O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Gustavo Franco. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Gustavo Franco. Mostrar todas as postagens

domingo, 23 de junho de 2024

Gustavo Franco: entrevista sobre os 30 anos do Plano Real - Comentário inicial (necessário) de Mauricio David

Mauricio David introduz a entrevista: 


O “baixinho” ataca novamente... mais uma entrevista a la Louis XIV do nosso pretenso Louis XIV brasileiro “Gustavo Franco”... Quando das sucessivas crises cambiais que assolavam o real durante a gestão do Gustavo à frente do Banco Central, no período pós-implantação do Plano Real, em certo momento a revista VEJA – a de maior circulação no Brasil – publicou uma capa com o então Presidente do Banco Central montado em um cavalo branco à guisa de comparação com o Napoleão no célebre quadro do pintor francês Jean-Louis David (não é meu parente...)... O que afirmava a VEJA nas linhas e entrelinhas : Cuidado com os baixinhos ! Eles são f... (é claro que a VEJA não usava palavra de baixo calão, a interpretação é minha...). Mas que os baixinhos são f..., são mesmo... Mas a rigor a comparação deveria ser com o monarca francês Louis XIV, que certa ocasião teria dito : “L’État c’est moi”... Esta semana vi na TV a cabo um filme documentário sobre a concepção e implantação do Real. Parece que foi feito para enaltecer a figura do nosso “baixinho”. Por diversos momentos do filme o ator que representava o Gustavo aparece dizendo : ‘A moeda sou eu !”. “O Real sou eu!”. Quanta vaidade, arrogância e pretensão ! No fundo, no fundo, o cara se pretende um Louis XIV brasileiro... Isto só foi possível pela modéstia e não-vaidade de personagens do primeiro plano da concepção e implantação do Real, como Pedro Malan e Edmar Bacha (nos quais o Fernando Henrique tinha confiança plena), o embaixador Rubens Ricupero (que desempenhou um papel fundamental para a implantação do Real e que contava, a par com a sua inteligência invulgar e seus dotes diplomáticos e de devoção ao Serviço Público), além do Pérsio Arida e do Chico Lopes (depois miserável e injustamente sacrificado no episódio do seu afastamento da Presidência do Banco Central).

Independente de tudo isto, é importante que se leia essa entrevista-depoimento do Gustavo Franco. Quando voltei do exílio e assumi um cargo junto ao Bresser em Brasília, um dia fui tomar o café-da-manhã com a Conceição no hotel onde ela se hospedava em Brasília. A Conceição, por esse tempo, era deputada do PT e se havia oposto feroz e virulentamente ao Plano Real. Mas, apesar disto, circulava facilmente pelos gabinetes de Brasília, onde tinha muitos amigos e ex-alunos trabalhando. Conversa vai, conversa vem, perguntei à Conceição por que o Fernando Henrique gostava – e apoiava – tanto o Gustavo Franco, que era sabidamente um carão turrão e brigão que se voltava contra tudo e contra todos. A Conceição me contou então (eu havia passado os últimos 4 anos em Paris, preparando o meu doutorado em Economia na Universidade de Paris XIII- Sorbonne com o Prof. Pierre Salama e trabalhando na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais- EHESS com o prof. Ignacy Sachs, então estava absolutamente afastado das fofocas de Brasília...) que a confiança do FHC no Gustavo Franco se devia ao fato de que, quando do lançamento do Plano Real, em dado momento as pernas de todo mundo tremeram, desde o próprio Fernando Henrique como Ministro da Fazenda aos integrantes da chamada “equipe econômica”. Foi neste momento de dúvida e “paúra” geral que o Gustavo – que parece que andava sempre com uma maquininha de calcular fazendo contas das Arábias, disse para o FHC : “pode fazer, Presidente, eu garanto que vai dar certo !”. E o Fernando Henrique sentiu firmeza no “baixinho” e tocou prá frente a implementação do Plano... Se foi assim ou não, só sei como o personagem impagável do Auto da Compadecida que dizia : “sei não, só sei que foi assim...”. Pois posso dizer, agora que a Inês (gulp !, a Conceição está morta e eu pela tabela três...) que o “baixinho” é f...

Por isto, a leitura atenta do seu depoimento-entrevista é importante. Assim como o livro que ele, o Malan e o Bacha estão lançando sobre o Plano Real e que comentarei em breve. Mientras tanto, como se diz em espanhol, recomendo uma vez mais a leitura do excelente livro “Memórias” que o embaixador Rubens Ricupero acaba de publicar e que serve de contraponto aos exageros cantiflinianos da versão do Gustavo sobre a história do Real...

MD


============


GLOBO, 23 junho 2024

 

Gustavo Franco: ‘A hiperinflação pode ter estragado para sempre nossa saúde econômica’

Ex-presidente do Banco Central diz que Brasil ‘recuperou o seu futuro’ com a estabilidade trazida pelo Plano Real. Mas avalia que a experiência, assim como no alcoolismo, pode ter deixado sequelas de um vício

Por 

Cássia Almeida 


Presidente do Banco Central (BC) quando o real passou pelo seu maior teste, com um ataque especulativo que levava quase US$ 1 bilhão de reservas cambiais diariamente, Gustavo Franco Presidente do Banco Central minimiza aquele momento e diz que, depois de 30 anos, a estabilidade monetária conquistada mostrou que “não tinha nenhum truque, nenhuma farsa”. "Ninguém teve perda. Essa conversa acabou", afirma, em referência às críticas de que a maxidesvalorização do real teria sido adiada por causa da corrida eleitoral de 1998.


Qual a importância de ter uma moeda estável por 30 anos, o que isso representa?

Hoje todo mundo gosta do real, mas no começo não foi assim, não. Vivemos a experiência de degradação da moeda. Quem viveu terá guardado na memória de como é profundo, é uma ferida profunda. O simbolismo associado à moeda é grande. A moeda é como a bandeira e o hino. Vê-la derreter é a sensação que você tem vendo a bandeira pegar fogo. É ruim. É um pedaço de cada um de nós. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também. Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre. Como o alcoolismo faz com as pessoas que tiveram o vício. Nós nos livramos dele faz 30 anos. É muito bom. Mas a experiência foi super profunda, difícil, marcante, e a batalha foi difícil. 


Qual a importância de ter uma moeda estável por 30 anos, o que isso representa?

Hoje todo mundo gosta do real, mas no começo não foi assim, não. Vivemos a experiência de degradação da moeda. Quem viveu terá guardado na memória de como é profundo, é uma ferida profunda. O simbolismo associado à moeda é grande. A moeda é como a bandeira e o hino. Vê-la derreter é a sensação que você tem vendo a bandeira pegar fogo. É ruim. É um pedaço de cada um de nós. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também. Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre. Como o alcoolismo faz com as pessoas que tiveram o vício. Nós nos livramos dele faz 30 anos. É muito bom. Mas a experiência foi super profunda, difícil, marcante, e a batalha foi difícil. 


Foi uma conquista do povo brasileiro, diante do que passou anteriormente?

Recuperamos o nosso futuro e junto com ele um símbolo nacional que também resgatava o nosso passado e todos os heróis nacionais humilhados em cédulas que passaram a valer nada (antes do real, Barão de Mauá, Machado de Assis, Marechal Rondon foram algumas das personalidades que estampavam as cédulas, mas com a inflação alta, essas cédulas perdiam valor muito rápido). Hoje a gente tem o real. Imagina no tempo que a gente não tinha o real. O que a gente tinha? Era o imaginário, era o delírio. Vivemos um delírio longo, que foi crítico nos últimos dez anos, até 1994, a inflação média mensal deve ter sido 15%, 20% ao mês, em média. Impensável com os olhos de hoje. As pessoas têm uma memória disso, dos pais, de ouvir na mesa de jantar histórias folclóricas de inflação. O que a gente tem hoje (de inflação) durante um ano inteiro era de um fim de semana. Foi triste? Foi. Foi horroroso. 


