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domingo, 14 de dezembro de 2025

'Memórias', do embaixador Marcos Azambuja, é uma aula de diplomacia - Elio Gaspari (FSP)

 Itamaraty

 'Memórias', do embaixador Marcos Azambuja, é uma aula de diplomacia

Embaixador foi um grande contador de histórias, engraçado, irreverente e até picante

Azambuja fala mais de suas ideias e das ideias dos outros

Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada"

Folha de S. Paulo. 14/12/2025

O Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) acaba de publicar "Memórias", do embaixador Marcos Azambuja (1935-2025). São 368 páginas de longas entrevistas dadas a Gelson Fonseca Jr., Monica Hirst e Alexandra de Mello e Silva.

É uma aula de diplomacia e serviço público, na voz de um diplomata, ex-secretário-geral do Itamaraty, embaixador em Buenos Aires e Paris. Quando os diplomatas rememoram, falam mais de si. Azambuja fala mais de suas ideias e das ideias dos outros. Faz isso com uma certa desembargadorização (palavra que ele usava).

O embaixador Marcos Azambuja durante palestra no Cebri, no Rio de Janeiro - Tomaz Silva - 18.jul.24/Agência Brasil

Azambuja foi um grande contador de histórias, engraçado, irreverente e até picante. Nas entrevistas fez poucas concessões à leveza. Tratando de Lula, disse:

"Eu acho que um dia o Lula, como se fosse um rei francês, deverá ser numerado: Lula 1º, Lula 2º, Lula 3º, Lula 4º. O Lula que chegou ao poder é o Lula 5º ou o Lula VI".

Falando do general João Baptista Figueiredo:

"O fim do governo Figueiredo é um dos momentos mais melancólicos da história do Brasil. Aquele homem fisicamente deteriorado, cercado de pessoas que o manipulam em certa parte. É um Brasil diminuído."

Sua irreverência impediu que fosse definido como um diplomata de vitrine. Suas memórias revelam o pensador que havia naquele personagem divertido.

Estranho às modas da Casa, via o Brasil à sua maneira:

"Vou tentar resumir tudo o que eu tenho pensado em política externa. Eu acredito que o Brasil tem poder suficiente para participar dos jogos exclusivos de desenho do mundo, mas não tem a capacidade de resistir a essas tendências. Em outras palavras, eu não creio que o Brasil tenha poder suficiente para criar um obstáculo a nada que vá nascer. O que ele tem é capacidade de influência de alguns aspectos daquilo que está nascendo. Portanto, não é de fora, se juntando a um coro que será inócuo, mas sim de dentro, influenciando num bom sentido."

Em 1982, o governo de Ronald Reagan queria invadir o Suriname.

O Brasil condenou a ideia, se ofereceu para acalmar o ditador local e avisou:

"O Brasil não gosta de tropas na sua fronteira".

Falando do prazer que teve na embaixada em Paris, matou a pau:

"Na França, quase todo brasileiro vai expressamente para não fazer nada".

 

·                https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2025/12/memorias-do-embaixador-marcos-azambuja-e-uma-aula-de-diplomacia.shtml

 

Comentários

Marcos BenassiHá 7 horas

Que diferença, hein, sêo Elio? Hoje, o Brasil põe algum limite no "soft Power" (que de mole, tem nada não) gringo, contendo suas biguitéquis e dá exemplo, falando "pra fora", à Austrália. Diplomacia é treco misteriosíssimo!

 

Maria LopesHá 9 horas

O embaixador Azambuja escreveu vários artigos para a Revista Piauí. Ótimos. As Memórias vão para a lista .

 

 

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional

CHRISTIAN LYNCH

FSP 13.12.2025 

[RESUMO] Em análise da conjuntura política do país, autor argumenta que reconstruir um modelo de governabilidade estável se tornou inviável, já que cada Poder busca reafirmar a sua supremacia sem um pacto mínimo de convivência. Enquanto o Executivo busca recuperar seu poder de agenda, o STF resiste a perder espaço, a extrema direita bolsonarista tenta voltar à Presidência e o centrão se empenha em consolidar sua hegemonia no Congresso.

O artigo 2º da Constituição afirma que os Poderes da República são "independentes e harmônicos entre si". Trata-se de uma quimera: se são independentes, não são automaticamente harmônicos e, se pretendem sê-lo, precisarão moderar essa independência.

A harmonia institucional não decorre do texto constitucional, mas de modelos de governabilidade criados a partir de sua interpretação — modelos capazes de coordenar expectativas, prerrogativas e ambições de cada Poder, criando previsibilidade em suas relações. Quando esses modelos existem, o regime constitucional respira; quando se desfazem, o país entra em espiral de instabilidade.

Ao longo de dois séculos, tais modelos variaram conforme conjunturas e correlações de força. O chamado modelo regressista ou saquarema, criado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, estabilizou, nos anos 1840, um sistema parlamentar em que o Executivo imperial impunha direção ao nascente Estado nacional. A política dos governadores, inaugurada por Campos Sales em 1900, traduziu-se em um arranjo que garantiu ao Executivo republicano a governabilidade coordenando as oligarquias estaduais.

Já no período pós-1988, o presidencialismo de coalizão organizado por Fernando Henrique Cardoso ofereceu, a partir de 1994, uma estrutura relativamente estável de trocas institucionais e permitiu previsibilidade à condução política. Nenhum desses arranjos era idílico, mas todos domesticaram o conflito e contiveram a instabilidade.

Há dez anos, contudo, o Brasil vive sem modelo eficiente de governabilidade. O que funcionara desde os anos 1990 — o presidencialismo de coalizão com dominância do Executivo — entrou em colapso. Assistimos a Poderes que se digladiam, se sabotam e tentam se anular mutuamente, em um ambiente em que a possibilidade de golpe, alto ou baixo, reaparece sempre que um deles se percebe acuado.

A República funciona como uma permanente guerra de trincheiras, sem regras estáveis, arbitragem reconhecida ou horizonte de acomodação. Nenhum ator reconhece limites estáveis ao exercício de sua autoridade.

A instabilidade crônica explodiu com a Lava Jato, que inaugurou aquilo que chamei de revolução judiciarista: uma investida de inspiração neoconstitucionalista que atribuiu ao Judiciário um protagonismo sem precedentes, convertendo-o de árbitro em ator político central. O próprio modelo de governabilidade, o presidencialismo de coalizão, passou a ser combatido como intrinsecamente corrupto.

Desfeita a lógica que coordenava expectativas e administrava conflitos, instalou-se a luta institucional: decisões judiciais com pretensão de dirigir o país, um Ministério Público investido da missão de purificar a República e um sistema político acuado. O equilíbrio possível implodiu, e nada foi colocado no lugar.

O Legislativo dominado pelos partidos da direita institucional, vulgarmente chamados de centrão, reagiu, tentando neutralizar o Judiciário apoderando-se do Executivo. O impeachment de Dilma Rousseff deve ser compreendido nesse contexto, não como mero desdobramento de crise econômica ou dos protestos de rua, mas como operação de reposicionamento institucional do Congresso contra a preeminência do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Lava Jato.

Apoiado por Gilmar Mendes, Michel Temer desmontou, gradualmente, os dispositivos de poder acumulados por Curitiba. Foi o "termidor" da revolução judiciarista. Não por acaso, o Tribunal Superior Eleitoral, então presidido por Gilmar, absolveu Temer e o manteve no poder: por "excesso de provas".

A eleição de Jair Bolsonaro representou um baque inicial nesse processo. Bolsonaro jamais compreendeu a máquina do Estado e nunca formulou diagnóstico realista da conjuntura. Seu populismo reacionário era guiado pela ignorância e pelo negacionismo, travestidos de senso comum conservador. Apostou em um bonapartismo retrógrado, que restauraria a ditadura militar por meio de um cesarismo de WhatsApp.

O fracasso o jogou no colo da classe política que dizia combater. Ao enterrar a Lava Jato e alugar o governo ao centrão para sobreviver, entregou-lhe as chaves do Orçamento, abrindo-lhe caminho para a captura do Executivo. Simultaneamente, a extrema direita declarou guerra ao STF, produzindo um ambiente de hostilidade permanente que o centrão soube instrumentalizar — ora como ameaça, ora como biombo.

Realizou-se então metade do sonho do centrão: estabelecer, no Brasil, por uma espécie de parlamentarismo bastardo, a hegemonia de uma oligarquia congressual autorreprodutível, financiada pelo Fundo Eleitoral e pelas emendas parlamentares. Nesse sentido, a eleição de Lula, em regime de governo minoritário, não foi má para o bloco. O centrão não queria a autocracia estúpida de Bolsonaro, que ameaçava inclusive seu espaço; queria um Executivo fraco, dependente, obrigado a negociar sua sobrevivência cotidiana com um Congresso hegemonizado por lideranças conservadoras.

A debilidade estrutural do governo, somada à distância ideológica entre a média do Executivo (social-democrata) e a média do Parlamento (conservadora), criou o ambiente ideal. Pôde ocupar metade da Esplanada e entregar apoio apenas seletivo, jamais estrutural, à agenda presidencial.

Na impossibilidade ou na falta de desejo de assumir regime parlamentarista, o centrão limita-se a conservar e, quando possível, ampliar a hegemonia adquirida com a apropriação do Orçamento, o controle da agenda e a expansão da própria base parlamentar. Opera como polvo de múltiplos tentáculos, ajustando simultaneamente sua relação com três polos: a extrema direita bolsonarista, o STF e o Executivo fragilizado.

Apoia o STF contra o golpismo mais radical — porque o golpismo ameaça também o Congresso —, mas resiste à anistia ampla dos golpistas, porque não deseja recolocar Bolsonaro no jogo de 2026. O centrão quer a extrema direita como força útil, não dirigente. Por isso, deixa ao STF o serviço sujo de punir deputados golpistas, preservando-se do desgaste perante o eleitor radicalizado.

É nesse contexto que se compreende o acordo informal entre governo e STF. Separado do Congresso por distância ideológica incontornável e destituído dos instrumentos tradicionais de cooptação, Lula buscou no STF alguma compensação.

O tribunal, por sua vez, deseja punir os golpistas que tentaram destruí-lo e prevenir que um novo ciclo legislativo, especialmente no Senado, organize o impeachment de ministros em 2027. Daí o "judiciarismo de coalizão": recorrer ao tribunal, sobretudo aos ministros mais novos, como Flávio Dino, para conter perdas legislativas, preservar parte do poder orçamentário e impor limites ao apetite predatório do Congresso. É aliança de circunstância entre dois Poderes em posição defensiva: o Executivo, fragilizado, e o STF, desafiado.

Mas o centrão reage também a essa aproximação. Seu segundo grande objetivo — além de preservar a autonomia orçamentária que garante sua reeleição indefinida — é a absoluta impunidade de seus membros. Não basta controlar o Orçamento, é preciso controlar o alcance das decisões judiciais que atinjam deputados e senadores, golpistas ou corruptos. Para manter coesão e eminência, os líderes precisam assegurar aos parlamentares que seus mandatos dependerão exclusivamente deles. Ou seja, blindagem corporativa.

Quando a Câmara se recusa a cassar o mandato de Carla Zambelli, afrontando o STF, envia o recado: nenhum freio judicial será aceito quando tocar nas condições de autoproteção da oligarquia. A ordem de Alexandre de Moraes ao presidente da Câmara para cassar a deputada, no dia seguinte, evidencia o caráter particularmente agressivo da guerra entre Legislativo e Judiciário.

Em síntese, reconstruir um modelo tornou-se inviável porque cada Poder disputa supremacia. O Executivo tenta recuperar o poder de agenda do antigo presidencialismo de coalizão. O STF, fortalecido desde o mensalão, resiste a perder espaço. A extrema direita bolsonarista tenta voltar ao poder para destruir o sistema que a limita. O centrão empenha-se em consolidar sua hegemonia e neutralizar ou cooptar o Judiciário. Mais: quer recuperar o Executivo e a administração pública, não mais pelas mãos disfuncionais e golpistas do clã Bolsonaro, mas por meio de um candidato seu.

Essa assimetria impede um pacto mínimo de convivência: cada Poder tenta recuperar, preservar ou expandir seu espaço institucional.

A hegemonia parlamentar existe, mas não constitui modelo de governabilidade porque não é reconhecida como legítima pelos demais atores. Um regime pressupõe aceitação mútua, previsibilidade e deferência recíproca. Não foi o que vimos nos últimos dias — ao contrário.

Diante das eleições que se avizinham, o STF, o bolsonarismo e o governo atacaram o centrão quase simultaneamente e por motivos distintos. Contra o alijamento da família Bolsonaro de seus planos eleitorais, a extrema direita lançou a candidatura presidencial do filho mais velho do ex-presidente, agora presidiário. O STF também moveu suas peças: diante da ofensiva para promover impeachment de ministros em 2027, Gilmar Mendes alterou por liminar a interpretação da lei para blindar todo o tribunal. Já o governo fez o que pôde: segurou o pagamento de emendas, condicionando-o à aprovação de sua agenda.

