Uma vida através dos livros
Paulo Roberto de Almeida
1949
Nasci na quase exata metade do século XX, no final de 1949, que corresponde, no teatro geopolítico do mundo, ao segundo ou terceiro ano da Guerra Fria, um período na história das relações internacionais que marcaria o primeiro meio século de minha vida, e que, de certa forma, determinaria o que eu seria na fase madura, o que eu escolheria como ocupação, o que eu teria no centro de minhas reflexões e escritos durante boa parte de minhas atividades profissionais, na diplomacia, e intelectuais, nas diversas academias a que fui ligado. Digo que determinaria parte de minha vida, não que eu tenha tido qualquer coisa a ver com a Guerra Fria – ou sequer tivesse consciência de sua existência, nos meus primeiros anos –, mas é que minha atenção foi chamada para essa grande divisão do mundo já na primeira adolescência, entre 12 e 13 anos, e isso ficou marcado em minha mente, como relatarei mais adiante, na altura do início dos anos 1960: a possibilidade de um conflito nuclear, com aquela imagem de uma nuvem em formato de champignon, era por demais impactante para quem se tornou curioso acerca das coisas do mundo, ainda que isso estivesse muito distante, do Brasil e da vida de uma família de classe média baixa num país recém saído de sua condição de economia essencialmente agrícola.
Não que eu soubesse, ou adivinhasse tudo isso, obviamente, naquele momento inaugural de minha vida. Todo o meu relato é retrospectivo e introspectivo: ele visa capturar cada ano de minha trajetória pessoal profissional e intelectual, introduzindo, no decorrer de cada um dos anos desse itinerário, os livros, a produção intelectual, os grandes fatos do Brasil e do mundo, paralelamente a uma breve descrição do que acontecia comigo, com minha família, no meio social no qual nos inseríamos e nos desenvolvíamos.
(2020)
Que livros eu reteria desse ano de 1949, que não foi exatamente um ano completo, pois me “pertenceu” apenas pelas suas seis semanas finais?
Sem consultar a “bibliografia”, ou a relação das obras produzidas nesse ano, apenas dois me veem à cabeça, numa lembrança talvez cronologicamente incorreta: a obra de sociologia política de Vitor Nunes da Silva Leal, Coronelismo, enxada e voto, que se tornou clássico sobre os estudos de estrutura política e eleitoral do Brasil — tendo seu autor sido alçado à condição de ministro do STF, apenas para ser cassado pela ditadura militar —, e o texto, praticamente um panfleto, de Albert Einstein sobre o socialismo, no qual o grande físico nobelizado 30 anos antes expressava sua admiração e simpatia por esse modo de organização politica, econômica e social, revelando tanto empatia pelo regime que havia derrotado o nazifascismo (que havia eliminado brutalmente seis milhões de judeus como ele), quanto ingenuidade a respeito dessa forma moderna de escravidão, um sistema brutal de “exploração do homem pelo homem”, sem qualquer resquício de espírito democrático. Einstein não teve oportunidade de se manifestar sobre o relatório de Krushev sobre os crimes de Stalin, pois que morreu em abril de 1955, e o relatório só foi revelado pelo New York Times em meados do ano seguinte.
Falarei sobre outros livros do ano de meu nascimento no momento oportuno, mas cabe registrar que nesse ano de 1949 a Guerra Fria já estava bem “instalada”: a União Soviética conseguiu, graças aos esforços do seu antigo chefe da NKVD, Beria (ele seria assassinado depois por Krushev), explodir o seu primeiro artefato nuclear, rompendo o monopólio americano nessa área, que durava desde 1945, quando duas bombas atômicas foram explodidas em Hiroshima e Nagasaki. No mesmo ano, uma corte americana condenou à morte Julius e Ethel Rosemberg, por espionagem atômica em favor da URSS, deslanchando, junto com a vitória de Mao Tsetung na guerra civil chinesa, em outubro, o macartismo nos EUA.
De certa forma, sou um “filho” da Guerra Fria, pois que minhas primeiras leituras políticas, anos mais tarde, seriam os exemplares fartamente distribuidos pelo governo americano (traduzidos para o Português graças aos cuidados “editoriais” da CIA) da revista Seleções da Reader’s Digest, o periódico simbolo desses anos de emergência do conflito bipolar. Minha educação política se deu nesse contexto, mas a Revolução cubana e o golpe militar de 1964 me levaram rapidamente para o lado exatamente oposto. Mas essa é uma história que eu contarei no ano apropriado...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15/05/2021
Livros publicados no ano de 1949:
George Orwell: 1984 (Nineteen Eighty-Four)
C. W. Ceram: Deuses, túmulos e sábios: a história da arqueologia
Victor Nunes Leal: Coronelismo, Enxada e Voto
Fernand Braudel: La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II
Ludwig von Mises: Human Action: A Treatise on Economics
José Honório Rodrigues: Teoria da História do Brasil
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