Que tipo de reação teve ao plano na época?

Vinte e quatro horas depois do acontecido, começa todo mundo a achar muito bom, tem um quase deslumbramento. Que coisa boa a moeda estável, uma coisa tão simples que nem bem tem nome, uma vida econômica normal, com uma moeda normal de um país normal. E aí parece uma coisa trivial, mas não é. Trinta anos depois, com o distanciamento que esse tempo todo nos permite, todo mundo gosta, não tem mais ninguém que seja contra. E é difícil até explicar como, quando foi feito, quase todo mundo era contra. Tem uma explicação, ou pelo menos duas. Uma é que era o sexto plano econômico, e todos os outros deram errado. O plano econômico parecia fazer mais estrago do que a própria inflação. Então, se é para ter um tratamento que dói mais que a doença, deixa a gente ficar doente. Então, o sexto plano econômico não animou ninguém. Todo mundo tinha muita desconfiança. 

Eu lembro bem dos momentos anteriores ao anúncio da URV a postura da opinião pública, da imprensa, dos agentes econômicos... Todo mundo estava muito desconfiado, ao mesmo tempo, torcendo: “Faz aí um negócio que dê certo, mas olha lá o que vai fazer” Faz o plano, mas não pode fazer... Tinha uma lista de coisas que não se podia fazer. Cada pessoa tinha uma lista. Muita gente queria congelamento de preço, que era exatamente uma coisa que não íamos fazer de jeito nenhum. Não foi um grande acordo nacional. Na verdade, foi uma coisa escrita por gente que conhece essa tecnologia e conhece essa técnica. Quem desenha uma vacina contra Covid é quem entende de vacina, não é uma assembleia do povo que decide. A gente fez, botou em operação e funcionou. Depois de 24 horas, era um país transformado. O que parecia incompreensível veio muito naturalmente para dentro da rotina das pessoas. 


Como foi a montagem jurídica do Plano?

Todos nós éramos economistas de sala de aula, de pesquisadores do assunto. Mas uma coisa é o quadro negro, outra coisa é o Diário Oficial. Entre um e outro tem os advogados, porque o estado democrático de direito fala um idioma que é o das leis, que é onde estão os advogados profissionais. Eles têm a compreensão da realidade conforme os filtros e o idioma deles. É preciso falar a língua deles. Você não vai fazer poesia numa língua estrangeira se não entender muito bem como é a gramática deles. E foi isso que a gente teve de fazer. Aprender a língua deles não é chamá-los para fazer a nossa música. Não. Vamos conversar e fazer juntos no mesmo idioma. E aí funcionou belissimamente. 

As coisas interdisciplinares no Brasil são sempre complicadas. Nos outros planos deu errado. Dessa vez, vamos conversar. E aí funcionou muito bem. Algumas pessoas especiais ajudam, é claro, mas a essência do diálogo interdisciplinar foi, enfim, a alma. Saiu certinho. Voltando para a universidade depois de tudo isso, quando eu saí do Banco Central comecei a dar um curso. O assunto era o diálogo entre a economia e o direito nos assuntos da moeda e o Plano Real, como o caso bem-sucedido. Esse curso depois virou um livro que se chama “A Moeda e a Lei”. O título diz o que é, uma história monetária do Brasil de 1933, onde começa essa aventura do papel moeda até finalmente se arrumar o padrão monetário, o real, em 1994. 


Em um dos seus artigos no livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (que reúne artigos dele, do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e do economista Edmar Bacha sobre o plano), você diz que o plano fez uma revolução silenciosa.

Quando a pessoa está em com dor, não existe outro pensamento senão fazer parar a dor. É um país quase que sob tortura. Nessas condições, não existe vida inteligente, não existe cálculo econômico, não existe rotina, não existe percepção das nossas possibilidades, não existe futuro. Isso tudo a gente ganhou, tendo uma moeda estável, sobretudo a sensação de futuro, o horizonte que se abre como uma grande névoa que de repente baixou. Enxergamos, assim, nossas verdades. Nem todas são agradáveis, tem muita desigualdade, muitos problemas. Não estamos condenados a crescer como na Ásia. Na verdade, descobrimos que para fazer isso precisa fazer outras coisas que pertencem a uma outra agenda, reformas e tudo isso, onde a gente não está andando. Mas agora a gente está vendo isso. Antes sequer dava para ver.


Ao longo desses 30 anos, onde avançamos por causa da estabilidade?

Bom, nós tínhamos uma doença terminal, a hiperinflação. Claro que os países não morrem, mas eles conseguem afundar cada vez mais e mais e mais. Era o tipo de trajetória que a gente vinha tendo, de aprofundamento de tudo que a gente tem de ruim, de desigualdade, de pobreza, de tudo isso. A inflação causa isso tudo, a inflação era um combustível importante para desigualdade, pobreza, problemas, enfim, críticos para nós. Tirar a inflação já melhora esse panorama, não elimina o problema, mas nos melhora e nos coloca em posição de endereçar esse problema, ou do crescimento, de uma forma inteligente. 


Ainda estamos vivendo problemas com os estados?

A União e os Estados e os municípios, no ambiente de inflação, meio que não tinham limites para irresponsabilidade. Parecia não haver consequência também, porque era como se houvesse uma fábrica de papel pintado que aparentemente resolvia os problemas quando criava outros maiores do que aqueles que resolvia. E era preciso encerrar esse ciclo colocando todas essas unidades públicas, a União, os estados e os municípios, bem como os bancos públicos, todos vivendo dentro dos seus próprios meios para simplificar bem a história. E ninguém tinha contas equilibradas. A União tinha um déficit gigante, os estados tinham déficits gigantes, a Previdência tinha déficit gigante, os bancos públicos todos quebrados, os estaduais, federais. Ou seja, o estrago que a inflação fez no decorrer do tempo em tudo o que era público é incomensurável. Acho que um dos acertos do real foi escalonar os problemas. Não dá para resolver tudo de uma vez e demorou muito tempo. 

Os acertos com os estados foram se desdobrar ao longo de vários anos. Quando o real foi disparado, já tínhamos feito umas duas rodadas com refinanciamento desses estados e programas de ajustes e já ajustando os bancos. Junto com o real, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Com a adoção do convênio de Basileia (que estabeleceu recomendações para as exigências mínimas de capital para instituições financeiras), o FGC (Fundo Garantidor de Crédito), tudo isso foi inventado ali, naquele momento, para lidar com uma situação crítica de crise bancária aberta. Isso que os americanos depois tiveram em 2008, nós tivemos muito pior, na nossa proporção, é claro, e tivemos que lidar com isso como uma cirurgia de peito aberto. Mais de cem bancos quebraram naquele momento, enfim, com custos, mas resolvemos. 

Para isso não apenas tivemos que praticamente extinguir a ideia de banco estadual, porque os estados não podem ter nada que se pareça com o Banco Central. O Banco Central só um pode ter um que é da União e os bancos comerciais federais, o Banco do Brasil e a Caixa, têm que funcionar igual a outros bancos e não como filiais do Banco Central ou matrizes do Banco Central, como alguns deles achavam que eram. São mudanças dificílimas de fazer, começando ali no momento da inflação, onde todos os maus hábitos do mundo eram a regra. 

Cada uma dessas batalhas teve o seu tempo. Não foi só a noite da URV, foram anos de trabalho, muitos deles reformas que se desdobraram e ainda estão em andamento. Algumas já ficaram para trás. Resolveu, mas às vezes volta. Os estados, como você lembrou bem, estavam arrumados quando veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000, e ali tinha uma métrica que era o nível de endividamento e o nível de comprometimento das receitas com a folha de pagamento. Com base nisso, a União funcionou como uma espécie de FMI da Federação e financiou os estados. Mas aí, mais adiante, o governo Dilma Rousseff estragou tudo de novo (houve renegociação das dívidas em 2014, mudando os termos acertados no acordo de 1997, com mudança no indexador e redução de juros). Estava na hora de fazer uma outra lei de responsabilidade fiscal. Isso é assim mesmo. Alguma coisa precisa refazer, corrigir o curso. Ou vem um outro governo que estraga tudo e começa tudo de novo. E assim é a democracia, tem alternância no poder, tem choques que vêm de fora, que vêm de dentro. A vida econômica, infelizmente, é muito instável. 


Você tem falado muito do risco das pequenas inflações, que a estabilidade é uma coisa conquistada, mas que você tem que mantê-la. Qual o risco que corremos?

Quando fizemos o Real, a inflação brasileira estava na faixa de 50% ao mês, que é 12.500% ao ano. Então, quando hoje a gente discute a meta de inflação anual de 3%, parece um excesso de zelo. Mas não, a pessoa que foi viciada não pode tomar um drinque sozinho e achar que é tudo normal. Não é! Nunca mais. A gente tem que ter muito zelo nesse assunto, porque toda a tecnologia desse vício, a correção monetária, está na cabeça das pessoas, dispara um pouco de inflação e começa tudo a degringolar. Não pode nunca voltar para aquela situação de antes. 

Temos proteções para isso. Nossas instituições, sobretudo referentes à governança da moeda, estão bem protegidas. Pode sempre estragar. Um mau governante, um mau momento do país, da política pode sim estragar tudo. E é mais fácil ainda para um país que já viveu esse estrago e parece que não tem medo. Quem já foi viciado descontrolado, sabe como é difícil a sobriedade. Vamos ter que cuidar da nossa saúde com muito zelo daqui para frente. 


Como foi a mudança do câmbio fixo para o flutuante (o novo regime foi adotado em 1999, após a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central), no meio de uma campanha eleitoral?

Agora, olhando em perspectiva, não foi isso tudo não. A temperatura do assunto estava alta por causa da eleição. E que tal como em 1998, como em 1994, a oposição dizia que era tudo uma farsa e que o câmbio era um artificialismo mantido exclusivamente para ganhar a eleição. Falou isso em 1994, insistiu, insistiu, perdeu em 1998 a mesma coisa, mas quatro anos depois... (Lula, do PT, venceu a eleição em 2002). E aí outras crises vieram, outros assuntos dos bancos, os estados, bancos federais, bancos estaduais, várias agendas foram e voltaram. Esta do câmbio foi mais uma, quando passamos para o flutuante. Segue o jogo. Não tinha nada de artificial. O real está aí até hoje. Não tinha nenhum truque, nenhuma farsa. Ninguém teve perda. Essa conversa acabou. 


Mas, naquele momento, tinha uma pressão para sair do câmbio fixo, ir para flutuante, da própria equipe econômica, mas tinha uma pressão para manter o câmbio fixo, como era véspera da eleição. Como foi lidar com isso?

Teve esse tipo de pressão. Desculpa, mas teve todos os dias, desde o começo, em câmbio, como no juro, como no Tesouro Nacional em cada leilão do Tesouro, sabe? Faz congelamento, não faz congelamento? A conversão de salários é pela média ou pelo pico? Qual o valor do salário mínimo? O plano econômico é cheio dessas coisas críticas. E o câmbio era uma delas. Agora, acho que o câmbio foi uma decisão muito boa, porque como é que se vai fazer um plano de estabilização sem ter o fiscal, sem ter uma porção de coisa que nunca é o ideal. 

Fazer qualquer plano de estabilização é tomar decisões em condições bem piores que as ideais, sob incerteza. E aí é o seguinte, em 1998, nessa segunda eleição, a inflação foi 1,6% no ano para os 12 meses, para quem saiu de 12.500% ao ano em junho de 1994. E aí o pessoal reclama que está tudo errado, entendeu? Não está, não, desculpa. A discussão sobre o câmbio virou uma grande batalha de Itararé sobre a farsa que era o Plano Real. Não tinha farsa nenhuma. Está aí até hoje. E a mudança para o câmbio flutuante não era desfazer absolutamente nada de tão básico no plano. Na verdade, o plano nasce com a moeda flutuando em julho de 1994. É um espinho na garganta de quem perdeu a eleição em 1994 e 1998. E essa coisa de que era tudo uma farsa. Desculpe, não era não. 


Em algum momento, você achou que o plano poderia fracassar, que a inflação poderia voltar?

Todos os dias, todos os dias. Porque a rotina desse tipo de esforço é todo dia uma encrenca. Todo dia uma não, todo dia tem 40 encrencas, 20 a favor, 20 contra e todo dia você acha que quando foi bom foi por pouco. E quando perde, perde por pouco também. Tem dias muito ruins, dias que você acha que acabou tudo, más notícias e tem os dias bons. Eles se alternam e de algum jeito você vai avançando, avançando, avançando e quando você vê se já ultrapassou muita coisa, chegou onde você não imaginava que podia chegar. Foi assim. Ninguém tinha certeza, tínhamos convicção, que é diferente, mas não se sabe se vai tudo funcionar, se todas as peças vão voltar ao lugar. 

Esse livro que a gente fez agora dos 30 anos, a gente buscou os textos que nós escrevemos nos aniversários. E aí se percebe a evolução, como estava o campo de batalha. Não se tinha muita certeza de nada. Na verdade, sempre muita preocupação com o que tinha para vir, já que muito do fundamento de um plano como esse, que muda a trajetória futura do país, depende de coisas que ficaram por fazer, reformas que foram prometidas e que, muitas das vezes, demoraram anos para sair do papel. Tem que mostrar progresso todos os dias. E teve dias muito ruins.


Quais?

Eu acho que vale recordar a véspera do primeiro dia, que foi 28 de fevereiro de 1994, quando teve a reunião ministerial para fechar o texto da medida provisória que criou a URV (Unidade Real de Valor que era corrigida diariamente e depois se converteu no real em 1º de julho de 1994). O presidente (Itamar Franco) chamou para uma reunião de alguns ministros no Palácio. Fernando Henrique (Cardoso, ministro da Fazenda) foi e levou assessores. Eu e Murilo Portugal, secretário do Tesouro, ficamos na antessala para se precisassem de algum esclarecimento técnico. Chamaram a gente uma vez, duas vezes, três vezes. E aí disseram: “Fica aí” e ficamos. Assistimos a reunião inteira que começou umas 10h e a gente deve ter entrado meio-dia na reunião e ficou até as 8 da noite. Nesse dia, eu vi o ministro da Fazenda pedir demissão três vezes, não foi uma, foram três vezes. Levantar da mesa e dizer: “Assim não dá. Se for para fazer desse jeito, eu vou me embora. Fazem vocês”. Tudo isso podia não ter acontecido na véspera. 


O que ele se recusou a fazer?

Desses três assuntos, um era conversão de salários pelo pico, o outro era congelamento de preço e outro era salário mínimo cem dólares. “Se é para fazer o Plano Cruzado de novo, não vai ser com a gente”. E o ministro foi firmíssimo. “Ah, é para fazer assim? O presidente que sabe, mas então não é comigo, nem conosco. Vamos todos embora.” Não, senta aí, e retoma a conversa. Conseguimos que o presidente assinasse a medida provisória exatamente como nós propusemos a ele. E deu certo. 


