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sábado, 23 de novembro de 2024

Camões, 500 Anos - Paulo Gustavo (Revista Será? - enviado por Mauricio David)

Camões, 500 Anos

Postado por Paulo Gustavo | 

Revista Será?, nov 22, 2024      


Camões

 

Camões entra cedo em nossas vidas pela mão invisível e onipresente da cultura. De minha parte, tive o privilégio de ter sido aluno, no Colégio de Aplicação da UFPE, de um dos grandes  estudiosos do poeta no Brasil: refiro-me ao admirável e saudoso mestre Rubem Franca, um enlouquecido de Camões, que, com apenas treze anos de idade, já lera e praticamente decorara “Os Lusíadas”, possuidor que era de impressionante memória e aguda inteligência, passando a levar, dentro de si, como um órgão vital, a epopeia camoniana. Essa paixão continuaria vida afora, dividida com a medicina e o magistério de História e Geografia. Suas aulas, nas quais por vezes recitava o poeta, eram de fato mágicas, e sua devoção ao gênio português, um fervor quase religioso. 

No entanto, esse “meu Camões”, tão logo encontrado, por algum tempo submergiu, só emergindo anos depois. Mas Camões algum submerge ou naufraga, até porque, como reza a sua legendária biografia, ao certa vez escapar de um naufrágio, ele teria nadado com um só braço, com o outro salvando o manuscrito do seu poema épico. Uma cruel ironia: salvar do mar um poema embebido de mar. 

Mario Quintana (1906–1994), numa obra-prima de síntese, nos legou este extraordinário poema: “Camões, / Seu nome retorcido como um búzio. / Nele sopra Netuno”. Naturalmente, Quintana refere-se ao Camões de “Os Lusíadas”, que, com sua epopeia em dez cantos, escrita em 8.816 decassílabos, confunde-se com o esplendor da nação portuguesa à época das Grandes Navegações. Com efeito, como assinala Joaquim Nabuco, em famoso ensaio, “‘Os Lusíadas’ são, como obra de arte, o poema da pátria, a memória de um povo”. Todavia, há que se fazer uma necessária distinção, como bem pondera o poeta e ensaísta luso-brasileiro José Rodrigues de Paiva, pois equivocadamente alçaram Camões a um patamar político: “[…] ideologias de Estado, felizmente agora já ultrapassadas, apodaram Camões de ‘o poeta da raça’, ‘o poeta do Império’. Fizeram dele, então, o poeta ‘oficial’ que ele nunca foi” (“Celebrando Camões” 2. ed. Recife: UFPE; Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2016).

Além do marítimo e épico, há um outro Camões tão gigantesco quanto  o seu Adamastor e tão vivo quanto aquele de sua enciclopédica epopeia. É o Camões lírico: o dos sonetos, o das odes, o das elegias, o das sextinas, o das redondilhas. É o Camões que navega pelo amor, “fogo que arde sem se ver”, e de versos como: “Busque, Amor, novas artes, novo engenho / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / pois mal me tirará o que não tenho […] Que dias há que na alma me tem posto / um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei porquê”.  

Ao leitor contemporâneo, será interessante saber que esse Camões lírico escreveu versos que foram, originalmente, apreciados como música! É o que nos informa Maria de Lourdes Saraiva, organizadora da “Lírica Completa” do poeta (Cf. Vila da Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1980): “É bom ter presente que muitas vezes os versos (e é esse especialmente o caso das redondilhas) foram escritos não para serem lidos, mas para serem ouvidos, e até para serem cantados […] Os valores que presidiam a essa mensagem musical e poética — ritmo, argúcia, malícia, sátira, ambiguidade, alusão a factos, pessoas e situações, agravo, doçura, melancolia, protesto, tudo se perde com o emudecimento da música a cujo som era cantada”. Ainda assim, com tantas perdas, quanta riqueza e quanto encantamento!

No Brasil, tanto o Camões lírico quanto o épico jamais deixaram de estar presentes.  São inúmeros os autores que o amaram ou foram por ele influenciados. É o que nos prova, de forma cabal, a obra “Camões e a poesia brasileira” (Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC: UFF: Fundação Casa de Rui Barbosa), de Gilberto Mendonça Teles (1931–). Nessa exaustiva pesquisa, o crítico goiano ainda aborda o que chamou de “mito camoniano”, mostrando-nos como Camões vive em nossa cultura popular, em nossas sátiras, em nosso humorismo.

É do livro de Gilberto Mendonça Teles que pinço uma estrofe de curioso soneto em homenagem a Camões. Curioso porque escrito com versos de 19 sílabas! A autoria é do pernambucano Austro-Costa (1899-1953). Diz ela: “Camões: teu gênio, que enche o Universo, tal qual teu nome que, alto, ressoa / de boca em boca, de peito em peito — símbolo e orgulho de tua Raça — / se um te fez triste, pois te fez poeta — guerreiro e poeta — soldado em Goa, / e outro se libra, através dos tempos, aos céus da Glória cheia de Graça!”.

A despeito desse nome que “alto ressoa, de boca em boca, de peito em peito”, o Camões que vemos em esculturas e pinturas não passa de uma ficção, pois nunca foi retratado. Seu rosto é uma invenção do Romantismo, conquanto se saiba que ele, de fato, perdera um olho. Faltando-nos a sua efígie (uma imperdoável lacuna do destino), é de se pensar que tão imenso poeta não poderia ficar sem uma face. Criaram-na.  E ganhou vida. Tem algo de poético esse destino póstumo, tem algo de profunda homenagem coletiva o soerguimento desse rosto. Viva Camões! 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Entrevista de Rubens Ricupero sobre a implementação do Plano Real, 30 anos atrás - Luiz Guilherme Gerbelli (Estadão)

Entrevista de Rubens Ricupero, apresentada da melhor forma possível por Mauricio David.

Se o Brasil tivesse tido na sua vida política mais uns dez ou vinte homens públicos da qualidade do diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, a nossa história teria sido outra... Alguns poucos homens públicos extraordinários tivemos : a começar pelo próprio Ricupero, mas também o Fernando Henrique Cardoso, o Mário Covas, Tancredo Neves, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, Celso Furtado, San Thiago Dantas, Oswaldo Aranha nos tempos do Getúlio, Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco e alguns poucos mais... Do lado de gente com o perfil mais liberal-conservador, não posso deixar de mencionar Carlos Lacerda (tão odiado pela esquerda brasileira, mas que político extraordinário !, estou acabando de reler a biografia dele escrita pelo historiador americano John W.F. Dulles, que magnífico livro ! que homem político !), e o Lott – o soldado de ferro !, a história do Brasil seria outra, se tivesse sido eleito Presidente em 1960. Posso esquecer o único “santo” brasileiro, de certa forma um homem da Igreja que a aproximou dos pobres ? (dom Hélder Câmara). Mas se a nossa história nos legou estes homens públicos, por que haveríamos de desesperançar de que o futuro não nos possa trazer mais gente com um perfil extraordinário como destes ?

Recomendo muitíssimo esta entrevista do embaixador Ricupero publicada pelo Estadão e reproduzida abaixo. Um dos homens de ouro da diplomacia brasileira, oblato da Ordem dos Beneditinos ! (como me confirmou faz poucos dias em um e-mail que me enviou)-, me lembra um daqueles políticos japoneses que preferem se suicidar em público por pequenos deslizes cometidos na vida pública. Se todos os políticos brasileiros tivessem o comportamento do Ricupero ( e de imitar os políticos japoneses...), o Brasil certamente correria o risco de ficar despovoado, mas o ar pelo menos seria mais respirável...

MD

Eis a entrevista que mencionei acima : 

Real 30 anos: ‘Caí porque disse muita bobagem’, diz Rubens Ricupero

Escolhido por Itamar Franco para substituir Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, Ricupero fez a transição da URV para o Plano Real; sua queda foi polêmica com o chamado escândalo da parabólica

Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli

Por Luiz Guilherme Gerbelli

Entrevista com Rubens Ricupero  -  Ministro da Fazenda durante a implementação do Plano Real 

O Estado de S. Paulo, 27/06/2024

 

..”E ele me respondeu com uma frase dessas que têm de ser interpretadas. Me disse: “Nós examinamos todas as opções. E o senhor é a única alternativa”. Não quer dizer muita coisa, mas eu deduzi que ele não queria um economista da equipe nem alguém ligado ao Fernando Henrique. Ele queria alguém que devesse o cargo a ele. Talvez, com a ideia de que poderia influir mais.”

 

...” um desses gurus, o Nizan Guanaes, que eu nem conheço pessoalmente, falou com os meus colegas e disse: “O real precisa ter uma cara. Vocês pegam esse velhinho - eu tinha 57 anos, hoje, tenho 87 -, enquadram na televisão - e ele explica.”

 

... “O Palácio é muito traiçoeiro”...

