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quinta-feira, 27 de junho de 2024

Persio Arida: entrevista excepcional; comentada pelo Maurício David ficou ainda melhor: na ordem inversa

Comentário inicial do Mauricio David: 

 My God ! O Pérsio com 70 anos ! (porque me admiro, se eu próprio já estou com 77, à dois meses e meio de completar 78...). Conheci o Pérsio a começos da década dos 80, quando ambos estávamos trabalhando na PUC/RJ ( o Pérsio no Departamento de Economia, eu em uma instituição nova e pioneira que havíamos criado um grupo de ex-exilados, o IRI-Instituto de Relações Intenacionais). No IRI tudo era precário nesta época e tínhamos pouquíssimos – ou quase nada- recursos, então o Bacha e o Malan articularam para que eu desse aulas no Departamento de Economia para fechar o final do mês... Nesta época eu estava com uns 34/35 anos, o Pérsio devia ter uns 28... Cara de garoto, casado com uma gringa (Suzy, se mal me recordo...) que trouxe dos Estados Unidos. Eu tinha uma amiga/colega/aluna, Wanda, que se tornou muito amiga do Pérsio, estavam sempre de papo na hora do lanche e do cafezinho (me dava até ciúmes...). Ela tinha adoração pelo Pérsio. Descobriu nele qualidades que eu ainda não antevia... Neste período, o Pérsio “estourou” no mundo acadêmico com o famoso paper “Larida”, escrito com outro “garotão”, o André Lara Resende. O paper Larida foi a base do futuro Plano Real, creiam... Éramos todos gênios, e não sabíamos... Anos depois, muitos anos depois, li um depoimento escrito pelo Pérsio sobre a sua prisão em São Paulo, êle estudante ainda, quando militava no grupo armado da VPR-Vanguarda Popular Revolucionária. Muito interessante o depoimento do Pérsio sobre a sua prisão, me emocionei muito quando o li quando o Pérsio o publicou. Depois o Pérsio se reciclou, seguiu para uma interessante intersecção entre o mundo acadêmico e o financeiro, virou banqueiro, fundou um banco (BTG, depois outro BTG Pactual), tornou-se um economista super-respeitado. Trajetória excepcional, assim como a do André Lara Resende, do Gustavo Franco, do Malan e do Bacha. Não me canso de repetir, éramos felizes e não sabíamos...

Esta entrevista do Pérsio sobre os 30 anos do Real é muito interessante, merece ser lida com atenção. É uma das melhores coisas que li sobre este período em que eu mesmo estava fora do país pela segunda vez, fazendo meu doutorado em Paris. Em Paris convivi por um tempo com uma pessoa com que fiz grande amizade, a Loris – irmã de uma amiga minha, cunhada de um grande amigo-irmão – que era muito amiga do Pérsio (haviam convivido juntos no movimento estudantil e na VPR). Ela adorava o Pérsio. Aprendi na vida que quando as pessoas são adoradas, por algo de bom será. Lamentavelmente, a Loris morreu muito precocemente, algum anjo celestial (se eles existirem...) deve ter se apaixonado por ela e a levou para o espaço celestial. Nem sei se o Pérsio chegou a saber disto, mas se não, que saiba que a Loris simplesmente lhe queria muito, muitíssimo...

MD

P.S.: O Castro (Antonio Barros) gostava também muito do Pérsio, creio que fizeram amizade em uma estadia de ambos nos Estados Unidos...Certa vez, creio que lá pelos anos 80 ou 81, o Castro reuniu um grupo d economistas para conversas com o Pérsio sobre a “Teoria das Expectativas Racionais”, que estava “bombando” nos Departamentos de Economia das universidades americanas. O Pérsio estava chegando dos Estados Unidos e estava com uma visão muito derrotista sobre a massacre avassaladora das Expectativas Racionais nos departamentos de economia das grandes universidades americanas. Super-inteligente e articulada a palestra do Pérsio sobre o que estava acontecendo nos centros hegemônicos do pensamento econômico americano. Sem nenhuma pretensão extraordinária da minha parte, confesso que a exposição do Pérsio não me convenceu, creio que a sua visão de mundo se restringia ao mundo americano, quase que exclusivamente. Não sei quem estava certo, se o Pérsio em sua análise derrotista, ou se eu, na minha visão mais esperançosa e otimista. Do lado prático das coisas, a história deu razão ao Pérsio... Mas, como dizia o meu amigo e mestre Darcy Ribeiro, eu não estaria feliz se estivesse do lado dos vencedores...