O que você acha que faltou fazer?

Se eu fosse escolher uma coisa, a revisão constitucional, que era para ter acontecido cinco anos depois da promulgação, em 1993. Houve uma decisão política das lideranças da ocasião, presidente, outros líderes políticos que não iam fazer. Acho que o pessoal da área política percebeu que a estabilização traria uma onda grande de reformas. O pensamento político foi: ah, então deixa eles fazerem do jeito normal das emendas constitucionais, com duas votações nas duas casas. Vai demorar uns 20 anos a mais, mas fica mais legítimo. Raciocínio político. Foi um erro, no meu modo de ver, reforma da Previdência, vamos ter que fazer outra, agora, a trabalhista, a abertura do petróleo, algumas ficaram para trás que a gente nem lembra. A que abriu as telecomunicações, que fez todo mundo ter celular foi lá atrás, no começo do governo Fernando Henrique. Tudo poderia ter acontecido em 1993. O tempo que a gente perdeu. A do saneamento estamos fazendo agora, nem começou direito ainda. Quantas pessoas morreram de doença por causa de mosquito, de saneamento ruim ou do dano ambiental de esgoto no mar, nos rios, esse tempo todo? Não é brincadeira adiar essa agenda de reformas. Poderíamos ter começado isso em 1993, mas não. A decisão foi fazer do outro jeito mais difícil. E aí, As coisas interdisciplinares no Brasil são sempre complicadas. Nos outros planos deu errado. Dessa vez, vamos conversar. E aí funcionou muito bem. Algumas pessoas especiais ajudam, é claro, mas a essência do diálogo interdisciplinar foi, enfim, a alma. Saiu certinho. Voltando para a universidade depois de tudo isso, quando eu saí do Banco Central comecei a dar um curso. O assunto era o diálogo entre a economia e o direito nos assuntos da moeda e o Plano Real, como o caso bem-sucedido. Esse curso depois virou um livro que se chama “A Moeda e a Lei”. O título diz o que é, uma história monetária do Brasil de 1933, onde começa essa aventura do papel moeda até finalmente se arrumar o padrão monetário, o real, em 1994. 


Em um dos seus artigos no livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (que reúne artigos dele, do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e do economista Edmar Bacha sobre o plano), você diz que o plano fez uma revolução silenciosa.

Quando a pessoa está em com dor, não existe outro pensamento senão fazer parar a dor. É um país quase que sob tortura. Nessas condições, não existe vida inteligente, não existe cálculo econômico, não existe rotina, não existe percepção das nossas possibilidades, não existe futuro. Isso tudo a gente ganhou, tendo uma moeda estável, sobretudo a sensação de futuro, o horizonte que se abre como uma grande névoa que de repente baixou. Enxergamos, assim, nossas verdades. Nem todas são agradáveis, tem muita desigualdade, muitos problemas. Não estamos condenados a crescer como na Ásia. Na verdade, descobrimos que para fazer isso precisa fazer outras coisas que pertencem a uma outra agenda, reformas e tudo isso, onde a gente não está andando. Mas agora a gente está vendo isso. Antes sequer dava para ver.


Ao longo desses 30 anos, onde avançamos por causa da estabilidade?

Bom, nós tínhamos uma doença terminal, a hiperinflação. Claro que os países não morrem, mas eles conseguem afundar cada vez mais e mais e mais. Era o tipo de trajetória que a gente vinha tendo, de aprofundamento de tudo que a gente tem de ruim, de desigualdade, de pobreza, de tudo isso. A inflação causa isso tudo, a inflação era um combustível importante para desigualdade, pobreza, problemas, enfim, críticos para nós. Tirar a inflação já melhora 

esse panorama, não elimina o problema, mas nos melhora e nos coloca em posição de endereçar esse problema, ou do crescimento, de uma forma inteligente. 


Ainda estamos vivendo problemas com os estados?

A União e os Estados e os municípios, no ambiente de inflação, meio que não tinham limites para irresponsabilidade. Parecia não haver consequência também, porque era como se houvesse uma fábrica de papel pintado que aparentemente resolvia os problemas quando criava outros maiores do que aqueles que resolvia. E era preciso encerrar esse ciclo colocando todas essas unidades públicas, a União, os estados e os municípios, bem como os bancos públicos, todos vivendo dentro dos seus próprios meios para simplificar bem a história. E ninguém tinha contas equilibradas. A União tinha um déficit gigante, os estados tinham déficits gigantes, a Previdência tinha déficit gigante, os bancos públicos todos quebrados, os estaduais, federais. Ou seja, o estrago que a inflação fez no decorrer do tempo em tudo o que era público é incomensurável. Acho que um dos acertos do real foi escalonar os problemas. Não dá para resolver tudo de uma vez e demorou muito tempo. 

Os acertos com os estados foram se desdobrar ao longo de vários anos. Quando o real foi disparado, já tínhamos feito umas duas rodadas com refinanciamento desses estados e programas de ajustes e já ajustando os bancos. Junto com o real, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Com a adoção do convênio de Basileia (que estabeleceu recomendações para as exigências mínimas de capital para instituições financeiras), o FGC (Fundo Garantidor de Crédito), tudo isso foi inventado ali, naquele momento, para lidar com uma situação crítica de crise bancária aberta. Isso que os americanos depois tiveram em 2008, nós tivemos muito pior, na nossa proporção, é claro, e tivemos que lidar com isso como uma cirurgia de peito aberto. Mais de cem bancos quebraram naquele momento, enfim, com custos, mas resolvemos. 

Para isso não apenas tivemos que praticamente extinguir a ideia de banco estadual, porque os estados não podem ter nada que se pareça com o Banco Central. O Banco Central só um pode ter um que é da União e os bancos comerciais federais, o Banco do Brasil e a Caixa, têm que funcionar igual a outros bancos e não como filiais do Banco Central ou matrizes do Banco Central, como alguns deles achavam que eram. São mudanças dificílimas de fazer, começando ali no momento da inflação, onde todos os maus hábitos do mundo eram a regra. 

Cada uma dessas batalhas teve o seu tempo. Não foi só a noite da URV, foram anos de trabalho, muitos deles reformas que se desdobraram e ainda estão em andamento. Algumas já ficaram para trás. Resolveu, mas às vezes volta. Os estados, como você lembrou bem, estavam arrumados quando veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000, e ali tinha uma métrica que era o nível de endividamento e o nível de comprometimento das receitas com a folha de pagamento. Com base nisso, a União funcionou como uma espécie de FMI da Federação e financiou os estados. Mas aí, mais adiante, o governo Dilma Rousseff estragou tudo de novo (houve renegociação das dívidas em 2014, mudando os termos acertados no acordo de 1997, com mudança no indexador e redução de juros). Estava na hora de fazer uma outra lei de responsabilidade fiscal. Isso é assim mesmo. Alguma coisa precisa refazer, corrigir o curso. Ou vem um outro governo que estraga tudo e começa tudo de novo. E assim é a democracia, tem alternância no poder, tem choques que vêm de fora, que vêm de dentro. A vida econômica, infelizmente, é muito instável. 


Você tem falado muito do risco das pequenas inflações, que a estabilidade é uma coisa conquistada, mas que você tem que mantê-la. Qual o risco que corremos?

