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sábado, 30 de dezembro de 2023

Síndromes diplomáticas no Cone Sul - Paulo Roberto de Almeida

Síndromes diplomáticas no Cone Sul

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre as inclinações ideológicas das diplomacias do Brasil e da Argentina.

 

A política externa do peronismo era em grande medida ideológica. Mas a de Milei é muito mais, excessivamente ideológica, apesar de uma sensata chanceler. 

A diplomacia petista também é tristemente ideológica, ao preferir alianças com ditaduras antiocidentais, nessa miopia da “nova ordem global”, ao ingresso na OCDE, cujos propósitos têm muito mais a ver com a nossa trajetória de desenvolvimento econômico e político: economia de mercado e democracia. 

Quando Brasil e Argentina vão deixar essas errâncias ideológicas de lado e passar a ter diplomacias normalmente pragmáticas e universalistas na política externa? Parece que não é para já. 

O alinhamento de Milei aos EUA e Israel, suas críticas ao “comunismo” chinês, são novamente ridículos, como eram as antigas “relações carnais” com os EUA.

A simpatia de Lula por certas ditaduras na região e fora dela é mais do que ridícula, é totalmente contraproducente para a própria inserção global do Brasil e para sua participação equilibrada na agenda global. A visão de que duas grandes autocracias focadas num projeto antiocidental são aliadas naturais de um mirífico “Sul Global” não é apenas equivocada; é também ridícula e contrária a nossos interesses.

Brasil e Argentina se perdem em pequenas confusões ideológicas, que são puramente retóricas. Até quando?

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4537, 30 dezembro 2023, 1 p.


 

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Bolsonarismo deformou as FFAA para a ilegalidade - Estadão

 Relatório aponta apagão da transparência nas Forças Armadas na gestão Bolsonaro

Estadão.com.br - Últimas Notícias | Política, 16/03/2023
BRASÍLIA - Documento produzido durante a transição e até agora mantido restrito responsabiliza as Forças Armadas por um apagão da transparência no governo federal. Foram mapeados casos de reiterado descumprimento da Lei de Acesso à Informação durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. De contratos a notas fiscais, passando por informações sobre a vida funcional de oficiais, os militares se negaram a tornar públicos documentos requeridos por cidadãos entre 2019 e 2022.

"Houve um significativo retrocesso no cumprimento da LAI pelas Forças Armadas durante o Governo Bolsonaro. Questões básicas como contratos, notas fiscais, relatórios de licitação são denegadas sob argumentos muito questionáveis, algumas vezes fundamentadas em portarias internas que não poderiam ou não deveriam se sobrepor à lei de acesso", diz o documento.

O relatório foi produzido pelo grupo técnico da Transparência, Integridade e Controle. O documento estava restrito até então, mas foi obtido pelo Estadão por meio da LAI. As críticas à atuação das Forças Armadas foram omitidas do relatório geral, único documento oficial divulgado pela equipe de transição em dezembro do ano passado. O texto relacionado à transparência não citava Exército, Marinha nem Aeronáutica. Relatava apenas, de uma forma genérica, que houve um "desmantelamento dos órgãos de controle e defesa do Estado".

Desde antes da posse, o governo petista tenta distensionar a relação com os militares. Lula já trocou o comandante do Exército e o ministro da Defesa, José Múcio, vem atuando para vencer resistências dentro da caserna em relação ao PT. Ao liberar o acesso ao relatório, a Controladoria Geral da União (CGU) fez uma ressalva que combina com movimento do governo de evitar novos atritos com os militares. A CGU informou que o documento não expressa necessariamente a opinião do órgão e "constitui-se como manifestação de natureza meramente opinativa, possuindo caráter de sugestão".

'Informações pessoais'

O grupo técnico da Transparência que produziu o documento foi chefiado pelo atual ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias. Também participaram da equipe o ex-ministro Eugênio Aragão e o ex-presidente da Comissão de Ética Pública (CEP) Mauro Menezes.
O relatório obtido pelo Estadão afirma que nos últimos anos foram colocados inúmeros obstáculos para se garantir a transparência e o acesso à informação. A equipe comandada por Messias diz ainda que as "autoridades burocráticas" do governo Bolsonaro atuaram às margens da lei e conseguiram "encurtar em muito o potencial da política de transparência pública". Especificamente sobre as Forças Armadas, aponta uma "forte tendência de sempre ou quase sempre se considerar 'pessoais' informações sobre integrantes do Exército que não seriam informações pessoais para servidores civis".

Como exemplos, o documento relata que o Exército negou acesso a notas fiscais de compras públicas, documentos de pregões eletrônicos, salários de servidores, lista de empresas que firmaram contratos com a Força, pareceres, notas técnicas, processos disciplinares e outros dados básicos. Em relação ao Comando da Aeronáutica, o grupo técnico critica a negativa de acesso à lista de passageiros e ao custo de voos oficiais. Por fim, relata que a Marinha mantém mais de 77 mil documentos em sigilo.