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“Precisa mesmo de uma reforma administrativa estrutural, mas sei que o tema é tabu. A melhora da máquina pública é um processo que leva uma década ou duas, mas vai na direção de ter um Estado eficiente. O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso.”

“O Brasil tem tudo para liderar o processo de transição energética no mundo, mas precisa de um plano, uma visão. Tem o Europa 2030, que é um plano. Os Estados Unidos optaram por subsídios maciços à inovação. Você pode questionar qual dos dois é melhor, mas claramente eles têm planos. O Brasil não tem. É inacreditável.”

(da entrevista do Pérsio na FSP de hoje, 26 de junho, sobre os 30 anos do Real)

Governos do PT interromperam modernização prevista pelo Plano Real, diz Persio Arida 

Apesar da frustração com medidas econômicas, ele afirma que preservar a democracia é fundamental e não se arrepende do voto anti-Bolsonaro 

Alexa Salomão

Oxford

Apesar de ter sido concebido para combater a hiperinflação, o Plano Real tinha uma visão mais ambiciosa, a de tonar o Brasil um país moderno e eficiente, afirma o economista Persio Arida, um dos formuladores do programa de estabilização que completa 30 anos. Mas essa proposta, avalia ele, foi interrompida nas gestões do PT.

"O Real, diferentemente de muitos planos de estabilização, tinha uma visão de futuro compartilhada por todos nós. Eu diria que as bases de um Brasil mais moderno foram todas consolidadas naquele momento", afirma.

"Houve uma série de frustrações do ponto de vista do que seria ideal, um retrocesso e uma interrupção de vários aspectos desse projeto modernizante de país nos mandatos do governo Lula."

Na avaliação de Arida, agora é preciso um esforço para recuperar parte daquela agenda e promover uma revisão do sistema de gastos e a melhoria da máquina pública.

"O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso", diz o economista à Folha.

Olhando agora, 30 anos depois, por que o Plano Real deu certo depois de tantos planos frustrados?

O Plano Real teve uma arquitetura de transição da alta para baixa inflação que foi original, não só para a história brasileira como internacionalmente. Foi "made in Brasil" mesmo.

Mas, tão importante quanto o desenho, faz diferença quem implementa, e nisso houve uma característica única. Fernando Henrique Cardoso, como ministro da Fazenda, era, de um lado, intelectual e, do outro, articulador político, algo raro. Normalmente, um ministro da Fazenda é intelectual ou político.

Como intelectual, foi capaz de entender o programa e reunir uma equipe em que confiava, e escolheu a equipe da PUC do Rio —o que foi um ato de ousadia política. Ele trouxe os liberais para implementar o plano. Dada a sua trajetória como exilado, por exemplo, muitos podiam imaginar que levaria economistas mais à esquerda.

Esse grupo também foi um aspecto singular. Normalmente, equipes de governo são pessoas de várias extrações, que não se conhecem bem e precisam desenvolver o conhecimento de como trabalhar em conjunto já no governo. O grupo do Real era formado por pessoas que já trabalhavam em conjunto na universidade, muito coeso e com laços de confiança. Não tinha jogo político ou um querendo derrubar o outro, essas coisas da vida pública e da vida privada também, diga-se de passagem.