Quando fizemos o Real, a inflação brasileira estava na faixa de 50% ao mês, que é 12.500% ao ano. Então, quando hoje a gente discute a meta de inflação anual de 3%, parece um excesso de zelo. Mas não, a pessoa que foi viciada não pode tomar um drinque sozinho e achar que é tudo normal. Não é! Nunca mais. A gente tem que ter muito zelo nesse assunto, porque toda a tecnologia desse vício, a correção monetária, está na cabeça das pessoas, dispara um pouco de inflação e começa tudo a degringolar. Não pode nunca voltar para aquela situação de antes. 

Temos proteções para isso. Nossas instituições, sobretudo referentes à governança da moeda, estão bem protegidas. Pode sempre estragar. Um mau governante, um mau momento do país, da política pode sim estragar tudo. E é mais fácil ainda para um país que já viveu esse estrago e parece que não tem medo. Quem já foi viciado descontrolado, sabe como é difícil a sobriedade. Vamos ter que cuidar da nossa saúde com muito zelo daqui para frente. 


Como foi a mudança do câmbio fixo para o flutuante (o novo regime foi adotado em 1999, após a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central), no meio de uma campanha eleitoral?

Agora, olhando em perspectiva, não foi isso tudo não. A temperatura do assunto estava alta por causa da eleição. E que tal como em 1998, como em 1994, a oposição dizia que era tudo uma farsa e que o câmbio era um artificialismo mantido exclusivamente para ganhar a eleição. Falou isso em 1994, insistiu, insistiu, perdeu em 1998 a mesma coisa, mas quatro anos depois... (Lula, do PT, venceu a eleição em 2002). E aí outras crises vieram, outros assuntos dos bancos, os estados, bancos federais, bancos estaduais, várias agendas foram e voltaram. Esta do câmbio foi mais uma, quando passamos para o flutuante. Segue o jogo. Não tinha nada de artificial. O real está aí até hoje. Não tinha nenhum truque, nenhuma farsa. Ninguém teve perda. Essa conversa acabou. 


Mas, naquele momento, tinha uma pressão para sair do câmbio fixo, ir para flutuante, da própria equipe econômica, mas tinha uma pressão para manter o câmbio fixo, como era véspera da eleição. Como foi lidar com isso?

Teve esse tipo de pressão. Desculpa, mas teve todos os dias, desde o começo, em câmbio, como no juro, como no Tesouro Nacional em cada leilão do Tesouro, sabe? Faz congelamento, não faz congelamento? A conversão de salários é pela média ou pelo pico? Qual o valor do salário mínimo? O plano econômico é cheio dessas coisas críticas. E o câmbio era uma delas. Agora, acho que o câmbio foi uma decisão muito boa, porque como é que se vai fazer um plano de estabilização sem ter o fiscal, sem ter uma porção de coisa que nunca é o ideal. 

 

quinta-feira, 23 de maio de 2024

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou - Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco (Brazil Journal)

Dica de leitura (grato a Maurício David)

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou

Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco

Brazil Journal, 23 Maio 2024 

“Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação,” diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos pais Real, o plano que deu fim ao inflacionismo brasileiro.  Essas recordações estão no livro 30 anos do Real – Crônicas no calor do momento, organização Gustavo Franco (História Real; 224 páginas), que será lançado em 10 de junho. 

O volume reúne textos de Edmar Bacha, Pedro Malan e do próprio Franco, que foi o organizador da coletânea em celebração às três décadas do programa de estabilização monetária. Hoje a preocupação dos economistas é se a inflação brasileira vai ficar acima da meta oficial de 3% ao ano. Os mais jovens, entretanto, não podem imaginar o que foi viver num país em que os preços subiram em média 16% ao mês nos 15 anos que antecederam o Real. No pico da hiperinflação, ela atingiu 82% em março de 1990.   Nos trechos abaixo, retirados do livro e antecipados ao Brazil Journal, Bacha fala dos desafios pós-estabilização e Franco rememora o ambiente inóspito quando o Real foi lançado. 

O plano recebeu torpedos de todos os lados. “Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos,” escreve Franco. Mas a nova moeda colou – e é a mais longeva da República.  ***  

Gustavo Franco: “A construção do Real partiu de condições iniciais muito difíceis. Não foi exatamente o resultado de um consenso ou pacto facilmente construído pelo triunfo da razão, ressalvados apoios nem sempre muito convictos que obtivemos no Congresso Nacional. Os interesses associados ao inflacionismo se mostraram fortes e vocais, além de bem dissimulados, pois jamais faziam uma defesa aberta da inflação. Eram apenas, como se dizia, a crítica (democrática) ao modelo de combate à inflação, dito ortodoxo e recessivo. As circunstâncias foram sempre difíceis, dentro e fora do País. O enfrentamento e a polêmica, bem como a paciência e a consistência, foram marcas inequívocas desse trajeto. 

Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos. Muitos políticos, inclusive alguns amigos, diziam que as soluções que propúnhamos eram de quem não conhecia Brasília nem nada sobre as vontades do povo.  Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação. Arnaldo Jabor era uma delas. Em 28 de junho de 1994, três dias antes da conclusão da reforma monetária que introduziu o Real, diante da quantidade e variedade de reparos à estabilização vindos de todos os lados, Jabor publicou uma crônica inesquecível, intitulada ‘País não merece vitória do Plano Real’.  A passagem mais comovente, ao menos para mim, ia ao coração do problema: ‘Não há solidão mais terrível do que ser da equipe econômica do governo.’ E a razão era simples, segundo dizia: ‘Ninguém ajudou.’ Congresso, economistas, Igreja, burguesia, artistas, intelectuais, Judiciário, conforme ele explicava em cores vivas, estavam consumidos pela descrença ou pelo torpor. Complexa a chamada ‘economia política’ da inflação. Mas o Plano avançou, transitando por duros debates e negociações. Seus resultados superaram as melhores expectativas, desarmaram as objeções e o País se encantou com a vida sem inflação. Tudo indica que fizemos uma opção para todo o sempre em 1994.”  (…)  