O diagnóstico traçado pelo governo de transição criticou também o sigilo de 100 anos inicialmente imposto ao processo administrativo do Exército contra o general Eduardo Pazuello, atual deputado federal, por ter participado de ato político ao lado do então presidente Jair Bolsonaro, em maio de 2021, no Rio de Janeiro. "O caso chamou atenção, pois, por se tratar de investigação concluída, não haveria justificativa para sigilo, sobretudo em razão de conter dados pessoais, e por um período tão extenso", diz o texto.

Durante a última campanha, o presidente Lula prometeu revogar o sigilo no caso Pazuello, o que foi feito no mês passado por decisão da Controladoria-Geral da União (CGU). Os documentos vieram a público mostrando que o então comandante do Exército, Paulo Sergio Nogueira, alegou que tinha sido avisado por telefone sobre a ida de Pazuello ao ato político e o militar acabou absolvido no processo. O regimento militar veda que integrantes da caserna compareçam a manifestações políticas sem autorização superior.

"As Forças Armadas fizeram e fazem de tudo para resistir à transparência exigida pela redemocratização", avalia a gerente de projetos da Transparência Brasil, Marina Atoji, ao Estadão. A especialista explica que a situação deixa Exército, Aeronáutica e Marinha longe do escrutínio público, não sendo possível realizar um controle social amplo sobre suas atividades e despesas.

Na avaliação de Atoji, mudar esse cenário a curto prazo passaria por algum grau de confronto. "Exige maior cobrança do cumprimento estrito da LAI e responsabilização por violações por parte da CGU e do Ministério da Defesa. Talvez até uma abordagem mais direta pelo próprio presidente, fazendo uso da hierarquia que as Forças prezam. Mas parece pouco provável agora, considerando os outros pontos de tensão existentes entre o novo governo e as Forças Armadas".






Outro lado

Em nota, a Marinha informou que "cumpre rigorosamente as normas da Lei de Acesso à Informação" e reiterou o "firme propósito no cumprimento aos preceitos legais estabelecidos pela Constituição Federal". O Comando da Aeronáutica também disse estar comprometido com a legislação e explicou que "eventuais informações solicitadas podem ser preservadas nas respostas concedidas, sempre com fundamento na legislação em vigor".

Já o Exército afirmou que não teve acesso ao relatório da transição, mas contestou seu conteúdo. Disse que a premissa de que houve "descumprimento da Lei de Acesso à Informação" não se mostra verdadeira. Segundo a Força, os pedidos que foram negados têm amparo legal. "Ademais, o Exército Brasileiro cumpre a transparência ativa e disponibiliza uma gama de informações relevantes em sua página na internet, possibilitando ao interessado ter acesso a diversos assuntos atinentes à Força".

O Exército disse ainda que desde a criação do Serviço de Informações ao Cidadão no Exército Brasileiro foram processadas mais de 13 mil demandas, "sem qualquer omissão" - o que, segundo a Força, atesta "um compromisso com a transparência pública, ativa e passiva, e com o fomento do desenvolvimento da cultura da transparência".

O relatório da transição cita também casos de documentos cujo acesso foi negado por Itamaraty, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério da Justiça e Agência Brasileira de Inteligência (Abin). No caso da área de inteligência, o documento diz que o governo Bolsonaro tentou eximir a Abin de prestar contas. "Artigo da Lei da Abin passou a ser utilizado como fundamento para retirar do âmbito de incidência da LAI qualquer informação de inteligência, independe de classificação. Essa nova interpretação dada a esse dispositivo legal reverte um posicionamento histórico da CGU, segundo o qual informações da Abin não são necessariamente ou automaticamente dotadas de segredo, pela sua própria natureza", pontuou o diagnóstico.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Temas para a Manifestacao de 12 de Abril: Contra o Fundo Partidario, contra o Financiamento Publico de Partidos e de Campanhas