Por outro lado, como ministro da Fazenda, Fernando Henrique operou politicamente. Fez uma aliança do PSDB com o PFL, que era, muito mal comparando, uma espécie de centrão da época, e foi fortemente criticado pelos puristas do PSDB. Mas ele falou: "Precisa ter maioria para aprovar o plano, e maioria se faz com aliança". Aliás, ele manteve essa aliança durante os seus dois mandatos.

Teve outra característica única. Ele foi eleito por causa do Plano Real, e não teria sido sem ele, então deu continuidade e consolidou o plano. Ele sabia que a sua popularidade e sua possibilidade de reeleição dependiam intrinsecamente do sucesso do programa. Ou seja, o presidente da República estava comprometido, algo que não houve em outros momentos da história brasileira.

Fernando Henrique se empenhou num processo que ele mesmo descreve em seu livro a Arte da Política como pedagogia democrática: explicar o plano. Todos nós fizemos isso, mas ele, claro, mais do que todos. Enfim, houve um conjunto muito particular de circunstâncias.

Agora, tão desafiador quanto lançar o plano foi sustentar a moeda depois. Planos de estabilização são frequentemente bem-sucedidos no começo. O desafio é manter a estabilidade de preço ao longo do tempo.

O sr. pode enumerar desafios?

Foram muitos. Primeiro, teve o risco de uma enorme crise bancária. Os bancos eram sócios da inflação. Sem ela, o ganho de float desapareceu. Houve, na prática, um processo gradual de purgação do sistema. Mais de 100 instituições, públicas e privadas, foram liquidadas ou forçadas a serem vendidas para terceiros.

Outro desafio foi o câmbio. Depois de muito debate, o câmbio ficou praticamente fixo. Quando o Brasil não teve mais reservas, veio a flutuação cambial. Há países em que, quando você faz a flutuação cambial, a inflação sai do controle. Superamos esse desafio.

Destaco também o desafio foi organizar o Estado e fazer uma sociedade brasileira mais eficiente.. Eu diria que as bases de um Brasil mais moderno foram todas consolidadas naquele momento.

Vieram as privatizações, a quebra dos monopólios estatais e de telecomunicações, o FGC, fundo para garantir empréstimos, as mudanças no Conselho Monetário Nacional e nas relações entre Tesouro e Banco Central. Foram criados o mercado de títulos de longo prazo, que existe até hoje, a Lei de Responsabilidade Fiscal para enquadrar os estados, as agências reguladoras, o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. A lista é enorme.

Passados 30 anos, o Brasil é o que vocês projetaram?

Muita coisa mudou para melhor. Alguns aspectos, porém, são muito frustrantes. A abertura, para forçar os mercados à disciplina da competição internacional, era um elemento chave do nosso projeto. Não aconteceu até hoje.

Outro exemplo. Foi feita uma desvinculação orçamentária com Fundo Social de Emergência, que era parte de uma desvinculação geral —desvinculando reajuste de Previdência de salário mínimo, desvinculando despesas de receita etc. Obviamente, estamos com essa discussão agora, 30 anos depois. Reajustes reais de salário mínimo quebraram a Previdência, porque há indexação. Não deveríamos ter indexado saúde e educação à arrecadaçãoHouve uma série de frustrações do ponto de vista do que seria o ideal, um retrocesso e uma interrupção de vários aspectos desse projeto modernizante de país nos mandatos do governo Lula.

Quais ajustes são inevitáveis daqui para frente?

Fizemos duas rodadas de aumento de gastos. Uma com a PEC do Kamikaze, do Bolsonaro [que turbinou benefícios sociais a três meses das eleições de 2022], e outra com a PEC da Transição, no mesmo ano, mas articulada pelo governo eleito do presidente Lula, que já tinha sido eleito. A junção das duas criou um aumento de gastos públicos que é impossível resolver via taxação. A sociedade se recusa a pagar o montante que é necessário.

É preciso algum esforço para fazer uma revisão do sistema de gastos. O mundo inteiro faz. Qualquer programa periodicamente tem avaliações —e avaliações independentes— que podem recomendar a continuidade, mudanças ou a interrupção dos programas. Não pode é criar um programa e expandi-lo inercialmente, perpetuando.

