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quinta-feira, 25 de abril de 2024

O PLANO REAL na PUC: debate com Rogério Werneck, André Lara Resende, Edmar Bacha, Francisco Lopes, Gustavo Franco, Pedro Malan, Persio Arida e Winston Fritsch

Imperdível!

O PLANO REAL na PUC

 https://www.youtube.com/watch?v=ofbOOGSoQbc

3.303 visualizações  22 de abr. de 2024  RIO DE JANEIRO


quinta-feira, 30 de março de 2023

André Lara Resende: entrevista a Miriam Leitão

Muito bem argumentado, mas sem comprovação empirica para vários dos seus argumentos, que refletem mais crenças pessoais ou preferências teóricas do que a experiência concreta de paises como o Brasil, que não dispõem dos requerimentos necessários à tal de Teoria Monetária Moderna. Paulo Roberto de Almeida 

Transcrição da entrevista de André Lara de Rezende para Miriam Leitão, em 29/03/2023, na GloboNews: 

O economista André Lara Resende foi um dos formuladores da ideia original que levou ao Plano Real. Ocupou diversos cargos públicos, e tem se destacado nos últimos anos por contestar as ideias mais repetidas pelos economistas, principalmente do mercado financeiro sobre déficit público e juros. Fiz uma longa entrevista com ele na Globonews. Aqui vai a íntegra.

Míriam: O que se diz tradicionalmente é que a dívida do Brasil, a dívida pública é alta demais. Que 73% do PIB agora e que portanto é preciso ter superávit primário ou superávit para reduzir essa dívida. Qual é o tamanho da dívida brasileira?  

André: Vamos então uma forma mais simples possível tentar entender essa questão da dívida pública. A dívida pública brasileira, como proporção do PIB, fechou o ano passado em 73%. Primeiro de tudo, é preciso entender que é uma dívida interna. Não é uma dívida externa. Pessoas têm uma referência sempre de que dívida pública é uma dívida externa, é detida por estrangeiros e muitas vezes em moeda estrangeira. A dívida detida por estrangeiros precisa ser paga a estrangeiros. Isto é um problema sério, primeiro porque se os estrangeiros resolverem parar de financiar, você tem uma parada repentina. Segundo, você para pagar o serviço dessa dívida, os juros e as amortizações, você precisa criar um superávit, ou seja, criar poupança, produzir mais do que você consome e investe, para transferir para o exterior em pagamento da dívida. Isso foi o que foi analisado por Keynes no que ele chama de problema da transferência. Ele estava especialmente interessado em analisar as implicações disso depois do acordo de Versalhes da Primeira Guerra Mundial, que obrigou a Alemanha a fazer transferências extraordinárias para os países vencedores da Primeira Guerra e isso teve efeito profundamente depressivo na Alemanha. Essa visão de que você tem uma dívida, você precisa pagar transferindo recursos para o exterior, é trazida equivocadamente para a noção de uma dívida interna.

Míriam: A dívida brasileira é principalmente junto aos brasileiros. Os brasileiros que detêm essa dívida. Mas no seminário do BNDES, você falou num número muito menor. Que é uma dívida de 45% e alguns falaram de 56%. São números diferentes.

André: Depende da definição que você está usando. Essa é a dívida pública mobiliária do governo geral. Esse é o nome oficial desta dívida. Esta dívida fechou em 73% do PIB no ano passado é a dívida bruta. Por que bruta? Qual é a diferença? Isso é tudo que o Tesouro emitiu de dívida, e está sendo carregada pela sociedade brasileira. Ele emitiu pra que? O Brasil tem hoje quase 20%, um pouco menos, de reservas internacionais, ou seja, ele vendeu mais do que importou e isso criou reservas, o que é uma extraordinária segurança pro Brasil. Nós não tínhamos no século passado, por isso que ele teve crise externa, crise de dívidas externas no passado. Quando eu fui negociador era da dívida externa, estava negociando com os credores externos. Hoje, o Brasil é superavitário e tem 17%,18% do PIB em reservas internacionais. Ou seja, ele emitiu dívida pública interna para comprar, no Banco Central, reservas internacionais. É óbvio que essas reservas internacionais têm que ser deduzidas. É algo que o país tem de um ativo que tem que ser deduzido do passivo, que é a dívida que ele emitiu. Se você pegar 73% e deduzir os 20% dá 53% Então a dívida líquida das reservas internacionais já é 55% do PIB. Como é que eu cheguei a um número lá de 45%? Ninguém presta  atenção nisso, mas o Tesouro tem uma conta única do Tesouro no Banco Central e essa conta no final do ano passado estava com quase 10% do PIB em moeda. É um ativo do Tesouro. O Tesouro emitiu a dívida estava com moeda. Os dois, moeda e dívida, são passivos do Tesouro. Então ele só fez uma troca: ele disse  emiti mais de dívida e retirei da moeda que está na minha conta no Banco Central. Isso também tem que ser deduzido para a dívida líquida líquida das reservas internacionais e das reservas em reais do Tesouro no Banco Central. E isso nós chegamos ao número de 45% do PIB.

Míriam: Por que eu comecei desse ponto. Porque o que muitos dizem é que essa dívida é grande e crescente, tem projeções de crescimento da dívida. Aí você fala: "não, essa dívida não é deste tamanho, é menor". Então, o problema fica muito menor. Mas você contesta vários outros pontos do que se diz tradicionalmente, do que os economistas do mercado financeiro e da academia dizem. O argumento de que o Brasil tem que ter equilíbrio nas contas públicas, você chega a chamar de superstição.

