Hernán Ouviña.
Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política: uma leitura latino-americana.
Tradução: Igor Ojeda. São Paulo: Boitempo, 2021, 184 págs.
... “A liberdade é sempre, e exclusivamente, liberdade para quem pensa diferente” (Luxemburgo, 1918)...
... “A liberdade só para os que apoiam o governo, só para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade alguma. Liberdade é sempre a liberdade dos que pensam de modo diferente. Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo o que é instrutivo, saudável e purificador na liberdade política depende desse caráter essencial, e sua eficácia desaparece quando a ‘liberdade’ se torna um privilégio” (Luxemburgo, 1918)...
Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política
Por MARCIO SALES SARAIVA*
Comentário sobre o livro de Hernán Ouviña
Hernán Ouviña nos oferece uma leitura contemporânea da trajetória e do pensamento de Rosa Luxemburgo (1871-1919), destacando sua relevância para as lutas políticas do nosso século. Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política não apenas revisita os escritos e a militância da revolucionária polonesa-alemã, mas também propõe um diálogo entre sua teoria e as lutas sociais do presente, especialmente em nossa América Latina.
“No Brasil, em particular, sabemos que as ideias de Rosa Luxemburgo começaram a ser divulgadas por Mário Pedrosa – fundador da oposição trotskista e nosso maior crítico de artes plásticas – nas páginas do semanário Vanguarda Socialista, editado por ele no Rio de Janeiro de fins de 1945 a meados de 1948. Aí foram publicados alguns dos artigos políticos mais importantes de Rosa Luxemburgo, com cuja obra Mário Pedrosa tivera um primeiro contato em Berlim e Paris no fim da década de 1920.
No cenário imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, quando o pensamento de esquerda era dominado pelo stalinismo, a divulgação do ideário socialista democrático, popular e antiburocrático de Rosa Luxemburgo tinha o fito de criar uma nova esquerda, humanista e independente, tanto da social-democracia quanto do stalinismo.” (Ouviña, 2019, p. 13)
Desde o início do livro, Hernán Ouviña já estabelece seu compromisso em apresentar uma Rosa Luxemburgo para além dos clichês acadêmicos, enfatizando sua “radicalidade insurgente e sua aposta em um socialismo democrático e de massas” (Ouviña, 2019, p. 15). O autor argumenta que o pensamento de Rosa Luxemburgo se distingue tanto do marxismo ortodoxo – especialmente em sua versão dogmática, autointitulada “marxismo-leninismo” – quanto das vertentes reformistas, nacionalistas e eleitoreiras da social-democracia, sendo marcado por uma visão dialética da política, que valoriza a ação autônoma das massas.
Hernán Ouviña inicia sua análise situando Rosa Luxemburgo dentro do contexto do final do século XIX e início do século XX, momento em que a luta de classes tomava novas formas diante do avanço do capitalismo monopolista e da intensificação das disputas imperialistas. Rosa, nascida no seio de uma família judia na Polônia sob domínio do Império Russo, teve sua trajetória profundamente marcada pelo exílio, pela militância socialista e pela produção teórica inovadora.
Como destaca Hernán Ouviña: “Desde sua juventude, Rosa Luxemburgo mostrou um pensamento crítico afiado, recusando-se a aceitar dogmas e buscando sempre desafiar as estruturas de poder, inclusive dentro da própria esquerda” (p. 28).
O autor recupera momentos cruciais da vida de Rosa Luxemburgo, como sua participação na fundação do Partido Social-Democrata do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL), seu exílio na Alemanha e seu papel na Liga Espartaquista, que culminaria na Revolução Alemã de 1918-1919. A recusa de Rosa Luxemburgo em ceder ao pragmatismo eleitoral da social-democracia alemã ou ao autoritarismo emergente no bolchevismo russo é um dos pontos centrais do livro.
A reinvenção da política – democracia, revolução e autonomia das massas
Um dos aspectos mais inovadores da obra de Hernán Ouviña é a maneira como ele articula o pensamento de Rosa Luxemburgo com a necessidade de reinventar a política no século XXI. Para o autor, a comunista não compreendia a revolução como um ato mecânico, conduzido por decretos ou estratégias rigidamente delineadas, mas como um processo vivo, dialético e aberto, em que a participação ativa e autônoma das massas era o elemento decisivo. Rosa rejeitava tanto o reformismo parlamentarista da social-democracia alemã quanto o centralismo autoritário que se consolidava na Rússia pós-1917, afirmando que o socialismo autêntico só poderia ser construído através da ação autônoma e criativa do proletariado em luta.