...” escapar da chamada armadilha dos países de renda média. O Brasil está preso nessa armadilha. Só sai se crescer 30 anos numa velocidade de cruzeiro, mas não vai crescer se voltar a política Dilma Rousseff. Ele vai crescer com responsabilidade e é, claro, que também com consciência social e atento aos que precisam mais. 

Ao lado de Itamar FrancoRubens Ricupero tem uma das imagens mais emblemáticas do Plano Real. Em 1º de julho de 1994, o então presidente e ministro da Fazenda, respectivamente, esticaram as novas notas para os fotógrafos. Era o início da circulação da nova moeda.

Ricupero assumiu o comando do Ministério da Fazenda com a saída de Fernando Henrique Cardoso, que deixou o cargo para participar da eleição presidencial de 1994. Coube a Ricupero, então, comandar a transição da URV (Unidade Real de Valor) para o real. 

“Eu deduzi que ele (Itamar) não queria um economista da equipe nem alguém ligado ao Fernando Henrique. Ele queria alguém que devesse o cargo a ele. Talvez, com a ideia de que poderia influir mais”, afirma.

A passagem de Ricupero pelo Ministério da Fazenda foi curta. E sua saída polêmica. Em setembro, caiu por causa de um áudio vazado numa entrevista para a TV Globo - no que ficou conhecido como “escândalo da parabólica”.

“Eu disse assim: ‘Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. O que é ruim a gente esconde.’ Eu disse isso, mas ninguém se deu conta que eu estava fazendo o contrário. Eu estava escondendo o que era bom para mim”, diz.

Ao olhar para trás, quase 30 anos depois da sua queda, Ricupero diz que seu deslize foi “imperdoável” e que disse muita bobagem. “Eu estava apenas dando mostra de uma vaidade pueril de criança. Mas eu saí. Pedi desculpas em público e assumi plenamente a responsabilidade.”

A seguir Ricupero relembra a sua passagem pelo Ministério da Fazenda:

Como foi o convite para o sr. ser ministro?

Quando estava se aproximando a eleição, o Fernando Henrique tinha de tomar uma decisão, de sair do governo seis meses antes. Ele se decidiu no fim de março de 1994. Aí o Itamar me chamou e me convidou. No início, eu disse a ele: “Por que o senhor não convida o Edmar Bacha, o Pedro Malan, que são membros da equipe? Eu mal sei o que é essa URV (Unidade Real de Valor). A única coisa que eu sei é o que saiu nos jornais. Eu não tenho muito conhecimento disso.”

E qual foi a resposta do Itamar quando o sr. sugeriu esses nomes?

E ele me respondeu com uma frase dessas que têm de ser interpretadas. Me disse: “Nós examinamos todas as opções. E o senhor é a única alternativa”. Não quer dizer muita coisa, mas eu deduzi que ele não queria um economista da equipe nem alguém ligado ao Fernando Henrique. Ele queria alguém que devesse o cargo a ele. Talvez, com a ideia de que poderia influir mais. Não sei. Não me deu as razões. Eu perguntei a ele o que queria que eu fizesse. Ele disse que queria que aplicasse o plano com a equipe que esta aí. Essa frase foi muito valiosa para mim.

Por quê?

Várias vezes, durante o tempo em que eu fui ministro, ele queria interferir. E ele nunca aceitava conversar com a equipe. Só conversava comigo. Ele era um homem de índole generosa. Ele queria aumentar o salário mínimo. Havia campanha dos militares, dos funcionários civis (por aumento de salários). Ele queria atender a todos esses pedidos. Eu dizia a ele: “Olha, presidente, eu compreendo. Eu sei que o senhor tem razão. Essas pessoas também precisam de aumento, mas nesse momento não dá, porque o Orçamento já está no limite extremo. O senhor se lembra daquilo que me falou?”. Ele disse: “Não. O que eu lhe disse?”. “O senhor me disse que queria que eu aplicasse o plano com a equipe que está aí. Se eu fizer o que o senhor está me mandando agora, eu não vou ter nem plano nem equipe, porque o plano acaba e a equipe vai embora. Eles não vão aceitar uma interferência política”. Aí ele desistia.

Ele fazia muita pressão?

Muito. As pessoas queriam, por exemplo, o aumento da Polícia Federal. O ministro da Justiça ia falar com ele. Aumento dos militares. Os ministros militares falavam com ele. Eu tinha de fazer o papel do mal, de dizer que não pode, porque não tem dinheiro. Nós tínhamos de ter uma situação do Orçamento que fosse no mínimo mais ou menos equilibrada. O Fundo Monetário (Internacional) foi contra o Plano Real, porque eles queriam que nós fizéssemos um superávit de 2% do PIB. O governo americano pensava a mesma coisa, mas nós não tínhamos condições políticas. Agora, se começássemos a ceder, aí não teríamos condição nenhuma, inclusive, porque os economistas da equipe não aceitariam. Desde o primeiro momento, eu vi que a única chance de o real dar certo, era eu resistir às pressões. Agora, com isso, eu me desgastei muito. Ele (Itamar) reunia, às vezes, cinco, seis ministros contra mim. Todos os ministros militares, ministros da Casa Civil. Então, eu tinha de ficar horas e horas argumentando. Nem posso dizer o que foi a tensão.

E qual foi a sensação do sr. de entrar na equipe com o plano em andamento?

Ingenuamente, eu achei que o plano era como uma planta de uma casa. Tudo já desenhado, com datas. Não era nada disso. Havia algumas ideias gerais, mas muita coisa estava sendo feita. A URV tinha acabado de ser lançada. Num dia, à noite, eu reuni a equipe na minha casa e eu perguntei a eles quando iria ser o Dia D, o dia do lançamento da moeda física. A URV era uma moeda contábil. Não existia no bolso das pessoas. E eles disseram que não tinham pensado nisso. Eu vi que alguns queriam esperar mais de um ano, porque eles queriam que as pessoas se acostumassem com a URV. Eu disse que, se é para esperar um ano, quem vai lançar essa moeda é o Lula. O Lula estava com 40% (das intenções de voto) nas pesquisas, o Fernando Henrique não chegava nem a 16%. O Lula já tinha declarado várias vezes que era contra o real. Então, se ele fosse eleito, acabaria esse plano. Nós teríamos de lançar a moeda, não tem como adiar. E eu perguntei quanto tempo eles precisariam, o mínimo dos mínimos. Eles disseram três meses.

Quando foi isso?

Final de março e começo de abril. Eu fui falar com Itamar. Ele bateu o martelo. Nós marcamos 1º, 2 e 3 de julho (datas de feriado bancário). E aí preparou-se o real. Mas aí eu constatei outra coisa. Pedi a dois colegas que trabalhavam comigo, o Marcos Galvão, agora, embaixador em Pequim, e Gelson Fonseca, um diplomata já aposentado, que fossem ao Rio, a São Paulo, e a Belo Horizonte e conversassem com donos de empresas de opinião pública, os marqueteiros políticos. Pedi que perguntassem qual era a imagem do real, e eles voltaram e me disseram: “Todo mundo tem uma boa impressão. Dessa vez, parece um plano sério. Agora, ninguém sabe o que é essa coisa misteriosa, a URV. Ninguém entende se ela vai ficar, se vai coexistir com a moeda, se, em algum momento, desaparece e entra a moeda, como vai ser a conversão da URV para nova moeda, qual vai ser a taxa, quanto tempo”. Não era propaganda, mas alguém tinha de dizer isso para a população. Inclusive, um desses gurus, o Nizan Guanaes, que eu nem conheço pessoalmente, falou com os meus colegas e disse: “O real precisa ter uma cara. Vocês pegam esse velhinho - eu tinha 57 anos, hoje, tenho 87 -, enquadram na televisão - e ele explica.”

E qual foi a reação do sr.?

Eu disse que achava uma boa ideia, mas que iria falar com o Itamar. Fui falar com o Itamar. Ele achou a ideia muito boa, mas ele disse que “o senhor é que vai ter de ser a cara do real”. Ele tinha razão, porque, se o real tivesse fracassado, a culpa era minha. E aí mudava o ministro da Fazenda. Agora, se fracassasse com a cara dele, era mais complicado.

E como foi lidar com a equipe já montada?

Nunca tive problema. Eu conhecia quase todos da equipe. Um ou outro que eu não conhecia. Eu tinha dado uma declaração, porque falava-se muito do reajuste dos funcionários civis da União. Sou funcionário público aposentado. Naquela época, era funcionário da ativa. Eu disse uma coisa qualquer que dava a entender que eu era favorável a um aumento. A equipe ficou muito aborrecida, porque eles se sentiam um pouco desamparados. Me fizeram sentir isso. Eu pedi desculpas. E, a partir de então, eu nunca mais tive nenhum deslize com eles, porque percebi que o sucesso do real dependia da equipe. Fiquei unha e carne com a equipe. E eles foram muito leais a mim.

O que pensou em 1º de julho, data do lançamento da moeda?