André: Não fui eu. Foi Paul Samuelson, economista americano que ganhou o Prêmio Nobel e possivelmente o mais importante economista neoclássico do século passado que mais influenciou os economistas.

Míriam: Você acha que o Brasil não deveria buscar equilíbrio entre receitas e despesas?

André: Dependendo da definição, a dívida pública é 45% do PIB. É alto? Não. Depende, é relativo. Tem países com dívidas, ao longo da história, há dívidas perto de 200% do PIB, como o Japão.

Míriam: O Japão tem uma alta taxa de poupança.

André: Isso não faz diferença. EUA têm mais de 100% do PIB, Itália 100%. No caso da dívida brasileira, ela é 93% detida por residente brasileiros e é integralmente emitida em real. Se o Brasil tivesse dívida em dólar seria um problema.

Míriam: Você quer dizer o seguinte: a dívida é um passivo do governo, mas é um ativo da sociedade. A sociedade detém essa riqueza e a sociedade acredita no governo e compra esses títulos e investe suas economias nesses papéis. E se ele tiver dúvidas em relação à capacidade de pagamento do governo?

André: Você foi ao ponto crucial. A dívida pública interna de um país que emite sua própria moeda. Não é o caso dos países europeus que têm dívida em moeda única, emitida pelo Banco Central europeu. São como se fossem os estados. O governo federal sempre poderá pagar sua dívida, dívida e moeda são ambos passivos do governo. Moeda é passivo do Tesouro que não paga juros e que não tem data de vencimento de resgate. Dívida tem prazo de resgate, mas vimos nos últimos anos alguns países com taxa de juros quase a zero. Então dívida e moeda não faz diferença, ambos são passivos do estado, e não faz diferença nenhuma. No século 19, a moeda é líquida e a dívida não é. Em economias com sistema financeiro sofisticado e líquido como é hoje, a dívida pública toda é líquida. Você compra e vende em um segundo. A moeda é simplesmente uma unidade de conta. É aceito porque a sociedade confia neste governo, neste estado organizado e legítimo. O que provoca a desconfiança da moeda não é uma questão econômica, não é uma relação de dívida/PIB, se o governo vai poder pagar ou não. Como incorretamente se fala muitas vezes. Isso é analogia de passado quando o governo para emitir sua dívida precisava ter lastro metálico. Hoje quando você tem uma moeda fiduciária, o governo pode sempre pagar, e ele é toda líquida. Então essa é uma economia de puro crédito. O que garante é a confiança no estado organizado. O que produz a hiperinflação, desorganização, é a desconfiança na desorganização do estado.

Míriam: Então você acha que a dívida por crescer, que o governo pode gastar ainda mais em momentos de dificuldade?

André: Depende. O fato de o governo não ter restrição necessariamente que o restrinja de gastar, ele tem obrigação de gastar bem. Tanto no custo de operação de estado, que deve ser o menor possível, o estado deve ser eficiente. E nas suas transferências - transferindo renda para pessoas mais pobres - é bom que estes gastos sejam cobertos por receitas tributárias, por impostos. Isto é uma forma de impor ao governo uma disciplina. As pessoas pagam impostos e dizem: quero ver se meu imposto está sendo bem usado. Os gastos de investimento, não necessariamente. Desde que o estado invista bem, que a taxa de retorno de investimentos seja maior do que o custo de financiamento do governo, que isso se justifica. Se o governo gastar mal, não importa o que chame, isso não é justificado. Como com gastos demagógicos, eleitoreiros.

Míriam: Acabamos de ver isso no final do governo passado. Gastos eleitoreiros e comprimiu as despesas que precisavam ser feitas e reduziu despesas que precisam ser gastas.

André: Exatamente. Uma das preocupações é que o governo abuse do poder que tem. O governo com moeda fiduciário tem a possibilidade de criar poder aquisitivo do nada. O que se chama de credor primário da economia. Como tem a capacidade de cobrar impostos, as pessoas aceitam o passivo do governo.

Míriam: Pode emitir mais moeda. E esta emissão não vai provocar hiperinflação como sempre se temeu?

André: Que emissão de moeda não provoca inflação a gente sabe há muitos anos, embora seja uma visão dominante no século 20. E a maior prova disso foi a reação dos BCs dos países desenvolvidos depois da crise de 2007 e 2008, a grande crise financeira. A base monetária americana foi multiplicada por 10. E o que aconteceu? De 2007 até 2020, a inflação estava abaixo das metas, o risco era de deflação. Se precisássemos de um experimento de laboratório para “desprovar” o que se chama de teoria quantitativa de moeda, que Milton Friedman defendia e pôs na cabeça de muita gente, o que houve agora provaria que inflação não tem nada a ver com emissão de moeda. Inflação alta exige emissão alta. O sentido da causalidade é outra. Inflação alta tem outros motivos. Hiperinflação, a desorganização completa, é a absoluta falta de confiança no estado legitimamente constituído. Hiperinflação é o sintoma claro do que o inglês chama de failed states, estados falidos. Quando desorganiza o poder central e o poder se fragmenta. É como o feudalismo, grandes guerrilhas que se organizam com base na violência e acordos mútuos de proteção. Como acontece quando você tem as milícias no Rio de Janeiro. Onde o poder central se desorganiza.

Míriam: Você acha que o Banco Central está errando e acha que a taxa de juros poderia ser mais baixa. Para quanto pode ser essa redução?

