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sexta-feira, 14 de março de 2025

Dom Casmurro:125 anos de um romance polêmico - Hélio de Seixas Guimarães

 ... Com o livro, o narrador procura atar as pontas da velhice às da adolescência e da vida conjugal, vividas entre as décadas de 1850 e 1870...

...  “Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão”...

... A modificação na leitura desta história, de um romance sobre o adultério feminino para um romance sobre o ciúme masculino, teve início na década de 1960, com a publicação do estudo The Brazilian Othello of Machado de Assis, traduzido como O Otelo brasileiro de Machado de Assis, da crítica norte-americana Helen Caldwell...

 

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125 anos de um romance polêmico

Pesquisador das obras machadianas comenta as origens de Dom Casmurro e as leituras que o clássico recebeu desde sua publicação

Hélio de Seixas Guimarães


Rio de Janeiro, 1900. Foi no início deste ano que chegou às livrarias da então capital da jovem república a história completa do triângulo amoroso mais célebre da literatura nacional: Bentinho, Capitu e Escobar. Em pouco tempo, Dom Casmurro — que em março ganha nova edição pela Todavia, com este texto de apresentação — tornou-se o mais conhecido romance de Machado de Assis, que havia passado quase uma década sem publicar nada do gênero.


Dom Casmurro é o 21º livro e o sétimo romance de Machado de Assis. Decorridos quase 28 anos da sua estreia nesse gênero, com Ressurreição, ele voltava a publicar diretamente em volume, ou seja, sem passar antes pela imprensa. Embora traga a indicação de que foi impresso em Paris em dezembro de 1899, o livro começou a circular no Rio de Janeiro apenas no início de 1900, em edição da H. Garnier, Livreiro-Editor. Esse retorno ao romance, oito anos depois de Quincas Borba, surpreendeu até mesmo os mais próximos. Entretanto, o escritor dedicava-se à obra desde pelo menos maio de 1895, como se depreende da leitura de carta a um amigo:

Dom Casmurro

Machado de Assis

Org. e apres. Hélio de Seixas Guimarães Editora Todavia // 368 pp • R$ 84,90

 

Pelo que me toca, o livro em que trabalho é ainda um romance. Não estou certo do título que lhe darei; já lhe pus três, e eliminei-os. O que ora tem é provisório; ficará, se não achar melhor. […] Não trabalho continuadamente; tenho grandes intervalos de dias, e até de semanas.1 

Em novembro de 1896, outra notícia. A República publicou “Um agregado — Capítulo de um livro inédito”, com trechos que viriam a compor os capítulos 3, 4, 5 e 6 de Dom Casmurro, concentrados na figura do agregado José Dias. Os outros 144 foram apresentados aos leitores pela primeira vez já emvolume.

Dom Casmurro tornou-se um dos livros mais discutidos e polêmicos de toda a literatura brasileira

 

No momento da publicação, o escritor de sessenta anos ocupava “o primeiro lugar na literatura brasileira”, como escreveu um contemporâneo. Desde 1897, presidia a Academia Brasileira de Letras e fazia questão de que inscrevessem no frontispício dos seus livros o nome literário, “Machado de Assis”, seguido da indicação de seu pertencimento à instituição, “Da Academia Brasileira”. Mas nem tudo era glória. Os anos finais do século 19 também lhe trouxeram muitos dissabores. Em 1897, o crítico Sílvio Romero publicou Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira, um volume de 350 páginas com uma série de ataques ao escritor, comparado com Tobias Barreto em chave sistematicamente negativa. Machado nunca respondeu a Romero, mas deixou registrado em sua correspondência o mal-estar que as críticas lhe causaram e o contentamento por ter sido defendido publicamente por Lafayette Rodrigues Pereira, também conhecido por conselheiro Lafayette ou Labieno.

Durante a escrita da obra, outro revés: a carreira no serviço público, ao qual se dedicava desde 1867, sofreu uma pausa forçada. De janeiro a novembro de 1898, foi posto na constrangedora condição de adido à Secretaria da Indústria, Viação e Obras Públicas, recebendo vencimentos sem cumprir o dever do trabalho diário. Nesse período, dedicou-se intensamente à literatura: ocupou-se da reedição de vários de seus romances e da recolha de sua produção poética, além de publicar dois livros inéditos. Iaiá GarciaMemórias póstumas de Brás CubasQuincas Borba e Contos fluminenses ganharam novas edições entre 1898 e 1899; as Poesias completas saíram em 1901; Páginas recolhidas e Dom Casmurro, os inéditos, ficaram prontos em 1899.

Homem calado

O título deste romance refere-se a um homem de seus sessenta anos, autor ficcional, narrador e protagonista da história. Dom Casmurro é o apelido dado a Bento Santiago pelos vizinhos, que, segundo ele, “não gostam dos meus hábitos reclusos e calados”. Entretanto, o sentido mais usual de “casmurro” — o de “indivíduo teimoso, obstinado, cabeçudo” — é distorcido pelo narrador, que já no início da história pede ao leitor que não consulte dicionários, induzindo-nos a ficar com o sentido que ele quer imprimir ao termo, o de “homem calado e metido consigo”. 