Edmar Bacha: “Em 1974, escrevi uma fábula sobre o reino de Belíndia, mistura de Bélgica com Índia, um País em que o crescimento econômico beneficiava somente a parcela mais rica da população. Era uma alegoria sobre a natureza do crescimento do PIB brasileiro durante a ditadura militar. Em 1984, quando da transição para a democracia, imaginei em nova fábula uma reunião de economistas no Sambódromo para discutir como dar fim à inflação no país dos contrários, em que tudo funcionava de trás para a frente, inclusive o próprio nome do país, Lisarb, e seu próximo presidente, Seven. Após a redemocratização, Mario Henrique Simonsen cunhou o termo Banglabânia, mistura de Bangladesh com Albânia, para expressar sua preocupação com o risco de empobrecimento do país como consequência das tendências autárquicas e estatizantes da Constituição de 1988. Em 1994, quando fui para o governo, Delfim Netto apresentou sua réplica à Belíndia, concebendo a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, para criticar o governo, que aumentava os impostos como se estivesse num país europeu enquanto oferecia serviços públicos de terceiro mundo. As manifestações de rua de 2013 trouxeram à tona outra caracterização, que denominei de Rumala, triste combinação de Rússia com Guatemala: uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade. Como se não bastasse, ao promover a devastação da Amazônia e a ocupação pelo garimpo ilegal dos territórios indígenas, o governo de Bolsonaro me sugeriu criar Brasa, um país em chamas, completando essa peculiar lista. Esses países imaginários designam males múltiplos presentes na atualidade brasileira: desigualdade, preços surreais, pobreza, introversão, estagnação, impostos sem contrapartida de serviços, corrupção e violência, ataques ao meio ambiente e aos povos originários. Sombrios como parecem ser os tempos atuais, é preciso manter o senso de perspectiva. Em 2019, comemoramos 130 anos de República. Na transição do Império para a República, na última década do século XIX, o Brasil tinha apenas 14 milhões de habitantes, dos quais 82% eram ágrafos e apenas 10% viviam em áreas urbanas. A renda por habitante era pouco maior do que US$ 1 mil em preços de hoje. Atualmente, o Brasil tem 203 milhões de habitantes, com o analfabetismo reduzido a 6% da população adulta: uma população em sua imensa maioria urbana (85%), dispondo de uma renda anual por habitante da ordem de US$ 15 mil. São avanços inegáveis, mas que empalidecem quando comparados aos níveis mais altos de bem-estar dos países ricos. Entre 1920 e 1980, o Brasil seguiu uma trajetória de alto crescimento e parecia destinado a se incorporar ao conjunto dos países mais avançados. Essa trajetória, entretanto, estancou-se na crise da dívida externa do início dos anos 1980, a qual gestou um processo de alta inflação de que só nos livramos com o Plano Real, em 1994. Avaliando o Plano Real em 1997, três anos após sua implantação, celebrei o fato de ele ter sido bem-sucedido em baixar as taxas de inflação e mantê-las baixas. Mas observei que ainda era preciso produzir uma tendência econômica na qual o controle inflacionário se conjugasse com crescimento econômico sustentado e equilíbrio das contas externas. O equilíbrio das contas externas pôde ser alcançado a partir da introdução, em 1999, do chamado tripé da política econômica: superávit primário no Orçamento do governo, câmbio flutuante e metas de inflação. Com a manutenção do tripé pelos governos do PT, a partir de 2003, e a ajuda do auge das commodities na primeira década do século XXI, o país conseguiu superar as crises de balanço de pagamentos da década de 1980. Isso ficou demonstrado no enfrentamento da crise financeira internacional de 2008, quando o governo pôde praticar uma política expansionista sem temer uma parada súbita na entrada de capitais externos. O Plano Real permitiu, assim, abolir dois males históricos da economia brasileira: a alta inflação e as crises de balanço de pagamentos, que ainda hoje tanto atormentam a Argentina. No entanto, afora curtos espasmos determinados pelo ciclo das commodities, o Brasil continuou a crescer a taxas muito baixas. Não se trata de fenômeno incomum. É conhecido como a armadilha da renda média na literatura internacional. Uma coisa é transitar da renda baixa para a renda média. Outra coisa é sair da renda média para alcançar o nível de renda dos países ricos.”


quinta-feira, 25 de abril de 2024

O PLANO REAL na PUC: debate com Rogério Werneck, André Lara Resende, Edmar Bacha, Francisco Lopes, Gustavo Franco, Pedro Malan, Persio Arida e Winston Fritsch

Imperdível!

O PLANO REAL na PUC

 https://www.youtube.com/watch?v=ofbOOGSoQbc

3.303 visualizações  22 de abr. de 2024  RIO DE JANEIRO


domingo, 1 de outubro de 2023

A Arte da Política Econômica: depoimentos à Casa das Garças - organização de José Augusto C. Fernandes (livro publicado)

 A Arte da Política Econômica

depoimentos à Casa das Garças

Organizador: José Augusto C. Fernandes

Rio de Janeiro: História Real, 2023, 560 p.; ISBN: 978-65-87518-5-3

(Editora Intrínseca: www.historiareal.intrinseca.com.br)

    Tendo participado de uma série de depoimentos organizados pela Rio Bravo Investimentos, neste formato: 

1522. “Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos”, Brasília-São Paulo, 27-30 agosto 2023, 6 p. Nota elaboradas para entrevista na Rio Bravo Investimentos em 1/09/2023, com o jornalista Fabio Cardoso; revisão: Brasília, 9/09/2023. Divulgada no dia 13/09/2023 (link: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E); blog Diplomatizzando (13/09/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/videocast-rio-bravo-as-instituicoes.html); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/106584032/4464_Itamaraty_uma_instituição_de_Estado_pouco_independente_de_governos_2023_). Relação de Originais n. 4464.

 e também escrito pequeno artigo para a revista publicado pela mesma empresa de investimentos: 

1524. “O discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado”, publicado em formato editorial próprio na Revista Órbita (São Paulo: Rio Bravo Investimentos, 25/09/2023; link:https://www.riobravo.com.br/o-discurso-de-lula-na-78a-assembleia-geral-da-onu-entre-o-esperado-e-o-fabricado/ ; link da revista: https://www.riobravo.com.br/orbita/); republicado na versão original no blog Diplomatizzando(30/09/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/o-discurso-de-lula-na-78-assembleia.html). Relação de Originais n. 4481.

 

    tive a grata satisfação de receber, por gentileza de Gustavo Franco e do jornalista Fabio Cardoso, o livro que eu estava ansioso por adquirir, cuja capa figura acima.

    Trata-se de obra quase única no gênero – existem depoimentos de economistas organizados anteriormente por acadêmicos da área sobre a história econômica e as ações e pensamento dos grandes representantes da disciplina e de sua prática –, no sentido em que recolhe as entrevistas feitas com três dezenas de economistas e afins que tiveram papel destacado nas concepções, formulação de planos econômicos e condução da política econômica nas últimas décadas no Brasil.

    O sumário, em duas páginas, figura abaixo: 




    Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos principais economistas formuladores do Plano Real, escreveu uma apresentação, em folha separada, que acompanha o livro em questão, como reproduzido abaixo: 

    Este livro, que vou saborear com deleite e atenção – pois que durante muito tempo fui professor de relações econômicas internacionais em nível de pós-graduação, com ênfase justamente nas políticas econômicas do Brasil –, deu-me a ideia de organizar algo semelhante sobre a política externa e a diplomacia brasileira, uma área bem mais difícil de recolher depoimentos sinceros, dados os naturais constrangimentos que cercam os diplomatas profissionais (sobretudo os que ainda estão na ativa) em relação à política externa conduzida pelos últimos presidentes ainda vivos (praticamente todos, com exceção de Itamar Franco). 

    Em todo caso, recomendo vivamente a leitura destes depoimentos feitos à Casa das Garças, uma vez que eles constituem, praticamente, uma história econômica do Brasil desde a redemocratização (e em vários episódios remontando ao período da ditadura militar, e falta um depoimento de Delfim Netto, ainda vivo, de alguns dos grandes representantes daquela época, como Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos, Ernane Galveas e João Paulo dos Reis Velloso).

Agradeço a Gustavo Franco e ao jornalista Fabio Cardoso a remessa do livro.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 10 de setembro de 2023


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Videocast Rio Bravo - As Instituições Estão Funcionando? | Gustavo Franco

 https://www.youtube.com/watch?v=NAAwin94lxQ


domingo, 23 de maio de 2021

Das lições amargas de Gustavo Franco para um duro aprendizado - Paulo Roberto de Almeida

Lições Amargas é o titulo que o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco deu ao seu livro mais recente, e ele se aplica de forma absolutamente fiel aos tempos que estamos vivendo justamente agora, talvez o maior desafio já colocado à nação brasileira, à sua sociedade.

Não me refiro à pandemia, pois ela é um desafio colocado igualmente a todos os povos e nações, países desenvolvidos e em desenvolvimento. 

Eu me refiro ao desgoverno Bolsonaro, possivelmente o pior governo que jamais conheceu o Brasil desde 1549, isto é, desde que aqui desembarcou nas costas da Bahia D. Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil então português, ou seja, desde sempre.