Pressionado por todos os lados, o centrão distribuiu como prêmios de consolação seus presentes de fim de ano: ao bolsonarismo, a redução de penas dos envolvidos no golpismo, mas não a anistia; ao STF, o avanço da nova lei de impeachment, dificultando a remoção de ministros; ao Executivo, o andamento do projeto de redução da jornada laboral de seis para cinco dias e o restabelecimento do texto-base do projeto antifacção.

Em cada movimento, inclusive na proporção em que cedeu, porém, o centrão reafirmou sua condição a partir do Congresso como árbitro da política nacional. Montesquieu pode estar no inferno, mas não há dúvida sobre quem está no céu —ou quase: o centrão.

Reconstruir um modelo de governabilidade a partir do texto constitucional não é tarefa simples. É preciso algum consenso sobre o destino institucional —consenso distante, especialmente da extrema direita, empenhada em destruir a própria Constituição. O mero triunfo de qualquer dos três Poderes não parece oferecer automaticamente qualquer resolução duradoura da crise.

Do lado do Executivo, mesmo que Lula recuperasse parte das prerrogativas executivas do antigo presidencialismo de coalizão, isso não resolveria o problema: nenhum modelo anterior de governabilidade atribuía ao STF papel político de relevo. Embora o judiciarismo tenha sido constante na República, o tribunal jamais foi protagonista; tampouco atuou como poder moderador informal —papel, como se sabe, indevidamente exercido pelas Forças Armadas.

Por outro lado, a aceitação pura e simples da pretensão do STF como ator central não tem como resolver a situação. Há um problema de desenho institucional na Constituição, que torna o tribunal ao mesmo tempo órgão de cúpula do Judiciário e Corte constitucional. A Corte não pode ser árbitro e parte interessada ao mesmo tempo.

Para piorar, sua pretensão de supremacia tem sido aparentemente utilizada por determinados ministros para o exercício de práticas pouco republicanas, para não dizer corruptas. Daí que, por receio de punição ou simples arrogância dos honestos, muitos deles resistam a se submeter a códigos éticos de conduta e, principalmente, a qualquer possibilidade de controle externo.

Por fim, a formalização da hegemonia do centrão em sistema semipresidencial parece inteiramente inviável. O STF deseja a mudança do sistema, supostamente o bloco também, mas há resistência intransponível da esquerda hoje no governo, historicamente presidencialista.

Além disso, há dúvidas sobre a constitucionalidade de mudança sem plebiscito ou referendo, hipótese em que ela provavelmente seria novamente repelida, agora pela terceira vez. Na dúvida, a direita prefere ficar como está: mandando sem responsabilidade enquanto sonha em eleger seu próprio presidente.

Em um quadro como esse, a tendência sistêmica a longo prazo seria a estabilização oligárquica: o famoso acordão preconizado por um notório centrônico da década passada, "com o Supremo, com tudo". Em outras palavras, blindagem geral.

Mas essa estabilização tampouco garante estabilidade. A insatisfação crescente com a mais baixa qualidade da democracia fatalmente alimentará novas candidaturas antissistema: outro Bolsonaro, um Pablo Marçal, qualquer figura disposta a capitalizar o ressentimento acumulado. O arranjo oligárquico evitaria a quebra explícita, mas produziria uma erosão silenciosa que fragilizaria instituições, preparando terreno para novas aventuras antidemocráticas.

Avançamos, assim, para 2026. Nesse clima de baderna institucional e ideológica, chegam à mesa do eleitor os pratos do banquete eleitoral: o facho-reacionarismo da extrema direita, sempre pronto a vestir o manto da resistência à "tirania" do STF e do "comunismo", a democracia social da centro-esquerda, prometendo governar com poderes que já não possui, e o conservadorismo oligárquico centrônico, cada vez mais senhor do jogo.

Bom apetite.


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Uma escritora chinesa universal: Can Xue - Nelson de Sá (FSP)

 Nobel não é importante, quero ser como Shakespeare, diz autora chinesa Can Xue


NELSON DE SÁ


A chinesa Can Xue, de 72 anos, liderou as apostas para o Nobel de literatura nas duas últimas edições. Um ano atrás, estava na dianteira na reta final com probabilidade de dez para um, segundo a empresa londrina de apostas Ladbrokes. Perdeu para a sul-coreana Han Kang.