O livro tem no centro a família Santiago, em torno da qual gravitam as demais personagens. D. Glória, a matriarca, é uma viúva abastada, que vive numa casa na rua de Matacavalos na companhia do filho, Bento Santiago (na infância conhecido como Bentinho), da prima Justina, do tio Cosme e do agregado José Dias. Contígua à casa dos Santiago está a do Pádua, funcionário público, que vive ali modestamente com a mulher Fortunata e a filha, Capitu. Os conflitos têm início e se desenvolvem a partir do envolvimento de Bentinho e Capitu, que vai do namoro ao casamento e ao nascimento do filho, Ezequiel, até a separação. Esta é motivada principalmente pela desconfiança crescente do narrador de que Ezequiel não é seu filho, mas sim de Escobar, colega do tempo de seminário. Nenhum dos dois virou padre: Escobar casou-se com Sancha, e Bento com Capitu. E os dois casais tornaram-se amigos.

 

Capitu se constrói pelos juízos do narrador a respeito do comportamento dela, que vão ao encontro dos preconceitos milenares sobre as mulheres e as relações conjugais

Ao se pôr a escrever, tantos anos depois dos sucessos narrados e num momento em que quase todas as personagens estão mortas (ou, nos termos sarcásticos do narrador, “foram estudar a geologia dos campos-santos”), Dom Casmurro quer fazer com o livro algo difícil, se não impossível: reviver o vivido. O empreendimento da escrita torna-se, portanto, similar à tentativa de reconstituir na nova casa que construiu no Engenho Novo aquela em que cresceu na rua de Matacavalos: 

A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. […] 

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.

Com o livro, o narrador procura atar as pontas da velhice às da adolescência e da vida conjugal, vividas entre as décadas de 1850 e 1870. 

A denúncia

A cena inaugural do romance evoca uma tarde de novembro de 1857, que o narrador diz nunca ter saído da sua memória. Bentinho, escondido atrás da porta, ouve José Dias advertir d. Glória sobre o perigo de ele pegar de namoro com a filha do vizinho. Isso comprometeria a promessa da mãe, feita por ocasião do nascimento do filho, de que, se ele vingasse, ela o tornaria padre. É nesse momento, e pela fala do agregado, que o menino de quinze anos teria se dado conta dos seus sentimentos por Capitu. “A denúncia” — é esse o título do capítulo, e é assim que o narrador percebe a revelação para si mesmo do seu amor juvenil — feita por José Dias à mãe serve também de alerta para os dois namorados; juntos, põem-se a pensar em maneiras de dissuadir d. Glória da ideia do seminário, permitindo que namorem e se casem. Diante das dificuldades, Capitu pensa logo numa fuga para a Europa: “Como vês, Capitu, aos catorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos”.

Ainda que Dom Casmurro esteja sempre com a palavra, a grande personagem do livro é Capitu, com seus olhos “de ressaca”, ou “de cigana oblíqua e dissimulada”, conforme a definição de José Dias. Tudo o que sabemos sobre ela nos chega pela visão do narrador, bastante econômico na descrição direta da personagem, mas insidioso nas sugestões que faz a respeito do seu caráter. Em grande medida, Capitu se constrói pelos juízos do narrador a respeito do comportamento dela, que vão ao encontro dos preconceitos milenares sobre as mulheres e as relações conjugais. No trecho reproduzido anteriormente, isso fica implícito no uso do adjetivo “sinuosas” para se referir ao comportamento da personagem feminina. 

Num determinado nível, Dom Casmurro conta a história de um amor que enfrenta os obstáculos impostos pela promessa da mãe e pelo muro social, e concreto, que separa a casa dos Santiago da dos Pádua. Mas, entre várias possibilidades de leitura, Dom Casmurro é também um romance sobre a tentativa de suprir as faltas, ausências, perdas, o que se manifesta nos objetivos declarados do narrador: “atar as duas pontas da vida”, “recompor o que foi [e] o que fui”, “viverei o que vivi”. Paradoxalmente, a tentativa desesperada de preenchimento das brechas vai evidenciando as lacunas sobre as quais se assenta a narrativa. 

O intervalo de décadas que separa o narrado do vivido torna a memória, com tudo o que há nela de seletividade, precariedade e engano, crucial para a composição da narrativa. Entretanto, o narrador volta e meia confessa suas deficiências como memorialista, pondo em questão a fidedignidade do que narra: “Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão”.

A estrutura lacunar do romance talvez ajude a compreender o porquê da variedade de leituras que suscitou ao longo de mais de cem anos, constituindo uma fortuna crítica numerosa, diversa e complexa

A disposição mesma das lembranças ao longo do livro pressupõe intervalos longos entre os momentos da vida privilegiados pelo protagonista. 