Não me refiro tampouco à incompetência notória do capitão para qualquer coisa que se vincule a uma gestão minimamente eficiente da coisa pública, nem à sua ignorância abissal em relação às relações exteriores do Brasil, o que destruiu completamente a imagem internacional do país, trazendo imensos danos à credibilidade da nossa diplomacia.

Eu me refiro à sua perversidade inacreditável, seu lado macabro, capaz de produzir mortos em série, devido ao negacionismo renitente, seu mau exemplo repetido, que consiste em aglomerar o povo mais humilde em seguidos palanques eleitorais, sua insistência em recomendar tratamentos inadequados, sua sabotagem continuada na obtenção de vacinas, enfim, um comportamento que pode ser o de um dos cavaleiros do apocalipse, aquele que traz a morte consigo, pela expansão da doença de acarreta.

O desgoverno do capitão é a lição mais amarga que já nos foi dado contemplar na direção do país em qualquer época de nossa história. 

Não é possível que as pessoas bem intencionadas de 3 anos atrás não estejam contemplando com certa comiseração o espetáculo dantesco — desculpe Dante — que se nos oferece hoje por meio desse circuito oficial de contaminação induzida por um psicopata eleitoral, assistido em todo esse turismo de auto-propaganda por militares indiferentes à sorte da população. Não é possível que se continue a achar que tudo isso é normal e que deve assim continuar até o final de 2022. Não é possível que não se desperte para a boçalidade mortal do macabro personagem.

Não é possível que o Brasil continue a descer tão baixo na escala civilizatória, para as profundezas da indignidade e da ignomínia.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23/05/2021


sexta-feira, 21 de maio de 2021

“ Demos passos decisivos para o Brasil virar um pária econômico’, diz Gustavo Franco - O Globo

Gustavo Franco: entrevista


‘Demos passos decisivos para o Brasil virar um pária econômico’, diz Gustavo Franco

Ex-presidente do BC lança livro e diz que agenda liberal do governo “é um ornamento” e que mercado financeiro e parte do empresariado votam com o bolso

Cássia Almeida e Luciana Rodrigues

21/05/2021 - 04:30 / Atualizado em 21/05/2021 - 12:08

https://oglobo.globo.com/economia/demos-passos-decisivos-para-brasil-virar-um-paria-economico-diz-gustavo-franco-25027059


Ex-presidente do BC lança livro em que discorre sobre as dificuldades de fazer as reformas no Brasil e como o país ficou para trás em relação ao resto do mundo Foto: Ze Paulo Cardeal / .



 RIO — Em seu novo livro “Lições amargas”, que chega às livrarias dia 26, lançado pelo selo História Real da  Intrínseca, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco discorre sobre as dificuldades de fazer as reformas no Brasil e como o país ficou para trás em relação ao resto do mundo. Em entrevista, Franco afirma que o governo Bolsonaro nunca apresentou um projeto econômico, e o mercado financeiro e parte do empresariado que o apoiou “votam com o bolso”.

Para ele, a agenda liberal é “um ornamento” e o Brasil se tornou pária econômico, ao ignorar as relações internacionais e consensos, inclusive quanto ao meio ambiente. Ele diz que, se não surgir uma terceira via nas eleições, o voto nulo será essa via.


A pandemia exigiu esforço fiscal grande. No livro o senhor afirma que, historicamente, o debate no Brasil tem sido marcado por uma negação das restrições orçamentárias. Como lidar com essas restrições no pós-pandemia? 

É uma lição difícil daqui para frente, o reconhecimento da escassez, que não tem solução mágica. Não existe urgência que remova todas as restrições. Às vezes tem um pouco essa mitologia que você pode fabricar papel pintado sem limite, que você resolve qualquer problema, seja uma crise sanitária ou lutar uma guerra ou combater a pobreza, que é só uma questão de vontade política. Desculpa, não é.

E a pandemia foi uma fórmula cruel de restabelecer essa verdade. Não é que você tenha uma pandemia que ficam suspensas as preocupações com o meio ambiente, ou com a responsabilidade fiscal, ou com a democracia.

De algum jeito, esses valores permanentes da sociedade têm que ser preservados qualquer que seja a estratégia para combater uma urgência como a pandemia.  O desafio dos governantes é fazer escolhas inteligentes, e os governantes muito frequentemente perdem o desafio. Isso é o mapa de qualquer crise e a gente está vendo isso aqui no Brasil como em outros países.


O senhor costuma dizer que o brasileiro busca soluções mágicas para a economia. Avalia que a condução do Brasil na pandemia, do ponto de vista científico, também foi uma busca por solução mágica? 

É isso, sim, mas tem o mito da solução mágica. Pensa em termos do xamanismo e da dança da chuva. O xamã diz assim: ‘ah, faz aí a dança da chuva que você vai se curar da peste’. Metade das pessoas vai morrer de qualquer jeito e a metade vai ficar boa.

A metade que ficou boa pensa: poxa, eu fiquei boa porque eu fiz a dança da chuva. Eu fiz essa coisa, ou tomei cloroquina, fiquei bom. Opa! É uma vitória política do xamã. Não que esteja necessariamente desafiando a ciência ou não. A ciência entrou de gaiata na discussão. Estamos vendo o efeito que a mágica pode ter sobre a política. É disso que se trata, no meu modo ver, o assunto cloroquina. É xamanismo.


No livro, o senhor cita o episódio do Ceagesp (quando o presidente Jair Bolsonaro visitou o local e descartou a privatização do entreposto) como o fim simbólico da agenda liberal. O senhor acha que realmente havia uma agenda liberal? Ela foi sepultada? Ou há perspectiva de resgate ainda? 

Esse governo não teve nunca uma agenda sua, não foi eleito em razão de sua agenda econômica que foi sempre um ornamento da proposta eleitoral de Jair Bolsonaro e isso, claro, coloca um desafio para as empresas e todos que acreditam nas reformas econômicas e de orientação liberal em particular. Pelo seguinte, não é o governo dos nossos sonhos, longe disso, mas se não colaborar vai ser pior. Ou seja, os governos nunca são os ideais.

Você olha para Jair Bolsonaro e você olha para Dilma Rousseff não dava para ver nada muito organizado em matéria de agenda econômica, ao contrário. E aí vamos ver o que é possível fazer dentro de situações políticas que não são o ideal. Na verdade, isso é mais a regra do que uma exceção.

O episódio da Ceagesp é particularmente teatral, como uma fórmula de verificar a inconsistência e inaptidão do presidente para lidar com a complexidade dessas agendas liberais. 


O senhor afirmou que se não colaborar vai ser pior. Como fica então se o ministro Paulo Guedes sair?   

Só é possível conjecturar é claro, mas existe alguma coisa mais geral nessa situação, como o mito do Fausto. Tem uma relação fáustica entre o Paulo (Guedes) e o presidente.

É uma ilustração muito mais comum do que parece do relacionamento entre os economistas do governo e os presidentes da ocasião Geralmente, (os presidentes) ficam meios alheios, às vezes até meio hostis à pauta econômica, sempre politicamente penosas. Os presidentes nunca gostam dos temas de reformas econômicas porque você dispende uma energia política gigante. Essa situação do Paulo se observou no governo militar aqui no Brasil, onde economistas que a gente respeita muito hoje em dia, Mario Henrique Simonsen, Roberto Campos, foram ministros de governos militares e foram constantemente questionados pelos colegas: “como é que você pôde trabalhar com um governo que torturava”? Mais de uma vez eu ouvi desses economistas observações do tipo: “olha, seria pior se eu não tivesse lá”. É mais comum do que parece essa situação que a gente está vivendo agora.


É comum, mas o senhor acha eticamente justificável? 