Eu acordei de madrugada. Quis ser um dos primeiros a chegar ao Palácio. Eu fui falar com o chefe da Casa Militar. Eu disse a ele: “General, eu vou pedir ao senhor um favor. Na hora que o senhor descer para esperar, o presidente - ele entrava pela garagem -, eu quero ir com o senhor. Eu quero preveni-lo, porque tem gente que vai ficar na sala de espera para encher a cabeça dele de coisas para mudar. Ainda dá tempo de fazer uma nova edição do Diário”. Eu tinha essa experiência. O Palácio é muito traiçoeiro. Eu fui e fiquei lá. Quando ele (Itamar) veio, eu o chamei para um lado e disse: “O senhor vai encontrar na sua sala fulano, sicrano e beltrano. Eles vão lhe dizer tal coisa. Tudo isso é falso. O senhor, por favor, não aceite, porque nada disso vai contribuir. Ao contrário, vai atrapalhar muita coisa”. Quando ele subiu, já estava vacinado. O pessoal foi lá e não adiantou nada. Então, eu estava aliviado. Eu fui com ele para a agência da Caixa Econômica, do Palácio do Planalto, onde trocamos as primeiras moedas. Tem as fotografias da época.

A saída do sr. do ministério foi bastante traumática. Poderia relembrar?

Eu acabei caindo por culpa minha naquele episódio da parabólica. Me subiu à cabeça. Naquele dia, eu estava preocupado, porque a moeda tinha entrado em vigor há dois meses, e a inflação tinha caído, mas não tanto como se esperava. A inflação tinha sido o dobro do que a equipe tinha estimado. Naquele dia fatídico, 1º de setembro de 1994, resolvi fazer uma grande ofensiva para convencer a opinião pública que aquele problema da inflação, no início, era uma ilusão. Era um problema de metodologia. Todos os índices de medição da inflação no Brasil faziam a coleta de preços do dia 15 ao dia 15. Como a moeda foi lançada no dia 1º (de julho), todos os índices já vinham com 15 dias do passado. E aquilo se perpetuava. Não era um momento real, tanto assim que nós ficamos alarmados, porque houve um número tão grande de compras de eletrodomésticos. Começou a faltar produto. Eu queria convencer as pessoas que aquilo ia cair. E aí é que eu me perdi.

Por quê?

Eu fiquei achando que aquilo dependia de mim. Me envaideci muito. Fui a Pernambuco, e as pessoas vinham me beijar a mão. Eu fiquei assustado. Nesse dia (1º de setembro), eu acordei de madrugada. Dei 24 entrevistas para rádio, rádio sertaneja, televisão, revistas, correspondentes estrangeiros. Fiquei o dia inteiro dando entrevista. Não fiz outra coisa. Nem almocei nem jantei. No fim do dia, estava exausto. Era uma sexta-feira, um dia de fim de seca, um calor daqueles terríveis em Brasília. Eu estava no meu gabinete com a luz apagada. Tinha só uma luzinha vermelha na câmera. Eu não sabia que estava captando. Era uma entrevista para aquele programa, para o último jornal da Globo, aquele do final do dia. E estava esperando, e estava conversando. Não estava dando entrevista. Durante 19 minutos, eu só disse asneiras, bobagens de todo tipo, de que eu era o tal. Mas tudo isso era bobagem. Não era nada de grave. Era vaidade boba.

Mas uma hora eu cometi um deslize que foi imperdoável. O repórter me perguntou: “O senhor não acha que essa moeda já fracassou como as outras?. A taxa de inflação saiu um pouco mais alta”. Eu disse: “Olha, eu tenho certeza que não, porque os preços que já foram coletados nos 15 dias e os indicativos que vem agora mostram que a inflação está caindo de uma maneira drástica. Alguns economistas até acham que é capaz de dar alguma coisa perto do zero. Só que eu não posso dizer isso”. Eu tinha uma combinação com a equipe, de que só (falar) quando eu tiver todos os dados do mês fechados. Se a gente começa a dar os dados da semana, depois tem de ser dados diários. Eu disse assim: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. O que é ruim a gente esconde”. Eu disse isso, mas ninguém se deu conta que eu estava fazendo o contrário. Eu estava escondendo o que era bom para mim, porque ele disse vamos dar isso, porque vai ser um furo da reportagem’. Eu disse eu não tenho escrúpulo, mas tem o problema da equipe. Eu tenho de conversar com eles. Vou falar com eles, depois eu te digo.

E o que sr. pensa hoje em dia sobre o episódio?

Eu não tenho explicação. Hoje em dia, quando eu vejo aquilo, eu não me reconheço. Eu nunca fui assim. Ainda bem que eu também não disse palavrão nenhum, porque eu nunca digo palavrão. Mas eu disse muita bobagem. Muita bobagem. E acho que as pessoas ficaram chocadas quando viram. Eu fui para casa e aí veio me ver o meu colega, que era o meu braço direito, o Sergio Amaral. Ele faleceu há pouco tempo. E ele me contou o que tinha acontecido. Eu me senti péssimo

E como foi com o Itamar?

No dia seguinte, eu telefonei ao Itamar. Ele não sabia de nada. Eu contei a ele. No início, ele achou que não era tão importante, de que não era tão grave. Eu disse que estava colocando o cargo nas mãos dele e que não podia ficar mais, porque eu perdi a credibilidade, apesar de que eu não estava confessando nenhum crime. Não estava mentindo. Eu estava apenas dando mostra de uma vaidade pueril de criança. Mas eu saí. Pedi desculpas em público e assumi plenamente a responsabilidade. Nunca em minha vida tentei passar a culpa. Deveria haver mais gente no Brasil capaz de assumir a responsabilidade, pedir desculpas e assumir as consequências dos erros.

Sai da vida pública. Depois, eu refiz a minha vida, porque eu fui para a Unctad, mas eu fui eleito pela assembleia da ONU. Não fui nomeado pelo governo brasileiro. Fiquei lá 10 anos na ONU. Eu era subsecretário da ONU e secretário-geral da Unctad. Só voltei ao Brasil em 2005. Nunca mais quis ter nada a ver com a vida pública.

E qual é o balanço do Plano Real que o sr. faz?

Se nós não estamos no ponto em que está a Argentina é por causa do Plano Real. Eu fui um dos muitos que contribuíram. É uma luta que não termina nunca, porque a gente vê, por exemplo, esse governo, às vezes, tem aquela tentação (de gastar). Na época da Dilma, a inflação chegou de novo a quase 12%. A gente tem de segurar isso com todo o esforço. Eu aplaudo o ministro da Fazenda (Fernando Haddad), que é um homem corajoso. Está fazendo um belo trabalho. Está sendo solapado pelo próprio partido. Por que nós somos diferentes da Argentina? Porque nós temos moeda. Eles ainda têm de fazer todo esse esforço. Segundo, nós não temos estrangulamento externo. Temos reservas e um número grande do saldo comercial. Eu acho que nós temos uma base para seguir em frente. Nós não chegamos lá. Eu acho que ficou faltando a segunda metade, que é a parte fiscal.

Por que a parte fiscal é tão difícil de ser resolvida?

Nós não conseguimos incutir nas pessoas a responsabilidade fiscal. A gente vê nos políticos a tendência de aprovar medidas desastrosas. Essa do quinquênio é inacreditável. É o pessoal que mais ganha no Brasil e ainda quer ter um quinquênio. É quase de desesperar, de chorar. Num país com tanta pobreza, tanta dificuldade, as pessoas querem se locupletar com salários ultrajantes. Nós ainda não aprendemos o mínimo da responsabilidade fiscal.

O Brasil precisaria de um novo Plano Real para as contas públicas?

Nesse caso, eu não sei se seria um plano Real. Eu acho que se o Brasil não aprender isso, se o Legislativo e o Judiciário, junto com o Executivo, não tiverem a noção de que você não pode indefinidamente aumentar a dívida pública, nós nunca vamos sair desse voo de galinha que nós estamos. O primeiro desafio é o desafio orçamentário, da responsabilidade fiscal. O segundo desafio é escapar da chamada armadilha dos países de renda média. O Brasil está preso nessa armadilha. Só sai se crescer 30 anos numa velocidade de cruzeiro, mas não vai crescer se voltar a política Dilma Rousseff. Ele vai crescer com responsabilidade e é, claro, que também com consciência social e atento aos que precisam mais.

 


domingo, 23 de junho de 2024

Gustavo Franco: entrevista sobre os 30 anos do Plano Real - Comentário inicial (necessário) de Mauricio David

Mauricio David introduz a entrevista: 


O “baixinho” ataca novamente... mais uma entrevista a la Louis XIV do nosso pretenso Louis XIV brasileiro “Gustavo Franco”... Quando das sucessivas crises cambiais que assolavam o real durante a gestão do Gustavo à frente do Banco Central, no período pós-implantação do Plano Real, em certo momento a revista VEJA – a de maior circulação no Brasil – publicou uma capa com o então Presidente do Banco Central montado em um cavalo branco à guisa de comparação com o Napoleão no célebre quadro do pintor francês Jean-Louis David (não é meu parente...)... O que afirmava a VEJA nas linhas e entrelinhas : Cuidado com os baixinhos ! Eles são f... (é claro que a VEJA não usava palavra de baixo calão, a interpretação é minha...). Mas que os baixinhos são f..., são mesmo... Mas a rigor a comparação deveria ser com o monarca francês Louis XIV, que certa ocasião teria dito : “L’État c’est moi”... Esta semana vi na TV a cabo um filme documentário sobre a concepção e implantação do Real. Parece que foi feito para enaltecer a figura do nosso “baixinho”. Por diversos momentos do filme o ator que representava o Gustavo aparece dizendo : ‘A moeda sou eu !”. “O Real sou eu!”. Quanta vaidade, arrogância e pretensão ! No fundo, no fundo, o cara se pretende um Louis XIV brasileiro... Isto só foi possível pela modéstia e não-vaidade de personagens do primeiro plano da concepção e implantação do Real, como Pedro Malan e Edmar Bacha (nos quais o Fernando Henrique tinha confiança plena), o embaixador Rubens Ricupero (que desempenhou um papel fundamental para a implantação do Real e que contava, a par com a sua inteligência invulgar e seus dotes diplomáticos e de devoção ao Serviço Público), além do Pérsio Arida e do Chico Lopes (depois miserável e injustamente sacrificado no episódio do seu afastamento da Presidência do Banco Central).

Independente de tudo isto, é importante que se leia essa entrevista-depoimento do Gustavo Franco. Quando voltei do exílio e assumi um cargo junto ao Bresser em Brasília, um dia fui tomar o café-da-manhã com a Conceição no hotel onde ela se hospedava em Brasília. A Conceição, por esse tempo, era deputada do PT e se havia oposto feroz e virulentamente ao Plano Real. Mas, apesar disto, circulava facilmente pelos gabinetes de Brasília, onde tinha muitos amigos e ex-alunos trabalhando. Conversa vai, conversa vem, perguntei à Conceição por que o Fernando Henrique gostava – e apoiava – tanto o Gustavo Franco, que era sabidamente um carão turrão e brigão que se voltava contra tudo e contra todos. A Conceição me contou então (eu havia passado os últimos 4 anos em Paris, preparando o meu doutorado em Economia na Universidade de Paris XIII- Sorbonne com o Prof. Pierre Salama e trabalhando na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais- EHESS com o prof. Ignacy Sachs, então estava absolutamente afastado das fofocas de Brasília...) que a confiança do FHC no Gustavo Franco se devia ao fato de que, quando do lançamento do Plano Real, em dado momento as pernas de todo mundo tremeram, desde o próprio Fernando Henrique como Ministro da Fazenda aos integrantes da chamada “equipe econômica”. Foi neste momento de dúvida e “paúra” geral que o Gustavo – que parece que andava sempre com uma maquininha de calcular fazendo contas das Arábias, disse para o FHC : “pode fazer, Presidente, eu garanto que vai dar certo !”. E o Fernando Henrique sentiu firmeza no “baixinho” e tocou prá frente a implementação do Plano... Se foi assim ou não, só sei como o personagem impagável do Auto da Compadecida que dizia : “sei não, só sei que foi assim...”. Pois posso dizer, agora que a Inês (gulp !, a Conceição está morta e eu pela tabela três...) que o “baixinho” é f...

Por isto, a leitura atenta do seu depoimento-entrevista é importante. Assim como o livro que ele, o Malan e o Bacha estão lançando sobre o Plano Real e que comentarei em breve. Mientras tanto, como se diz em espanhol, recomendo uma vez mais a leitura do excelente livro “Memórias” que o embaixador Rubens Ricupero acaba de publicar e que serve de contraponto aos exageros cantiflinianos da versão do Gustavo sobre a história do Real...

MD


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GLOBO, 23 junho 2024

 

Gustavo Franco: ‘A hiperinflação pode ter estragado para sempre nossa saúde econômica’

Ex-presidente do Banco Central diz que Brasil ‘recuperou o seu futuro’ com a estabilidade trazida pelo Plano Real. Mas avalia que a experiência, assim como no alcoolismo, pode ter deixado sequelas de um vício

Por 

Cássia Almeida 


Presidente do Banco Central (BC) quando o real passou pelo seu maior teste, com um ataque especulativo que levava quase US$ 1 bilhão de reservas cambiais diariamente, Gustavo Franco Presidente do Banco Central minimiza aquele momento e diz que, depois de 30 anos, a estabilidade monetária conquistada mostrou que “não tinha nenhum truque, nenhuma farsa”. "Ninguém teve perda. Essa conversa acabou", afirma, em referência às críticas de que a maxidesvalorização do real teria sido adiada por causa da corrida eleitoral de 1998.


Qual a importância de ter uma moeda estável por 30 anos, o que isso representa?

Hoje todo mundo gosta do real, mas no começo não foi assim, não. Vivemos a experiência de degradação da moeda. Quem viveu terá guardado na memória de como é profundo, é uma ferida profunda. O simbolismo associado à moeda é grande. A moeda é como a bandeira e o hino. Vê-la derreter é a sensação que você tem vendo a bandeira pegar fogo. É ruim. É um pedaço de cada um de nós. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também. Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre. Como o alcoolismo faz com as pessoas que tiveram o vício. Nós nos livramos dele faz 30 anos. É muito bom. Mas a experiência foi super profunda, difícil, marcante, e a batalha foi difícil. 


Qual a importância de ter uma moeda estável por 30 anos, o que isso representa?

Hoje todo mundo gosta do real, mas no começo não foi assim, não. Vivemos a experiência de degradação da moeda. Quem viveu terá guardado na memória de como é profundo, é uma ferida profunda. O simbolismo associado à moeda é grande. A moeda é como a bandeira e o hino. Vê-la derreter é a sensação que você tem vendo a bandeira pegar fogo. É ruim. É um pedaço de cada um de nós. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também. Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre. Como o alcoolismo faz com as pessoas que tiveram o vício. Nós nos livramos dele faz 30 anos. É muito bom. Mas a experiência foi super profunda, difícil, marcante, e a batalha foi difícil. 


Foi uma conquista do povo brasileiro, diante do que passou anteriormente?

Recuperamos o nosso futuro e junto com ele um símbolo nacional que também resgatava o nosso passado e todos os heróis nacionais humilhados em cédulas que passaram a valer nada (antes do real, Barão de Mauá, Machado de Assis, Marechal Rondon foram algumas das personalidades que estampavam as cédulas, mas com a inflação alta, essas cédulas perdiam valor muito rápido). Hoje a gente tem o real. Imagina no tempo que a gente não tinha o real. O que a gente tinha? Era o imaginário, era o delírio. Vivemos um delírio longo, que foi crítico nos últimos dez anos, até 1994, a inflação média mensal deve ter sido 15%, 20% ao mês, em média. Impensável com os olhos de hoje. As pessoas têm uma memória disso, dos pais, de ouvir na mesa de jantar histórias folclóricas de inflação. O que a gente tem hoje (de inflação) durante um ano inteiro era de um fim de semana. Foi triste? Foi. Foi horroroso. 


Que tipo de reação teve ao plano na época?

Vinte e quatro horas depois do acontecido, começa todo mundo a achar muito bom, tem um quase deslumbramento. Que coisa boa a moeda estável, uma coisa tão simples que nem bem tem nome, uma vida econômica normal, com uma moeda normal de um país normal. E aí parece uma coisa trivial, mas não é. Trinta anos depois, com o distanciamento que esse tempo todo nos permite, todo mundo gosta, não tem mais ninguém que seja contra. E é difícil até explicar como, quando foi feito, quase todo mundo era contra. Tem uma explicação, ou pelo menos duas. Uma é que era o sexto plano econômico, e todos os outros deram errado. O plano econômico parecia fazer mais estrago do que a própria inflação. Então, se é para ter um tratamento que dói mais que a doença, deixa a gente ficar doente. Então, o sexto plano econômico não animou ninguém. Todo mundo tinha muita desconfiança. 

Eu lembro bem dos momentos anteriores ao anúncio da URV a postura da opinião pública, da imprensa, dos agentes econômicos... Todo mundo estava muito desconfiado, ao mesmo tempo, torcendo: “Faz aí um negócio que dê certo, mas olha lá o que vai fazer” Faz o plano, mas não pode fazer... Tinha uma lista de coisas que não se podia fazer. Cada pessoa tinha uma lista. Muita gente queria congelamento de preço, que era exatamente uma coisa que não íamos fazer de jeito nenhum. Não foi um grande acordo nacional. Na verdade, foi uma coisa escrita por gente que conhece essa tecnologia e conhece essa técnica. Quem desenha uma vacina contra Covid é quem entende de vacina, não é uma assembleia do povo que decide. A gente fez, botou em operação e funcionou. Depois de 24 horas, era um país transformado. O que parecia incompreensível veio muito naturalmente para dentro da rotina das pessoas. 


