa que aconteceu nos últimos anos e acho que o Lula está convicto dessa leitura da história. Mas os BRICS hoje não são como há dez anos. O bloco é percebido essencialmente como um projeto chinês para disputar poder com os EUA, não para fazer pontes com os ricos, que é a agenda do Lula. Essa visão de mundo do governo, oriunda das décadas de 60 e 70, tem Celso Amorim como seu principal expoente no Governo. Amorim tem uma relação umbilical com Lula, construída ao longo de duas décadas. Nas decisões de política externa, o que Lula ouve é isso. Haddad, Marina Silva, Simone Tebet, que têm pastas com gigantescas repercussões internacionais, não são consultados para as grandes decisões de política externa. Quando um chefe de governo ouve apenas uma pessoa, um samba de uma nota, ele tende a cometer muito mais erros na política externa. Vozes rivais ajudam o Presidente a calcular riscos e oportunidades. Isso a gente não vê hoje. No primeiro governo, Lula ouvia outras visões.
Como avaliar se o Governo vai alcançar os seus objetivos?
Pessoalmente, acho que os ganhos até agora são parcos. Sabe o que é interessante? O Governo Biden já disse explicitamente que topa apoiar uma reforma na ONU. Quem breca a reforma hoje? A China – que, supostamente, é a nossa principal aliada. Então a declaração importante a favor da reforma deveria vir dos BRICS. Mas a resistência vem da China.
Por que a China é contra?
Uma reforma do Conselho de Segurança poderia botar para dentro o Japão, por exemplo, e diluir o poder da China.
A Rússia também tem incentivo zero para mexer nisso, não?
Zero. O grande risco disso tudo é que ao esticar a corda ela arrebente do lado mais fraco – que, no caso, somos nós. Essa política parte de uma leitura equivocada do Celso Amorim a respeito de como funciona o sistema internacional. Em função dos comentários do Lula fazendo analogia do que Israel faz em Gaza ao Holocausto, Amorim disse que é uma boa chacoalhada emocional. Acho que ele está profundamente enganado. É uma leitura equivocada de como funciona o sistema internacional. Não me refiro apenas ao Ocidente, me refiro também ao mundo árabe. Ninguém no mundo árabe fez uma declaração dessa natureza. Desde a ditadura militar, desde o governo Costa e Silva, em 67, a política do Brasil para o Oriente Médio é o que se chama de equidistância: convocar a solução dos dois estados e manter boas relações com ambos os lados para, quando houver condições de implementar essa solução, o Brasil poder ser ponte. Quem quebrou essa política pela primeira vez foi o Bolsonaro. Quando assumiu, decidiu quebrar com essa tradição da política externa brasileira, anunciando a promessa de mudar a embaixada do Brasil para Jerusalém, em flagrante violação ao espírito da solução dos dois estados. Estou totalmente de acordo de que a política de Israel para a Palestina é absolutamente brutal. É desproporcional, viola todas as regras internacionais. É contraproducente, não só para a causa Palestina, mas também para Israel. Agora, em vez de restaurar o que era um acervo da diplomacia brasileira, o que a gente vê é apenas uma inversão de sinal com Lula.
No melhor dos cenários, qual tipo de concessão o Brasil poderá obter das nações ricas?
Vejo dois pontos para medir o sucesso da política externa. No G20, o Brasil pode conseguir que na declaração final de sua presidência no grupo, os ricos perdoem dívidas de países pobres e aumentem o financiamento para a transição para a economia verde nos países em desenvolvimento. A declaração final poderá trazer uma convocatória do G20, das Nações Unidas, do Banco Mundial e do FMI, aumentando a representação de países em desenvolvimento e ampliando políticas de redução da desigualdade. É uma pauta progressista, que faz sentido o Lula defender. As conquistas nesses dois pontos serão a maneira de medir o sucesso do Brasil. Só conheceremos a declaração final em novembro. No passado, a política externa obteve resultados positivos por meio das coalizões. O Brasil conseguiu abrir mercados, houve aumentos expressivos nas trocas comerciais. O Brasil liderou a formação da Unasul, com projetos de grandes obras do Brasil na região. O que dinamitou isso foi a corrupção endêmica das construtoras brasileiras, usando o dinheiro público do BNDES em conluios do governo brasileiro com governos estrangeiros. Quando isso veio à tona, esse projeto brasileiro da Unasul implodiu.
Como reconstruir esse projeto de integração regional?
Seria útil para o Brasil poder reconstruir uma Unasul em novas bases, reconstruir a reputação internacional do BNDES no momento pós-Lava Jato. Para isso, seria importante conseguir não apenas o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, mas também construir um projeto de cooperação para eliminar a maior ameaça internacional que o Brasil enfrenta hoje, que não existia lá atrás, mas que existe agora, que é o crime organizado transnacional – sobre o qual você não ouve o governo se manifestar. O Governo odeia a OTAN, não quer saber de cooperação de segurança com os europeus. Mas, sem cooperação europeia, não tem como o Brasil reverter a situação atual, com o Porto de Santos sendo o maior porto de escoamento das drogas com destino à Europa. Então, será que você arranca concessões esticando a corda? Ou esticando a corda você quebra a corda e fica com um pedaço menor de corda na mão?
As pesquisas eleitorais nos EUA indicam uma alta probabilidade de vitória de Donald Trump. Como ficaria a política externa brasileira? Há chance de uma surpresa positiva, como foi a boa relação de Lula com George W. Bush?
O melhor cenário para a política externa do Lula é um governo nos EUA sensível à causa dos países em desenvolvimento. A teoria da política externa do Lula é de formar uma coalizão do Sul para conseguir concessões do Norte. Então, o que acontece se Trump ganhar? Essa teoria vai por água abaixo. Trump é abertamente hostil a esse processo e, portanto, num cenário em que ele ganhe as eleições, a política externa brasileira precisaria fazer um ajuste de objetivo. Teria que ser feito um ajuste para uma redução de danos. Em seu governo, Trump, por exemplo, tentou promover um golpe contra Maduro. Isso é péssimo para o Brasil. Reduzir danos com Trump é muito difícil para um país como o Brasil. Vejo duas opções. Primeira opção: o governo Lula se afasta completamente dos EUA e fica sem instrumento nenhum para fazer redução de danos. Segunda opção: construir pontes com o Partido Republicano. Alguém poderia dizer que Trump jamais se engajaria com Lula. Mas em março de 2002, se alguém dissesse que Lula e Bush construiriam uma relação de trabalho produtiva, daríamos risada. Como foi que o Lula fez para destravar esse processo? Começou um trabalho de bastidor, construindo pontes. Não sei se, em segredo, o governo brasileiro está construindo pontes com o Partido Republicano. Tomara, porque a vitória do Trump é um cenário plausível. O Brasil precisa estar preparado para, se necessário, fazer contenção de danos – e a única maneira é por meio de laços com o Partido Republicano.
