Fui entrevistado pelo jornalista Fabio Cardoso para uma série que já teve outras emissões – uma com Gustavo Franco, por exemplo – sempre em torno da funcionalidade das instituições.
A entrevista tem o seu link abaixo. Mas antes da entrevista, eu tinha preparado algumas notas em torno do assunto principal, que transcrevo abaixo.
4464. “Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos”, Brasília-São Paulo, 27-30 agosto 2023, 6 p. Nota elaboradas para entrevista na Rio Bravo Investimentos, com o jornalista Fábio Cardoso, em 1/09/2023; revisão: Brasília, 9/09/2023. Divulgada no dia 13/09/2023, sob o título de “Videocast Rio Bravo: As Instituições Estão Funcionando? - Paulo Roberto de Almeida” (29m-56s; link: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/106584032/4464_Itamaraty_uma_instituição_de_Estado_pouco_independente_de_governos_2023_). Relação de Publicados n. 1522.
Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota para entrevista na Rio Bravo Investimentos em 1/09/2023.
O Itamaraty, conhecido por esse nome apenas a partir da República, é uma das mais antigas e importantes instituições de Estado, tanto no regime colonial português, como na transição da coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e nos dois séculos desde o estabelecimento do Estado brasileiro independente. A antiga secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros sempre disputou com Marinha, Fazenda e Justiça a primazia entre os ministérios mais relevantes para a preservação do Estado e seu funcionamento normal em face de tantas ameaças internas e externas nas diversas dinastias lusitanas, até chegar aos Braganças, que ainda governaram os dois reinos até o final do século XIX.
As relações exteriores sempre foram estratégicas na defesa dos interesses e da própria sobrevivência do Estado português, desde antes e sobretudo após a Restauração de 1640. Tanto foi que um dos tratados de defesa possivelmente mais antigos teoricamente ainda em vigor foi aquele contraído entre os dois soberanos, o de Portugal e o da Inglaterra, poucos anos depois da retomada da soberania portuguesa em face dos vizinhos espanhóis, do tempo dos Habsburgos. Registre-se, também, que o território da América portuguesa representava menos de 1/3 das atuais dimensões do Brasil, sendo que significativos ganhos territoriais foram adquiridos pacificamente pela excelente diplomacia portuguesa, no caso pelo súdito santista Alexandre de Gusmão, que negociou o tratado de Madri, de 1750, aposentando a linha de Tordesilhas e adquirindo vastos espaços no planalto central, na Amazônia e no Sul (com a exceção da Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses, mas por esse tratado cedida definitivamente aos espanhóis).
O tratado de Madri conformou o Brasil no mapa que conhecemos hoje, com outras pendências arbitradas ou negociadas diretamente com os vizinhos sul-americanos, acordos geralmente alcançados pelo Barão do Rio Branco, inclusive a compra do Acre à Bolívia. O Barão chegou inclusive a fazer um tratado preventivo de limites com o Equador – seguido de um tratado secreto de defesa mútua –, não implementado pelo fato de o país amazônico, andino e pacífico ter perdido terras interiores para seus dois grandes vizinhos. As relações exteriores do Brasil, durante tudo o Império e no começo da República, foram justamente dominadas por questões de fronteiras, felizmente resolvidas pacificamente, não incluída aqui a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que se deu por outros motivos, e certamente provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopes. Outras pendências que nossa primeira diplomacia teve de resolver logo em seus primeiros momentos foi a guerra da Cisplatina e os conflitos com a Grã-Bretanha em torno do tráfico escravo, duas heranças portuguesas que ocuparam os diplomatas – vários nascidos em Portugal – durante o primeiro Reinado.