Como foi a montagem jurídica do Plano?

Todos nós éramos economistas de sala de aula, de pesquisadores do assunto. Mas uma coisa é o quadro negro, outra coisa é o Diário Oficial. Entre um e outro tem os advogados, porque o estado democrático de direito fala um idioma que é o das leis, que é onde estão os advogados profissionais. Eles têm a compreensão da realidade conforme os filtros e o idioma deles. É preciso falar a língua deles. Você não vai fazer poesia numa língua estrangeira se não entender muito bem como é a gramática deles. E foi isso que a gente teve de fazer. Aprender a língua deles não é chamá-los para fazer a nossa música. Não. Vamos conversar e fazer juntos no mesmo idioma. E aí funcionou belissimamente. 

As coisas interdisciplinares no Brasil são sempre complicadas. Nos outros planos deu errado. Dessa vez, vamos conversar. E aí funcionou muito bem. Algumas pessoas especiais ajudam, é claro, mas a essência do diálogo interdisciplinar foi, enfim, a alma. Saiu certinho. Voltando para a universidade depois de tudo isso, quando eu saí do Banco Central comecei a dar um curso. O assunto era o diálogo entre a economia e o direito nos assuntos da moeda e o Plano Real, como o caso bem-sucedido. Esse curso depois virou um livro que se chama “A Moeda e a Lei”. O título diz o que é, uma história monetária do Brasil de 1933, onde começa essa aventura do papel moeda até finalmente se arrumar o padrão monetário, o real, em 1994. 


Em um dos seus artigos no livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (que reúne artigos dele, do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e do economista Edmar Bacha sobre o plano), você diz que o plano fez uma revolução silenciosa.

Quando a pessoa está em com dor, não existe outro pensamento senão fazer parar a dor. É um país quase que sob tortura. Nessas condições, não existe vida inteligente, não existe cálculo econômico, não existe rotina, não existe percepção das nossas possibilidades, não existe futuro. Isso tudo a gente ganhou, tendo uma moeda estável, sobretudo a sensação de futuro, o horizonte que se abre como uma grande névoa que de repente baixou. Enxergamos, assim, nossas verdades. Nem todas são agradáveis, tem muita desigualdade, muitos problemas. Não estamos condenados a crescer como na Ásia. Na verdade, descobrimos que para fazer isso precisa fazer outras coisas que pertencem a uma outra agenda, reformas e tudo isso, onde a gente não está andando. Mas agora a gente está vendo isso. Antes sequer dava para ver.


Ao longo desses 30 anos, onde avançamos por causa da estabilidade?

Bom, nós tínhamos uma doença terminal, a hiperinflação. Claro que os países não morrem, mas eles conseguem afundar cada vez mais e mais e mais. Era o tipo de trajetória que a gente vinha tendo, de aprofundamento de tudo que a gente tem de ruim, de desigualdade, de pobreza, de tudo isso. A inflação causa isso tudo, a inflação era um combustível importante para desigualdade, pobreza, problemas, enfim, críticos para nós. Tirar a inflação já melhora esse panorama, não elimina o problema, mas nos melhora e nos coloca em posição de endereçar esse problema, ou do crescimento, de uma forma inteligente. 


Ainda estamos vivendo problemas com os estados?

A União e os Estados e os municípios, no ambiente de inflação, meio que não tinham limites para irresponsabilidade. Parecia não haver consequência também, porque era como se houvesse uma fábrica de papel pintado que aparentemente resolvia os problemas quando criava outros maiores do que aqueles que resolvia. E era preciso encerrar esse ciclo colocando todas essas unidades públicas, a União, os estados e os municípios, bem como os bancos públicos, todos vivendo dentro dos seus próprios meios para simplificar bem a história. E ninguém tinha contas equilibradas. A União tinha um déficit gigante, os estados tinham déficits gigantes, a Previdência tinha déficit gigante, os bancos públicos todos quebrados, os estaduais, federais. Ou seja, o estrago que a inflação fez no decorrer do tempo em tudo o que era público é incomensurável. Acho que um dos acertos do real foi escalonar os problemas. Não dá para resolver tudo de uma vez e demorou muito tempo. 

Os acertos com os estados foram se desdobrar ao longo de vários anos. Quando o real foi disparado, já tínhamos feito umas duas rodadas com refinanciamento desses estados e programas de ajustes e já ajustando os bancos. Junto com o real, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Com a adoção do convênio de Basileia (que estabeleceu recomendações para as exigências mínimas de capital para instituições financeiras), o FGC (Fundo Garantidor de Crédito), tudo isso foi inventado ali, naquele momento, para lidar com uma situação crítica de crise bancária aberta. Isso que os americanos depois tiveram em 2008, nós tivemos muito pior, na nossa proporção, é claro, e tivemos que lidar com isso como uma cirurgia de peito aberto. Mais de cem bancos quebraram naquele momento, enfim, com custos, mas resolvemos. 

Para isso não apenas tivemos que praticamente extinguir a ideia de banco estadual, porque os estados não podem ter nada que se pareça com o Banco Central. O Banco Central só um pode ter um que é da União e os bancos comerciais federais, o Banco do Brasil e a Caixa, têm que funcionar igual a outros bancos e não como filiais do Banco Central ou matrizes do Banco Central, como alguns deles achavam que eram. São mudanças dificílimas de fazer, começando ali no momento da inflação, onde todos os maus hábitos do mundo eram a regra. 

Cada uma dessas batalhas teve o seu tempo. Não foi só a noite da URV, foram anos de trabalho, muitos deles reformas que se desdobraram e ainda estão em andamento. Algumas já ficaram para trás. Resolveu, mas às vezes volta. Os estados, como você lembrou bem, estavam arrumados quando veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000, e ali tinha uma métrica que era o nível de endividamento e o nível de comprometimento das receitas com a folha de pagamento. Com base nisso, a União funcionou como uma espécie de FMI da Federação e financiou os estados. Mas aí, mais adiante, o governo Dilma Rousseff estragou tudo de novo (houve renegociação das dívidas em 2014, mudando os termos acertados no acordo de 1997, com mudança no indexador e redução de juros). Estava na hora de fazer uma outra lei de responsabilidade fiscal. Isso é assim mesmo. Alguma coisa precisa refazer, corrigir o curso. Ou vem um outro governo que estraga tudo e começa tudo de novo. E assim é a democracia, tem alternância no poder, tem choques que vêm de fora, que vêm de dentro. A vida econômica, infelizmente, é muito instável. 


Você tem falado muito do risco das pequenas inflações, que a estabilidade é uma coisa conquistada, mas que você tem que mantê-la. Qual o risco que corremos?

Quando fizemos o Real, a inflação brasileira estava na faixa de 50% ao mês, que é 12.500% ao ano. Então, quando hoje a gente discute a meta de inflação anual de 3%, parece um excesso de zelo. Mas não, a pessoa que foi viciada não pode tomar um drinque sozinho e achar que é tudo normal. Não é! Nunca mais. A gente tem que ter muito zelo nesse assunto, porque toda a tecnologia desse vício, a correção monetária, está na cabeça das pessoas, dispara um pouco de inflação e começa tudo a degringolar. Não pode nunca voltar para aquela situação de antes. 

Temos proteções para isso. Nossas instituições, sobretudo referentes à governança da moeda, estão bem protegidas. Pode sempre estragar. Um mau governante, um mau momento do país, da política pode sim estragar tudo. E é mais fácil ainda para um país que já viveu esse estrago e parece que não tem medo. Quem já foi viciado descontrolado, sabe como é difícil a sobriedade. Vamos ter que cuidar da nossa saúde com muito zelo daqui para frente. 


Como foi a mudança do câmbio fixo para o flutuante (o novo regime foi adotado em 1999, após a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central), no meio de uma campanha eleitoral?

Agora, olhando em perspectiva, não foi isso tudo não. A temperatura do assunto estava alta por causa da eleição. E que tal como em 1998, como em 1994, a oposição dizia que era tudo uma farsa e que o câmbio era um artificialismo mantido exclusivamente para ganhar a eleição. Falou isso em 1994, insistiu, insistiu, perdeu em 1998 a mesma coisa, mas quatro anos depois... (Lula, do PT, venceu a eleição em 2002). E aí outras crises vieram, outros assuntos dos bancos, os estados, bancos federais, bancos estaduais, várias agendas foram e voltaram. Esta do câmbio foi mais uma, quando passamos para o flutuante. Segue o jogo. Não tinha nada de artificial. O real está aí até hoje. Não tinha nenhum truque, nenhuma farsa. Ninguém teve perda. Essa conversa acabou. 


Mas, naquele momento, tinha uma pressão para sair do câmbio fixo, ir para flutuante, da própria equipe econômica, mas tinha uma pressão para manter o câmbio fixo, como era véspera da eleição. Como foi lidar com isso?