André: Existem vários conceitos de taxa de juros. A Selic é a taxa básica, fixada pelo BC. É o instrumento de política dos bancos centrais no mundo todo. É a taxa cobrada sobre reservas no banco central. Reservas bancárias. A taxa básica acaba definindo toda a estrutura de taxas da economia. O banco central é um instrumento. Ele determina a taxa com base na avaliação do que a economia está superaquecida ou desaquecida. Se a economia está desaquecida, com capacidade ociosa, alto desemprego, deve reduzir esta taxa, reduzir o custo de crédito. Se está superaquecida, em princípio, sobe a taxa de juros, que desaquece a economia. Esta é a lógica e isso ninguém discute. A taxa de juros provoca desaquecimento da economia quanto é elevado e pode provocar expansão da economia quando ela cai. Como demonstrou este período de 2008 até recentemente com taxa de juros perto de zero não foram capazes de reaquecer grande parte da economia. Mas ela ajuda. O que reaquece a economia são investimentos.

Míriam: Mas o BC diz que precisa manter taxa de juros alta, apesar de a economia estar desacelerando, porque a meta de inflação que eu tenho que cumprir é de 3,25% e eu não vou conseguir chegar nisso porque as projeções são em torno de 6%. Mesmo assim, você acha que tem que baixar a taxa de juros. Por que?

André: Sim. A relação entre aquecimento e desaquecimento da economia e inflação é altamente questionável. Uma economia superaquecida, que está pressionando sua capacidade instalada e com emprego batendo no limite de força de trabalho é uma economia que pode provocar pressão de preços inflacionários. O que é chamado tradicionalmente de inflação de demanda. Impressionante como isso tenha sido esquecido. Inflação é um sintoma de questões que podem vir de várias formas. Como é a recente, a inflação atual no mundo todo é por choques negativos de oferta. Saiu da pandemia, a cadeia produtiva que era globalizada se desorganizou. A oferta não estava conseguindo acompanhar a demanda e houve uma pressão de preços. Sobre isso se sobrepôs um choque de preço de energia e de alimentos por causa da guerra da Ucrânia. Com isso, dois choques negativos. Essa inflação não tem nada de demanda, é de desorganização da oferta. Na história latinoamericana, o pensamento chamava isso de inflação estrutural, quando força o desenvolvimento, cria-se gargalos na oferta. Como se combate uma inflação assim, causado por desorganização na oferta? Não é contraindo a demanda. O que precisa é restabelecer a oferta.

Míriam: Então você está dizendo que o Banco Central está com um diagnóstico errado, acha que tem uma inflação de demanda, e a inflação é de desorganização de oferta. Diante disso, o que é melhor fazer com a taxa de juros?

André: A inflação certamente não é de demanda no Brasil. Nos Estados Unidos é diferente. Houve no pós- covid programas de distribuir dinheiro. Pode ter provocado algum aquecimento de demanda. Ter um componente de demanda. Ainda assim, a inflação americana está mais alta que a taxa de juros. A inflação americana está em 7%, e os juros estão indo agora de 4,5% para 5%. Os Estados Unidos continuam com a taxa de juros negativa. O Brasil está subindo a taxa de juros desde o início de 2021, de 2% está em 13,75%, cresceu onze pontos de percentagem num espaço de dois anos. Começou mais cedo e foi a que mais subiu a taxa de juros. A taxa de inflação brasileira está em 5,6% e a taxa básica de juros está em 13,75%. A real, descontada a inflação, é 8%. Enquanto em quase todos os países do mundo a taxa de juros é negativa, mesmo aqueles que estão mais altas que no Brasil. Como que se justifica isso? A Revista "The Economist", não é exatamente uma revista revolucionária de esquerda. Na edição de outubro do ano passado, fez uma matéria, “The hike Land”, a turma dos países que subiu a taxa de juros mais cedo e mais rápida, encabeçado pelo Brasil, e mostra que nesses países houve um desaquecimento da economia muito mais rápido, provocando desemprego, mas a taxa de inflação deles não se reduziu mais. É inequívoco que taxa de juros alta comprime, espreme a economia, provocando desemprego e recessão, mas isso não significa necessariamente capacidade de reduzir a inflação. Muito pelo contrário, pode, inclusive se a inflação for de oferta, você pode agravar o problema de insuficiência de oferta e agravar a inflação. A taxa de juros é uma excrescência no mundo, é a mais alta do mundo, a taxa real é o dobro da segunda mais alta, que é a do México e do Chile, e não faz o menor sentido, é completamente estapafúrdia.

Míriam: O Banco Central diz que não fixa a taxa de juros, mas apenas a taxa básica, porque a curva de juros futuras, que é o custo do Tesouro, quem fixa é o mercado com as suas expectativas. Você vê tudo pelo inverso. Acha que o Banco Central influencia inclusive essa taxa longa e quando ele sobe a taxa de juros, ele afeta as expectativas. É isso?

André: Quase. Vamos falar primeiro de inflação. O argumento é inegável. O BC controla a taxa básica, mas a estrutura a termo da taxa de juros, para os diferentes prazos da dívida pública, que o mercado financeiro chama “a curva” ela é fixada pelas expectativas do mercado. Como o mercado precifica um título de dez anos? É se perguntando quando vai me custar carregar por um dia até lá. É a percepção do mercado de quanto vai ser a trajetória da taxa básica. Sobre isso ele põe um prêmio de incerteza. Mas ao fixar a taxa básica o Banco Central mexe com toda a estrutura a termo. É verdade que se ele baixar a taxa básica, e o mercado considerar que ele não vai conseguir manter essa taxa básica, o curto prazo cai, mas o longo a taxa pode não cair ou até subir. Mas num artigo que escrevi recentemente que mostra que o custo de emissão do Tesouro é altamente correlacionada com a taxa básica. Ou seja, quem determina todo o custo do serviço da dívida inteira.