E como fica a relação com Javier Milei?
Milei fez campanha criticando o Lula. Criticar o Lula fazia parte da campanha. Foi como Milei construiu a identidade política dele. As bravatas que ele falou contra o Brasil, no entanto, não foram implementadas. Ele não as implementou porque a Argentina depende do Mercosul. Mesmo moribundo, o Mercosul tem algo fundamental para a Argentina, que é a indústria automobilística, que fica na província de Córdoba – uma das províncias mais poderosas e influentes, que tem um governador forte e que apoia Milei. Milei não tem bala na agulha para lançar um projeto internacional contra o Brasil. Então, o que que a gente pode esperar? A relação nunca será um mar de rosas. Tende a ser a mesma relação que teria com um eventual governo Trump – nunca será ótima, mas pode acabar sendo péssima. Para o Brasil, a Argentina é um mercado importante, sobretudo para a Zona Franca de Manaus. Além disso, é muito difícil para o Brasil conseguir emplacar qualquer projeto na América do Sul se a diplomacia argentina estiver fazendo pressão contrária, com força. No G20, a Argentina é um jogador relevante. Por todas essas razões, as bravatas deveriam ser deixadas de lado.
Leia mais em:
https://braziljournal.com/que-diabos-lula-esta-fazendo-o-brasil-e-a-diplomacia-da-corda-esticada/?utm_source=Brazil+Journal&utm_campaign=36cf8b3adb-weekendjournal-2402024-1-_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_850f0f7afd-36cf8b3adb-427950289
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida
Site pessoal: www.pralmeida.net.quarta-feira, 10 de setembro de 2025
“Que diabos Lula está fazendo?” O Brasil e a diplomacia da corda esticada: Entrevista Matias Spektor (Brazil Journal)
domingo, 13 de abril de 2025
EUA vs. China: o fim do ‘New Bretton Woods’? (Brazil Journal)
... Os discursos do Presidente Trump defendendo a indústria local, o emprego local e as tarifas comerciais parecem saídos dos livros de Celso Furtado e Raul Prebisch, ou dos manuais da Cepal....
...Como disse o astrônomo Carl Sagan, ao se referir à escala do tempo, um evento inimaginável em uma centena de anos talvez seja inevitável em um milhão de anos…
OPINIÃO. EUA vs. China: o fim do ‘New Bretton Woods’?
- Brazil Journal, 11/04/2025
A fúria tarifária do governo Trump trouxe de volta a guerra comercial entre China e EUA, mas com outro nível de beligerância e efeitos ainda mais intensos para a economia global.
Estes eventos nos levam a uma reflexão acerca do que será o novo modelo de funcionamento do sistema financeiro global. Quem está há mais tempo no mercado se lembrará que, entre 2004 e 2006, uma discussão interessante emergiu junto a economistas e mesas de operação, provocada por um artigo dos economistas Michael Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Graber.
Eles argumentavam que o sistema financeiro global funcionava, desde 2000, de forma semelhante ao antigo sistema Bretton Woods (1944-1971), mas com uma nova configuração – e por isso essa teoria ficou conhecida como “The New Bretton Woods”.
O argumento principal era de que o mundo novamente se via dividido entre centro (os EUA) e periferia (os países exportadores da Ásia, principalmente a China).
O centro era emissor de moeda (dólar), consumia muito e importava muitos bens, incorrendo em vultosos e crescentes déficits comerciais.
A periferia (essencialmente a China), era um grande e eficiente produtor de bens, exportava muito e, portanto, incorria em superávits comerciais crescentes, o que gerava acumulação de reservas em dólares. Parte relevante dessas reservas, por sua vez, era aplicada em títulos do Tesouro americano e, desse modo, ajudavam a financiar os crescentes déficits comercial e fiscal daquele país, mantendo o dólar forte.
Além disso, essas economias da periferia se destacavam por gerenciar ativamente suas taxas de câmbio, de modo a mantê-las sempre depreciadas, protegendo suas exportações.
Esse sistema gerava um benefício mútuo: crescimento econômico rápido e intenso na China, e financiamento barato nos EUA, sustentando níveis elevados de consumo e dispêndio.
Esse equilíbrio, por óbvio, era algo instável e de sustentabilidade limitada, mas que poderia durar muitos anos enquanto continuasse a gerar vantagens mútuas para os dois lados. Seu fim provavelmente só ocorreria na hipótese dos déficits americanos se tornarem gigantes e não financiáveis, ou se os países da periferia deixassem de acumular dólares, ou provavelmente uma combinação das duas coisas.
Para ilustrar com dados econômicos, a média do superávit comercial da China vs EUA desde 2006 é de aproximadamente US$ 320 bilhões/ano, totalizando US$ 5,8 trilhões de 2006 a 2024. As reservas cambiais da China saltaram de US$ 1 trilhão em 2006 para US$ 3,2 trilhões em 2024, sendo que estimativas do FMI apontam que de 58% a 60% desse total estão diretamente na moeda americana (dólares).
As compras de Treasuries americanos pelos chineses também cresceram substancialmente nesse período: o estoque da China saiu de pouco mais de US$ 60 bilhões em 2001 para mais de US$ 1 trilhão em 2020, e encerrou 2024 em US$ 760 bilhões.
Assim, o que o tarifaço do governo Trump provavelmente inaugura é o início do fim desse sistema de interdependência mútua de EUA e China. Os déficits americanos podem ter chegado a um patamar que coloca em xeque o papel do dólar como moeda global de reserva e, portanto, poderia comprometer a sustentabilidade do equilíbrio desse sistema. Assim, o que o tarifaço faz é colocar um fim nessa dinâmica insustentável do “New Bretton Woods” e trazer à tona a discussão sobre para qual modelo a economia global irá migrar.
Do ponto de vista do Brasil, minha avaliação é de que os efeitos podem ser positivos, principalmente para o setor exportador agro, visto que o conflito abre novas oportunidades de comércio com a própria China, com os EUA, e com outros países também afetados pela mudança da política comercial americana.