Você tem que fazer gestão por metas, ter objetivos claros, pré anunciados, para que a sociedade cobre se o funcionamento da máquina pública está ou não adequado aos seus anseios. Precisa elevar a digitalização. Hoje, você avalia até compra de comida pelo iFood, mas não tem avaliação para serviço público —e uma inovação no serviço público tem impacto extraordinário. Olha o Poupatempo, para dar um exemplo pequeno aqui de São Paulo.

Precisa mesmo de uma reforma administrativa estrutural, mas sei que o tema é tabu. A melhora da máquina pública é um processo que leva uma década ou duas, mas vai na direção de ter um Estado eficiente. O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso.

Pelo que o sr. está descrevendo, o arcabouço fiscal atual, sustentado em aumento de receita, não vai ficar de pé. Correto?

Se você olhar de frente, da forma como está posto, o problema é insolúvel. Não há como arrecadar da sociedade o necessário para gerar um superávit fiscal que estabilize a dívida pública. O que tem que fazer? Revisão de gastos e melhora da máquina pública

O sr. estava no que podemos chamar de frente ampla de economistas que apoiou a eleição do atual governo, e havia uma expectativa de que poderiam contribuir na gestão, o que não aconteceu. Qual a sua avaliação sobre a condução da economia? 

Olha, não me interessa comentar sobre política. Não é a minha praia. Mas a eleição entre Bolsonaro e Lula, a meu ver, era, antes de mais nada, uma escolha entre alguém que claramente ameaçava o fundamento democrático do país e outro que não. Voto no Lula, para mim, sempre foi um voto pela democracia, um voto anti-Bolsonaro.

E vou te dizer: não tenho arrependimento. Para mim, ajustes na economia podem acontecer mais cedo ou mais tarde, mas, se você perder a democracia, tem um problema muito mais grave. Claro, esperava mais do ponto de vista econômico.

Coisas boas aconteceram. A reforma tributária foi encaminhada. Apesar de todas as excepcionalidades, exceções e lobbies, a meu ver, foi um passo muito importante. Manter indexações, porém, foi claramente um erro. Com a indexação do salário mínimo à Previdência, muitos dos ganhos com a reforma já se perderam. Vamos ter que fazer uma outra reforma da Previdência por falta de coragem política para simplesmente dizer: "Olha, ganho real, ganho de produtividade, é para quem trabalha, não para quem não trabalha". Me preocupa também a falta de uma agenda climática.

Como assim?

O Brasil tem tudo para liderar o processo de transição energética no mundo, mas precisa de um plano, uma visão. Tem o Europa 2030, que é um plano. Os Estados Unidos optaram por subsídios maciços à inovação. Você pode questionar qual dos dois é melhor, mas claramente eles têm planos. O Brasil não tem. É inacreditável.

Acabamos de ter um desastre monumental no Rio Grande do Sul, e a mudança climática é uma ameaça enorme para um setor dinâmico da economia brasileira, a agricultura. Se o regime de chuvas mudar, ele será afetado. Então, o que eu estou chamando a atenção aqui é que precisamos de um bom plano de transição climática para enfrentar os desafios. Confesso que nisso o governo tem me dado uma grande frustração.

RAIO-X - PERSIO ARIDA, 70

Nascido em São Paulo, tem graduação em Economia pela USP (Universidade de São Paulo) e doutorado na área pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Foi professor da PUC-RJ e da USP, atuando como pesquisador no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA), no Centro Brasileiro de Estudos da Universidade de Oxford (Reino Unido) e no Instituto Smithsonian, em Washington (EUA). É um dos pais do Plano Real. Foi presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e do Banco Central. Na iniciativa privada, foi um dos fundadores do Banco BTG, atual BTG Pactual, do qual deixou de ter participação em 2017. Em 2018, foi coordenador do programa de governo do então candidato a presidência pelo PSDB, Geraldo Alckmin.