Miriam: Houve um episódio em que o BC reduziu a taxa de juros, e todo mundo entendeu como indevido, porque a inflação estava subindo. Na época de Alexandre Tombini ( presidente do BC), mas você mostra que ele reduziu os juros e a curva também acompanhou a queda. Você acha que nesse momento, reduzir os juros ajudaria retomar o crescimento?

André: Inegavelmente. Obviamente. Sim. Ao baixar a taxa de juros como está agora, a taxa básica a 8% real, uma empresa de primeiríssima linha não está pagando menos de 18% a 20% ao ano. Evidentemente isso é um custo proibitivo. Toda empresa que estiver endividada, mesmo que seja no capital de giro, corre o risco de se tornar inviável. Temos inúmeros casos de insolvência. É claro que isso está provocando uma recessão muito séria e ameaçando uma quebra de empresa em todos os setores. A indústria é um setor que foi profundamente punido por impostos e com juros como esse se torna inviável. E o varejo que ia bem, também. É dramático. O que ainda vai bem é o agronegócio, porque ele é exportador, paga muito pouco imposto. Mas essa situação faz com que ele adicione pouco valor agregado. Ele sempre está exportando o produto primário. Não cria valor agregado aqui. Porque a estrutura tributária é perversa. Baixar a taxa de juros hoje seria fundamental. Não é condição suficiente para a recuperação da economia, mas é com toda a certeza condições necessárias.

Míriam: Você tem dito que a taxa de juros tem que ser abaixo da taxa de crescimento, como o Brasil está crescendo nada, o que seria a taxa de juros ideal? Juro zero?

André: Isso não existe, ao contrário dos economistas que citam a si mesmos e não estudam história, não existe uma teoria científica. Economia não é ciência exata. É uma ciência política. É uma forma de organizar mentalmente que te ajuda a se situar e que atitude tomar. Como toda a ciência social, depende das circunstâncias. Mas as circunstâncias mudam. Primeiro, a taxa de juros não tem que mudar tanto, isso produz muita perturbação, veja o que está acontecendo na economia mundial, em que os juros saíram de zero para perto de cinco e está provocando quebra de bancos. A taxa de juros deve ser hoje sempre que possível – deve estar a menos de condições excepcionais, acima da meta de inflação, e o teto deveria ser a taxa de crescimento potencial da economia. Não a taxa de crescimento que está ocorrendo. Por que? A taxa potencial é a taxa de retorno dos investimentos da economia. Se estiver acima é recessiva, se estiver abaixo é estimulante. Mas de preferência mexer o mínimo na taxa de juros.

Míriam: Eu disse no intervalo que você está falando o oposto que todo mundo está falando. E você me disse: todo mundo que você ouve. É isso?

André:  Exatamente. Essa visão fiscalista, da austeridade fiscal, neoliberal, em que o estado é um mal, e que basta amordaçar o estado.

Míriam: Eu não penso assim não, que o estado é um mal.

André: Essa visão dominante entre os economistas do mercado financeiro. Quem aparece na grande mídia são 99% os economistas que trabalham no mercado financeiro. Eles falam consigo mesmo. E eles aparecem na mídia. E a grande mídia está completamente dominada por essa percepção, essa visão de mundo.

Míriam: Então não é economia, é mercadismo?

André: É mercadismo. E nem o FMI acredita mais nisso. O Banco Mundial não acredita. Não é mais a visão hegemônica que foi até a crise de 2008.

Míriam: Você fez um seminário na semana passada que você organizou, mediou, trouxe o prêmio Nobel Joseph Stiglitz, o James Galbraith, Jeffrey Sachs. Eles criticaram muito a taxa de juros.  Stiglitz disse que a taxa de juros do Brasil é uma pena de morte. É grave assim?

André: É grave, gravíssimo. Todos os que vieram na semana passada disseram a mesma coisa.

Míriam: Mas não teve pluralismo. O Pedro Malan estava na audiência. Por que ele não estava entre os debatedores?

André: Porque ele não quis participar. Ele foi convidado permanentemente. E ele conversa comigo pelo menos uma vez, a gente tem um jantar que vai até às duas da manhã. Eu quase consegui trazer o Olivier Blanchard que foi economista- chefe do FMI.  

Míriam: E que também contesta essa tese convencional, como você diz?

André: O último livro dele que se chama “Política Fiscal com baixa taxa de juros”, diz que sustentabilidade de dívida pública é um conceito muito complicado e indefinido. Basicamente é o seguinte: a única coisa que se sabe é que a dívida/ PIB é o numerador é dívida e  o denominador é o PIB. O numerador cresce com o custo da dívida, que é a taxa de juros alta. Taxa de juros alto piora a relação dívida/ PIB. Crescimento aumenta o PIB, o numerador, portanto reduz a relação dívida/PIB. E o ponto fundamental é, se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento, a relação dívida/PIB vai cair. Se for o contrário vai subir. É simplesmente isso. Se tiver a taxa de juros mais alta que a taxa de crescimento, para que a dívida PIB não suba precisa de gerar um superávit primário para pagar o excesso de juros sobre o crescimento. Veja a distorção. É óbvio que o que precisa fazer é fazer a economia crescer e ter juros baixos. A lógica no Brasil está invertida: define-se que há um risco fiscal, ninguém sabe o que é risco fiscal.  