Questionada, não hesitou. "Não considero o Nobel particularmente importante. Meu objetivo é me tornar um escritor como Shakespeare ou Dante."

Sua obra mistura tradições chinesas com experimentalismo ocidental. Ela conta por que enquadra sua escrita como performance, um ato que convida os leitores a não só observar, mas dançar a seu lado.

Diz que cada personagem é um fragmento da alma da autora e cada história é um teste desses fragmentos em um mundo em que explorar o amor e a liberdade é difícil, um tema central de "Histórias de Amor no Novo Milênio", que é lançado agora pela Fósforo.

Por fim, Can Xue confronta suas experiências durante a Revolução Cultural. Rejeita o envolvimento direto com fenômenos históricos ou sociais, dizendo em vez disso como tais experiências, transformadas no "oceano da memória", tornam-se a força motriz por trás da busca de liberdade de suas personagens.

* * *

— Suas obras são traduzidas e discutidas globalmente, e espera-se que você ganhe o Nobel. Ele significa algo para você? Acha que é capaz de reconhecer, por exemplo, a diversidade das vozes literárias chinesas?

— Não considero o Prêmio Nobel de Literatura particularmente importante. Meu objetivo é me tornar um escritor como Shakespeare ou Dante. Se eu ganhar o prêmio, a voz da literatura chinesa certamente será ouvida. E creio que, mesmo que não ganhe, minha voz ainda será ouvida. Isso foi comprovado em países ao redor do mundo. Estou confiante nisso porque minhas obras são realmente as mais universais e humanas, as melhores.

— Por que você descreve sua escrita como performance? E qual seria o nosso papel, como leitores?

— É porque ela pode ser comparada a uma espécie de dança física que ativa as funções do corpo humano. Os humanos possuem essa função, mas, ao longo da história, os povos de civilizações avançadas a esqueceram, substituindo-a por outras funções menos essenciais. Minha escrita é o despertar e a ressurreição dessa função ancestral. Sempre acreditei nisso. Quem pode se tornar meu leitor? Acho que são aqueles que podem dançar comigo. Estimulados e inspirados pela minha performance, eles iniciam sua própria dança inovadora.

— Sendo uma das raras escritoras chinesas contemporâneas com obras celebradas nos círculos literários estrangeiros, o que você acha que os leitores encontram de maior ressonância em suas histórias? Há temas nelas que requerem contexto adicional para compreensão?

— Creio que o que mais atrai leitores internacionais na obra é a maneira como captura a natureza humana mais universal em seu potencial máximo. Todos vivenciam graus variados de repressão na vida secular e anseiam por liberar seus desejos e emoções. Os romances oferecem um alívio profundamente satisfatório. Essas obras, com seus enredos inusitados, evocam paixão, atraindo inconscientemente para seu reino, liberando nossa própria criatividade em busca de um estilo de vida livre.

Entender as obras requer pouco conhecimento prévio da cultura chinesa. Elas são a essência dessa cultura, únicas, porém adaptáveis às necessidades espirituais e físicas de cada indivíduo. Os leitores que entram e dançam com elas as compreendem verdadeiramente.

— A língua chinesa é conhecida pela ambiguidade poética. Há desafios na tradução de seus escritos para o português decorrentes das nuances da gramática ou do vocabulário chinês?

— O chinês é difícil de traduzir. Mas creio que todas as línguas do mundo são comunicáveis. As línguas ganham vida através da comunicação. Imagino leitores no seu país lendo as obras. Que cena linda deve ser.

— Algum personagem de "Histórias de Amor no Novo Milênio" soou particularmente pessoal para você? Ou que você tenha visto como representativo de mudanças geracionais mais amplas de como o amor é vivenciado na China?

— Nunca descrevo experiências mundanas superficiais, minha literatura é uma espécie de literatura essencial. Cada personagem e objeto em meu livro é um fragmento da minha alma e do meu corpo. No entanto, permaneço desapegada das emoções mundanas. Simplesmente sublimo esses desejos, transformando-os em uma bela canção de humanidade. Coloco os personagens em ambientes hostis para testar sua humanidade e ver até que ponto cada uma de suas paixões pode ser liberada.