Teve esse tipo de pressão. Desculpa, mas teve todos os dias, desde o começo, em câmbio, como no juro, como no Tesouro Nacional em cada leilão do Tesouro, sabe? Faz congelamento, não faz congelamento? A conversão de salários é pela média ou pelo pico? Qual o valor do salário mínimo? O plano econômico é cheio dessas coisas críticas. E o câmbio era uma delas. Agora, acho que o câmbio foi uma decisão muito boa, porque como é que se vai fazer um plano de estabilização sem ter o fiscal, sem ter uma porção de coisa que nunca é o ideal. 

Fazer qualquer plano de estabilização é tomar decisões em condições bem piores que as ideais, sob incerteza. E aí é o seguinte, em 1998, nessa segunda eleição, a inflação foi 1,6% no ano para os 12 meses, para quem saiu de 12.500% ao ano em junho de 1994. E aí o pessoal reclama que está tudo errado, entendeu? Não está, não, desculpa. A discussão sobre o câmbio virou uma grande batalha de Itararé sobre a farsa que era o Plano Real. Não tinha farsa nenhuma. Está aí até hoje. E a mudança para o câmbio flutuante não era desfazer absolutamente nada de tão básico no plano. Na verdade, o plano nasce com a moeda flutuando em julho de 1994. É um espinho na garganta de quem perdeu a eleição em 1994 e 1998. E essa coisa de que era tudo uma farsa. Desculpe, não era não. 


Em algum momento, você achou que o plano poderia fracassar, que a inflação poderia voltar?

Todos os dias, todos os dias. Porque a rotina desse tipo de esforço é todo dia uma encrenca. Todo dia uma não, todo dia tem 40 encrencas, 20 a favor, 20 contra e todo dia você acha que quando foi bom foi por pouco. E quando perde, perde por pouco também. Tem dias muito ruins, dias que você acha que acabou tudo, más notícias e tem os dias bons. Eles se alternam e de algum jeito você vai avançando, avançando, avançando e quando você vê se já ultrapassou muita coisa, chegou onde você não imaginava que podia chegar. Foi assim. Ninguém tinha certeza, tínhamos convicção, que é diferente, mas não se sabe se vai tudo funcionar, se todas as peças vão voltar ao lugar. 

Esse livro que a gente fez agora dos 30 anos, a gente buscou os textos que nós escrevemos nos aniversários. E aí se percebe a evolução, como estava o campo de batalha. Não se tinha muita certeza de nada. Na verdade, sempre muita preocupação com o que tinha para vir, já que muito do fundamento de um plano como esse, que muda a trajetória futura do país, depende de coisas que ficaram por fazer, reformas que foram prometidas e que, muitas das vezes, demoraram anos para sair do papel. Tem que mostrar progresso todos os dias. E teve dias muito ruins.


Quais?

Eu acho que vale recordar a véspera do primeiro dia, que foi 28 de fevereiro de 1994, quando teve a reunião ministerial para fechar o texto da medida provisória que criou a URV (Unidade Real de Valor que era corrigida diariamente e depois se converteu no real em 1º de julho de 1994). O presidente (Itamar Franco) chamou para uma reunião de alguns ministros no Palácio. Fernando Henrique (Cardoso, ministro da Fazenda) foi e levou assessores. Eu e Murilo Portugal, secretário do Tesouro, ficamos na antessala para se precisassem de algum esclarecimento técnico. Chamaram a gente uma vez, duas vezes, três vezes. E aí disseram: “Fica aí” e ficamos. Assistimos a reunião inteira que começou umas 10h e a gente deve ter entrado meio-dia na reunião e ficou até as 8 da noite. Nesse dia, eu vi o ministro da Fazenda pedir demissão três vezes, não foi uma, foram três vezes. Levantar da mesa e dizer: “Assim não dá. Se for para fazer desse jeito, eu vou me embora. Fazem vocês”. Tudo isso podia não ter acontecido na véspera. 


O que ele se recusou a fazer?

Desses três assuntos, um era conversão de salários pelo pico, o outro era congelamento de preço e outro era salário mínimo cem dólares. “Se é para fazer o Plano Cruzado de novo, não vai ser com a gente”. E o ministro foi firmíssimo. “Ah, é para fazer assim? O presidente que sabe, mas então não é comigo, nem conosco. Vamos todos embora.” Não, senta aí, e retoma a conversa. Conseguimos que o presidente assinasse a medida provisória exatamente como nós propusemos a ele. E deu certo. 


O que você acha que faltou fazer?

Se eu fosse escolher uma coisa, a revisão constitucional, que era para ter acontecido cinco anos depois da promulgação, em 1993. Houve uma decisão política das lideranças da ocasião, presidente, outros líderes políticos que não iam fazer. Acho que o pessoal da área política percebeu que a estabilização traria uma onda grande de reformas. O pensamento político foi: ah, então deixa eles fazerem do jeito normal das emendas constitucionais, com duas votações nas duas casas. Vai demorar uns 20 anos a mais, mas fica mais legítimo. Raciocínio político. Foi um erro, no meu modo de ver, reforma da Previdência, vamos ter que fazer outra, agora, a trabalhista, a abertura do petróleo, algumas ficaram para trás que a gente nem lembra. A que abriu as telecomunicações, que fez todo mundo ter celular foi lá atrás, no começo do governo Fernando Henrique. Tudo poderia ter acontecido em 1993. O tempo que a gente perdeu. A do saneamento estamos fazendo agora, nem começou direito ainda. Quantas pessoas morreram de doença por causa de mosquito, de saneamento ruim ou do dano ambiental de esgoto no mar, nos rios, esse tempo todo? Não é brincadeira adiar essa agenda de reformas. Poderíamos ter começado isso em 1993, mas não. A decisão foi fazer do outro jeito mais difícil. E aí, As coisas interdisciplinares no Brasil são sempre complicadas. Nos outros planos deu errado. Dessa vez, vamos conversar. E aí funcionou muito bem. Algumas pessoas especiais ajudam, é claro, mas a essência do diálogo interdisciplinar foi, enfim, a alma. Saiu certinho. Voltando para a universidade depois de tudo isso, quando eu saí do Banco Central comecei a dar um curso. O assunto era o diálogo entre a economia e o direito nos assuntos da moeda e o Plano Real, como o caso bem-sucedido. Esse curso depois virou um livro que se chama “A Moeda e a Lei”. O título diz o que é, uma história monetária do Brasil de 1933, onde começa essa aventura do papel moeda até finalmente se arrumar o padrão monetário, o real, em 1994. 


Em um dos seus artigos no livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (que reúne artigos dele, do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e do economista Edmar Bacha sobre o plano), você diz que o plano fez uma revolução silenciosa.

Quando a pessoa está em com dor, não existe outro pensamento senão fazer parar a dor. É um país quase que sob tortura. Nessas condições, não existe vida inteligente, não existe cálculo econômico, não existe rotina, não existe percepção das nossas possibilidades, não existe futuro. Isso tudo a gente ganhou, tendo uma moeda estável, sobretudo a sensação de futuro, o horizonte que se abre como uma grande névoa que de repente baixou. Enxergamos, assim, nossas verdades. Nem todas são agradáveis, tem muita desigualdade, muitos problemas. Não estamos condenados a crescer como na Ásia. Na verdade, descobrimos que para fazer isso precisa fazer outras coisas que pertencem a uma outra agenda, reformas e tudo isso, onde a gente não está andando. Mas agora a gente está vendo isso. Antes sequer dava para ver.


Ao longo desses 30 anos, onde avançamos por causa da estabilidade?

Bom, nós tínhamos uma doença terminal, a hiperinflação. Claro que os países não morrem, mas eles conseguem afundar cada vez mais e mais e mais. Era o tipo de trajetória que a gente vinha tendo, de aprofundamento de tudo que a gente tem de ruim, de desigualdade, de pobreza, de tudo isso. A inflação causa isso tudo, a inflação era um combustível importante para desigualdade, pobreza, problemas, enfim, críticos para nós. Tirar a inflação já melhora 

esse panorama, não elimina o problema, mas nos melhora e nos coloca em posição de endereçar esse problema, ou do crescimento, de uma forma inteligente. 


Ainda estamos vivendo problemas com os estados?

A União e os Estados e os municípios, no ambiente de inflação, meio que não tinham limites para irresponsabilidade. Parecia não haver consequência também, porque era como se houvesse uma fábrica de papel pintado que aparentemente resolvia os problemas quando criava outros maiores do que aqueles que resolvia. E era preciso encerrar esse ciclo colocando todas essas unidades públicas, a União, os estados e os municípios, bem como os bancos públicos, todos vivendo dentro dos seus próprios meios para simplificar bem a história. E ninguém tinha contas equilibradas. A União tinha um déficit gigante, os estados tinham déficits gigantes, a Previdência tinha déficit gigante, os bancos públicos todos quebrados, os estaduais, federais. Ou seja, o estrago que a inflação fez no decorrer do tempo em tudo o que era público é incomensurável. Acho que um dos acertos do real foi escalonar os problemas. Não dá para resolver tudo de uma vez e demorou muito tempo. 