Se o efeito final de tudo isso for um mundo com menos barreiras tarifárias e mais livre do ponto de vista comercial, provavelmente teremos que revisitar os ensinamentos de David Ricardo acerca das vantagens comparativas de cada país, e sobre como a eficiência produtiva de cada player se reflete na sua competitividade, nua e crua, no mercado global.
Acredito que ainda estamos muito longe desse cenário, mas, no limite, isso é um dos cenários possíveis a médio/longo prazo.
Não obstante, o que emerge até o momento, de forma bastante inimaginável, inusitada e curiosa, é ver o governo americano, presidido pelo Partido Republicano, utilizar medidas que lembram muito a esquerda latino-americana dos anos 1970, que ficou notabilizada pela defesa do modelo de substituição de importações como estratégia de desenvolvimento econômico. Deu no que deu.
Os discursos do Presidente Trump defendendo a indústria local, o emprego local e as tarifas comerciais parecem saídos dos livros de Celso Furtado e Raul Prebisch, ou dos manuais da Cepal.
Como disse o astrônomo Carl Sagan, ao se referir à escala do tempo, um evento inimaginável em uma centena de anos talvez seja inevitável em um milhão de anos…
segunda-feira, 10 de junho de 2024
Mario Henrique Simonsen, um dos pais do Plano Real - Coriolano Gatto (Brazil Journal); comentário Maurício David
BRAZIL JOURNAL
Simonsen, um precursor discreto do Plano Real
Coriolano Gatto
Brasil Journal, 9 de junho de 2024
Às vésperas de completar 30 anos, o Plano Real foi defendido logo no nascedouro por um dos maiores economistas brasileiros que, ainda nos anos 70, já demonstrava preocupação com a inflação crescente e a indexação da economia.
Mais ainda: uma década antes do Real, Mario Henrique Simonsen já apoiava a tese de desindexação de Persio Arida e André Lara Resende, que era o pilar central do plano.
Matemático refinado, arquiteto de grandes projetos, engenheiro, economista e professor por vocação, Simonsen foi o primeiro expoente do governo militar a mencionar o processo de realimentação da inflação, causado pela indexação introduzida pelo próprio regime em 1964.
“Apesar da ortodoxia, o Simonsen pensava na formação keynesiana dentro da equação de preços: demanda, choques autônomos e a realimentação. Eu comecei a pensar na teoria inercial da inflação com ele,” me disse o economista Francisco Lopes em seu apartamento em Copacabana. “O Roberto Campos dizia que o Simonsen nunca foi um liberal ou um monetarista como ele e o Eugênio Gudin, e era mais um keynesiano, modestamente intervencionista.”
Lopes conheceu Simonsen na adolescência. Aos 19 anos, levou seu pai – Lucas Lopes, um dos grandes artífices do desenvolvimento no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) – e o próprio Simonsen até a estação de trem, no Rio, dirigindo o carro de sua mãe. Eles iam para São Paulo por conta da Consultec, a primeira empresa de projetos do Brasil, da qual fazia parte também Roberto Campos.
Mais tarde, Lopes seria estagiário da Consultec e teria um grande convívio na academia com Simonsen, que fundou em 1965 a pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, a tradicional FGV EPGE, a primeira do Brasil – antecedida, quatro anos antes, pelo Centro de Aperfeiçoamento de Economistas.
À época, Simonsen tinha 30 anos. Ele deu uma contribuição decisiva para a redação do PAEG – o Plano de Ação Econômica do Governo, criado por Roberto Campos, então ministro do Planejamento do primeiro governo militar. Mais tarde, Simonsen foi ministro da Fazenda de Geisel (1974-1978) e por seis meses ministro do Planejamento de Figueiredo (1979-1985).
Em um artigo publicado em novembro de 1984 pela revista Conjuntura Econômica, Simonsen propôs criar a UMB, a Unidade Monetária Brasileira.
Em seu estilo criativo e muitas vezes ferino, Simonsen resumiu ali a ideia de combater a inflação por meio heterodoxo, em vez de insistir nos choques monetários defendidos por Octavio Gouvêa de Bulhões, o ministro da Fazenda de Castello Branco (1964-1967), que se baseava na teoria quantitativa da moeda.
“A ideia central do projeto, a da desindexação pela própria indexação da moeda, parece mais pertinente a um libreto de ópera wagneriana do que a uma proposta de teoria econômica,” Simonsen escreveu no artigo acadêmico. “Sem dúvida, a ideia da criação da UMB deve ser objeto de muita discussão e meditação.”
Nos parágrafos seguintes, Simonsen dá seu aval à proposta em gestação pelos economistas André Lara Resende e Persio Arida. Ainda corria o ano de 1984 – dez anos antes do Real.
Simonsen sabia que o processo de desindexação – em contraponto ao arrocho monetário que causaria uma recessão elevada e o aumento exponencial da taxa de desemprego – era anátema à ordem econômica vigente, que insistia em um gradualismo para frear a inflação. Mas aquele modelo já havia fracassado nos anos 80 e levou o país à beira da hiperinflação, desorganizando o processo produtivo.
“Pelos padrões internacionais, o passo errado é o do sistema brasileiro, que gerou formidável inflação inercial, e que a política monetária combate com eficiência igual à dos soldados americanos na guerra do Vietnã. O Brasil precisa acertar o passo, e a ideia da UMB talvez forneça o mapa da mina,” Simonsen escreveu na revista.
De fato, dez anos depois seria criada a URV (Unidade Real de Valor), definida de forma precisa pelo advogado José Luiz Bulhões Pedreira (1925-2006): “moeda de curso legal sem poder liberatório.”
Eram sete palavras mágicas que descreviam o DNA da URV, que foi convertida para o real em 1º de julho de 1994, finalmente quebrando a inércia da inflação brasileira.
“A inflação não volta,” Simonsen proclamou no início de fevereiro de 1996 durante um longo depoimento ao Jornal do Brasil. “Tradicionalmente, o Brasil achava que o político desejava inflação. A eleição de Fernando Henrique deixou claro o seguinte: ele foi um político que não quis a inflação, fez o Plano Real e virou presidente”.
No livro Conversas com Economistas Brasileiros (Editora 34, 1995), Simonsen dizia estar convencido desde o Governo Geisel de que uma terapia apenas ortodoxa, inspirada pelo FMI, não liquidaria a inflação.
Por ocasião da preparação do Plano Real, ainda em 1993, foi figura de destaque nos debates que precederam e sucederam o programa de estabilização. Era próximo da equipe de economistas da PUC-Rio, a quem chamava, carinhosamente, de “EPGE do B”.
O economista Daniel Valente Dantas, considerado o melhor aluno de Simonsen na EPGE, ressalta a pluralidade no pensamento do seu mestre, que quebrou dogmas e rompeu com o padrão clássico da economia.
“O mais importante dos seus ensinamentos era tratar a economia como ciência. Ensinou a observar, a medir e a não deixar as preferências, as conveniências, ideologias ou crenças ocuparem o espaço da observação. Não confundir conhecimento com crença, axiomas com dogmas; contudo, ao mesmo tempo, era implacável e rigoroso na única evangelização que suas aulas continham, que eram os limites do conhecimento.”
Coriolano Gatto é jornalista
============
Comentário de Mauricio David:
Sou de uma geração que pouco pode pode conviver com o Simonsen, porque tive (tivemos) a vida meio cortada por longos anos de exílio. Mas sempre tive um olhar à distância para o Mário (como o chamavam pelo prenome figuras mais velhas e mais jovens da minha geração, como a Conceição e José Alexandre Scheinkman, ambos produtos de uma Faculdade Nacional de Ciências Econômicas que, para o bem ou para o mal, era o que tínhamos no Brasil...). Quando voltei do exílio, em 1979, fui a um Seminário na EPGE, da Fundação Getúlio Vargas, creio que a meados de 1980 com o meu amigo e ex-colega José Alexandre, para assistir a uma palestra do Simonsen. Uma conferencia brilhante, como acontecia quando o Simonsen discorria sobre economia (ou sobre óperas e sobre o jogo de xadrez, pois era apaixonado por ambas). Nesta conferencia o Simonsen falou do porque a inflação havia “sky-rocketed” no Brasil e no mundo. Correu um frisson entre os jornalistas que cobriam o evento, todos saíram correndo para reproduzir parte da conferencia do Mário Henrique, em especial a expressão “sky-rocket” por ele utilizada. Eu mesmo, chegando da Suécia, nunca tinha ouvido falar daquela expressão (propulsar, subir como um foguete, apurei depois). O Simonsen era assim... Eu também tinha um ex-colega do Pedro II que foi campeão brasileiro de xadrez (e o Simonsen, como já mencionei, era apaixonado por xadrez) que era amigo do Simonsen. Pois hoje compreendo em parte porque o Geisel tanto se afeiçoou a êle (foram até morar em casas próximas, em Teresópolis, quando saíram do governo). Até hoje me lembro de duas fotos do Simonsen que vi em algum momento da vida : uma dele tomando banho de mar em Ipanema, quando saiu do governo e voltou de Brasília para o Rio, e outra dele que foi capa da revista VEJA, com êle completamente careca, fazendo quimioterapia, às vésperas de morrer aos 62 anos !!! 62 anos, tão ingrata a vida quando leva luminárias como o Simonsen numa idade em que a maioria ainda nem começou a curtir uma aposentadoria... O Simonsen era um liberal, liberal das antigas... Fundou a EPGE na FGV, a primeira pós-graduação de economia do Brasil. Quando saiu da EPGE para assumir as pastas da Fazenda (com o Geisel) e do Planejamento (no começo do governo Figueiredo), comenta-se que a escola caiu muito... Também se comenta a boca pequena que ele procurou o Geisel, quando a Conceição esteve presa por 48 horas nos porões da repressão, e pediu pela Conceição. Já outros dizem que foi o Veloso (talvez tenham sido os dois, nunca se saberá ao certo). Dois liberais – Simonsen e Veloso – que talvez tenham salvo a vida da nossa valente guerreira (no bom sentido da palavra, porque a Conceição nunca se meteu em aventuras guerrilheiras que seduziram a muita gente, como a Dilma e etc, no período. Era uma revolucionária da linha pacífica, incapaz de matar uma mosca...Mas o fato que o Geisel atendeu ao pedido dos dois e mandou liberar a Ceiça...
O Simonsen fumava como um tresloucado. E isto talvez o tenha levado ao câncer que o matou precocemente (se tivesse vivido 32 anos mais, teria completado o mesmo ciclo vital que a Conceição). O que teria passado então se a vida lhe tivesse proporcionado mais estes 32 anos, com a mente em seu apogeu ? Por ironia, me lembro de ter lido ou ouvido que o Simonsen, ao deixar o governo, teria assumido cadeiras nos Conselhos de Administração do City Bank e da British America Tobacco, ambas cotadas na Bolsa de Nova York. Cadeiras em conselhos de grandes bancos em geral não matam seus ocupantes cedo, já as de companhias de cigarro... são fulminantes (lembro que o Simonsen, assim como a Conceição, era fumantes inveterados, acendendo um cigarro atrás do outro. Um morreu com 62, a outra com 94. O cigarro mata ?
MD
P.S.: Uma anedota divertida : quando o general Costa e Silva foi “eleito” pelo sistema militar para suceder ao general Castelo Branco na Presidência da República, o Brasil foi tomado por centenas e centenas de piadinhas sobre a proverbial burrice do sucessor do Castelo Branco. O Costa e Silva, para amenizar talvez as piadas que o colocavam na berlinda, resolveu convidar o Simonsen para lhe dar umas aulas de economia. (É verdade sim, basta consultar os jornais da época...). Imaginem que o Simonsen tinha 30 anos na época ! Podem crer: 30 anos ! Todos achavam que o Costa e Silva ia nomear seu “professor de economia” para Ministro. Me imagino que o Simonsen tenha perdido a paciência com o general e em algum momento o chamado de “burro”, porque de fato o Simonsen chamou o Hélio Beltrão para ministro do Planejamento e o Delfim para a Fazenda. Estupor generalizado ! Eu tinha um amigo e professor aqui no Rio, vindo da UnB onde havia entrado na lista negra que me dizia : “Este tal de Simonsen deve ser muito incompetente, Mauricio... Ter dado aulas de economia para o Costa e Silva e não ser chamado para ministro...”. Mas acho que o incompetente era o Costa e Silva mesmo... Se bem que o Brizola me contou, em Montevidéu, onde eu e a Beatriz fomos visita-lo na nossa viagem para o Chile, quando eu, jovem estudante repeti o deboche que os estudantes do Rio tinham com relação ao general : “não creia nisto, em 1961, quando uma ligação telefônica caiu por engano no aparelho do então governador do Rio Grande, do outro lado da linha estava o general... Pude sentir na ocasião, disse-me o Brizola, a voz de autoridade e comando do outro lado da linha... Não era tão burro assim o general, agora promovido a marechal...”. Se bem que continuo achando, tantos anos depois, que o velho marechal era uma besta quadrada mesmo...