Míriam: O Brasil tem uma história ruim de gastos excessivos e de gasto errado. Quem vai cortar o gasto ruim?Não subsidie o carvão, mas faça bolsa família. Faça o Minha Casa Minha vida, mas não subsidie a empresa madura. Se não houver algum tipo de restrição, André?

André: Esse ponto é fundamental. O governo tem que gastar bem de forma eficiente. Gastar aumentando a produtividade da economia. Tem que ser eficiente na ação, não criar dificuldade para as pessoas e as empresas. Reduzir o custo de compliance que é infernal, gastar bem, investir no projeto definido de longo prazo. Tudo que não quer é que governo invista de forma desorganizada, eleitoreira, corporativista e demagógica. Mas isso é questão de educação política e cívica. Isso  não se faz estrangulando a capacidade do governo de investir. Faz tendo um governo competente. Se acredita que o governo não tem solução, que o estado é demagogo. Assim não vamos resolver. Não é estrangulando o estado que nós vamos resolver, é tornando o estado eficiente. Um estado competente é capaz de programar a longo prazo em educação, saúde e educação, que investe em ciência e tecnologia. É um estado empreendedor, não é o estado empresário. O estado tem funções mais importantes que dirigir empresas, por isso a ideia de privatização faz todo sentido. Não existe mercado capitalista que não tenha sido legislado por um estado competente, organizado e com legitimidade.

Míriam: O PT tem histórico de um gasto excessivo e produziu um período muito ruim de inflação e recessão no governo Dilma. Como deve conduzir esta nova oportunidade que a política está dando ao PT. E como deveria ser este novo arcabouço? O que ele deve mirar para que não se repitam os erros que o PT cometeu no passado?

André: Todos os governos têm sucessos e insucessos. Os governos do PT a partir de 2010 foram governos em que houve muitos erros. Não precisa insistir sobre isso. Mas evidentemente não foi o único governo que teve erros. Os governos militares tiveram sucesso em algumas coisas e erros em outras, depois da redemocratização igualmente. Não acho que o governo Bolsonaro foi todo errado, mas fez muita coisa errada, ainda mais nesta dimensão de gasto público. Estamos numa situação muito complicada. Os investimentos públicos estão sendo completamente estrangulados. Foi bem intencionada a ideia de fazer o teto de gastos no governo Temer, limitou os gastos. Só que os gastos correntes obrigatórios continuaram crescendo. E os gastos discricionários, onde estão os investimentos públicos, foram comprimidos. A taxa de investimento público foi comprimida a menos de 2% do PIB, o que é insuficiente para repor a depreciação. Claramente, o país estava parando por conta do teto. É preciso de um regime fiscal que defina essas prioridades da sociedade democraticamente constituída. Portanto o regime fiscal é indissociável da organização jurídica institucional  e democrática do país. O orçamento é a expressão das opções da sociedade em termos de política pública. Deve ser uma definição do arcabouço jurídico constitucional com as prioridades definidas pelo executivo e legislativo. O custo de oportunidade não é o financeiro que determina isso, é a capacidade de pensar o que fazer, e de fazer. Como se resolve o problema da educação do Brasil? Dinheiro não é a condição necessária nem suficiente. Jogar o dinheiro numa área não quer dizer que vai ser suficiente.

Míriam: E o que você achou da ata do Copom com recados ao BNDES sobre a taxa de juros subsidiada?

André:  Achei uma expressão impressionante da arrogância do BC de extrapolar sua competência, suas atribuições jurídicas. Por lei, autonomia operacional para garantir a estabilidade de preço e sustentabilidade do sistema financeiro e o pleno emprego. Mas o BC não tem o que dizer sobre questão fiscal, não é atribuição do Banco Central. O BC está se arvorando com uma equipe de jovens tecnocratas que acreditam piamente nos modelinhos equivocados que eles estão olhando e se acham no direito de passar pito no  Congresso, o presidente eleito e o Judiciário. O BC, com a autonomia que lhe foi concedida, passou a se considerar um quarto poder. É um quarto poder que dá lições de moral e se considera acima dos demais poderes. É muito preocupante.

sexta-feira, 8 de março de 2019

A crise na (e da) macroeconomia - Andre Lara Resende

André Lara Resende escreve sobre a crise da macroeconomia

Por André Lara Resende | Para o Valor, 7/03/2019
A crise da macroeconomia

A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.
A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
Em artigo recente, "Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência", que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças (http://iepecdg.com.br/wp-content/uploads/2019/02/Consensoecontrasenso.docx...pdf), procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.
Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.
Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro "Juros, Moeda e Ortodoxia", de 2017.
Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.
O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.
O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados "agregados monetários", mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.
O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário - aquele que exclui os juros da dívida - for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.
Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.
Novas ideias, antigas raízes
Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro "The State Theory of Money". Ficou conhecida como "cartalismo" e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.
Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio "Functional Finance and the Federal Debt", Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.
A primeira prescrição de Lerner, a sua "primeira lei das finanças funcionais", é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda "lei das finanças funcionais", é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.
Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.
Já o fato de que o governo - que emite a sua própria moeda - não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.
Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.
A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, "O Valor da Ciência", o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.
Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.
É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo "o seu, o meu, o nosso dinheiro", para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.
Uma armadilha brasileira
Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.
O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.
A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.
Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.
Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.
Reformas voltadas para o futuro
Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das "reformas" deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.
A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.
Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.
Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.
Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de "Juros, Moeda e Ortodoxia", sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.
André Lara Resende é economista

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Brasil: problemas macroeconomicos e descentralizacao federal - Andre Lara Resende