Citando Rosa Luxemburgo, Hernán Ouviña destaca a importância da liberdade de crítica e do debate político como fundamentos indispensáveis de qualquer processo revolucionário: “A liberdade reservada apenas aos partidários do governo, apenas aos membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. A liberdade é sempre, e exclusivamente, liberdade para quem pensa diferente” (Luxemburgo, 1918, apud Ouviña, 2019, p. 73).
Essa defesa intransigente da democracia proletária, entendida não como uma formalidade institucional, mas como o exercício real do poder pelas massas trabalhadoras, levou Rosa Luxemburgo a criticar as medidas autoritárias do bolchevismo, como a dissolução da Assembleia Constituinte em 1918 e a repressão a correntes opositoras dentro do movimento socialista. Segundo Hernán Ouviña, essa divergência não decorre de um mero desacordo tático, mas de uma concepção mais profunda: para Rosa Luxemburgo, a revolução não poderia ser imposta de cima para baixo por uma vanguarda dirigente, mas deveria emergir do aprendizado coletivo e da auto-organização popular.
Hernán Ouviña sintetiza essa perspectiva ao afirmar: “Ela nos ensina que a política emancipatória não pode se reduzir a uma estratégia desenhada por uma elite esclarecida, mas deve emergir da prática concreta das massas em luta” (Ouviña, 2019, p. 91).
Rosa Luxemburgo acreditava que os erros e as contradições do movimento operário eram parte inseparável do próprio processo revolucionário e que a consciência de classe só poderia se formar através da experiência direta de combate ao capital. Por isso, ela rejeitava a ideia de uma direção onipotente que guiaria as massas de forma paternalista. Em suas palavras: “Sem eleições gerais, sem liberdade irrestrita de imprensa e de reunião, sem uma luta de opinião livre, a vida em qualquer instituição pública definha e se torna uma caricatura da própria vida, na qual apenas a burocracia sobrevive como elemento ativo” (Luxemburgo, 1918, apud Ouviña, 2019, p. 78).
Essa visão permanece atual diante dos desafios contemporâneos, em que o avanço do capitalismo financeiro globalizado e a crise da democracia representativa geram apatia, desmobilização e a ascensão de políticas autoritárias. Ao recuperar a centralidade da auto-organização e da liberdade política na obra de Rosa Luxemburgo, Hernán Ouviña propõe que as lutas do século XXI devem recusar tanto a tutela de elites burocráticas quanto as ilusões de uma democracia eleitoral de baixa intensidade que não transforma as condições materiais de exploração e opressão.
Nesse sentido, a reflexão de Rosa Luxemburgo – articulando liberdade, participação popular e crítica ao autoritarismo – oferece ferramentas conceituais para pensar novas formas de ação coletiva e democracia radical, que, longe de serem modelos fixos, devem se reinventar continuamente em resposta às lutas concretas e aos desafios do presente.
Críticas ao reformismo e ao autoritarismo
Outro eixo fundamental do livro é a crítica de Rosa Luxemburgo tanto ao reformismo da social-democracia alemã quanto ao autoritarismo bolchevique. Hernán Ouviña destaca como a revolucionária polonesa-alemã se opôs firmemente a qualquer tentativa de limitar a luta socialista aos marcos institucionais do Estado burguês, compreendendo que a transformação radical da sociedade exigia a ruptura revolucionária com as estruturas de poder existentes.
No caso do reformismo, Hernán Ouviña resgata sua célebre polêmica com Eduard Bernstein, teórico da social-democracia alemã, que defendia a possibilidade de uma transição gradual ao socialismo por meio de reformas progressivas no Parlamento e na ampliação de direitos dentro da ordem capitalista. Rosa Luxemburgo criticava essa perspectiva por considerá-la uma capitulação teórica e prática, que abandonava o horizonte revolucionário em troca da adaptação ao sistema vigente.
Em seu clássico Reforma ou revolução? (1899), ela afirma: “A reforma legal e a revolução não são métodos distintos de desenvolvimento histórico que se podem escolher à vontade, mas diferentes momentos no desenvolvimento da sociedade de classes” (Luxemburgo, 1899, apud Ouviña, 2019, p. 112).
Para Rosa Luxemburgo, o reformismo não era apenas uma estratégia equivocada, mas um caminho que, ao invés de superar o capitalismo, acabava por reforçá-lo ao limitar as lutas a conquistas parciais e paliativas. Ela argumentava que, sem uma ruptura revolucionária, as reformas tenderiam a ser absorvidas e neutralizadas pelas próprias contradições do sistema capitalista. Como afirma em outro trecho: “Aqueles que se pronunciam a favor da via reformista em oposição à tomada do poder e à revolução social, na verdade, não escolhem um caminho mais calmo, mais tranquilo, para o mesmo objetivo, mas sim um objetivo diferente” (Luxemburgo, 1899, apud Ouviña, 2019, p. 115).