MD
quinta-feira, 23 de maio de 2024
30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou - Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco (Brazil Journal)
Dica de leitura (grato a Maurício David)
30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou
Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco
Brazil Journal, 23 Maio 2024
“Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação,” diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos pais Real, o plano que deu fim ao inflacionismo brasileiro. Essas recordações estão no livro 30 anos do Real – Crônicas no calor do momento, organização Gustavo Franco (História Real; 224 páginas), que será lançado em 10 de junho.
O volume reúne textos de Edmar Bacha, Pedro Malan e do próprio Franco, que foi o organizador da coletânea em celebração às três décadas do programa de estabilização monetária. Hoje a preocupação dos economistas é se a inflação brasileira vai ficar acima da meta oficial de 3% ao ano. Os mais jovens, entretanto, não podem imaginar o que foi viver num país em que os preços subiram em média 16% ao mês nos 15 anos que antecederam o Real. No pico da hiperinflação, ela atingiu 82% em março de 1990. Nos trechos abaixo, retirados do livro e antecipados ao Brazil Journal, Bacha fala dos desafios pós-estabilização e Franco rememora o ambiente inóspito quando o Real foi lançado.
O plano recebeu torpedos de todos os lados. “Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos,” escreve Franco. Mas a nova moeda colou – e é a mais longeva da República. ***
Gustavo Franco: “A construção do Real partiu de condições iniciais muito difíceis. Não foi exatamente o resultado de um consenso ou pacto facilmente construído pelo triunfo da razão, ressalvados apoios nem sempre muito convictos que obtivemos no Congresso Nacional. Os interesses associados ao inflacionismo se mostraram fortes e vocais, além de bem dissimulados, pois jamais faziam uma defesa aberta da inflação. Eram apenas, como se dizia, a crítica (democrática) ao modelo de combate à inflação, dito ortodoxo e recessivo. As circunstâncias foram sempre difíceis, dentro e fora do País. O enfrentamento e a polêmica, bem como a paciência e a consistência, foram marcas inequívocas desse trajeto.
Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos. Muitos políticos, inclusive alguns amigos, diziam que as soluções que propúnhamos eram de quem não conhecia Brasília nem nada sobre as vontades do povo. Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação. Arnaldo Jabor era uma delas. Em 28 de junho de 1994, três dias antes da conclusão da reforma monetária que introduziu o Real, diante da quantidade e variedade de reparos à estabilização vindos de todos os lados, Jabor publicou uma crônica inesquecível, intitulada ‘País não merece vitória do Plano Real’. A passagem mais comovente, ao menos para mim, ia ao coração do problema: ‘Não há solidão mais terrível do que ser da equipe econômica do governo.’ E a razão era simples, segundo dizia: ‘Ninguém ajudou.’ Congresso, economistas, Igreja, burguesia, artistas, intelectuais, Judiciário, conforme ele explicava em cores vivas, estavam consumidos pela descrença ou pelo torpor. Complexa a chamada ‘economia política’ da inflação. Mas o Plano avançou, transitando por duros debates e negociações. Seus resultados superaram as melhores expectativas, desarmaram as objeções e o País se encantou com a vida sem inflação. Tudo indica que fizemos uma opção para todo o sempre em 1994.” (…)
Edmar Bacha: “Em 1974, escrevi uma fábula sobre o reino de Belíndia, mistura de Bélgica com Índia, um País em que o crescimento econômico beneficiava somente a parcela mais rica da população. Era uma alegoria sobre a natureza do crescimento do PIB brasileiro durante a ditadura militar. Em 1984, quando da transição para a democracia, imaginei em nova fábula uma reunião de economistas no Sambódromo para discutir como dar fim à inflação no país dos contrários, em que tudo funcionava de trás para a frente, inclusive o próprio nome do país, Lisarb, e seu próximo presidente, Seven. Após a redemocratização, Mario Henrique Simonsen cunhou o termo Banglabânia, mistura de Bangladesh com Albânia, para expressar sua preocupação com o risco de empobrecimento do país como consequência das tendências autárquicas e estatizantes da Constituição de 1988. Em 1994, quando fui para o governo, Delfim Netto apresentou sua réplica à Belíndia, concebendo a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, para criticar o governo, que aumentava os impostos como se estivesse num país europeu enquanto oferecia serviços públicos de terceiro mundo. As manifestações de rua de 2013 trouxeram à tona outra caracterização, que denominei de Rumala, triste combinação de Rússia com Guatemala: uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade. Como se não bastasse, ao promover a devastação da Amazônia e a ocupação pelo garimpo ilegal dos territórios indígenas, o governo de Bolsonaro me sugeriu criar Brasa, um país em chamas, completando essa peculiar lista. Esses países imaginários designam males múltiplos presentes na atualidade brasileira: desigualdade, preços surreais, pobreza, introversão, estagnação, impostos sem contrapartida de serviços, corrupção e violência, ataques ao meio ambiente e aos povos originários. Sombrios como parecem ser os tempos atuais, é preciso manter o senso de perspectiva. Em 2019, comemoramos 130 anos de República. Na transição do Império para a República, na última década do século XIX, o Brasil tinha apenas 14 milhões de habitantes, dos quais 82% eram ágrafos e apenas 10% viviam em áreas urbanas. A renda por habitante era pouco maior do que US$ 1 mil em preços de hoje. Atualmente, o Brasil tem 203 milhões de habitantes, com o analfabetismo reduzido a 6% da população adulta: uma população em sua imensa maioria urbana (85%), dispondo de uma renda anual por habitante da ordem de US$ 15 mil. São avanços inegáveis, mas que empalidecem quando comparados aos níveis mais altos de bem-estar dos países ricos. Entre 1920 e 1980, o Brasil seguiu uma trajetória de alto crescimento e parecia destinado a se incorporar ao conjunto dos países mais avançados. Essa trajetória, entretanto, estancou-se na crise da dívida externa do início dos anos 1980, a qual gestou um processo de alta inflação de que só nos livramos com o Plano Real, em 1994. Avaliando o Plano Real em 1997, três anos após sua implantação, celebrei o fato de ele ter sido bem-sucedido em baixar as taxas de inflação e mantê-las baixas. Mas observei que ainda era preciso produzir uma tendência econômica na qual o controle inflacionário se conjugasse com crescimento econômico sustentado e equilíbrio das contas externas. O equilíbrio das contas externas pôde ser alcançado a partir da introdução, em 1999, do chamado tripé da política econômica: superávit primário no Orçamento do governo, câmbio flutuante e metas de inflação. Com a manutenção do tripé pelos governos do PT, a partir de 2003, e a ajuda do auge das commodities na primeira década do século XXI, o país conseguiu superar as crises de balanço de pagamentos da década de 1980. Isso ficou demonstrado no enfrentamento da crise financeira internacional de 2008, quando o governo pôde praticar uma política expansionista sem temer uma parada súbita na entrada de capitais externos. O Plano Real permitiu, assim, abolir dois males históricos da economia brasileira: a alta inflação e as crises de balanço de pagamentos, que ainda hoje tanto atormentam a Argentina. No entanto, afora curtos espasmos determinados pelo ciclo das commodities, o Brasil continuou a crescer a taxas muito baixas. Não se trata de fenômeno incomum. É conhecido como a armadilha da renda média na literatura internacional. Uma coisa é transitar da renda baixa para a renda média. Outra coisa é sair da renda média para alcançar o nível de renda dos países ricos.”
