Um dos conflitos do Prata, no Império, foi justamente causado pela ação argentina de tentar controlar os afluentes do Rio da Prata. Voltamos a isso?
Pedágio em hidrovia coloca Brasil e Paraguai contra Argentina e gera crise
Via é usada como caminho mais barato para transportar soja, milho e derivados Júlia Barbon BUENOS AIRES É dia 28 julho e uma embarcação de bandeira paraguaia navega pelas águas do rio Paraná levando 13.561 toneladas de soja brasileira à Argentina. Ao chegar para descarregar os grãos na cidade de San Lorenzo, a cerca de 300 km da costa, porém, o rebocador se recusa a pagar pedágio e é retido por decisão judicial.
O barco é liberado dez dias depois, com o pagamento da tarifa, e faz emergir uma discussão que até então estava se dando abaixo da superfície: a imposição de uma taxa pela Argentina, desde janeiro, a quem passar por um trecho da hidrovia Paraguai-Paraná, que corta cinco países ligando o Mato Grosso ao rio da Prata. Sem que se conseguisse um acordo na instância técnica nos últimos dez meses, o assunto foi parar nos gabinetes políticos, escalando na semana passada para trocas de acusações públicas e até retaliações práticas entre Argentina e Paraguai. Este último chegou a suspender a venda de energia aos argentinos, que tiveram que recorrer às usinas brasileiras, mais caras.
A tensão subiu em toda a região, gerando um cenário de quatro contra um: Brasil, Bolívia e Uruguai se juntaram ao coro paraguaio para pedir que os vizinhos retirem o pedágio até que a questão seja resolvida. Enquanto isso, os países já iniciaram os trâmites para uma possível arbitragem internacional, o que é visto como um retrocesso para a integração regional tão almejada pelo presidente Lula.
A hidrovia em debate, com 3.442 km de extensão, é gerida de forma conjunta entre essas nações desde o fim da década de 1980, servindo de caminho mais barato para soja, milho e derivados, além de combustíveis, fertilizantes e minério de ferro. A via é especialmente importante para o Paraguai, que não tem ligação com o mar, então depende dela para transportar quase 80% do seu comércio exterior, e tem a terceira maior frota de embarcações do mundo.
Os quatro países criticam principalmente dois pontos: primeiro, dizem que a Argentina impôs o pedágio —de US$ 1,47 ou R$ 7 por tonelada— de forma unilateral e arbitrária, o que vai contra os tratados que preveem uma decisão em conjunto. Depois, reclamam que, ao reter os barcos, a nação restringiu a liberdade de navegação de bens estratégicos, novamente indo contra os acordos vigentes. "No entendimento do Brasil, da Bolívia, do Paraguai e do Uruguai, o governo argentino não foi capaz de demonstrar, até o momento, que o pedágio constitui ressarcimento de serviços efetivamente prestados na hidrovia, condição prevista no acordo para qualquer cobrança", afirmou o Itamaraty à Folha. O Paraguai disse que não seria possível indicar porta-voz.
A Argentina argumenta que a taxa é uma compensação por melhorias estruturais feitas no rio nos últimos 13 anos e insinua que a situação escalou pelo lado paraguaio, que estaria agindo por pressão do empresariado local. Procurada, a Casa Rosada afirmou que está respeitando o acordo de não dar declarações sobre o assunto e que o ambiente das negociações tem sido positivo.
O tom começou a subir em 24 de agosto, após o ministro da Economia e candidato presidencial argentino, Sergio Massa, fazer uma escala em Assunção para conversar com o presidente recém-empossado Santiago Peña. Eles posaram juntos para a foto, mas horas depois o Ministério de Relações Exteriores paraguaio criticou a Argentina nas redes sociais por não ter cumprido o suposto combinado de retirar o pedágio.
Diego Giuliano, ministro dos Transportes argentino, respondeu no post que lamentava "que o conteúdo de uma reunião tão frutífera tenha sido distorcido". "Não sei se é falta de comunicação, acredito que são momentos distintos. No caso do Paraguai é muito claro: quando dizemos algo, se cumpre", alfinetou Peña a jornalistas no dia seguinte. "Nós não negamos a opção de cobrança [...], mas não podemos cobrar unilateralmente, deve ser um acordo entre os cinco países", adicionou.
O marco da escalada do conflito, então, ocorreu no último dia 6, quando uma segunda embarcação paraguaia foi parada em Zárate, cidade a 90 km de Buenos Aires, após também se negar a quitar o pedágio por transportar diesel paraguaio ao próprio Paraguai. Ela só foi liberada cinco dias depois, após pagar uma taxa. Enquanto isso, as farpas se transformaram em ações concretas: no dia 8, Peña decidiu parar de vender o excedente de energia produzido pela hidrelétrica Yacyretá, compartilhada entre os dois países, acusando a Argentina de não pagar uma dívida antiga —do outro lado, os argentinos também reclamam um passivo histórico menor pela construção da represa. "A decisão de retirar 100% da energia disponível para o Paraguai foi intencional, e a Argentina teve que comprar energia do Brasil a um custo mais alto. Fizemos grandes esforços para recompor a relação [...], mas os atrasos significativos com o Paraguai persistem", disse o presidente Peña ao jornal argentino La Nación no dia 10, depois negando uma relação com o assunto do pedágio.
Na mesma noite, os quatro países divulgaram uma nota pedindo que a Argentina suspenda a taxa e garanta a livre navegação até que se resolva o impasse, o que não foi feito até agora. No dia seguinte, uma delegação ligada a Massa viajou a Assunção para reduzir a tensão. Indicou-se que os dois lados concordaram com o direito de cobrar pedágio, mas ainda sem saber quanto nem como. Achamos que US$ 1,47 é um valor excessivo, os cerealistas calculam que deveria ser de US$ 0,66 [ou R$ 3,20].
Dependendo da carga, isso encarece em até 10% o valor do frete, e quem acaba pagando é a população em geral quando compra produtos importados", diz Raúl Valdez, presidente do Centro de Armadores Fluviais e Marítimos do Paraguai (Cafym). Ele diz que os pedágios pagos desde janeiro somam cerca de US$ 50 milhões, o dobro dos US$ 25 milhões que a Argentina afirma ter gasto com melhorias na hidrovia —o país não respondeu sobre as cifras. "Reconhecemos os investimentos e a necessidade do pedágio, mas as dragagens e sinalizações feitas até aqui não se traduziram em mais eficiência e segurança.
É preciso trabalhar juntos, nós sabemos o que tem que ser feito." Agora, iniciaram-se as reuniões técnicas para decidir o valor e a forma de pagamento, além de debater a situação da hidrelétrica de Yacyretá. Se os dois lados não chegarem a um acordo, o caso deve passar à arbitragem internacional, como indicou Peña. O chanceler paraguaio Rubén Ramírez também chegou a dizer que acionou o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário