Gustavo Franco: entrevista
‘Demos passos decisivos para o Brasil virar um pária econômico’, diz Gustavo Franco
Ex-presidente do BC lança livro e diz que agenda liberal do governo “é um ornamento” e que mercado financeiro e parte do empresariado votam com o bolso
Cássia Almeida e Luciana Rodrigues
21/05/2021 - 04:30 / Atualizado em 21/05/2021 - 12:08
Ex-presidente do BC lança livro em que discorre sobre as dificuldades de fazer as reformas no Brasil e como o país ficou para trás em relação ao resto do mundo Foto: Ze Paulo Cardeal / .
RIO — Em seu novo livro “Lições amargas”, que chega às livrarias dia 26, lançado pelo selo História Real da Intrínseca, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco discorre sobre as dificuldades de fazer as reformas no Brasil e como o país ficou para trás em relação ao resto do mundo. Em entrevista, Franco afirma que o governo Bolsonaro nunca apresentou um projeto econômico, e o mercado financeiro e parte do empresariado que o apoiou “votam com o bolso”.
Para ele, a agenda liberal é “um ornamento” e o Brasil se tornou pária econômico, ao ignorar as relações internacionais e consensos, inclusive quanto ao meio ambiente. Ele diz que, se não surgir uma terceira via nas eleições, o voto nulo será essa via.
A pandemia exigiu esforço fiscal grande. No livro o senhor afirma que, historicamente, o debate no Brasil tem sido marcado por uma negação das restrições orçamentárias. Como lidar com essas restrições no pós-pandemia?
É uma lição difícil daqui para frente, o reconhecimento da escassez, que não tem solução mágica. Não existe urgência que remova todas as restrições. Às vezes tem um pouco essa mitologia que você pode fabricar papel pintado sem limite, que você resolve qualquer problema, seja uma crise sanitária ou lutar uma guerra ou combater a pobreza, que é só uma questão de vontade política. Desculpa, não é.
E a pandemia foi uma fórmula cruel de restabelecer essa verdade. Não é que você tenha uma pandemia que ficam suspensas as preocupações com o meio ambiente, ou com a responsabilidade fiscal, ou com a democracia.
De algum jeito, esses valores permanentes da sociedade têm que ser preservados qualquer que seja a estratégia para combater uma urgência como a pandemia. O desafio dos governantes é fazer escolhas inteligentes, e os governantes muito frequentemente perdem o desafio. Isso é o mapa de qualquer crise e a gente está vendo isso aqui no Brasil como em outros países.
O senhor costuma dizer que o brasileiro busca soluções mágicas para a economia. Avalia que a condução do Brasil na pandemia, do ponto de vista científico, também foi uma busca por solução mágica?
É isso, sim, mas tem o mito da solução mágica. Pensa em termos do xamanismo e da dança da chuva. O xamã diz assim: ‘ah, faz aí a dança da chuva que você vai se curar da peste’. Metade das pessoas vai morrer de qualquer jeito e a metade vai ficar boa.
A metade que ficou boa pensa: poxa, eu fiquei boa porque eu fiz a dança da chuva. Eu fiz essa coisa, ou tomei cloroquina, fiquei bom. Opa! É uma vitória política do xamã. Não que esteja necessariamente desafiando a ciência ou não. A ciência entrou de gaiata na discussão. Estamos vendo o efeito que a mágica pode ter sobre a política. É disso que se trata, no meu modo ver, o assunto cloroquina. É xamanismo.
No livro, o senhor cita o episódio do Ceagesp (quando o presidente Jair Bolsonaro visitou o local e descartou a privatização do entreposto) como o fim simbólico da agenda liberal. O senhor acha que realmente havia uma agenda liberal? Ela foi sepultada? Ou há perspectiva de resgate ainda?
Esse governo não teve nunca uma agenda sua, não foi eleito em razão de sua agenda econômica que foi sempre um ornamento da proposta eleitoral de Jair Bolsonaro e isso, claro, coloca um desafio para as empresas e todos que acreditam nas reformas econômicas e de orientação liberal em particular. Pelo seguinte, não é o governo dos nossos sonhos, longe disso, mas se não colaborar vai ser pior. Ou seja, os governos nunca são os ideais.
Você olha para Jair Bolsonaro e você olha para Dilma Rousseff não dava para ver nada muito organizado em matéria de agenda econômica, ao contrário. E aí vamos ver o que é possível fazer dentro de situações políticas que não são o ideal. Na verdade, isso é mais a regra do que uma exceção.