domingo, 10 de março de 2024
Brasil poderia deslanchar, mas Lula põe empresários na defensiva, diz Edmar Bacha - Cristiano Romero (Brazil Journal)
A mais importante entrevista da atualidade politica e econômica brasileira. (PRA)
Brasil poderia deslanchar, mas Lula põe empresários na defensiva, diz Bacha
Brazil Journal, 10 de março de 2024
Eleitor de Lula no pleito de 2022, o economista Edmar Bacha diz que o Brasil tem oportunidades “extraordinárias,” mas não as está aproveitando por falta de confiança de empresários e investidores na economia.
E todo mundo sabe o que está gerando este clima: o próprio comportamento e as decisões do Presidente.
“Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça,” Bacha disse nesta entrevista ao Brazil Journal.
É o caso da Vale, que Lula e trata como se ainda fosse estatal apesar de ter sido privatizada há 26 anos.
O economista diz que o ministro do Trabalho “age como um sindicalista dos anos 1930” ao tentar regular os aplicativos, e que a política industrial anunciada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin vai afastar o Brasil ainda mais das cadeias internacionais de valor.
Mas para Bacha, nem tudo são espinhos no governo Lula. Ele elogia a gestão de Fernando Haddad – “Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal” – a nomeação de Nísia Trindade Lima para a Saúde e as iniciativas do presidente na área social. “Lula faz um bom trabalho nessa área.”
Bacha diz que o País terá que fazer a reforma do Estado, outra reforma da Previdência, e aumentar a eficiência dos programas sociais.
Mas se o Governo insistir nas ideias atrasadas, é o próprio PT que pagará o preço. “O Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.”
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Como o senhor avalia a gestão do governo Lula?
Acho que o Haddad está conseguindo segurar as pontas. Basicamente, é disso que se trata, enfrentar o “fogo amigo” dentro do governo e o “fogo inimigo” no Congresso. Bolsonaro realmente deixou esse horrível legado. Outro dia vi o gráfico da proporção das emendas dos parlamentares no Orçamento Geral da União [R$37,6 bilhões, metade do total previsto para investimento em 2024].
Foi boa ideia acabar com o teto de gastos?
Não foi bom acabar com o teto, mas, tendo visto todos os furos de que o teto foi vítima, era preciso conceber alguma coisa nova. O Haddad conseguiu, dentro das circunstâncias, conceber algo aceitável para Lula e o PT. A gente não pode esquecer que este é um governo do Lula e do PT. Dentro desse constrangimento, acho que ele fez o melhor possível. O governo tem diversas dimensões. A política externa, por exemplo, é um absurdo.
Por quê?
Porque é um absurdo que Celso Amorim, que é antiamericano radical desde sempre, esteja no comando da política externa. Estamos apoiando Vladimir Putin, Nicolás Maduro e Xi Jinping, e fazendo coisas unilaterais no Oriente Médio, quando deveríamos tentar fazer o meio de campo.
Que papel o Brasil poderia ter no conflito entre Israel e Palestina?
Temos condições internas para fazer o meio de campo no Oriente Médio porque essas questões estão razoavelmente pacificadas no Brasil. A lei antirracismo, por exemplo, foi proposta por Afonso Arinos de Melo Franco e aprovada em 1951. Naquela época, os EUA ainda tinham “apartheid”. Estamos purgando os pecados do passado, mas enfim, somos uma sociedade misturada e temos honra de sermos assim. Obviamente, há um problema terrível de distribuição de renda que a gente precisa enfrentar, mas que está sendo trabalhado. Lula faz um bom trabalho nessa área. Imagine ter a Nísia Trindade Lima no Ministério da Saúde. Isso é uma verdadeira prenda! Então, há coisas boas no governo.
O que o preocupa além da política externa?
Lula ainda tem na cabeça que o Estado deve forçar o investimento das empresas e usar seus instrumentos para fazer com que isso aconteça. Ele não tem mais as estatais na mão porque elas foram privatizadas. Lula quer entrar na Vale porque a companhia não está investindo tanto quanto ele queria. Ele entrou na Petrobras. O presidente [Jean Paul Prates] que ele nomeou quer comprar de volta refinarias privatizadas [durante os governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro]. Está querendo, também, comprar os postos de gasolina de volta [a BR Distribuidora foi privatizada em 2019]. Isso é absurdo!
A Petrobras tinha que estar focada para fazer o que sabe fazer bem, que é a exploração de petróleo. É uma empresa estatal, então, precisa ter uma super governança. A Lei das Estatais [aprovada na gestão Temer] tentou fazer isso, mas, hoje, essa lei está sob ataque do Lula e dos petistas. Vejo problemas também no Ministério do Trabalho.
Por quê?
O ministro do Trabalho [Luiz Marinho] age como um sindicalista dos anos 1930. Ele acha que está fazendo a consolidação das leis do trabalho para um Brasil que estaria começando a se industrializar e a se urbanizar… Ele pressionou de todas as formas para fazer a chamada, entre aspas, regularização da atividade dos entregadores de aplicativos. Os entregadores reagiram, dizendo: “Não queremos essa regularização”. O pessoal do PT tem uma mentalidade atrasada.
Como o senhor avalia a política industrial lançada pelo governo?
A esta altura da partitura, aumentar a tarifa sobre importação, os requisitos de conteúdo local e a preferência para compras governamentais são decisões contrárias ao aumento da produtividade da economia. Está tudo errado na área econômica, com exceção da parte fiscal. A reforma tributária passou muito bem no Congresso, mas eu me pergunto: se o Lula estivesse realmente interessado e não tivesse delegado o assunto totalmente para o pobre do Bernard Appy [secretário especial da Reforma Tributária], que teve que resolver tudo com o Congresso sem nenhum poder político, teriam aparecido tantos jabutis quanto apareceram? E agora, há o risco de termos ainda mais jabutis na regulamentação.
A reforma tributária manteve o IPI sobre produtos que tenham similares fabricados na Zona Franca de Manaus. Este é um jabuti?
Acho que eles vão restringir a lista de produtos sujeitos a essa regra. Espero que seja como a lista da cesta básica. Há a promessa de revisão daqui a cinco anos. Nos próximos anos, temos que ficar batendo em cima para que, de fato, daqui a cinco anos a gente possa tirar esses jabutis da árvore.
Quando a Constituição foi promulgada em 1988, fixou-se prazo de cinco anos para a revisão. Houve revisão?
Lembro-me perfeitamente. Mandamos 63 projetos de emenda constitucional e o Congresso rejeitou 62. Só passou a criação do Fundo Social de Emergência [que desvinculou 20% da arrecadação dos tributos federais atrelados a gastos com saúde e educação].
O PIB cresceu 2,9% no ano passado, mas a taxa de investimento recuou 3%. Falta confiança aos empresários?
Não há confiança. O que me irrita no Lula é que o país poderia estar deslanchando se houvesse confiança. Há oportunidades extraordinárias, mas é preciso ficar na defensiva com o Lula o tempo todo. Sabe-se lá como ele vai intervir na economia. E uma economia que joga na defesa não vai para frente.
O senhor defende há muitos anos a abertura da economia como medida necessária para o aumento da produtividade. Vê alguma chance para essa agenda?
Os “Mercadantes” estão muito exultantes com o fato de que, agora, os EUA começaram a praticar a política industrial. Mas é uma política voltada para a sua luta contra a China. E, aí, o pessoal do governo do PT diz: “Se eles fazem, a gente pode fazer também”. O Alckmin fala: “Olha quanto eles [os americanos] estão gastando”. Quando o mundo estava se globalizando, o Brasil não se globalizou. Agora, o mundo está se desglobalizando.
Durante a pandemia, cadeias globais de produção foram quebradas. Isso não criou oportunidade para o Brasil se reindustrializar?
Acho que sim. O país precisa repensar a indústria. A questão não é ter política industrial, e sim ter uma política industrial voltada para a integração do Brasil nas cadeias internacionais de valor.
A política industrial anunciada pelo governo é o contrário: é para desintegrar ainda mais o Brasil das cadeias internacionais de valor. Vai na contramão do que precisa. Esse pessoal não entende que isso vai criar meia dúzia de empregos, mas a que custo fiscal e a que preço para os consumidores nacionais? Nós, que temos dinheiro para viajar ao exterior, podemos comprar tudo lá fora, sem pagar nenhum imposto aqui. E ainda nos deixam comprar mais US$1.000 no free shop, sem pagar imposto.
Mas e os brasileiros que não conseguem sair do país porque não têm dinheiro? Esses brasileiros descobriram que existe um canal chinês que vende produtos, de até US$ 50, sem imposto. Aí, vem o governo querendo taxar esse pessoal. Isso é falta de respeito com os consumidores brasileiros, especialmente os de baixa e média renda. Eles [o governo e os empresários contrários à abertura comercial] acham que o mercado interno é deles. Meu argumento é sempre produtividade, mas o que realmente me toca é a insensibilidade social com o consumidor de baixa renda no Brasil.
O senhor enxerga alguma saída política, capaz de romper esse “pacto” anti-aberturacomercial?
Essa coisa é muito difícil. Estava pensando politicamente o seguinte: todos nós somos produtores de alguma coisa e consumidores do resto. O que a gente produz a gente quer proteger. Para proteger o que produzo, eu sei como agir. Vou lá no meu sindicato, no meu deputado, no Ministério da Indústria e Comércio. Agora, para as coisas que eu consumo, a quem eu recorro, com quem me reúno?
Com quem?
Não tem! Não há agregação de interesses individuais em coletividades que possam exercer a pressão que os grupos de interesse operam sobre o governo. E, aí, nós somos prejudicados. Bem, nós não porque temos como fazer compras no exterior. Eu me lembro bem quando, em 1983, trouxe um computador dos EUA pela primeira vez e o José Serra olhou para mim e perguntou: “O que é isso, hein?”. Naquela época, tínhamos uma Lei de Informática que proibia a importação de computadores.
O Plano Real completa 30 anos em julho. O senhor vê alguma ameaça à estabilidade dos preços?
Não.
Acredita nisso porque os brasileiros aprenderam que inflação baixa é algo bom?
Não são os brasileiros, e sim a classe política. Os políticos aprenderam que, se não mantiverem a inflação sob controle, eles caem fora.
Que reformas o país precisa fazer além de abrir a economia?
A reforma do Estado brasileiro, um tema que vem sendo bastante tratado pelo Arminio Fraga e a Ana Carla Abrão.
Qual é o aspecto mais importante dessa reforma?
Uma reforma administrativa entendida amplamente. A gente tem que reduzir o peso que o gasto de pessoal exerce hoje sobre o orçamento.
Há também a questão da Previdência, que vai voltar, uma vez que o Lula está corrigindo o salário mínimoacima da inflação. Com o piso da Previdência indexado ao salário mínimo, essa situação vai se deteriorar ao longo do tempo.
Mesmo os programas sociais poderiam ser melhorgerenciados. O ex-senador Tasso Jereissati apresentou proposta de lei de responsabilidade social dando um pouquinho mais de consistência e integração às transferências sociais. Estas poderiam ser feitas de forma muito mais efetiva, com muito menos custo e mais benefícios para quem de fato necessita.
De que forma?
Unificar os programas, ter portas de entrada e saída, criar poupança para quem necessita no setor informal, para uso durante momentos de desemprego. Enfim, teria muito o que fazer para tornar o Estado mais leve e ágil, e mais voltado para o que deve fazer pelo país.
Como o senhor analisa a polarização política que caracteriza hoje a política brasileira?
Aqui, o problema foi o afundamento do PSDB. O partido surgiu como alternativa ao petismo, mas só foi bem-sucedido por causa do real. O Plano Real criou essa possibilidade de o PSDB ficar no governo federal por oito anos e, no governo de São Paulo por 20. O PSDB se desintegrou. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, está tentando alguma coisa, vamos ver o que ele consegue.
Por que o encolhimento do PSDB explica a polarização?
Porque isso criou um vácuo no espectro anti-lulistae anti-PT. A direita se apropriou desse espaço. No passado recente e na época do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso [1995-2002], o centro tinha controle sobre suas partes. Estou pensando aqui em Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Eduardo Campos e outros grandes líderes que tivemos. O PMDB, de onde nasceu o PSDB, era uma força que também se diluiu em inúmeros partidos com aspectos fisiológicos e muito pouco caráter programático.
O PSDB é um partido de centro-esquerda. Por que seu espaço foi ocupado pela extrema-direita?
Acho que aí tem um problema de personalidade. De vez em quando a história é determinada por indivíduos. O líder carismático que apareceu [Jair Bolsonaro] é um líder de extrema-direita.
Que grupos a extrema-direita representa?
O agronegócio moderno e as igrejas pentecostais. Não consigo ver muitas outras características que possam ser identificadas. Por que o Lula ganhou a eleição? Porque, na última hora, muita gente, inclusive eu e os pais do Real, declarou voto nele. Foi isso, até mais do que os votos da Simone Tebet, que garantiu a vitória. Mas o Lula não entendeu isso até hoje.
O quê, exatamente?
Lula não entendeu que o mandato dele é muito restrito. Se o bolsonarismo for minimamente competente e apresentar um candidato razoável, por exemplo, o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], o Lula vai ter que ralar para ser reeleito.
O senhor vê riscos à democracia brasileira?
Com Trump, sim. Da vez que o Bolsonaro tentou, eu estava tranquilo porque, pensei, se ele quiser fazer alguma coisa, os americanos não deixam.
No cenário externo, que riscos o senhor vê adiante?
O maior é a eleição de Donald Trump. É complicada a situação. Os americanos se acostumaram a ter uma taxa de juros muito baixa por muito tempo. A dívida pública não importava muito porque qualquer crescimento do PIB compensava a elevação da dívida. Agora, com os juros a 5,5% ao ano, não mais. O mundo é muito sensível aos juros americanos. O problema do Trump é seu discurso super radical, dizendo, por exemplo, que quer classificar imigrantes como terroristas. É inacreditável!
Ele disse que não indicará Jay Powell para novo mandato no comando do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA]. Isso preocupa?
Pois é, sabe-se lá qual será a política monetária, embora a estrutura do Fed seja muito sólida. Não dá para colocar muitos “pombos” [economistas subservientes ao governo] na diretoria. Ele está falando em colocar imposto de 150% sobre o que se compra da China. Isso não depende tanto do Congresso para fazer. E tem a questão da geopolítica.
Qual, exatamente?
Trump está ameaçando enfraquecer a OTAN, além de todas as outras organizações multilaterais. Seriam os EUA se voltando para si mesmo. O isolacionismo se manifestando a esse nível pode ser muito ruim para o mundo.Os europeus terão que reagir de alguma maneira porque a ameaça da Rússia está aí. Matéria do “The New York Times” revelou a atração, por Vladimir Putin, de uma importante ala do partido Republicano. Não é só o Trump. É um grau muito grande de deterioração em relação ao que se espera do país líder do mundo ocidental.
Com a possível volta de Trump, voltamos para a era das incertezas?
Essa é a questão. O retorno de Trump é algo que, obviamente, não vai ser bom. O que podemos discutir é o quão ruim será porque os interesses comerciais e empresariais americanos no exterior são muito relevantes. A dependência da força do dólar, tendo em vista que os EUA são um país deficitário e que sua dívida externa precisa se manter sólida, é muito importante. Ainda hoje é impossível imaginar uma corrida contra o dólar. Todas as crises internacionais, inclusive, as mais recentes, foram uma corrida para o dólar, que continua sendo o ativo mais seguro. Isso expõe o mundo.
Por quê?
Seria um risco enorme você não dispor da moeda básica, um ativo sobre o qual os investidores não têm a menor dúvida. Este seria o limite que um governo Trump, isolacionista e muito aguerrido, poderia provocar no mundo. Temos que nos preparar para essa situação.
E como estamos?
O saldo comercial do Brasil é bem favorável [US$98,8 bilhões em 2023, recorde histórico]. Temos boa perspectiva tanto em termos de safra agrícola quanto de petróleo e gás. E temos reservas internacionais bastante fortes [US$ 354 bilhões]. A gente tem que se preocupar com a solidez fiscal porque o que pode ocorrer de pior é uma crise financeira, que vai nos atingir diretamente.
De que forma?
Atinge a colocação da dívida pública aqui no país, mesmo esta sendo interna. Haveria fuga de capitais. Se você olhar a composição das reservas internacionais ao longo dos últimos anos, há uma queda da importância do dólar. Ao contrário do que alguns previam, isso não ocorre por causa do renminbi. Há uma diversificação de portfólio em relação a países ocidentais sólidos, mas a dimensão desses mercados é muito pequena. Você pode diversificar 5%, 10% ou 15% do portfólio das reservas, mas, logo, logo, chega ao limite porque não existe outro país, com exceção da China, com a dimensão econômica dos EUA. Dependendo do que ocorra na Europa, temos que imaginar como seria porque, lá, não há mais líderes com a qualidade da Angela Merkel [ex-premiê da Alemanha]. Isso é preocupante porque, se não forem os EUA, têm que ser a Europa para segurar o mundo ocidental.
Como o senhor vê a situação econômica da China?
Enquanto continuar o controle político que o Partido Comunista possui, os chineses têm os instrumentos em mãos [para lidar com uma possível crise]. Eles não têm problema fiscal como o nosso. Têm um superávit fiscal considerável. A taxa de poupança da China é extraordinária [45% do PIB]. O Brasil [cuja taxa de poupança em 2023 foi de 15,4%] tem um problema de excesso de demanda, enquanto na China falta demanda. É por isso que os chineses dependem tanto das exportações e dos investimentos em construção civil. Mas, os governantes têm os instrumentos e é mais fácil combater falta de demanda do que falta de oferta. O fato é que acabou o milagre chinês. A discussão neste momento é a que taxa de crescimento eles vão pousar.