quinta-feira, 23 de maio de 2024

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou - Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco (Brazil Journal)

Dica de leitura (grato a Maurício David)

30 anos do Real, o plano em que ninguém acreditou

Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco

Brazil Journal, 23 Maio 2024 

“Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação,” diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos pais Real, o plano que deu fim ao inflacionismo brasileiro.  Essas recordações estão no livro 30 anos do Real – Crônicas no calor do momento, organização Gustavo Franco (História Real; 224 páginas), que será lançado em 10 de junho. 

O volume reúne textos de Edmar Bacha, Pedro Malan e do próprio Franco, que foi o organizador da coletânea em celebração às três décadas do programa de estabilização monetária. Hoje a preocupação dos economistas é se a inflação brasileira vai ficar acima da meta oficial de 3% ao ano. Os mais jovens, entretanto, não podem imaginar o que foi viver num país em que os preços subiram em média 16% ao mês nos 15 anos que antecederam o Real. No pico da hiperinflação, ela atingiu 82% em março de 1990.   Nos trechos abaixo, retirados do livro e antecipados ao Brazil Journal, Bacha fala dos desafios pós-estabilização e Franco rememora o ambiente inóspito quando o Real foi lançado. 

O plano recebeu torpedos de todos os lados. “Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos,” escreve Franco. Mas a nova moeda colou – e é a mais longeva da República.  ***  

Gustavo Franco: “A construção do Real partiu de condições iniciais muito difíceis. Não foi exatamente o resultado de um consenso ou pacto facilmente construído pelo triunfo da razão, ressalvados apoios nem sempre muito convictos que obtivemos no Congresso Nacional. Os interesses associados ao inflacionismo se mostraram fortes e vocais, além de bem dissimulados, pois jamais faziam uma defesa aberta da inflação. Eram apenas, como se dizia, a crítica (democrática) ao modelo de combate à inflação, dito ortodoxo e recessivo. As circunstâncias foram sempre difíceis, dentro e fora do País. O enfrentamento e a polêmica, bem como a paciência e a consistência, foram marcas inequívocas desse trajeto. 

Nem Lula nem Bolsonaro apoiaram esse projeto quando jovens, e não estavam sozinhos. Muitos políticos, inclusive alguns amigos, diziam que as soluções que propúnhamos eram de quem não conhecia Brasília nem nada sobre as vontades do povo.  Foram poucas as vozes de apoio, e mesmo de reconhecimento de que valia o esforço de brigar para acabar com a inflação. Arnaldo Jabor era uma delas. Em 28 de junho de 1994, três dias antes da conclusão da reforma monetária que introduziu o Real, diante da quantidade e variedade de reparos à estabilização vindos de todos os lados, Jabor publicou uma crônica inesquecível, intitulada ‘País não merece vitória do Plano Real’.  A passagem mais comovente, ao menos para mim, ia ao coração do problema: ‘Não há solidão mais terrível do que ser da equipe econômica do governo.’ E a razão era simples, segundo dizia: ‘Ninguém ajudou.’ Congresso, economistas, Igreja, burguesia, artistas, intelectuais, Judiciário, conforme ele explicava em cores vivas, estavam consumidos pela descrença ou pelo torpor. Complexa a chamada ‘economia política’ da inflação. Mas o Plano avançou, transitando por duros debates e negociações. Seus resultados superaram as melhores expectativas, desarmaram as objeções e o País se encantou com a vida sem inflação. Tudo indica que fizemos uma opção para todo o sempre em 1994.”  (…)  