José Bonifácio, nosso primeiro chanceler, além de ministro do Império, tinha concebido uma política externa brasileira e americanista, mas os interesses de D. Pedro na sucessão portuguesa desviaram a atenção da Secretaria dos Negócios Estrangeiros durante o seu período, finalmente terminado em 1831; vários historiadores acreditam que esse foi o ano em que finalmente se consolidou a independência do Brasil. As regências conduziram efetivamente uma política americanista, enviando encarregados de negócios para várias repúblicas sul-americanas, mas as pendências com a Grã-Bretanha sobre o tráfico, e com outras potências em torno de acordos comerciais, continuaram ocupando a diplomacia até o início do Segundo Império. Agiganta-se, nos anos 1840 e 1850, a figura de Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai, que moldou institucionalmente o corpo diplomático, inclusive instituindo concursos de seleção – não muito diferentes dos que são feitos ainda hoje – e resolvendo a questão do tráfico com a Lei de 1850, conjuntamente com Eusébio Queiroz; Paulino também atuou nos conflitos do Prata, entre o ditador Rosas, da Argentina, e os demais caudilhos da região, inclusive na própria Argentina e no Uruguai.
A diplomacia imperial foi muito eficiente, tanto nas relações regionais, como no confronto com as grandes potências, pois que chegamos a romper relações diplomáticas com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, nosso principal parceiro comercial. A dependência financeira não foi afetada, porque contratos de empréstimos e investimentos estrangeiros eram resolvidos diretamente com os banqueiros ingleses da City, em especial os Rothschild, banqueiros oficiais do Brasil até praticamente as vésperas da Segunda Guerra Mundial (quando saímos da esfera da libra britânica para a do dólar). O Visconde do Rio Branco e outros estadistas do Segundo Reinado conduziam as principais negociações externas, havendo, de toda forma, uma grande rotação de chanceleres, dada a sucessão de gabinetes. Aliás, Rio Branco foi um dos únicos chanceleres diplomatas (ele era originalmente apenas cônsul, até ser designado ministro em Berlim em 1990, como prêmio à sua atuação), pois todos os demais chanceleres eram parlamentares eleitos, segundo o modelo inglês.
O serviço exterior estava segmentado em três carreiras: a diplomática propriamente dita, que circulava principalmente entre postos no exterior; a dos funcionários da Secretaria de Estado, trabalhando no Rio de Janeiro, e raramente indo servir em postos no exterior; e, finalmente, a classe consular, exclusivamente dedicada a assuntos consulares típicos (vistos, permissões e documentos de direito internacional privado), além de assunto comerciais, como estampilhas em notas e faturas de comércio, dando direito ao recebimento de uma fração dos emolumentos consulares. Rio Branco, por exemplo, foi cônsul durante 20 anos em Liverpool, o mais ativo do comércio exterior britânico e mais importante no comércio bilateral com o Brasil, o que lhe facultava receber emolumentos suficientes para manter casa e família em Paris, para onde viajava frequentemente.
Procedimentos e métodos de trabalho foram evoluindo paulatinamente à construção do Estado brasileiro no século XX, notadamente a partir da era Vargas. Ao longo do século XX, o Itamaraty aperfeiçoou o processo de seleção dos quadros do Serviço Exterior, embora o próprio Barão do Rio Branco não tenho feito nenhum concurso: ele preferia, ele mesmo, selecionar os candidatos, entre muitos “indicados” pelas autoridades costumeiras. Importante reforma institucional ocorreu entre o governo provisório, sob o chanceler Afrânio do Melo Franco, e o Estado Novo, sob o chanceler Oswaldo Aranha, no sentido de unificar as três vertentes das carreiras do Serviço Exterior: o pessoal diplomático, servindo no exterior, os funcionários da Secretaria de Estado e o pessoal consular. Numa primeira etapa, sob o governo provisório, se procedeu à unificação dos funcionários diplomatas lotados em postos no exterior e o pessoal da Secretaria de Estado; mais adiante, os cônsules passaram a ser equiparados aos diplomatas,
O Estado Novo instituiu o DASP, Departamento Administrativo do Serviço Público, que passou a organizar processos de seleção para cargos públicos, inclusive para o Itamaraty. Roberto Campos, por exemplo, passou no primeiro exame de seleção do Itamaraty pelo DASP, em 1938, com a peculiaridade de que não se exigia diploma de curso superior: ele só tinha feito seminário e estava dando aulas no interior de São Paulo. Seu colega José Oswaldo de Meira Penna, que passou no mesmo concurso, afirmou que além dos que passaram no concurso, entraram alguns “pela janela”, por indicação política. Ao final do Estado Novo, em 1945, ocorreram falcatruas similares, seja pelas mãos do ditador – que só foi derrubado em outubro desse ano, pelo fato de que pretendia se manter na presidência, como comprovado pelo movimento “queremista”, “Queremos Vargas” –, seja pelo presidente interino, José Linhares, presidente do STF. Este, no espaço de poucos meses, colocou dezenas de amigos e familiares em cargos públicos, inclusive no Itamaraty. Na época se repetia o bordão, segundo o qual “os Linhares eram milhares”.