A cidadania pode até estar legitimamente indignada contra a roubalheira dos petralhas, contra a conivência dos políticos em geral, e a dos políticos petistas em particular, contra a excepcional inépcia do governo e dos seus principais mandatários, contra a corrupção em geral, e a dilapidação da Petrobras em particular, mas ela precisa ficar atenta também ao que ocorre nos bastidores, que não atrai os holofotes da "mídia", mas que é potencialmente muito mais prejudicial ao futuro do país do que os casos tópicos de roubalheira e incompetências.
Roubos e inépcia podem ser "corrigidos" em prazos relativamente curtos, digamos de seis meses a um ano, desde que as corretas políticas econômicas sejam aplicadas, e que a Justiça faça o seu trabalho (mas ela se empenha em alongar os seus prazos), mas regulação legal sobre funcionamento do sistema político pode ficar conosco durante anos e anos, senão décadas, como essa vergonha do Fundo Partidário.
Os cidadãos precisam estar conscientes desse tipo de assalto ao seu bolso perpetrado pela classe -- no sentido estrito e lato do termo -- política, e também se empenhar em que isso mude.
Simples: partidos políticos são entes de direito privado, ainda que regulados por lei de caráter geral, nacional, e como tal devem ser financiados pelos seus aderentes, membros, simpatizantes, não pelo Estado --- ou seja, por todos nós -- que não tem nada a ver com a livre organização dos cidadãos.
Campanhas políticas são feitas para políticos se perpetuarem no poder. Se é de interesse privado, devem ser financiadas privadamente. Não ao financiamento público de campanhas.
Proibição de financiamento empresarial é uma violência constitucional e uma hipocrisia. As empresas devem poder fazer o que desejarem do seu dinheiro, e elas geralmente apoiam todos os partidos, sem qualquer distinção ideológica. Estão fazendo investimento? É possível, mas o dinheiro é delas e não temos nada a ver com isso. Façam o que quiserem do seu dinheiro, mas que isso não entre nas receitas e despesas públicas.
Fragmentação partidária é um dado da realidade e condiz com a liberdade de se constituir um partido, o que está ao alcance de qualquer um. O que não se pode é ter representação no Congresso sem um mínimo de votos em escala nacional, e sobretudo não poderia, e NÃO DEVERIA, ter direito a qualquer Fundo Partidário, que deve simplesmente ser extinto.
Agora leiam a matéria abaixo, que revela vários absurdos do nosso sistema político.
Paulo Roberto de Almeida

Parlamentares vão dobrar verba para custear partidos

Ricardo Della Coletta - O Estado de S. Paulo
14 Março 2015 | 05h 00

Emenda para elevar fundo para R$ 570 milhões tenta compensar perdas provocadas por maior número de siglas e queda em doações

Brasília - A pulverização dos partidos políticos com representação na atual legislatura da Câmara e a diminuição de doações de empresas às legendas em consequência da Operação Lava Jato levaram o Congresso a querer dobrar os recursos do Fundo Partidário neste ano em relação à proposta original do governo.
Atendendo a pedidos dos parlamentares, o relator do Orçamento, senador Romero Jucá (PMDB-RR), vai alocar em 2015 cerca de R$ 570 milhões para o fundo, destinado a financiar as estruturas partidárias. Trata-se de um aumento de 45,2% sobre o que foi destinado no Orçamento de 2014 (R$ 392,4 milhões) e praticamente o dobro dos R$ 289,5 milhões que o valor proposto originalmente pelo governo.
A emenda de plenário que prevê o novo valor já está pronta e será apresentada na sessão do Congresso agendada para terça-feira. Será a maior “turbinada” no Fundo Partidário desde o Orçamento de 2011, quando os parlamentares passaram a complementar os montantes sugeridos pelo Executivo. O Estado procurou Jucá, mas sua assessoria informou que ele estava no interior de Roraima e não poderia comentar o assunto.
Para Romero Azevedo, tesoureiro do DEM, o reforço orçamentário se justifica pela perda de receita de partidos tradicionais provocada pela fragmentação da Câmara – hoje há 28 legendas com pelo menos um deputado eleito. Pelas regras do fundo, 5% são divididos igualmente entre todas as legendas e 95% de acordo com o total de votos obtidos nas últimas eleições gerais pelas siglas.
Por esse critério, o DEM – que perdeu 21 deputados em relação à bancada eleita em 2010 – recebeu nos dois primeiros meses de 2015 cerca de um terço a menos do valor que era repassado mensalmente até dezembro. “Fora do período eleitoral, nossa receita vem praticamente toda do Fundo Partidário”, argumenta Azevedo. “Existe uma substancial diminuição de outras fontes e os partidos vão contar cada vez mais com os recursos do fundo”, acrescenta Flávio Chuery, tesoureiro do PSD.
Além do resultado das eleições gerais, os parlamentares apontam outra motivação para reforçar o caixa do fundo. Eles alegam que o escândalo de corrupção na Petrobrás, na qual políticos são acusados de receber propina, amedrontou os doadores.
Emendas. Encorpar o Fundo Partidário não é a única demanda dos parlamentares para liberar a votação do Orçamento. O governo aceitou um acordo pelo qual foram incluídos R$ 10 milhões em emendas para cada novo parlamentar, uma promessa de campanha dos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL).
Jucá promoveu uma engenharia financeira para acomodar o benefício. Ele remanejou cerca de R$ 2,7 bilhões destinados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), usada nos últimos anos para custear o desconto na conta de luz. Mas o reajuste na tarifa de energia fez com que esse dinheiro – que o governo pretendia usar para ajudar na recuperação das contas púbicas – ficasse disponível.
O Planalto tentou articular a aprovação do Orçamento na quarta-feira, mas a oposição impediu que a proposta fosse analisada, pois Jucá ainda não havia detalhado as modificações no projeto. O Orçamento de 2015, que deveria ter sido analisado no fim do ano passado, ainda não foi aprovado. Isso impede que a equipe econômica edite um decreto congelando formalmente as despesas dos ministérios, uma das principais sinalizações do ajuste fiscal aguardada pelo mercado financeiro.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Brasil: problemas macroeconomicos e descentralizacao federal - Andre Lara Resende

Acredito que se trata de uma excelente análise dos problemas atuais (e permanentes) da economia brasileira, embora eu tenda a insistir mais em aspectos de políticas econômicas erradas da última década, do que em problemas históricos do capitalismo brasileiro. O patrimonialismo é certamente uma tradição brasileira, desde sempre, mas ele não explica as dificuldades presentes e a letargia no crescimento. Ele apenas explica o grau anormalmente alto de corrupção, de comportamentos rentistas, da roubalheira que caracteriza o Estado brasileiro, dominado por elites predatórias e autistas. Acho que os problemas mais graves estão acontecendo agora, desde que os companheiros assumiram o poder, e começaram a inverter as reformas e as políticas do governo anterior. Não concordo tampouco com o autor em que um novo federalismo, baseado na descentralização, poderá corrigir alguns desses problemas. Como na República Velha, a descentralização elevou ao extremo a irresponsabilidade da classe política, assim como acredito, por exemplo, que o parlamentarismo (e eu sou a favor, em princípio), representaria, no curto e médio prazo, uma exacerbação das piores deformações da política brasileira, com os partidos de ladrões e totalitários dominando os esquemas da governança, para pior.

Enfim, sou pessimista, isso sim, pois não acredito numa correção de nossos problemas mais graves sem uma crise grave, de caráter econômico e político. Sempre é preciso sofrer para empreender grandes reformas.
Paulo Roberto de Almeida  

Capitalismo de Estado patrimonialista

No lugar de insistir numa reforma de cima para baixo, governo deveria voltar à federação, dar autonomia aos Estados e aos municípios em todas suas esferas