Acredito que se trata de uma excelente análise dos problemas atuais (e permanentes) da economia brasileira, embora eu tenda a insistir mais em aspectos de políticas econômicas erradas da última década, do que em problemas históricos do capitalismo brasileiro. O patrimonialismo é certamente uma tradição brasileira, desde sempre, mas ele não explica as dificuldades presentes e a letargia no crescimento. Ele apenas explica o grau anormalmente alto de corrupção, de comportamentos rentistas, da roubalheira que caracteriza o Estado brasileiro, dominado por elites predatórias e autistas. Acho que os problemas mais graves estão acontecendo agora, desde que os companheiros assumiram o poder, e começaram a inverter as reformas e as políticas do governo anterior. Não concordo tampouco com o autor em que um novo federalismo, baseado na descentralização, poderá corrigir alguns desses problemas. Como na República Velha, a descentralização elevou ao extremo a irresponsabilidade da classe política, assim como acredito, por exemplo, que o parlamentarismo (e eu sou a favor, em princípio), representaria, no curto e médio prazo, uma exacerbação das piores deformações da política brasileira, com os partidos de ladrões e totalitários dominando os esquemas da governança, para pior.

Enfim, sou pessimista, isso sim, pois não acredito numa correção de nossos problemas mais graves sem uma crise grave, de caráter econômico e político. Sempre é preciso sofrer para empreender grandes reformas.
Paulo Roberto de Almeida  

Capitalismo de Estado patrimonialista

No lugar de insistir numa reforma de cima para baixo, governo deveria voltar à federação, dar autonomia aos Estados e aos municípios em todas suas esferas