Mas, nesse mesmo ano de 1945, na data comemorativa dos 100 anos de nascimento de Juca Paranhos, filho do Visconde do Rio Branco, foi criado o Instituto Rio Branco, que passou a exercer o monopólio da seleção, formação e treinamento dos candidatos à carreira, constituindo seu corpo de professores, que no Rio de Janeiro incluíam grandes nomes da intelectualidade nacional: José Honório Rodrigues, Carlos Delgado de Carvalho, Américo Jacobina Lacombe, Afonso Arinos de Melo Franco e grandes sumidades do Direito e da Magistratura, da própria Academia Brasileira de Letras e do IHGB.
Essa seleção, primeiro dentro de um círculo mais restrito, de grandes famílias tradicionais e nas metrópoles mais importantes, depois, sobretudo a partir de Brasília, com pessoas recrutadas em estratos mais amplos e socialmente mais representativos da sociedade brasileira (filhos de imigrantes, por exemplo, pessoas de classe média-média, ou até baixa) aproximou o Itamaraty do universo estatal da fase nacional-desenvolvimentista (inclusive durante o regime militar) e imprimiu ao corpo profissional a mesma ideologia do desenvolvimento nacional que marcou o cerne do pensamento político e econômico das elites dominantes e dos setores dirigentes do Brasil.
O Itamaraty, como instituição nacional no Brasil do pós-guerra, combina elementos tradicionais, retirados da memória da Casa – os grandes estadistas do Império, a patrono incontornável na figura de Rio Branco – e os novos padrões criados a partir da fase do desenvolvimentismo nacionalista, que também reforçaram a endogenia típica do Itamaraty, sobretudo depois que os militares – irmãos estatais dos diplomatas – deixaram a Casa dirigir-se a si própria, nomeando funcionários da carreira como chanceleres (um ao início do regime, Vasco Leitão da Cunha, depois três na sequência: Gibson Barbosa, Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro). FHC e Lula preservaram esse encapsulamento burocrático, o que, de certa forma, reforçou o ethos corporativo dos diplomatas.
Por outro lado, a intensa competição interna também atuou no sentido de reforçar a dependência da trajetória individual dos diplomatas ao sabor das maiorias políticas ocasionais no plano congressual e do executivo, com o recurso ao tradiciona “pistolão” nos momentos das promoções (duas vezes por ano) e nas designações para os bons postos no exterior. Por outro lado, a estrutura decisória da Casa – que reproduz a hierarquia típica da carreira militar – e os comportamentos pessoais a ela subordinados – a disciplina, que lhe é associada – foram elevados a dogmas intocáveis no ethos coletivo, o se revela no caráter híbrido do Itamaraty: ele é, ao mesmo tempo, weberiano, no sentido de serem os rituais e métodos de trabalhos altamente formalizados e burocratizados, e feudal, no sentido em que os barões da Casa têm o comando incontestável e incontestado de todos os demais funcionários do Serviço Exterior. Desde os bancos escolares do Instituto Rio Branco, os jovens secretários são primeiro instruídos, depois relembrados, em praticamente todas as cerimônias oficiais do Itamaraty, dos dois dogmas sobre os quais supostamente se funda a excelência do corpo da diplomacia profissional: a hierarquia e a disciplina, exatamente como na vida militar. A estrita obediência aos cânones de comportamento explica a postura submissa da Casa.
