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sábado, 30 de setembro de 2023

O discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado - Paulo Roberto de Almeida (revista Órbita)

 Um pequeno artigo analítico publicado recentemente: 

4481. “discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado”, Brasília, 20 setembro 2023, 3 p. Comentários sobre os pontos controversos do discurso do presidente na 78ª AGNU, a pedido do jornalista Fabio Cardoso. Publicado em formato editorial próprio na Revista Órbita (São Paulo: Rio Bravo Investimentos, 25/09/2023; link: https://www.riobravo.com.br/o-discurso-de-lula-na-78a-assembleia-geral-da-onu-entre-o-esperado-e-o-fabricado/; link da revista: https://www.riobravo.com.br/orbita/).  Relação de Publicados n. 1524.


Eis a versão original: 


discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

  

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura dos debates na 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – o 9º que ele pronuncia, depois dos oito anteriores já feitos em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010 – não difere muito do tom reivindicativo e até pedagógico (ou seja, ensinando ao mundo como ele poderia se comportar melhor) daqueles precedentes, a não ser pelo fato deste mais recente, em 19 de setembro de 2023, revelar mais abertamente algumas das opções políticas já desveladas por Lula em diversas ocasiões nos últimos nove meses (e até durante a campanha presidencial de 2018). Vamos evidenciar apenas alguns aspectos desse pronunciamento, dadas a sua extensão (cerca de seis páginas) e as suas pretensões abrangentes, de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

Cabe, antes de mais nada, registrar que ele possui algumas das características típicas de todos os seus discursos num ambiente diplomático, que são a sua estrutura híbrida e os seus componentes bipolares: de um lado, os elementos habituais dos discursos feitos por burocratas do Itamaraty – num estilo polido e no habitual diplomatês –, e de outro lado, os componentes partidários e ideológicos que são mais frequentemente enxertados no Palácio do Planalto. Antes, nos dois mandatos anteriores, e até no 1,5 mandato de Dilma, essa última tarefa estava ao encargo do apparatchik do partido encarregado dos assuntos internacionais – mais conhecido no Itamaraty como “chanceler para a América do Sul –, agora é o próprio ex-chanceler que se desempenhou da função, provavelmente ajudado por alguns grão-petistas.

Esse primeiro lado, o do diplomatês habitual, é o esperado nos discursos do gênero, com a sucessão de invectivas sobre as desigualdades do mundo, as assimetrias sociais, étnicas e outras, o pouco comprometimento dos países ricos em atender aos requerimentos desejados pela cooperação para o desenvolvimento dos países mais pobres, acrescido das questões mais presentes nas últimas décadas: sustentabilidade ambiental, transição energética, ameaças à paz internacional derivadas das armas atômicas e outras questões desse rol. Não há muito o que comentar nesse particular, pois é o que vêm fazendo todos os chanceleres, desde muitas décadas no passado, e o que farão também os seus sucessores, no futuro previsível. Vamos deixar de lado, então, a questão da fome no mundo, a desigualdade na distribuição de renda ou até a defesa da democracia e dos direitos humanos. Tudo isso já era esperado e habitual.

O mais interessante, portanto, seria comentar o que há de novidade no discurso deste ano, e aí é que entram as tais novidades políticas, ideológicas e partidárias, que parecem ter se acentuado desde algum tempo, talvez coincidente com a volta do mundo a uma nova Guerra Fria, desta vez não mais geopolítica, como entre 1947 e 1989, e mais econômica e tecnológica, desde a ascensão irresistível da China à preeminência comercial planetária. A principal é uma crítica à própria ONU e suas instituições subordinadas, o que não era frequente nos discursos tradicionais preparados pelo Itamaraty. 

Lula disse que “Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução”, e o exemplo indicado é o diferencial de ajuda dado pelo FMI aos países europeus – segundo ele 160 bilhões de dólares – e aquele fornecido aos países africanos, apenas 34 bilhões. Ora, se formos considerar o PIB conjunto da Europa e o da África, assim como a amplitude dos desequilíbrios que possam ter sido compensados pela ajuda do FMI, constata-se que os países africanos receberam muito mais, pelo porte das economias e pela renda per capita. Não se vê, por outro lado, onde é que as instituições de Bretton Woods e a OCDE fizeram a “apologia do Estado mínimo”, quando esses órgãos são o mais próximo que se possa ter, nas economias de mercado, de planejamento econômico e de intervencionismo na regulação macroeconômica e setorial. 

Fica também difícil de constatar onde o “neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”, sendo que seu legado seria “uma massa de deserdados e excluídos”. Os dois maiores países antes guiados pelo socialismo ou pela ação diretiva do Estado, China e Índia, são justamente aqueles que retiraram centenas de milhões de miseráveis de uma pobreza ancestral graças ao fato de terem abandonado o dirigismo anterior e aderido a versões mais abertas de uma economia de mercado, inclusive por uma inserção deliberada em todos os tipos de transações globalizadas. Mas o argumento mais surpreendente se refere à guerra na Ucrânia: segundo Lula, ela “escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.” Como coletiva? A guerra de agressão foi perpetrada por um violador claramente identificado coletivamente, condenado em resoluções da própria AGNU, mas que NUNCA é referido por Lula, o que se parece bem mais com uma espécie de miopia individual, ou coletiva, dos que escreveram o discurso para o presidente. 

Lula também é crítico de “toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência”, o que é desmentido pela sua exaltação da ampliação do Brics – descrito por ele como “uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes” – e por seus recorrentes apelos à construção de uma “nova ordem global”, de sabor, teor e finalidades claramente antiocidentais, dadas seus reiteradas críticas aos países ocidentais que “estão sustentando a guerra na Ucrânia pelo fornecimento de armas”, o que é, no mínimo, um convite ao desaparecimento do país invadido pela força das tropas invasoras. O crescimento do Brics, decidido na cúpula de Joanesburgo – mais 120% de membros, mais uma vez pelas mãos da China, como já tinha sido o caso da África do Sul – fortalece, segundo Lula, “a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21”. 

O sentido dessa ampliação aponta claramente para uma oposição ao “neoliberalismo falido”, que, na visão do presidente, foi substituído por “um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”. Algum jornalista talvez devesse perguntar a Lula o que ele está achando do governo de Putin, que tem feito leis de nítido teor conservador, homofóbico e autoritário. O único jornalista do qual ele se lembrou foi Julian Assange: Lula não deve ter sido informado da situação do jornalista russo Vladimir Kara-Murza, condenado por Putin a 25 anos de cadeia supostamente por “espalhar desinformação”. 

Os antigos discursos puramente diplomáticos de Lula eram bem mais coerentes com a democracia e os direitos humanos, que Lula diz defender, e bem menos divergentes com uma realidade fabricada por seus assessores puramente partidários para este discurso de 2023. 

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 4481, 20 setembro 2023, 3 p. 

Revista Órbita (Rio Bravo Investimentos: https://www.riobravo.com.br/orbita/); contato: jornalista Fabio Cardoso]

 


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