O Estado de S.Paulo, 22 de dezembro de 2013 | 2h 04

André Lara Resende
O sentimento em relação ao Brasil no exterior mudou em 2013. O otimismo no País já vinha em queda há algum tempo, mas a percepção externa parece ter finalmente alcançado - e até mesmo ultrapassado - o recente desalento doméstico. A evidente deterioração da situação fiscal brasileira - apesar do uso de todo tipo de manobras contábeis para impedir que a extensão da piora fique clara - é o fator mais preocupante para analistas e investidores estrangeiros. A queda do superávit primário se refletiu num aumento do prêmio de risco, medido pelo seguro financeiro contra a probabilidade de calote - os chamados CDS - da dívida brasileira.
A alta do prêmio de risco, se entendido como a probabilidade de o país vir a ter problema de solvência com sua dívida pública, como ocorreu no passado recente, parece-me despropositado. A dívida em moeda estrangeira, especialmente a dívida pública, é pequena, não passa de 5% do PIB. Mesmo a dívida bruta total, que os truques contábeis têm menos capacidade de maquiar, está entorno de 60% do PIB. É alta, mas está longe de ser preocupante. O prêmio de risco reflete um desconforto mais difuso sobre o futuro do país. Os problemas são muitos, a grande maioria deles não é nova, mas há uma dimensão especialmente grave no atual quadro brasileiro: um Estado despreparado, patrimonialista, com objetivos próprios, dissociados da sociedade.
Desde a estabilidade monetária, o país vinha fazendo avanços sistemáticos na ordenação das finanças públicas. A carga fiscal passou de 25% para 36% do PIB e a dívida pública estava em queda. O processo foi revertido a partir de 2008. É preocupante, mas o problema do Estado brasileiro, hoje, não é de solvência, nem de descontrole macroeconômico, que poderia ser revertido, mas o fato de atuar contra a sociedade, a favor de seus interesses próprios. O custo do Estado está hoje perto de 40% da renda anual, equivalente aos mais altos do mundo, mas seu desempenho é abaixo da crítica.
O papel do Estado sempre foi um tema polêmico. Durante o século 20, tomou contornos ideológicos tão demarcados que praticamente inviabilizou o debate sereno e reacional. Parece inevitável que sociedades maiores e mais complexas sejam mais difíceis de ser administradas, exijam mais das empresas, das instituições e também do Estado. Há uma inexorável correlação entre tamanho e complexidades em toda empreitada humana. O mundo está superpovoado e definitivamente interligado pelo avanço das comunicações e da informática. A questão da escala e da complexidade está em toda parte, mas é ainda mais grave onde é menos reconhecido: na esfera da vida pública. As sociedades modernas se sofisticaram, tornaram-se mais complexas. O Estado foi obrigado a crescer para atender às suas novas funções.
Em livro de 2011, Vito Tanzii faz uma isenta e ponderada análise do inexorável avanço do Estado sobre todas as esferas da vida. O peso do Estado cresceu sistematicamente em toda parte do mundo. A proporção da renda extraída da sociedade pelo Estado, que era geralmente inferior a 10% no início do século 20, dobrou lá pela metade do século, até atingir mais de 40%, neste início de século 21. O avanço foi sistemático, sobretudo a partir da década de 30.
Quando se exige mais do Estado, é razoável que o seu custo suba, mas espera-se que haja alguma correlação entre o custo e o serviço prestado, entre o custo e a qualidade do Estado. Não foi o que ocorreu no Brasil. Ao contrário, a rápida elevação recente da fatia da renda extraída da sociedade não foi acompanhada pelo investimento em infraestrutura. Houve séria deterioração da segurança pública e um dramático aumento da criminalidade. Não houve melhora digna de nota nem na educação, nem na saúde. O saneamento e o transporte público continuam abaixo da crítica.
Notícias recentes indicam que mais de 20% das pessoas - até 50% em alguns Estados - dizem terem sido vítimas de assaltos nos últimos doze meses. O nível de compreensão da língua e da matemática dos alunos brasileiros, segundo resultados recém-divulgados do PISA, exame de avaliação internacional de estudantes conduzido pela OCDE, é deplorável. O Brasil continua entre os últimos colocados, junto com a Albânia, a Tunísia e a Jordânia, muito abaixo do Chile e do México.
O World Economic Forum publica anualmente um índice global de competitividade. O Brasil caiu para o 56.º lugar este ano. Ocupa o 80.º lugar em relação ao funcionamento das instituições e a 124.ª posição em relação à eficiência do governo. A educação está na 121.ª posição e a confiança nos políticos, na 136.ª. Os bolsões de excelência tecnológica e a qualidade do empresariado ocupam a 36.ª e a 39.ª posições. As estatísticas e os rankings apenas confirmam uma realidade perceptível a olho nu: o Estado brasileiro não está à altura do estágio de desenvolvimento do País.
A herança patrimonialista, misturada aos desafios de um país grande e desigual, a meio caminho para o mundo desenvolvido, criou um Estado caro, ineficiente e, sobretudo, disfuncional. Um Estado cujo único objetivo é viabilizar a expansão de seu poder e de suas áreas de influência. Um Estado que cria uma regulamentação kafkiana, com exigências burocráticas cartoriais absurdas, cujo resultado é aumentar custos, reduzir a produtividade e complicar todas as esferas da vida. O patrimonialismo do Estado brasileiro, sua incapacidade de respeitar os limites e os deveres em relação à sociedade, tem longa tradição, mas toma novos contornos com a sofisticação da economia, com a chegada do País à sociedade do espetáculo e à democracia de massas. O uso e o abuso das técnicas publicitárias, a criação de dificuldades de toda ordem para a venda de facilidades, a simbiose com cultura dos direitos especiais adquiridos e a aliança com grupos econômicos selecionados são a nova face do velho patrimonialismo.
Crítica. Diante da polarização do debate, a crítica ao patrimonialismo do Estado tende a ser desqualificada como uma reação conservadora aos avanços da cidadania. Cada uma das dimensões do progresso da cidadania - a civil, a política e a social - enfrentou, a seu tempo, fortes reações ideológicas. O século 18 foi palco da luta pela cidadania civil, pelos direitos de opinião, de expressão e à justiça. No século 19, avançaram os aspectos políticos da cidadania, o direito ao voto e de participação política. Finalmente, no século 20, sobretudo a partir da década de 30, houve o avanço da dimensão social, com a criação dos sistemas de assistência e previdência, de educação e de saúde pública, capazes de garantir um padrão de vida mínimo para o exercício das demais dimensões da cidadania.
Adotado depois da grande crise do capitalismo do início dos anos 30 do século 20, o Estado Assistencialista foi uma forma de aliviar as pressões sociais e o apelo do comunismo marxista, mas nunca deixou de enfrentar resistência. Resistência que encontrou na teoria econômica um poderoso aliado. A economia sempre teve um de seus pilares na tese de que os mercados competitivos tendem ao equilíbrio eficiente. O mercado competitivo é uma construção intelectual, uma referência importante para a alocação eficiente de recursos, mas a polarização ideológica levou a uma inferência indevida: a de que toda interferência governamental sobre o livre mercado seria contraproducente.
Com a vitória incontestável dos direitos sociais, a teoria econômica paga até hoje o preço político de ser percebida como intrinsecamente conservadora. Toda crítica à falta de critérios e à ineficiência do gasto público, sobretudo se embalado como gasto social, é tachada de reacionária e desconsiderada. No Brasil de hoje, o velho patrimonialismo do Estado se esconde por trás do assistencialismo. O patrimonialismo indefensável reveste-se de assistencialismo inatacável. Desde que sob o guarda-chuva de gasto social, toda sorte de abuso patrimonialista não admite questionamento.