Os acertos com os estados foram se desdobrar ao longo de vários anos. Quando o real foi disparado, já tínhamos feito umas duas rodadas com refinanciamento desses estados e programas de ajustes e já ajustando os bancos. Junto com o real, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Com a adoção do convênio de Basileia (que estabeleceu recomendações para as exigências mínimas de capital para instituições financeiras), o FGC (Fundo Garantidor de Crédito), tudo isso foi inventado ali, naquele momento, para lidar com uma situação crítica de crise bancária aberta. Isso que os americanos depois tiveram em 2008, nós tivemos muito pior, na nossa proporção, é claro, e tivemos que lidar com isso como uma cirurgia de peito aberto. Mais de cem bancos quebraram naquele momento, enfim, com custos, mas resolvemos. 

Para isso não apenas tivemos que praticamente extinguir a ideia de banco estadual, porque os estados não podem ter nada que se pareça com o Banco Central. O Banco Central só um pode ter um que é da União e os bancos comerciais federais, o Banco do Brasil e a Caixa, têm que funcionar igual a outros bancos e não como filiais do Banco Central ou matrizes do Banco Central, como alguns deles achavam que eram. São mudanças dificílimas de fazer, começando ali no momento da inflação, onde todos os maus hábitos do mundo eram a regra. 

Cada uma dessas batalhas teve o seu tempo. Não foi só a noite da URV, foram anos de trabalho, muitos deles reformas que se desdobraram e ainda estão em andamento. Algumas já ficaram para trás. Resolveu, mas às vezes volta. Os estados, como você lembrou bem, estavam arrumados quando veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000, e ali tinha uma métrica que era o nível de endividamento e o nível de comprometimento das receitas com a folha de pagamento. Com base nisso, a União funcionou como uma espécie de FMI da Federação e financiou os estados. Mas aí, mais adiante, o governo Dilma Rousseff estragou tudo de novo (houve renegociação das dívidas em 2014, mudando os termos acertados no acordo de 1997, com mudança no indexador e redução de juros). Estava na hora de fazer uma outra lei de responsabilidade fiscal. Isso é assim mesmo. Alguma coisa precisa refazer, corrigir o curso. Ou vem um outro governo que estraga tudo e começa tudo de novo. E assim é a democracia, tem alternância no poder, tem choques que vêm de fora, que vêm de dentro. A vida econômica, infelizmente, é muito instável. 


Você tem falado muito do risco das pequenas inflações, que a estabilidade é uma coisa conquistada, mas que você tem que mantê-la. Qual o risco que corremos?

Quando fizemos o Real, a inflação brasileira estava na faixa de 50% ao mês, que é 12.500% ao ano. Então, quando hoje a gente discute a meta de inflação anual de 3%, parece um excesso de zelo. Mas não, a pessoa que foi viciada não pode tomar um drinque sozinho e achar que é tudo normal. Não é! Nunca mais. A gente tem que ter muito zelo nesse assunto, porque toda a tecnologia desse vício, a correção monetária, está na cabeça das pessoas, dispara um pouco de inflação e começa tudo a degringolar. Não pode nunca voltar para aquela situação de antes. 

Temos proteções para isso. Nossas instituições, sobretudo referentes à governança da moeda, estão bem protegidas. Pode sempre estragar. Um mau governante, um mau momento do país, da política pode sim estragar tudo. E é mais fácil ainda para um país que já viveu esse estrago e parece que não tem medo. Quem já foi viciado descontrolado, sabe como é difícil a sobriedade. Vamos ter que cuidar da nossa saúde com muito zelo daqui para frente. 


Como foi a mudança do câmbio fixo para o flutuante (o novo regime foi adotado em 1999, após a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central), no meio de uma campanha eleitoral?

Agora, olhando em perspectiva, não foi isso tudo não. A temperatura do assunto estava alta por causa da eleição. E que tal como em 1998, como em 1994, a oposição dizia que era tudo uma farsa e que o câmbio era um artificialismo mantido exclusivamente para ganhar a eleição. Falou isso em 1994, insistiu, insistiu, perdeu em 1998 a mesma coisa, mas quatro anos depois... (Lula, do PT, venceu a eleição em 2002). E aí outras crises vieram, outros assuntos dos bancos, os estados, bancos federais, bancos estaduais, várias agendas foram e voltaram. Esta do câmbio foi mais uma, quando passamos para o flutuante. Segue o jogo. Não tinha nada de artificial. O real está aí até hoje. Não tinha nenhum truque, nenhuma farsa. Ninguém teve perda. Essa conversa acabou. 


Mas, naquele momento, tinha uma pressão para sair do câmbio fixo, ir para flutuante, da própria equipe econômica, mas tinha uma pressão para manter o câmbio fixo, como era véspera da eleição. Como foi lidar com isso?

Teve esse tipo de pressão. Desculpa, mas teve todos os dias, desde o começo, em câmbio, como no juro, como no Tesouro Nacional em cada leilão do Tesouro, sabe? Faz congelamento, não faz congelamento? A conversão de salários é pela média ou pelo pico? Qual o valor do salário mínimo? O plano econômico é cheio dessas coisas críticas. E o câmbio era uma delas. Agora, acho que o câmbio foi uma decisão muito boa, porque como é que se vai fazer um plano de estabilização sem ter o fiscal, sem ter uma porção de coisa que nunca é o ideal. 

 

Sobre o homem que assinou o Real e outras histórias - Mauricio David e Rubens Ricupero

Mauricio David, meu amigo pessoal, toca num ponto crucial em torno das comemorações dos 30 anos do Plano Real (que se mantém até hoje, a despeito de uma inflação acumulada de alguns 500% talvez; mas não sei dizer exatamente). Em todo caso, o Plano se mantém.

Mas, as comemorações se fazem INTEIRAMENTE em torno dos economistas, como se o trabalho de convencer o presidente Itamar, um populista honesto, mas teimoso e até irascível, tivesse sido deles. NÃO FOI. Se não fosse a condução do embaixador Rubens Ricupero, talvez o plano tivesse morrido antes de ser lançado, pois Itamar queria congelamento de preços e outras medidas impossíveis (aumentos de salários e outros tratamentos especiais).

Maurício Davi trata essa postura como sendo uma manifestação de STALINISMO TARDIO, o que talvez seja uma imagem forte, mas quem fez a supressão dos personagens foram justamente eles. Transcrevo a nota inicial do Mauricio David, e depois a resposta que lhe deu o próprio embaixador Ricupero.

Paulo Roberto de Almeida (23/06/2024)

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De: Mauricio David  
Enviada em: domingo, 23 de junho de 2024 14:48
Assunto: Sobre o homem que assinou o Real e outras histórias

 