Tais características contribuem para uma notável coesão interna no Itamaraty, uma adesão praticamente obrigatória aos métodos de trabalho e uma grande eficiência uma vez adotada uma linha de trabalho pelas autoridades dotadas de poder: o presidente e o chanceler. O resultado é que o Itamaraty se converte num operador muito obediente de toda e qualquer ordem que venha do chefe de Estado, o formulador da diplomacia, e do operador-condutor da diplomacia, ou seja, o chanceler. Raramente se desenvolvem, ou ganham corpo, dissensões internas, divergências ou contestações diretas às orientações dadas, mesmo se elas discrepam, por vezes fortemente, das práticas e opções anteriormente em curso.
É verdade que as continuidades são mais presentes do que as rupturas no itinerário da política externa, em função de compromissos firmados, de tratados assinados e da imagem de credibilidade institucional da própria diplomacia, mas elas também existem. A mais notável, desde a redemocratização, foi a orientação partidária e a condução ideológica sob o chamado lulopetismo diplomático, ainda assim combinadas aos padrões habituais de trabalho do Itamaraty: multilateralismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, protecionismo, soberanismo e um antiamericanismo moderado. O lulopetismo partiu dessa base para construir suas prioridades, centradas não apenas no terceiro-mundismo dos anos 1960, mas também na visão sindicalista marcada pela oposição entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, centro e periferia, burgueses e proletários, daí a inclinação míope por uma diplomacia Sul-Sul e até a preferência por regimes de esquerda no continente e alhures.
A maior ruptura foi obviamente representada pelo mal designado de bolsonarismo diplomático, mas ele não correspondeu a nenhuma ideologia formalmente estabelecida, apenas a uma mixórdia de preconceitos emprestados a teorias conspiratórias da extrema-direita americana, importada acriticamente pela franja lunática que dominou o Itamaraty durante a primeira metade do governo Bolsonaro. No plano interno da Casa, se tratou de movimento marginal, que não ganhou a adesão sincera de praticamente nenhum diplomata profissional, a não ser dos poucos oportunistas de ocasião, que sempre existem.
O fato é que o lulopetismo combina bem mais com a propensão dos diplomatas de serem condutores de iniciativas na frente externa, dado o grande protagonismo da diplomacia presidencial, falando a seus pares do mundo em desenvolvimento, um perfil mais parecido com o do próprio Brasil do que o dos países avançados da OCDE. Por sinal, os diplomatas se sentem bem mais confortáveis com a ideologia desenvolvimentista – e seus derivativos, como o cepalianismo, com o unctadianismo, o terceiro-mundismo, a latino-americanidade – do que com o mundo aparentemente distante das potências ocidentais, a cujo universo civilizatório estamos vinculados, mas numa posição de relativa inferioridade, dados os patamares insatisfatórios de desenvolvimento econômico e social. Os diplomatas continuam aderentes à divisão onusiana do mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, fazendo questão de defender o princípio do tratamento diferencial e mais favorável a estes últimos, como se devêssemos pertencer eternamente a este universo dicotômico.
Finalmente, o patrimonialismo inerente à sociedade brasileira, o peso das oligarquias econômicas e políticas, o compadrio e o nepotismo característicos de relações baseadas mais em vínculos afetivos do que na impessoalidade burocrática das normas legais fazem com que o Itamaraty seja especialmente sensível a padrões de conduta fundados no “quem manda?” e no “quem indica?”, em lugar da autoridade racional-legal da dominação weberiana pura. Por isso mesmo, o Itamaraty continuará a ser esse corpo eficiente de funcionários colocados a serviço das ideias politicamente dominantes ao sabor da conjuntura vivida pela nação.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília-São Paulo, 4464, 27-30 de agosto de 2023, 6 p.; revisão: Brasília, 9/09/2023