O episódio da Ceagesp é particularmente teatral, como uma fórmula de verificar a inconsistência e inaptidão do presidente para lidar com a complexidade dessas agendas liberais.
O senhor afirmou que se não colaborar vai ser pior. Como fica então se o ministro Paulo Guedes sair?
Só é possível conjecturar é claro, mas existe alguma coisa mais geral nessa situação, como o mito do Fausto. Tem uma relação fáustica entre o Paulo (Guedes) e o presidente.
É uma ilustração muito mais comum do que parece do relacionamento entre os economistas do governo e os presidentes da ocasião Geralmente, (os presidentes) ficam meios alheios, às vezes até meio hostis à pauta econômica, sempre politicamente penosas. Os presidentes nunca gostam dos temas de reformas econômicas porque você dispende uma energia política gigante. Essa situação do Paulo se observou no governo militar aqui no Brasil, onde economistas que a gente respeita muito hoje em dia, Mario Henrique Simonsen, Roberto Campos, foram ministros de governos militares e foram constantemente questionados pelos colegas: “como é que você pôde trabalhar com um governo que torturava”? Mais de uma vez eu ouvi desses economistas observações do tipo: “olha, seria pior se eu não tivesse lá”. É mais comum do que parece essa situação que a gente está vivendo agora.
É comum, mas o senhor acha eticamente justificável?
É um assunto que depende da pessoa. E aí, uma coisa é o que você faria, outra coisa é, bom, vamos pedir para o Paulo (Guedes) sair porque não dá para trabalhar com esse presidente. Quem vai sentar no lugar dele? Vai ser o Salles (Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente), o Weintraub (Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação). Então, faça as contas.
O senhor disse que ficou claro que a agenda liberal era um ornamento. Essa clareza se tinha antes da eleição? Houve uma adesão muito grande do mercado financeiro e de parte do empresariado à candidatura Bolsonaro em 2018. Passados dois anos e meio de governo e episódios como o senhor mencionou, da Ceagesp e a própria pandemia, esses atores ainda apoiam o governo?
Esses atores, como você definiu, eles votam com o bolso. Não tem nenhuma lealdade a políticos A, B ou C, pode ser Bolsonaro, como pode ser Dilma. A questão é quem vai melhor conduzir as agendas econômicas de interesse dessas pessoas. E essa é a natureza da competição política que nós vamos ter na próxima eleição, como tivemos na anterior.
Na anterior, as ideias liberais tiveram muita importância na disputa, e há uma decepção evidente sobre a execução dessas ideias, que foi enfim, inferior ao que se esperava, e isso vai custar caro, eu creio, a esse presidente ao concorrer à reeleição. Esses atores econômicos vão aparecer no debate eleitoral trazendo seus pleitos de reformas, e os políticos terão que formular diretrizes e políticas para isso e vamos ver quem ganha.
O senhor diz no livro que a polarização política multiplica a cretinice. A polarização permanece forte e com a entrada do presidente Lula na corrida eleitoral, isso se acirrou. Acho possível surgir um terceiro nome forte? Qual seria?
Eu torço para que isso aconteça. Hoje não se vislumbra um nome forte. Há vários nomes capazes, a questão é se vão se tornar nomes eleitoralmente fortes e viáveis nos próximos meses. É impossível responder nesse momento. O que é muito claro é o desconforto com a polarização que vai viabilizar a terceira via qualquer que ela seja. A rejeição aos outros dois.
Como vai ser sua participação na eleição no ano que vem? Na eleição passada, o senhor coordenou o programa econômico do Partido Novo.
Continuo participando, agora escrevendo livros. Eu gosto do projeto do Novo. Ele agora é ator mais importante do que foi no passado. É uma bancada pequena, porém, competente e combativa.
Se não for viável uma terceira via e a eleição for polarizada de novo? De que lado o senhor fica?
Será uma pena. Porque a terceira via não terá um nome, será o voto nulo. E aí vai ser uma vergonha se o voto nulo ganhar desses dois. Eu quero crer que isso não vai acontecer.
O senhor votaria nulo?
São três alternativas, o voto é secreto.
A pressão internacional sobre o Brasil, principalmente em relação à questão ambiental, tem crescido. O senhor avalia que vai surtir efeito?
Acho sim, mas quero voltar ao tema das melhores práticas, que invadiu a agenda reformista de tal maneira que padrões internacionais passam a ser importantes para tudo nas negociações internacionais. Outra coisa é o dinheiro de investidores, para usar um conceito bem orgânico ao mercado financeiro, comprometidos com as pautas ESG (ambientais, sociais e de governança).