Prezo muito a meus ex-colegas do Departamento de Economia da PUC/RJ, uma geração de brilhantes economistas. Mas mesmo os mais brilhantes entre os mais brilhantes estão sujeitos a falhas de caráter e de comportamento. Assim se passa com os eventos comemorativos dos 30 anos do Plano Real, obra redentora que inaugurou uma etapa nova na economia brasileira. É assim que vi muito entristecido certa arrogância e auto-suficiência dos meus ex-colegas e amigos do Departamento de Economia da PUC de “apagar” da história o importante (importantíssimo, ousaria dizer eu) papel desempenhado pelo embaixador Rubens Ricupero na implementação do Plano Real. Ex-comunista que sou, confesso que a atitude dos meus ex-colegas me lembrou muito os episódios da ex-União Soviética, nos tempos sombrios do stalinismo. Naquele período triste da história soviética, sabe-se que o próprio Stalin cuidava de mandar apagar de fotos históricas da vida política do antigo PCUS (Partido Comunista da União Soviética) as figuras caídas em desgraça (ou simplesmente de que Stalin desgostava ou passava a mal-querer). Assim é que, nesta época maldita, figuras históricas do peso de Trotsky e de Bukharin – grandes figuras da história da Revolução Russa de 1917- e muitas outras desapareciam da documentação fotográfica do período stalinista. Estes absurdos estão bem documentados e são fatos históricos conhecidos. O absurdo é que tantos anos depois – e agora que o stalinismo é apenas fato do passado (será ?)- , um novo episódio do “apagamento” de figuras das fotos históricas venha de novo acontecer. E promovida por intelectuais brilhantes vinculados à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Exagero meu ? Ouso dizer que não. Se não vejamos : nas comemorações dos 30 anos do Real eis que de súbito novamente ressurge o mecanismo do “apagar” das fotos a presença – incômoda, talvez – de figuras que exerceram papéis tão importantes quanto o Presidente Itamar Franco e seu Ministro da Fazenda, embaixador Rubens Ricupero. Já era um certo exagero o deboche com certos economistas do Real tratavam a figura do Presidente Itamar. Agora aparece o “esquecimento” do importante papel deste personagem extraordinário que foi e é o embaixador Ricupero. Já no importante evento que foi a mesa-redonda realizada na PUC/RJ recentemente (e que reproduzi aqui) o Ricupero – exemplo de servidor público devotado, artífice central da implementação do Real – foi simplesmente ignorado. Múltiplos artigos de imprensa e até livros recém lançados (todos analisados aqui neste espaço democrático, sem exceção) seguiram esta linha. Muito me recordo como o presidente Itamar era enxovalhado quando, desde o começo do seu período presidencial, insistia reiteradamente para que a sua equipe ministerial preparasse e implementasse um plano de estabilização para a economia brasileira. Era um Deus nos acuda ! A imprensa toda, a imprensa, escrita, televisada – a começar pela Globo- e as rádios martelavam diariamente que o Presidente era um tolo, um bobalhão, um caipira mineiro. Com idéias atrasadas. Ora, fazer mais um plano, diziam... Coisa deste irresponsável do Itamar... Do próprio Fernando Henrique – de quem eu era amigo e colega no Diretório Nacional do PSDB, nosso partido que juntos a figuras notáveis como Mário Covas e Franco Montoro fundamos – ouvi dúvidas quanto ao que pretendia Itamar. Posso confirmar que o Fernando Henrique foi nomeado “quase à força” e contra a sua vontade- para o Ministério da Fazenda com a missão dada pelo Itamar de articular a preparação de um plano de estabilização. Sei de fontes presenciais aos eventos que se foram sucedendo rapidamente que o Fernando Henrique estava em Nova York jantando na casa do embaixador Ronaldo Sardemberg (nosso encarregado da missão junto às Nações Unidas e irmão de uma colega nossa do BNDES, com quem trabalhei diretamente e de quem muito gosto) quando o Itamar telefonou dizendo que iria nomeá-lo para a Fazenda. A reação do Fernando Henrique : “não, presidente, em absoluto. Não aceito !”). Lá pelas tantas, o Fernando Henrique dá uma escapada até o banheiro. Pouco depois, o Itamar toca o telefone outra vez. O Fernando Henrique atende e estatelado escuta o Itamar dizer : “Fernando, já assinei a sua nomeação para a Fazenda. Ela sai publicada no Diário Oficial de amanhã”. Por isto afirmo e reafirmo : o Itamar é um dos autores políticos do Plano Real ! E, diga-se de passagem, o Fernando Henrique – homem honrado e sério que é – sempre reconheceu isto. E o episódio da nomeação do embaixador Ricúpero para a Fazenda, no lugar do FHC que teve que se desincompatibilizar para concorrer à Presidencia da República, deixando uma tarefa quase quixotesca e considerada quase impossível nas mãos do Ricupero – implementar e consolidar o Plano Real... E o Ricupero o fez com notável competência (neste ponto, lembro uma vez mais a autobiografia recém lançada pelo Ricupero (”Memórias”, editora da UNESP, que bem descreve os momentos dramáticos que se sucederam). Ricupero tem um papel primordial na consolidação do Real, ficando no Ministério até o tristemente episódio das declarações das parabólicas (aproveito para destacar que, homem profundamente católico, que gostava de assistir às missas do Mosteiro de São Bento quando estava no Rio - corrija-me se estou errado, meu caro e dileto amigo Ricupero – considero o mea culpa efetuado por êle como simplesmente um reconhecimento raro por um homem de Estado de erro cometido no exercício da função pública...

Como se justifica, tantos depois, o “esquecimento” dos amigos e colegas do Departamento de Economia da PUC/RJ ? Coisa do Malan ? Impossível !, o Pedro é uma das figuras mais respeituosas e dignas que conheci no exercício da profissão de economista. Coisa do Bacha ? Também impossível, o seu caráter e a sua ascendencia mineira jamais permitiriam. O Pérsio ou o André Lara Resende ? Não acredito. E nem tinham influencia na equipe para tal. Quem sobra então ? O Gustavo Franco ? Acabo de ver esta semana na TV a cabo um filme sobre o Gustavo e o Plano Real. Parecia mais um L’État c’est moi (“O Estado sou eu”, ou melhor, O Real sou eu...). Várias vezes, durante o filme-documentário, o Gustavo assume seu papel de pretenso Louis XIV dizendo “a minha moeda”, “ninguém toca na minha moeda”...  O Rogério Werneck ? O ex-marido da Dorothéia seria capaz disto ?

A história há de recolocar em seus papéis tanto o Ministro da Fazenda que pegou em suas mãos a tarefa hercúlea de implementar e consolidar o Plano Real como o presidente que garantiu a implementação do Plano. Quanto ao Fernando Henrique, a história já o colocou no papel central de o homem que salvou o Brasil.

Como se perguntava o personagem do Dias Gomes em sua novela de maior sucesso : “estou certo ou estou errado ?...)

MD

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De: Rubens Ricupero 
Enviada em: domingo, 23 de junho de 2024 18:01
Para: 'Mauricio David'
Assunto: RES: Sobre o homem que assinou o Real e outras histórias

 

Caro Maurício,

Mais uma vez agradeço a você pela generosidade com que se refere a meu respeito. Também quero dizer que me alegrou que você fizesse justiça ao papel fundamental de Itamar. Aliás, há hoje uma matéria longa na Folha de SP sobre o Itamar, baseada em parte no meu livro, que merece divulgação.

Confirmo o que escreve sobre minhas idas ao belíssimo mosteiro de São Bento, uma das joias do Rio de Janeiro que a maioria das pessoas ignora. Sou ligado aos beneditinos, oblato do mosteiro de Santa Cruz, de Brasília, por obra do saudoso Dom Basílio Penido OSB.

Sobre o “cancelamento” do Itamar e meu, não tencionava falar a respeito, por razões óbvias. Mas, já que tocou no assunto, vou dizer o que penso. Não sei se a omissão foi deliberada e a quem se deve. Ocorrem-me duas explicações possíveis e benevolentes. A primeira é que a intenção tenha sempre sido de realçar apenas o papel exclusivo dos economistas brilhantes da PUC do Rio, como parece ter sido o caso no evento lá, organizado pelo professor Werneck. É compreensível pois ele é dos professores mais associados ao Departamento de Economia da PUC Rio. De acordo com essa visão, compreende-se que se fale somente dos economistas, não se mencionando Itamar, FHC ou eu. A outra hipótese é que, não podendo associar aos eventos o Fernando Henrique, por motivos de idade e outros que você certamente conhece, tenham preferido não falar nem de Itamar nem de ninguém mais a não ser da equipe escolhida por FHC e que ficou com ele o tempo todo. 

O problema maior de todas essas explicações é que tenham escolhido como motivo ou pretexto da comemoração os “30 anos do lançamento do Real”. Ora, o lançamento, goste-se ou não, ocorreu no dia 1º de julho de 1994, e, como todas as imagens da TV e da imprensa mostram, foi efetuado pelo Presidente Itamar Franco e por mim. Para ser mais exato, a primeira operação pública de troca da moeda antiga pela nova se realizou na agência da Caixa Econômica Federal do Palácio do Planalto. Suprimir as duas pessoas que, merecida ou imerecidamente, foram os autores do evento, equivale a imaginar que o lançamento ocorreu num passe de mágica, por algum deus ex machina... Por que, então, não se escolheu outra data, por exemplo, o lançamento da URV em fevereiro, a data da primeira medida provisória da URV (1º de março de 1994) ou a eleição de Fernando Henrique? Alguns minimizam o lançamento da moeda. Como narro nas memórias, a equipe no início queria esperar até um ano para lançar a moeda, diziam que o principal era deixar a URV se consolidar, que a moeda em si não tinha tanta importância. Pode ser, mas, se fosse verdade, a data de 1º de julho não teria se convertido no símbolo do Real, como aconteceu. A prova de que estão errados é que foram obrigados a escolher essa data e não outras. Nunca pretendi, nem pretendo agora, que meu papel tenha sido mais do que limitado. Como publiquei nas memórias, “no romance do Real participei como um desses personagens secundários que ingressam quando a narrativa já começou e que, da mesma forma inexplicável que entrou, depois de algum tempo, desaparecem sem deixar traços”. Sucede que, naquele período de poucos meses, quem insistiu em marcar data para lançar a moeda fui eu. Como lembro no livro, José Serra me contou que Fernando Henrique pensava em renunciar à candidatura pois ela não deslanchava. Foi só quando soube que tínhamos marcado a data do lançamento é que cobrou ânimo. 

Só para completar, alguém deve ter percebido que havia essa omissão porque acabaram me convidando para o evento de amanhã, dia 24/6, na Fundação FHC. Tenciono ir mas se tiver de falar, vou me limitar a prestar homenagem à equipe, a Itamar e a FHC. Também me convidaram para um seminário no dia 1º, no qual tenciono mais falar do futuro, na linha daquele texto que lhe enviei e do qual gostou. Está mais perto da minha área de preocupações.

Digo tudo isso para seu governo pois não quero agravar ninguém, nem sair por aí reclamando reconhecimento.

Muito obrigado pela sua infalível amizade.

Abraço forte,

Rubens