Nos cem capítulos iniciais predominam os episódios relacionados à infância, à adolescência e ao casamento de Bentinho e Capitu, estendendo-se desde a cena de 1857 em que ele se dá conta do seu envolvimento com Capitu até o seu matrimônio, em março de 1865. O capítulo 101, intitulado “No céu”, e os 45 seguintes concentram-se no período que vai de 1865 ao início da década de 1870. Eles tratam do casamento, que passa por um breve idílio, da apreensão pela demora da chegada do filho, do nascimento deste e de seu batizado como Ezequiel, do ciúme crescente de Bento, das desconfianças também crescentes em relação à paternidade, até a destruição de tudo o que havia sido construído. Os dois últimos capítulos coincidem com o tempo da narração, situado no final da década de 1890, em que Bento Santiago, já transformado em Dom Casmurro, se dedica à exposição retrospectiva dos desastres de sua vida amorosa e conjugal.

As reiteradas incertezas sobre a fidedignidade do narrado derivam também do ciúme, que começa a atormentar Bentinho na juventude e o acompanha por toda a vida, fazendo com que ele distorça o que viveu e o que relata (“Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu!”; “Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos”), tornando-se por fim a força devastadora que sela o destino das personagens.

O narrador ao longo de todo o livro induz quem o lê a fazer ligações entre os comportamentos da Capitu adulta e os da menina, detalhadamente apresentada como atrevida, dissimulada e interesseira, o que a tornaria responsável pelo fracasso do casamento. Isso se dá ora por associações explícitas que o narrador faz entre uma e outra — “se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” —, ora pela delegação ao leitor da tarefa de emendar reticências: “Vou esgarçando isto com reticências, para dar uma ideia das minhas ideias, que eram assim difusas e confusas; com certeza não dou nada”. E, ainda, pelo convite ao preenchimento das lacunas: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”. 

Leituras

A estrutura lacunar do romance talvez ajude a compreender o porquê da variedade de leituras que suscitou ao longo de mais de cem anos, constituindo uma fortuna crítica numerosa, diversa e complexa. 

Quando de sua publicação, Dom Casmurro foi recebido com três resenhas mais alentadas e uma pequena nota, todas altamente elogiosas ao autor e à obra. “O primeiro dos nossos escritores mortos e vivos”, “um escritor completo”, mestre”, escreveram os primeiros leitores. Sobre o livro: “requinte de perfeição”, perfeito na ideia, no desenho dos personagens e, mais que tudo, na limpidez de um estilo puríssimo”, “um livro perfeitíssimo”.

O consenso sobre a excelência do romance, com as exceções de praxe, prevaleceria. As interpretações, no entanto, variariam imensamente. Dom Casmurro tornou-se um dos livros mais discutidos e polêmicos de toda a literatura brasileira. A tal ponto que hoje é difícil, se não impossível, separar o enredo da obra das leituras que ele propiciou. 

Dom Casmurro é também um romance sobre a tentativa de suprir as faltas, ausências, perdas

Os primeiros leitores tenderam a endossar a versão do narrador a respeito da sua vida conjugal. José Veríssimo nota que Dom Casmurro descreve Capitu com amor e com ódio, “o que pode torná-lo suspeito”, e fecha seu artigo dizendo que a conclusão que o narrador enuncia ao final do romance — a da malícia das mulheres e da má-fé dos homens — talvez não coincida com a conclusão íntima do personagem. Entretanto, o crítico não leva adiante suas hipóteses.

Durante décadas, levantaram-se suspeitas sobre o comportamento do narrador, mas ninguém de fato confrontou a versão que ele dá para sua história conjugal. A voz isolada de um leitor pouco conhecido, F. de Paula Azzi, em 1939, não foi suficiente para produzir um questionamento público e minimamente generalizado sobre o estatuto do narrador. Assim, durante sessenta anos prevaleceu a obediência à ordem dele de não consultar dicionário e a naturalização das acepções que ele queria dar à palavra “casmurro”, que até mesmo passaram a constar de vários dicionários!

A modificação na leitura desta história, de um romance sobre o adultério feminino para um romance sobre o ciúme masculino, teve início na década de 1960, com a publicação do estudo The Brazilian Othello of Machado de Assis, traduzido como O Otelo brasileiro de Machado de Assis, da crítica norte-americana Helen Caldwell. Ela, que também foi a primeira tradutora de Dom Casmurro para o inglês, desafiou a autoridade do narrador e confrontou a versão que ele dá para a história de sua relação com Capitu. Ao deslocar o foco da personagem feminina para o personagem-título, Caldwell produziu uma viravolta no entendimento do romance, encetando uma série de leituras baseadas na não confiabilidade desse e de outros narradores machadianos. 


Os imbróglios produzidos pelo romance fazem pensar nos possíveis efeitos pretendidos pelo escritor quando, ao compor este livro, hesitava entre vários títulos, conforme deixou registrado na carta de 1895.

 

*Nota do editor: Professor da USP e pesquisador da obra de Machado de Assis, Hélio de Seixas Guimarães escreveu este texto de apresentação para a nova edição de Dom Casmurro, que a editora Todavia lança em março de 2025. O volume é parte da coleção “Machado fora da caixa: todos os livros de Machado de Assis”, com 26 títulos, prefaciados pelo autor do texto reproduzido aqui.

 

Quem escreveu esse texto: 


Hélio de Seixas Guimarães

É professor livre-docente na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq.

 

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