Os fundos que investem nos países emergentes vão querer que certos princípios de investimento responsável, inclusive os de meio ambiente, sejam obedecidos. Está absolutamente correto, o dinheiro é deles. Se você se considera ofendido por uma intromissão estrangeira nas suas políticas ambientais, ok.
Está ofendido, continua isolado, eles investem em outro lugar. São US$ 103 trilhões de dinheiro que vão ser investidos no mundo conforme critérios ESG. Estamos vendo, a partir do lado negativo infelizmente, o que é desobedecer a esses consensos e viver as consequências: as multinacionais vão embora, os investidores financeiros vão embora, muitos investimentos não acontecem. E o Brasil fica um pária econômico.
O senhor acha que o Brasil já é um pária econômico?
Demos passos decisivos nessa direção. Mas não é irreversível, felizmente.
O senhor cita no livro o atraso do Brasil na abertura comercial e como isso fez o país estagnar frente a outros países. Como a pandemia afeta esse debate?
A pandemia é talvez a primeira doença global que a gente tem desde que passamos a usar essa linguagem da globalização. Mais do que nunca, nós somos uma comunidade global, mais do que nunca o outro é importante. Por que na economia vamos ter isolamento uns dos outros? Não há dúvida que a gente foi muito profundamente para o terreno do isolamento, o que torna a abertura no nosso caso a mãe de todas as reformas.
O senhor acha inexorável partir para abertura comercial?
Por que é inexorável? Para começar tem um dado do livro que chama a atenção, um terço do PIB brasileiro é produzido por empresas multinacionais. Já estamos abertos ao mundo, e esse um terço é onde a produtividade é maior, a propensão a exportar é maior. Por que a gente não faz aumentar esse Brasil globalizado?
As empresas globalizadas brasileiras que produzem um terço do PIB empregam menos de 3% da força de trabalho, portanto faz a conta aí do diferencial de produtividade de uma pessoa empregada no segmento internacionalizado do Brasil e no outro segmento isolado nacionalista autossuficiente. É um 7 a 1. Não há contra-argumento contra a ideia que a abertura vai ser bom para o Brasil.
O senhor citou as multinacionais, mas várias deixaram o Brasil nos últimos meses.
Estão saindo porque tem 40 anos que a gente não faz a abertura. A empresa que está aqui no Brasil não consegue se comunicar com suas cadeias de valor, com sua própria matriz. Se não pode fazer isso em escala no Brasil, então é melhor ir para Argentina. É o que está acontecendo, é triste, mais uma lição difícil dos nossos erros dos últimos anos.
Na pandemia, vimos alguns exemplos de nacionalismo econômico. Coreia do Sul e EUA estão criando programas para serem autossuficientes na produção de chips, tivemos o protecionismo com insumos de vacinas. Como vê isso?
Sim, o primeiro impacto da pandemia na política comercial tem sido ruim, mercantilismo de vacina, o pior deles, mas é onde você vê a tolice do isolamento econômico, a tolice do mercantilismo. O desafio, e por onde eu acho que vai caminhar, é a formação de acordos globais, nos quais os países concordam em não adotar certas condutas como no caso do meio ambiente. No caso sanitário, também.
Hoje, a agenda de reformas, inclusive, se converteu no mundo inteiro numa agenda de melhores práticas. E os tratados internacionais existem para isso e somos parte de um planeta. Pela importância que as pessoas dão ao meio ambiente, saúde, governança, social, qual o problema com as melhores práticas? Nenhum.
Fazer parte do planeta, assinar os tratados, parecia que seria uma tendência desse governo quando, para minha surpresa e de muitos, o Brasil anunciou que ia pleitear ser membro da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 37 países desenvolvidos), que é uma fórmula diferente de não apenas organizar sua agenda de reformas, como se reinserir no mundo. A OCDE não é um tratado internacional. É algo como 200, 300 tratados internacionais diferentes.
O Brasil já aderiu a mais da metade desses tratados sobre corrupção, meio ambiente, regras contábeis, lavagem de dinheiro. E assim, a gente vai adotando restrições autoimpostas a condutas idiotas. Aqui, eu achei que ia, mas não foi. De repente, essa postura ficou inconsistente com a política externa do governo Bolsonaro, com as suas idiossincrasias que vimos ontem (terça-feira) na CPI um ministro (Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores) que briga com todo mundo.
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