O Estado de S.Paulo, 22 de dezembro de 2013 | 2h 04

André Lara Resende
O sentimento em relação ao Brasil no exterior mudou em 2013. O otimismo no País já vinha em queda há algum tempo, mas a percepção externa parece ter finalmente alcançado - e até mesmo ultrapassado - o recente desalento doméstico. A evidente deterioração da situação fiscal brasileira - apesar do uso de todo tipo de manobras contábeis para impedir que a extensão da piora fique clara - é o fator mais preocupante para analistas e investidores estrangeiros. A queda do superávit primário se refletiu num aumento do prêmio de risco, medido pelo seguro financeiro contra a probabilidade de calote - os chamados CDS - da dívida brasileira.
A alta do prêmio de risco, se entendido como a probabilidade de o país vir a ter problema de solvência com sua dívida pública, como ocorreu no passado recente, parece-me despropositado. A dívida em moeda estrangeira, especialmente a dívida pública, é pequena, não passa de 5% do PIB. Mesmo a dívida bruta total, que os truques contábeis têm menos capacidade de maquiar, está entorno de 60% do PIB. É alta, mas está longe de ser preocupante. O prêmio de risco reflete um desconforto mais difuso sobre o futuro do país. Os problemas são muitos, a grande maioria deles não é nova, mas há uma dimensão especialmente grave no atual quadro brasileiro: um Estado despreparado, patrimonialista, com objetivos próprios, dissociados da sociedade.
Desde a estabilidade monetária, o país vinha fazendo avanços sistemáticos na ordenação das finanças públicas. A carga fiscal passou de 25% para 36% do PIB e a dívida pública estava em queda. O processo foi revertido a partir de 2008. É preocupante, mas o problema do Estado brasileiro, hoje, não é de solvência, nem de descontrole macroeconômico, que poderia ser revertido, mas o fato de atuar contra a sociedade, a favor de seus interesses próprios. O custo do Estado está hoje perto de 40% da renda anual, equivalente aos mais altos do mundo, mas seu desempenho é abaixo da crítica.
O papel do Estado sempre foi um tema polêmico. Durante o século 20, tomou contornos ideológicos tão demarcados que praticamente inviabilizou o debate sereno e reacional. Parece inevitável que sociedades maiores e mais complexas sejam mais difíceis de ser administradas, exijam mais das empresas, das instituições e também do Estado. Há uma inexorável correlação entre tamanho e complexidades em toda empreitada humana. O mundo está superpovoado e definitivamente interligado pelo avanço das comunicações e da informática. A questão da escala e da complexidade está em toda parte, mas é ainda mais grave onde é menos reconhecido: na esfera da vida pública. As sociedades modernas se sofisticaram, tornaram-se mais complexas. O Estado foi obrigado a crescer para atender às suas novas funções.
Em livro de 2011, Vito Tanzii faz uma isenta e ponderada análise do inexorável avanço do Estado sobre todas as esferas da vida. O peso do Estado cresceu sistematicamente em toda parte do mundo. A proporção da renda extraída da sociedade pelo Estado, que era geralmente inferior a 10% no início do século 20, dobrou lá pela metade do século, até atingir mais de 40%, neste início de século 21. O avanço foi sistemático, sobretudo a partir da década de 30.
Quando se exige mais do Estado, é razoável que o seu custo suba, mas espera-se que haja alguma correlação entre o custo e o serviço prestado, entre o custo e a qualidade do Estado. Não foi o que ocorreu no Brasil. Ao contrário, a rápida elevação recente da fatia da renda extraída da sociedade não foi acompanhada pelo investimento em infraestrutura. Houve séria deterioração da segurança pública e um dramático aumento da criminalidade. Não houve melhora digna de nota nem na educação, nem na saúde. O saneamento e o transporte público continuam abaixo da crítica.
Notícias recentes indicam que mais de 20% das pessoas - até 50% em alguns Estados - dizem terem sido vítimas de assaltos nos últimos doze meses. O nível de compreensão da língua e da matemática dos alunos brasileiros, segundo resultados recém-divulgados do PISA, exame de avaliação internacional de estudantes conduzido pela OCDE, é deplorável. O Brasil continua entre os últimos colocados, junto com a Albânia, a Tunísia e a Jordânia, muito abaixo do Chile e do México.
O World Economic Forum publica anualmente um índice global de competitividade. O Brasil caiu para o 56.º lugar este ano. Ocupa o 80.º lugar em relação ao funcionamento das instituições e a 124.ª posição em relação à eficiência do governo. A educação está na 121.ª posição e a confiança nos políticos, na 136.ª. Os bolsões de excelência tecnológica e a qualidade do empresariado ocupam a 36.ª e a 39.ª posições. As estatísticas e os rankings apenas confirmam uma realidade perceptível a olho nu: o Estado brasileiro não está à altura do estágio de desenvolvimento do País.
A herança patrimonialista, misturada aos desafios de um país grande e desigual, a meio caminho para o mundo desenvolvido, criou um Estado caro, ineficiente e, sobretudo, disfuncional. Um Estado cujo único objetivo é viabilizar a expansão de seu poder e de suas áreas de influência. Um Estado que cria uma regulamentação kafkiana, com exigências burocráticas cartoriais absurdas, cujo resultado é aumentar custos, reduzir a produtividade e complicar todas as esferas da vida. O patrimonialismo do Estado brasileiro, sua incapacidade de respeitar os limites e os deveres em relação à sociedade, tem longa tradição, mas toma novos contornos com a sofisticação da economia, com a chegada do País à sociedade do espetáculo e à democracia de massas. O uso e o abuso das técnicas publicitárias, a criação de dificuldades de toda ordem para a venda de facilidades, a simbiose com cultura dos direitos especiais adquiridos e a aliança com grupos econômicos selecionados são a nova face do velho patrimonialismo.
Crítica. Diante da polarização do debate, a crítica ao patrimonialismo do Estado tende a ser desqualificada como uma reação conservadora aos avanços da cidadania. Cada uma das dimensões do progresso da cidadania - a civil, a política e a social - enfrentou, a seu tempo, fortes reações ideológicas. O século 18 foi palco da luta pela cidadania civil, pelos direitos de opinião, de expressão e à justiça. No século 19, avançaram os aspectos políticos da cidadania, o direito ao voto e de participação política. Finalmente, no século 20, sobretudo a partir da década de 30, houve o avanço da dimensão social, com a criação dos sistemas de assistência e previdência, de educação e de saúde pública, capazes de garantir um padrão de vida mínimo para o exercício das demais dimensões da cidadania.
Adotado depois da grande crise do capitalismo do início dos anos 30 do século 20, o Estado Assistencialista foi uma forma de aliviar as pressões sociais e o apelo do comunismo marxista, mas nunca deixou de enfrentar resistência. Resistência que encontrou na teoria econômica um poderoso aliado. A economia sempre teve um de seus pilares na tese de que os mercados competitivos tendem ao equilíbrio eficiente. O mercado competitivo é uma construção intelectual, uma referência importante para a alocação eficiente de recursos, mas a polarização ideológica levou a uma inferência indevida: a de que toda interferência governamental sobre o livre mercado seria contraproducente.
Com a vitória incontestável dos direitos sociais, a teoria econômica paga até hoje o preço político de ser percebida como intrinsecamente conservadora. Toda crítica à falta de critérios e à ineficiência do gasto público, sobretudo se embalado como gasto social, é tachada de reacionária e desconsiderada. No Brasil de hoje, o velho patrimonialismo do Estado se esconde por trás do assistencialismo. O patrimonialismo indefensável reveste-se de assistencialismo inatacável. Desde que sob o guarda-chuva de gasto social, toda sorte de abuso patrimonialista não admite questionamento.