Para Hernán Ouviña, essa crítica permanece atual, especialmente diante das experiências recentes da social-democracia europeia e do progressismo latino-americano. Em ambos os casos, observa-se a tentativa de conciliar um discurso com tons à esquerda com a aplicação de políticas econômicas neoliberais, o que, segundo o autor, resulta em desmobilização popular e na preservação das estruturas fundamentais de exploração.
Em suas palavras: “A lição que Rosa nos deixa é que sem a participação ativa e a auto-organização popular, qualquer projeto progressista corre o risco de se acomodar às engrenagens do poder burguês e acabar se convertendo em seu gestor” (Ouviña, 2019, p. 118).
Ao mesmo tempo, Hernán Ouviña ressalta que a crítica de Rosa Luxemburgo ao reformismo não implicava a rejeição das lutas por melhorias concretas na vida das massas. Pelo contrário, Rosa Luxemburgo defendia que as reformas eram importantes como momentos do processo revolucionário, desde que estivessem articuladas a uma estratégia que visasse a superação do capitalismo em sua totalidade. Para ela, as conquistas parciais deveriam servir como campo de aprendizado e como impulso para a consciência de classe e para a ação autônoma dos trabalhadores.
“Toda tentativa de melhorar as condições de vida sob o capitalismo é útil apenas na medida em que fortalece a capacidade das massas para destruir o próprio capitalismo” (Luxemburgo, 1910, apud Ouviña, 2019, p. 122).
Em contraposição ao modelo reformista de transformação por dentro do sistema, Rosa Luxemburgo apostava na auto-organização e na mobilização das massas como motor da história. Sua concepção de luta revolucionária, longe de ser um plano técnico elaborado por intelectuais ou dirigentes do partido operário, era concebida como um processo dinâmico, em que os próprios trabalhadores, em sua experiência concreta de luta, desenvolveriam a consciência política e a capacidade de autogoverno. Assim, para Rosa Luxemburgo, a revolução não poderia ser substituída por negociações parlamentares nem conduzida por uma vanguarda iluminada.
Nesse sentido, Hernán Ouviña argumenta que a crítica luxemburguista ao reformismo permanece fundamental para compreender os limites das estratégias políticas que, ainda hoje, buscam conciliar a manutenção da ordem capitalista com políticas sociais mitigadoras. Em vez de aceitar essas limitações, Rosa Luxemburgo propõe uma perspectiva que mantém viva a necessidade de uma ruptura radical e emancipatória, que só pode ser realizada a partir da ação direta e da participação autônoma do proletariado.
Internacionalismo e revolução mundial
Hernán Ouviña também sublinha a importância central do internacionalismo no pensamento de Rosa Luxemburgo. Diferente de visões que restringem a luta socialista ao espaço nacional, Rosa insistia que a revolução deveria ser global, pois o capitalismo operava em escala mundial e sua reprodução dependia da exploração contínua de novas regiões. Em suas palavras: “O socialismo não pode ser realizado dentro das fronteiras de um único país, pois a economia moderna está interconectada em uma rede global que não pode ser desfeita artificialmente” (Luxemburgo, 1916, apud Ouviña, 2019, p. 135).
Essa concepção rompe com as tendências do socialismo reformista e do nacionalismo burguês, que buscam adaptações locais dentro do sistema capitalista. Para Rosa Luxemburgo, a interdependência global do capital exige uma estratégia revolucionária internacionalista, que una a classe trabalhadora em diferentes países contra as estruturas do capitalismo global. Em seu clássico A acumulação do capital, ela já denunciava como a expansão colonial era vital para a sobrevivência do sistema capitalista, gerando uma integração econômica global que impedia soluções isoladas.
Hernán Ouviña destaca, ainda, como a abordagem luxemburguista articula sujeito e estrutura de forma dialética, evitando tanto um determinismo mecânico quanto um voluntarismo idealista. Em suas palavras: “Rosa tenta articular sujeito e estrutura, iniciativa e luta de classes, sem os desvincular dos contextos e determinações múltiplas que marcam seu devir. Para isso, retoma Marx e o interpreta em uma chave complexa, a partir dessa totalidade concreta e em função de uma dialética que evita qualquer determinismo e subjetividade caprichosa: ‘Os homens não fazem arbitrariamente a história, mas, apesar disso, fazem-na eles mesmos’. (…) E embora não possamos saltar por cima do desenvolvimento histórico, assim como um homem não pode saltar por cima da própria sombra, podemos, no entanto, acelerá-lo ou retardá-lo, diz Rosa Luxemburgo” (Ouviña, 2019, p. 66-67).