É um assunto que depende da pessoa. E aí, uma coisa é o que você faria, outra coisa é, bom, vamos pedir para o Paulo (Guedes) sair porque não dá para trabalhar com esse presidente. Quem vai sentar no lugar dele? Vai ser o Salles (Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente), o Weintraub (Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação). Então, faça as contas. 


O senhor disse que ficou claro que a agenda liberal era um ornamento. Essa clareza se tinha antes da eleição? Houve uma adesão muito grande do mercado financeiro e de parte do empresariado à candidatura Bolsonaro em 2018. Passados dois anos e meio de governo e episódios como o senhor mencionou, da Ceagesp e a própria pandemia, esses atores ainda apoiam o governo? 

Esses atores, como você definiu, eles votam com o bolso. Não tem nenhuma lealdade a políticos A, B ou C, pode ser Bolsonaro, como pode ser Dilma. A questão é quem vai melhor conduzir as agendas econômicas de interesse dessas pessoas. E essa é a natureza da competição política que nós vamos ter na próxima eleição, como tivemos na anterior.

Na anterior, as ideias liberais tiveram muita importância na disputa, e há uma decepção evidente sobre a execução dessas ideias, que foi enfim, inferior ao que se esperava, e isso vai custar caro, eu creio, a esse presidente ao concorrer à reeleição. Esses atores econômicos vão aparecer no debate eleitoral trazendo seus pleitos de reformas, e os políticos terão que formular diretrizes e políticas para isso e vamos ver quem ganha. 


O senhor diz no livro que a polarização política multiplica a cretinice. A polarização permanece forte e com a entrada do presidente Lula na corrida eleitoral, isso se acirrou. Acho possível surgir um terceiro nome forte? Qual seria?   

Eu torço para que isso aconteça. Hoje não se vislumbra um nome forte. Há vários nomes capazes, a questão é se vão se tornar nomes eleitoralmente fortes e viáveis nos próximos meses. É impossível responder nesse momento. O que é muito claro é o desconforto com a polarização que vai viabilizar a terceira via qualquer que ela seja. A rejeição aos outros dois.  


Como vai ser sua participação na eleição no ano que vem? Na eleição passada, o senhor coordenou o programa econômico do Partido Novo. 

Continuo participando, agora escrevendo livros. Eu gosto do projeto do Novo. Ele agora é ator mais importante do que foi no passado. É uma bancada pequena, porém, competente e combativa. 


 Se não for viável uma terceira via e a eleição for polarizada de novo? De que lado o senhor fica? 

Será uma pena. Porque a terceira via não terá um nome, será o voto nulo. E aí vai ser uma vergonha se o voto nulo ganhar desses dois. Eu quero crer que isso não vai acontecer. 


O senhor votaria nulo? 

São três alternativas, o voto é secreto. 


A pressão internacional sobre o Brasil, principalmente em relação à questão ambiental, tem crescido. O senhor avalia que vai surtir efeito? 

Acho sim, mas quero voltar ao tema das melhores práticas, que invadiu a agenda reformista de tal maneira que padrões internacionais passam a ser importantes para tudo nas negociações internacionais. Outra coisa é o dinheiro de investidores, para usar um conceito bem orgânico ao mercado financeiro, comprometidos com as pautas ESG (ambientais, sociais e de governança).

Os fundos que investem nos países emergentes vão querer que certos princípios de investimento responsável, inclusive os de meio ambiente, sejam obedecidos. Está absolutamente correto, o dinheiro é deles. Se você se considera ofendido por uma intromissão estrangeira nas suas políticas ambientais, ok.

Está ofendido, continua isolado, eles investem em outro lugar. São US$ 103 trilhões de dinheiro que vão ser investidos no mundo conforme critérios ESG.  Estamos vendo, a partir do lado negativo infelizmente, o que é desobedecer a esses consensos e viver as consequências: as multinacionais vão embora, os investidores financeiros vão embora, muitos investimentos não acontecem. E o Brasil fica um pária econômico. 


O senhor acha que o Brasil já é um pária econômico? 

Demos passos decisivos nessa direção. Mas não é irreversível, felizmente. 


O senhor cita no livro o atraso do Brasil na abertura comercial e como isso fez o país estagnar frente a outros países. Como a pandemia afeta esse debate?  

A pandemia é talvez a primeira doença global que a gente tem desde que passamos a usar essa linguagem da globalização. Mais do que nunca, nós somos uma comunidade global, mais do que nunca o outro é importante.  Por que na economia vamos ter isolamento uns dos outros? Não há dúvida que a gente foi muito profundamente para o terreno do isolamento, o que torna a abertura no nosso caso a mãe de todas as reformas. 


O senhor acha inexorável partir para abertura comercial? 

Por que é inexorável? Para começar tem um dado do livro que chama a atenção, um terço do PIB brasileiro é produzido por empresas multinacionais. Já estamos abertos ao mundo, e esse um terço é onde a produtividade é maior, a propensão a exportar é maior. Por que a gente não faz aumentar esse Brasil globalizado?

As empresas globalizadas brasileiras que produzem um terço do PIB empregam menos de 3% da força de trabalho, portanto faz a conta aí do diferencial de produtividade de uma pessoa empregada no segmento internacionalizado do Brasil e no outro segmento isolado nacionalista autossuficiente. É um 7 a 1. Não há contra-argumento contra a ideia que a abertura vai ser bom para o Brasil.  


O senhor citou as multinacionais, mas várias deixaram o Brasil nos últimos meses. 

Estão saindo porque tem 40 anos que a gente não faz a abertura. A empresa que está aqui no Brasil não consegue se comunicar com suas cadeias de valor, com sua própria matriz.  Se não pode fazer isso em escala no Brasil, então é melhor ir para Argentina. É o que está acontecendo, é triste, mais uma lição difícil dos nossos erros dos últimos anos.


Na pandemia, vimos alguns exemplos de nacionalismo econômico. Coreia do Sul e EUA estão criando programas para serem autossuficientes na produção de chips, tivemos o protecionismo com insumos de vacinas. Como vê isso? 

Sim, o primeiro impacto da pandemia na política comercial tem sido ruim, mercantilismo de vacina, o pior deles, mas é onde você vê a tolice do isolamento econômico, a tolice do mercantilismo. O desafio, e por onde eu acho que vai caminhar, é a formação de acordos globais, nos quais os países concordam em não adotar certas condutas como no caso do meio ambiente. No caso sanitário, também.

Hoje, a agenda de reformas, inclusive, se converteu no mundo inteiro numa agenda de melhores práticas. E os tratados internacionais existem para isso e somos parte de um planeta. Pela importância que as pessoas dão ao meio ambiente, saúde, governança, social, qual o problema com as melhores práticas? Nenhum.

Fazer parte do planeta, assinar os tratados, parecia que seria uma tendência desse governo quando, para minha surpresa e de muitos, o Brasil anunciou que ia pleitear ser membro da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 37 países desenvolvidos), que é uma fórmula diferente de não apenas organizar sua agenda de reformas, como se reinserir no mundo. A OCDE não é um tratado internacional. É algo como 200, 300 tratados internacionais diferentes.

O Brasil já aderiu a mais da metade desses tratados sobre corrupção, meio ambiente, regras contábeis, lavagem de dinheiro. E assim, a gente vai adotando restrições autoimpostas a condutas idiotas.  Aqui, eu achei que ia, mas não foi. De repente, essa postura ficou inconsistente com a política externa do governo Bolsonaro, com as suas idiossincrasias que vimos ontem (terça-feira) na CPI um ministro (Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores) que briga com todo mundo.