A divisão do trabalho, o comércio internacional e os mercados são poderosos estímulos à criação de riqueza, mas dependem de leis, instituições e do Estado inteligentemente organizado. A complexidade do mundo contemporâneo exige do Estado ainda mais do que suas funções clássicas. As modernas sociedades democráticas requerem, necessariamente, algum tipo de assistencialismo distributivista, o que exige a coordenação do Estado. O desafio é ter um Estado competente, que contribua para uma sociedade melhor e cujos serviços justifiquem seu custo.
Um seminário recente, em Viena, em homenagem a Peter Drucker, reuniu expoentes da administração para discutir o tema da complexidade no mundo contemporâneo. Concordaram que a gestão dos negócios está mais complicada do que jamais foi e que a capacidade de lidar com a complexidade é prioridade na agenda dos empresários. Como em todas as outras esferas da vida contemporânea, os homens de negócios são confrontados com muito mais de tudo a todo tempo.
Duas linhas alternativas de interpretação se delinearam. A primeira é de que é preciso simplificar, concentrar em alguns poucos objetivos, dar às empresas um foco e uma direção para os que nela trabalham, ainda que por imposição, de cima para baixo. A segunda interpretação sustenta que a maior complexidade é apenas uma nova ordem, que exige a revisão do modo de se administrar. A revolução das comunicações e da informática tornou obsoleta a administração linear, de comando e controle, que deve ser substituída por uma nova, baseada em redes espontâneas de módulos autônomos. O mundo contemporâneo é não linear e as empresas, assim como as demais instituições, ainda não se adaptaram a essa não linearidade. O caminho a ser seguido é reconhecer a nova ordem e não insistir na tradicional gestão de comando e controle, pois é a imposição de um estilo anacrônico de gestão que é contraproducente na complexidade contemporânea.
As duas interpretações exprimem as alternativas para se lidar com a complexidade contemporânea, não apenas na vida empresarial, mas também na vida pública. A opção por simplificar, ainda que de cima para baixo, por concentrar em alguns objetivos claros e dar uma direção para o país, tem enorme apelo diante das dificuldades da democracia representativa. O encanto provocado pelo novo capitalismo de estado chinês é exemplo do apelo da simplificação autoritária. Como demonstrou a experiência soviética, é sempre possível acelerar o crescimento por meio da mobilização centralizada de poupança e do investimento estatal, com base em grandes planos, formulados a partir de um "projeto nacional" definido pelo Estado. A estratégia demonstrou ser bem-sucedida para as economias de baixa renda, onde as taxas de poupança e investimento são limitadas pelas necessidades básicas de consumo. Enquanto se percorre caminhos tecnológicos conhecidos, é possível acelerar autoritariamente o crescimento, mas quando a economia se aproxima da fronteira tecnológica, a estratégia do planejamento estatal deixa de obter resultados.
Tendo aprendido as lições do fracasso do planejamento central soviético, o capitalismo de estado chinês compreendeu que não poderia prescindir dos mercados. Usa as companhias estatais para garantir investimentos nos setores considerados estratégicos e utiliza empresas privadas escolhidas para dominar os mercados. Os resultados foram extraordinários, mas as tensões e desafios têm aumentado. Embora a China tenha dado sinais de que pode vir a aumentar o papel dos mercados, é pouco provável que a flexibilização mude a essência do modelo. Seu objetivo é manter o poder político concentrado na mão do Estado e a maximizar a probabilidade de perpetuação do governo.
Há uma diferença fundamental entre o Brasil e a China. A China tem uma tradição milenar de autoritarismo burocrático competente. O custo do Estado é menos de 30% renda e está em queda. Já a participação do Estado no investimento, na chamada formação bruta de capital fixo, é de 21% do PIB. Ou seja, só o investimento direto do Estado chinês é uma proporção maior da renda nacional do que todo o investimento brasileiro, público, privado e estrangeiro, que não chega a 19% do PIB. Na China, o Estado é competente, custa pouco e investe muito. No Brasil, o Estado é caro e incompetente, não investe, nem cumpre suas funções básicas.
É questionável se o investimento estatal direto ainda seria capaz de fazer a diferença e acelerar o crescimento no Brasil. O modelo foi adotado por aqui durante o regime militar. Depois de reformas modernizadoras, inteligentemente concebidas e adotadas com competência, as taxas de crescimento atingiram níveis de até dois dígitos, durante o chamado "milagre econômico", da primeira metade da década de 70. O seu esgotamento, a partir da década de 80, deixou um triste legado: o Estado deficitário e endividado, as empresas estatais esclerosadas e duas décadas de estagnação sob o signo da inflação crônica.
Modelo. Na última década, o Brasil se beneficiou do ganho nas relações de troca com o exterior. A alta dos preços dos produtos primários, provocada pela demanda da China, significou uma expressiva transferência de renda para o Brasil. Os governos do PT foram suficientemente inteligentes para manter as bases da política macroeconômica, mas passaram a desmontar as reformas que viabilizaram a estabilidade monetária. O processo se acelerou a partir da crise de 2008. Aparelharam o Estado, criaram novas estatais e elegeram parceiros privados incompetentes. Com a desculpa de praticar uma politica anticíclica, expandiram o gasto corrente do governo, mas não investiram em infraestrutura. O resultado é conhecido: baixa produtividade, uma economia que não cresce e contas públicas que se deterioram.
Não é possível saber se o capitalismo de estado chinês continuará bem-sucedido, mas uma coisa é certa: o capitalismo chinês requer um Estado competente e autoritário. No Brasil, não temos a requerida competência, nem desejamos - quero crer - o autoritarismo. Diante da complexidade do mundo contemporâneo, a tentação da solução autoritária estará sempre presente, mas o caminho mais promissor é o da alternativa delineada na conferência de Viena: não insistir na tradicional gestão centralizada, de comando e controle, mas avançar na descentralização. Um Estado autoritário e patrimonialista, sustentado pela demagogia, o marketing e a intimidação, onde apenas as aparências democráticas são respeitadas, é o caminho mais rápido para volta ao subdesenvolvimento. A fórmula, como demonstra sua aplicação na Argentina e em outros países vizinhos, é devastadora.
Não há como bem governar com o Estado disfuncional. A primeira tarefa de quem pretende fazer um bom governo será a de reconstruir o Estado. No lugar de insistir numa reforma de cima para baixo, de comando e controle, deveríamos experimentar a descentralização. Deveríamos voltar à federação, dar autonomia aos Estados e aos municípios em todas suas esferas, desde a fiscal, até a segurança, a saúde e a educação. Como escreveu Hirschman, no prefácio da edição alemã do seu Exit, Voice and Loyality: "Assim como os economistas, com a ênfase nas virtudes da competição (i.e. da 'saída'), não deram atenção à contribuição da 'voz', os cientistas políticos, com seu interesse na participação política e no protesto, negligenciaram o possível papel da 'saída' na análise do comportamento político." Tenho a impressão de que mais possibilidade da opção de "saída" em relação à "voz", isto é, de ter a opção de se mudar ao invés de protestar, é mais importante do que nunca, num mundo complexo e interligado.
Os mercados não são milagrosos, mas um pouco de competição no sistema político, sob o guarda-chuva de uma verdadeira federação, pode ser a única forma de viabilizar a complexidade contemporânea com a democracia e a existência de Estados eficientes e com mais respeito pelos contribuintes.
ECONOMISTA E EX-PRESIDENTE DO BNDES

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O Partido Comunista Chines inventa uma historia sua (nao a verdadeira)...


VISÃO GLOBAL: A China contra a própria história
Isabel Hilton, jornalista
O Estado de S.Paulo (Prospect Magazine), 26 de Setembro de 2011, p. A-12

Partido Comunista luta para moldar 5 mil anos de existência nacional à identidade que pretende transmitir às novas gerações para sua sobrevivência no poder

A história sempre foi importante para a China, país cujos governantes lutaram para unir os muitos grupos étnicos diferentes, mas cujas fronteiras modernas datam de apenas algumas centenas de anos. Desde 1949, o Partido Comunista tem se valido de sua visão da história para excluir a democracia e consolidar sua construção de um país moderno. Em 1989, depois da sangrenta repressão às manifestações pela democracia na Praça Tiananmen, estrategistas do partido declararam que a história era uma questão de segurança nacional.
Mas talvez o mais notável seja que este ano, que marca o centenário do fim de mais de 2 mil anos de sistema imperial na China, ocorrido em 1911, tenha passado sem nenhuma comemoração mais expressiva. O partido preferiu celebrar seu próprio 90.º aniversário em julho, talvez por não querer lembrar aos chineses que a causa defendida pelos revolucionários de 1911 não era inspirada pelas ideias de Karl Marx, mas a democracia. Aqueles que defendem os mesmos valores enfrentaram dificuldades este ano, sejam eles artistas como Ai Weiwei, detido em abril e mantido sob custódia por 81 dias enquanto era alvo de uma investigação da Receita, ou apenas amigos e parentes do ganhador do Nobel da Paz, Liu Xiaobo, um prisioneiro político. Nos altos escalões, ninguém parece interessado em lembrar a população dos ferozes debates políticos de cem anos atrás.
O resultado é um país ostensivamente moderno no qual um quinto da humanidade deve fingir que acredita numa história nacional inventada para manter perpetuamente o Partido Comunista no controle. Para um partido que não pratica mais o socialismo, o problema é definir como esta história nacional deveria ser, e como, numa era de comunicação em massa, o partido poderá defender sua versão como a única verdade.
As coisas costumavam ser mais simples. Quando o país era comandado pela ideologia, a história oficial da China consistia numa longa noite de escuridão feudal e semi-feudal que chegou ao fim em 1949 quando o partido liderou os trabalhadores, camponeses e soldados e os conduziu à libertação. Depois disso, de acordo com a lenda, a situação melhorou continuamente, exceção feita ao período da Revolução Cultural.
Na China de hoje, poucos discordam do fato de que a Revolução Cultural iniciada por Mao Tsé-tung em 1966 foi, nas palavras da avaliação oficial, uma desastrosa década de caos . O tratamento oficial de inconveniências narrativas como esta tem sido o de ignorá- las ou redefini-las. A fome que se seguiu ao Grande Salto para Frente, em 1958, tornou-se o período chamado de três anos de desastres naturais . As dificuldades narrativas só começaram de fato após a morte de Mao, em 1976, quando Deng Xiaoping começou a abandonar a ideologia, que tinha praticamente quebrado o país, e a avançar discretamente rumo a algo mais parecido com o capitalismo.