Edmar Bacha: “Em 1974, escrevi uma fábula sobre o reino de Belíndia, mistura de Bélgica com Índia, um País em que o crescimento econômico beneficiava somente a parcela mais rica da população. Era uma alegoria sobre a natureza do crescimento do PIB brasileiro durante a ditadura militar. Em 1984, quando da transição para a democracia, imaginei em nova fábula uma reunião de economistas no Sambódromo para discutir como dar fim à inflação no país dos contrários, em que tudo funcionava de trás para a frente, inclusive o próprio nome do país, Lisarb, e seu próximo presidente, Seven. Após a redemocratização, Mario Henrique Simonsen cunhou o termo Banglabânia, mistura de Bangladesh com Albânia, para expressar sua preocupação com o risco de empobrecimento do país como consequência das tendências autárquicas e estatizantes da Constituição de 1988. Em 1994, quando fui para o governo, Delfim Netto apresentou sua réplica à Belíndia, concebendo a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, para criticar o governo, que aumentava os impostos como se estivesse num país europeu enquanto oferecia serviços públicos de terceiro mundo. As manifestações de rua de 2013 trouxeram à tona outra caracterização, que denominei de Rumala, triste combinação de Rússia com Guatemala: uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade. Como se não bastasse, ao promover a devastação da Amazônia e a ocupação pelo garimpo ilegal dos territórios indígenas, o governo de Bolsonaro me sugeriu criar Brasa, um país em chamas, completando essa peculiar lista. Esses países imaginários designam males múltiplos presentes na atualidade brasileira: desigualdade, preços surreais, pobreza, introversão, estagnação, impostos sem contrapartida de serviços, corrupção e violência, ataques ao meio ambiente e aos povos originários. Sombrios como parecem ser os tempos atuais, é preciso manter o senso de perspectiva. Em 2019, comemoramos 130 anos de República. Na transição do Império para a República, na última década do século XIX, o Brasil tinha apenas 14 milhões de habitantes, dos quais 82% eram ágrafos e apenas 10% viviam em áreas urbanas. A renda por habitante era pouco maior do que US$ 1 mil em preços de hoje. Atualmente, o Brasil tem 203 milhões de habitantes, com o analfabetismo reduzido a 6% da população adulta: uma população em sua imensa maioria urbana (85%), dispondo de uma renda anual por habitante da ordem de US$ 15 mil. São avanços inegáveis, mas que empalidecem quando comparados aos níveis mais altos de bem-estar dos países ricos. Entre 1920 e 1980, o Brasil seguiu uma trajetória de alto crescimento e parecia destinado a se incorporar ao conjunto dos países mais avançados. Essa trajetória, entretanto, estancou-se na crise da dívida externa do início dos anos 1980, a qual gestou um processo de alta inflação de que só nos livramos com o Plano Real, em 1994. Avaliando o Plano Real em 1997, três anos após sua implantação, celebrei o fato de ele ter sido bem-sucedido em baixar as taxas de inflação e mantê-las baixas. Mas observei que ainda era preciso produzir uma tendência econômica na qual o controle inflacionário se conjugasse com crescimento econômico sustentado e equilíbrio das contas externas. O equilíbrio das contas externas pôde ser alcançado a partir da introdução, em 1999, do chamado tripé da política econômica: superávit primário no Orçamento do governo, câmbio flutuante e metas de inflação. Com a manutenção do tripé pelos governos do PT, a partir de 2003, e a ajuda do auge das commodities na primeira década do século XXI, o país conseguiu superar as crises de balanço de pagamentos da década de 1980. Isso ficou demonstrado no enfrentamento da crise financeira internacional de 2008, quando o governo pôde praticar uma política expansionista sem temer uma parada súbita na entrada de capitais externos. O Plano Real permitiu, assim, abolir dois males históricos da economia brasileira: a alta inflação e as crises de balanço de pagamentos, que ainda hoje tanto atormentam a Argentina. No entanto, afora curtos espasmos determinados pelo ciclo das commodities, o Brasil continuou a crescer a taxas muito baixas. Não se trata de fenômeno incomum. É conhecido como a armadilha da renda média na literatura internacional. Uma coisa é transitar da renda baixa para a renda média. Outra coisa é sair da renda média para alcançar o nível de renda dos países ricos.”