Essa formulação aponta para uma tensão permanente entre as condições materiais objetivas e a ação política consciente. Para Rosa Luxemburgo, a transformação socialista não é um processo linear ou espontâneo, mas resulta do impulso organizado dos trabalhadores, que podem acelerar as contradições do capital e abrir brechas para a revolução. Por isso, a prática internacionalista é não apenas um imperativo moral, mas uma necessidade estratégica para romper com a lógica de exploração global.
A atualidade desse pensamento se destaca quando consideramos as dinâmicas do capitalismo financeiro globalizado, que impõe desafios cada vez mais complexos às lutas sociais e ecológicas. As políticas neoliberais, a financeirização da economia e a captura dos Estados nacionais pelo capital transnacional criam uma nova configuração de poder em que as decisões fundamentais são tomadas fora do alcance dos processos democráticos tradicionais e locais. Esse fenômeno gera, em muitos casos, apatia e desmobilização diante de estruturas que parecem esmagar o sujeito histórico e suas possibilidades de transformação.
Ao mesmo tempo, a crítica luxemburguista à fragmentação nacional permanece pertinente. A ascensão de movimentos reacionários de extrema direita e a rearticulação de formas contemporâneas de imperialismo reforçam a necessidade de uma perspectiva internacionalista que transcenda as fronteiras nacionais e promova solidariedade entre os explorados em escala global.
Como afirmou Rosa Luxemburgo em seu ensaio contra a Primeira Guerra Mundial: “A liberdade só para os que apoiam o governo, só para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade alguma. Liberdade é sempre a liberdade dos que pensam de modo diferente. Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo o que é instrutivo, saudável e purificador na liberdade política depende desse caráter essencial, e sua eficácia desaparece quando a ‘liberdade’ se torna um privilégio” (Luxemburgo, 1918, apud Ouviña, 2019, p. 73).
Portanto, recuperar o internacionalismo radical de Rosa Luxemburgo implica resistir às tentações do fechamento nacionalista e do reformismo burocrático, reafirmando a necessidade de uma transformação global que não se limite a adaptações superficiais ao sistema capitalista. Nesse sentido, sua obra permanece um farol para aqueles que, no século XXI, buscam alternativas emancipadoras diante de um capitalismo que se apresenta como único horizonte possível, mas que segue gerando desigualdade, destruição ambiental e precarização em escala planetária.
Ecologia e crítica à acumulação capitalista
Um aspecto frequentemente negligenciado em leituras tradicionais de Rosa Luxemburgo, mas que Hernán Ouviña resgata com profundidade, é sua preocupação com a devastação ambiental gerada pela lógica expansiva do capitalismo. Em sua obra “A acumulação do capital” (1913), Luxemburgo já identificava como o sistema capitalista dependia não apenas da exploração da força de trabalho assalariada, mas também da destruição dos modos de vida tradicionais e da apropriação violenta de territórios e recursos naturais. Este processo, que antecipa o que mais tarde David Harvey denominaria ‘acumulação por espoliação”, revela como o capital só pode sobreviver mediante a expansão contínua e a mercantilização de todas as esferas da vida.
Como sintetiza Hernán Ouviña: “Rosa Luxemburgo anteviu o que hoje chamamos de ‘acumulação por espoliação’, um mecanismo pelo qual o capitalismo precisa expandir-se continuamente, destruindo ecossistemas e culturas para manter sua lógica de acumulação” (Ouviña, 2019, p. 153).
A abordagem luxemburguista da acumulação revela como o capital não se sustenta apenas na exploração clássica do trabalho industrial, mas se nutre da pilhagem de recursos naturais, da expropriação de territórios indígenas e camponeses, e da destruição de ecossistemas inteiros. Para Hernán Ouviña, essa leitura ecológica de Rosa Luxemburgo antecipa debates fundamentais do ecossocialismo contemporâneo, articulando-se com as lutas antiextrativistas, indígenas, negras, camponesas e feministas que denunciam a mercantilização da vida e a devastação ambiental promovida por megacorporações em conluio com os Estados.