Demandas. As demandas populares pela democracia aumentaram constantemente. Quando o movimento da Praça Tiananmen foi esmagado em 1989, o partido decidiu que seu direito de governar nunca mais deveria ser questionado daquela maneira. A missão da história pública passou a ser a de demonstrar que os estrangeiros tinham sido os responsáveis pelos principais fracassos do país desde o início do século 19. Nesta narrativa de exceções, a China escapa da ameaça da democracia por causa da longevidade de sua história contínua, da superioridade geral e da força de sua cultura.
Mas há vários problemas nesta história. Para começar, há 5 mil anos a China não existia sob nenhuma forma que reconheceríamos hoje. O verdadeiro pai político do Estado chinês é Qin Shihuangdi, primeiro imperador da dinastia Qin, que conquistou Estados vizinhos 2 mil anos atrás e fundou uma dinastia que deveria durar 10 mil anos.
Esta ruiu poucos anos depois da morte desse imperador, mas um dos feitos dele a imposição de uma única forma de escrita a todo seu diversificado reino foi um elemento-chave para a construção de uma identidade central entre povos que falavam idiomas diferentes.
Mas o território governado pelos Qin ainda era apenas uma fração do tamanho da República Popular de hoje. As fronteiras atuais da China existem desde o século 17, quando os mandchus invadiram e conquistaram a China em 1644. Eles fundaram a dinastia Qing, a última e também a maior das casas imperiais, e governaram até 1911. Quando a dinastia ruiu, a China tinha dobrado de tamanho e reivindicava domínio sobre uma série de povos que tinham habitado a periferia extrema da China da dinastia Ming, como os tibetanos e mongóis.
Não surpreende que o partido tenha se recusado a celebrar o centenário deste ano: o motivo não foi apenas a luta pela democracia, mas também a fragmentação do império que se seguiu. Assim que a notícia da queda da dinastia Qing chegou ao Tibete e à Mongólia, estes países declararam independência.
Esta história é apresentada de forma nebulosa às novas gerações. Em 1974, os crimes de guerra cometidos pelos japoneses que invadiram a Mandchúria em 1931, e depois a China em 1937, estavam tão esquecidos que quando uma delegação japonesa visitou a Universidade Fudan em Xangai, onde eu estudava na época, o câmpus foi enfeitado com bandeiras que proclamavam amizade entre os povos japonês e chinês, de geração em geração . Parecia que a ocupação japonesa da China (1937-1945) nunca ocorrera. Nem a Guerra do Ópio com a Grã-Bretanha tinha grande importância na memória coletiva.

Narrativa patriótica. Mas, depois de 1989, tanto a invasão japonesa quanto a Guerra do Ópio foram elevadas ao status de desastre nacional, servindo à nova narrativa patriótica.
Ainda assim, a história continua a ser um problema para o Partido Comunista na transição para o capitalismo. O Museu Nacional da China, em Pequim, passou quase tanto tempo fechado quanto aberto desde a sua inauguração, em 1959. Recentemente, foi fechado para reforma, mas as obras foram paralisadas por causa dos violentos debates a respeito do que deveria ou não ser exposto, e o museu não pôde ser inaugurado a tempo da Olimpíada de 2008. Quando finalmente reabriu, nem a Revolução Cultural nem o Grande Salto para Frente mereceram menção.
A China ainda está construindo sua identidade moderna. Muitos cidadãos ainda nutrem a esperança de uma sociedade na qual a liberdade de expressão e o direito de participar da vida política serão finalmente alcançados.
Para eles a questão não é se a reforma ocorrerá, mas quando . Para o partido, entretanto, a resposta é nunca .
Convencer o povo chinês que a história do país é o que o partido lhe oferece, levando inexoravelmente à perpetuação dos comunistas no poder, é fundamental para sua estratégia.
Na China de hoje, a história continua a ser uma questão de segurança não para a nação, mas para o próprio Partido Comunista.

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL E ANNA CAPOVILLA
*Publicado originalmente na Prospect Magazine