A divisão do trabalho, o comércio internacional e os mercados são poderosos estímulos à criação de riqueza, mas dependem de leis, instituições e do Estado inteligentemente organizado. A complexidade do mundo contemporâneo exige do Estado ainda mais do que suas funções clássicas. As modernas sociedades democráticas requerem, necessariamente, algum tipo de assistencialismo distributivista, o que exige a coordenação do Estado. O desafio é ter um Estado competente, que contribua para uma sociedade melhor e cujos serviços justifiquem seu custo.
Um seminário recente, em Viena, em homenagem a Peter Drucker, reuniu expoentes da administração para discutir o tema da complexidade no mundo contemporâneo. Concordaram que a gestão dos negócios está mais complicada do que jamais foi e que a capacidade de lidar com a complexidade é prioridade na agenda dos empresários. Como em todas as outras esferas da vida contemporânea, os homens de negócios são confrontados com muito mais de tudo a todo tempo.
Duas linhas alternativas de interpretação se delinearam. A primeira é de que é preciso simplificar, concentrar em alguns poucos objetivos, dar às empresas um foco e uma direção para os que nela trabalham, ainda que por imposição, de cima para baixo. A segunda interpretação sustenta que a maior complexidade é apenas uma nova ordem, que exige a revisão do modo de se administrar. A revolução das comunicações e da informática tornou obsoleta a administração linear, de comando e controle, que deve ser substituída por uma nova, baseada em redes espontâneas de módulos autônomos. O mundo contemporâneo é não linear e as empresas, assim como as demais instituições, ainda não se adaptaram a essa não linearidade. O caminho a ser seguido é reconhecer a nova ordem e não insistir na tradicional gestão de comando e controle, pois é a imposição de um estilo anacrônico de gestão que é contraproducente na complexidade contemporânea.
As duas interpretações exprimem as alternativas para se lidar com a complexidade contemporânea, não apenas na vida empresarial, mas também na vida pública. A opção por simplificar, ainda que de cima para baixo, por concentrar em alguns objetivos claros e dar uma direção para o país, tem enorme apelo diante das dificuldades da democracia representativa. O encanto provocado pelo novo capitalismo de estado chinês é exemplo do apelo da simplificação autoritária. Como demonstrou a experiência soviética, é sempre possível acelerar o crescimento por meio da mobilização centralizada de poupança e do investimento estatal, com base em grandes planos, formulados a partir de um "projeto nacional" definido pelo Estado. A estratégia demonstrou ser bem-sucedida para as economias de baixa renda, onde as taxas de poupança e investimento são limitadas pelas necessidades básicas de consumo. Enquanto se percorre caminhos tecnológicos conhecidos, é possível acelerar autoritariamente o crescimento, mas quando a economia se aproxima da fronteira tecnológica, a estratégia do planejamento estatal deixa de obter resultados.
Tendo aprendido as lições do fracasso do planejamento central soviético, o capitalismo de estado chinês compreendeu que não poderia prescindir dos mercados. Usa as companhias estatais para garantir investimentos nos setores considerados estratégicos e utiliza empresas privadas escolhidas para dominar os mercados. Os resultados foram extraordinários, mas as tensões e desafios têm aumentado. Embora a China tenha dado sinais de que pode vir a aumentar o papel dos mercados, é pouco provável que a flexibilização mude a essência do modelo. Seu objetivo é manter o poder político concentrado na mão do Estado e a maximizar a probabilidade de perpetuação do governo.
Há uma diferença fundamental entre o Brasil e a China. A China tem uma tradição milenar de autoritarismo burocrático competente. O custo do Estado é menos de 30% renda e está em queda. Já a participação do Estado no investimento, na chamada formação bruta de capital fixo, é de 21% do PIB. Ou seja, só o investimento direto do Estado chinês é uma proporção maior da renda nacional do que todo o investimento brasileiro, público, privado e estrangeiro, que não chega a 19% do PIB. Na China, o Estado é competente, custa pouco e investe muito. No Brasil, o Estado é caro e incompetente, não investe, nem cumpre suas funções básicas.
É questionável se o investimento estatal direto ainda seria capaz de fazer a diferença e acelerar o crescimento no Brasil. O modelo foi adotado por aqui durante o regime militar. Depois de reformas modernizadoras, inteligentemente concebidas e adotadas com competência, as taxas de crescimento atingiram níveis de até dois dígitos, durante o chamado "milagre econômico", da primeira metade da década de 70. O seu esgotamento, a partir da década de 80, deixou um triste legado: o Estado deficitário e endividado, as empresas estatais esclerosadas e duas décadas de estagnação sob o signo da inflação crônica.
Modelo. Na última década, o Brasil se beneficiou do ganho nas relações de troca com o exterior. A alta dos preços dos produtos primários, provocada pela demanda da China, significou uma expressiva transferência de renda para o Brasil. Os governos do PT foram suficientemente inteligentes para manter as bases da política macroeconômica, mas passaram a desmontar as reformas que viabilizaram a estabilidade monetária. O processo se acelerou a partir da crise de 2008. Aparelharam o Estado, criaram novas estatais e elegeram parceiros privados incompetentes. Com a desculpa de praticar uma politica anticíclica, expandiram o gasto corrente do governo, mas não investiram em infraestrutura. O resultado é conhecido: baixa produtividade, uma economia que não cresce e contas públicas que se deterioram.
Não é possível saber se o capitalismo de estado chinês continuará bem-sucedido, mas uma coisa é certa: o capitalismo chinês requer um Estado competente e autoritário. No Brasil, não temos a requerida competência, nem desejamos - quero crer - o autoritarismo. Diante da complexidade do mundo contemporâneo, a tentação da solução autoritária estará sempre presente, mas o caminho mais promissor é o da alternativa delineada na conferência de Viena: não insistir na tradicional gestão centralizada, de comando e controle, mas avançar na descentralização. Um Estado autoritário e patrimonialista, sustentado pela demagogia, o marketing e a intimidação, onde apenas as aparências democráticas são respeitadas, é o caminho mais rápido para volta ao subdesenvolvimento. A fórmula, como demonstra sua aplicação na Argentina e em outros países vizinhos, é devastadora.
Não há como bem governar com o Estado disfuncional. A primeira tarefa de quem pretende fazer um bom governo será a de reconstruir o Estado. No lugar de insistir numa reforma de cima para baixo, de comando e controle, deveríamos experimentar a descentralização. Deveríamos voltar à federação, dar autonomia aos Estados e aos municípios em todas suas esferas, desde a fiscal, até a segurança, a saúde e a educação. Como escreveu Hirschman, no prefácio da edição alemã do seu Exit, Voice and Loyality: "Assim como os economistas, com a ênfase nas virtudes da competição (i.e. da 'saída'), não deram atenção à contribuição da 'voz', os cientistas políticos, com seu interesse na participação política e no protesto, negligenciaram o possível papel da 'saída' na análise do comportamento político." Tenho a impressão de que mais possibilidade da opção de "saída" em relação à "voz", isto é, de ter a opção de se mudar ao invés de protestar, é mais importante do que nunca, num mundo complexo e interligado.
Os mercados não são milagrosos, mas um pouco de competição no sistema político, sob o guarda-chuva de uma verdadeira federação, pode ser a única forma de viabilizar a complexidade contemporânea com a democracia e a existência de Estados eficientes e com mais respeito pelos contribuintes.
ECONOMISTA E EX-PRESIDENTE DO BNDES