Ao trazer à tona essa dimensão, Hernán Ouviña estabelece um diálogo fecundo entre o pensamento de Rosa Luxemburgo e os desafios enfrentados pelos movimentos populares no Sul Global, especialmente na América Latina. Em países marcados pela dependência neocolonial e pela imposição de políticas neoliberais, o avanço de projetos extrativistas – frequentemente respaldados por governos autoritários – intensifica a espoliação de comunidades tradicionais e agrava a crise climática. Essa análise é crucial em um momento em que a financeirização da economia global transforma a natureza em ativo especulativo, aprofundando a desigualdade e a destruição ambiental.
A luta contra a extrema direita e o neoliberalismo financeirizado
Hernán Ouviña não se limita a uma leitura histórica ou abstrata de Rosa Luxemburgo. Ele insere suas reflexões em um diagnóstico agudo da conjuntura contemporânea, ressaltando a importância de qualificar a esquerda global na luta contra as novas formas de dominação capitalista e o avanço da extrema-direita. A ascensão de projetos neofascistas em diversas partes do mundo – apoiados por setores do capital financeiro e pelo complexo industrial-militar-extrativista – não pode ser enfrentada com fórmulas desgastadas de social-democracia ou por meio de concessões ao neoliberalismo.
Para Hernán Ouviña, uma lição essencial de Rosa é sua recusa tanto ao reformismo parlamentar, que dilui a luta anticapitalista em ajustes dentro do sistema, quanto ao autoritarismo burocrático, que sufoca a criatividade política das massas. Em vez de aceitar a falsa dicotomia entre neoliberalismo “progressista” e o autoritarismo de extrema-direita, o autor sugere que a esquerda precisa reconstruir um projeto radicalmente democrático, internacionalista e ecológico, ancorado na participação popular e na autonomia dos movimentos sociais.
A experiência histórica mostra que, sempre que a esquerda abandona suas bandeiras transformadoras para se acomodar ao jogo institucional ou para gerir a crise do capital, abre espaço para que a extrema-direita se apresente como alternativa “antissistema”. Hernán Ouviña, através de suas reflexões, indiretamente adverte que a ascensão de figuras autoritárias não pode ser combatida apenas com discursos moralistas ou apelos a uma racionalidade institucional, mas exige a construção de um bloco popular amplo e combativo, capaz de disputar tanto as estruturas políticas formais quanto os imaginários coletivos.
“Se há algo que podemos aprender com Rosa Luxemburgo é que a revolução não é um ato fechado, mas um processo sempre aberto, no qual a criatividade e a autodeterminação dos oprimidos são os motores centrais” (Ouviña, 2019, p. 198).
Rosa Luxemburgo como guia para a reinvenção de uma política de esquerda
Ao longo da obra, Hernán Ouviña demonstra que Rosa Luxemburgo não é apenas uma referência histórica ou uma relíquia de um passado revolucionário distante. Pelo contrário, suas reflexões continuam a oferecer ferramentas teóricas e políticas fundamentais para quem busca construir um socialismo do século XXI que esteja à altura dos desafios atuais.
A ênfase luxemburguista na autodeterminação popular, na democracia radical e na crítica implacável ao autoritarismo burocrático oferece um horizonte estratégico para as lutas que enfrentam a dupla ameaça do neoliberalismo financeirizado e da extrema direita.
Para Hernán Ouviña, retomar Rosa Luxemburgo hoje implica reafirmar que a emancipação não será obra de elites esclarecidas nem de programas tecnocráticos de vanguarda, mas de processos coletivos em que os sujeitos oprimidos protagonizam a transformação social. Em um cenário de crise ecológica, precarização do trabalho e avanço do neofascismo, a reinvenção da política exige, mais do que nunca, um compromisso com a radicalidade democrática e a construção de alternativas que rompam com a lógica do lucro e da mercantilização da vida.
Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política não é apenas um resgate histórico, mas um convite à prática militante e à renovação do pensamento crítico. Em tempos de ofensiva capitalista e de crescente autoritarismo, a obra de Hernán Ouviña reforça a necessidade de uma esquerda global que combine a firmeza programática com a criatividade política, compreendendo que a luta pelo socialismo não se reduz a fórmulas do passado, mas é, como Rosa Luxemburgo afirmava, “um processo sempre aberto”, no qual a liberdade, a igualdade e a solidariedade, bases de uma democracia radical e, portanto, socialista, só podem ser construídas pela ação autônoma e coletiva das massas populares em luta.
*Marcio Sales Saraiva é sociólogo e doutor em psicossociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referência
Hernán Ouviña. Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política: uma leitura latino-americana. Tradução: Igor Ojeda. São Paulo: Boitempo, 2021, 184 págs. [https://amzn.to/4kyIj8i]
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