Este também é o significado do título do livro, "Histórias de Amor no Novo Milênio". Nele, interrogo a mim mesma e ao coração humano —como será nossa busca por amor e liberdade no novo século? Acredito que cada personagem do livro dá ao leitor uma resposta satisfatória. Em outras palavras, a própria atuação do autor deve inspirar uma atuação semelhante no leitor.

— Sua escrita reúne elementos de tradições culturais chinesas, como contos populares e taoísmo, com influências estrangeiras, como Kafka e Jorge Luis Borges. Como você equilibra essas duas correntes culturais?

— Essa pergunta exigiria um livro substancial para ser respondida. Estou trabalhando nele no momento. É um tratado filosófico sobre o desejo humano, que entrelaça filosofia antiga com ficção experimental. Escrevo há mais de uma década e vou enviar o livro à editora da Universidade de Pequim para publicação no próximo verão. Considero um livro que combina influências chinesas e ocidentais. Tornei as duas culturas mutuamente essenciais, criando uma visão de mundo e uma metodologia completamente novas.

— Você já mencionou Borges como uma influência literária fundamental. Quais aspectos específicos da escrita dele moldaram mais profundamente as suas escolhas?

— Borges não é o único escritor que influenciou fundamentalmente meu trabalho. Há uma longa lista deles: Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Musil, Kafka, Calvino, Bruno Schulz e assim por diante. A influência mais fundamental desses escritores, incluindo Borges, é que eles moldaram minha visão de mundo, permitindo-me ver o universo e a mim mesma sob uma luz completamente nova.

A influência de Borges está principalmente em sua obsessão pela prática criativa e em suas belas descrições de jogos simétricos e da integração do universo e do humano. Acredito que meu trabalho hoje continua sua narrativa. Em outras palavras, acredito que sua narrativa, como a de outros escritores experimentais antes dele, permanece atual e pouco apreciada.

— Por que você considera seu trabalho desvinculado de sociedade, história, política, economia e assim por diante? Quais são suas principais preocupações?

— Acho que é um hobby pessoal. Minha escrita não se concentra nos fenômenos que você mencionou. Meu foco está na exploração da essência da natureza humana. Meu trabalho também incorpora material social, cultural e político, mas esses materiais servem a um propósito diferente. Acredito que todos os romancistas experimentais escolhem e utilizam o material da mesma forma que eu. De modo geral, gosto de colocar personagens em situações desesperadoras para compeli-los a agir. Esses cenários geográficos ou históricos não são específicos de um país específico, como a China, mas sim de um cenário utópico.

É claro que, por conveniência, geralmente prefiro material chinês. Os leitores devem observar que essas descrições não são realistas; são materiais que extraio de experiências mundanas para criar uma utopia crua. Quero explorar como as pessoas podem se comportar em situações desesperadoras. Portanto, todos os personagens em minhas obras são partes fragmentadas de si mesmos, todos bons, sem nenhum verdadeiramente mau. Ler minha obra exige uma certa compreensão filosófica, uma necessidade de ver o enredo da perspectiva de toda a humanidade. Caso contrário, é difícil entrar na história, e só se pode vagar pela periferia.

— A Revolução Cultural foi um período de dificuldades para sua família e de censura extrema na China. Apesar dos desafios, suas primeiras leituras de obras filosóficas e literárias continuaram. Como você fez isso? E esse ambiente restritivo inspirou sua maneira de escrever por meio de simbolismo ou subtexto?

— Acho que minha explicação para a pergunta anterior já respondeu. Eu era uma criança sensível e reflexiva, mas nunca me baseei diretamente em experiências da infância ao criar. Toda experiência acumulada serve ao meu processo criativo, que irrompe de uma fonte central. Construo vários aspectos essenciais da natureza humana, permitindo que os personagens cresçam por meio dessas lutas.

Todas essas práticas levam ao surgimento de um reino utópico após o outro. Acredito que o trabalho de escritores experimentais como nós é a forma mais pura de criação. Comprimimos o desejo, permitindo que ele irrompa do centro de nós mesmos, criando um milagre da natureza humana após o outro, um após o outro, do nada.

A Revolução Cultural e o movimento antidireitista certamente tiveram um impacto profundo na formação da minha personalidade, mas esses elementos superficiais não são visíveis em minhas obras. Eles afundaram nas profundezas do oceano da memória, onde passaram por uma transformação fundamental. Quando irrompem do centro de nós mesmos, deixam de ser as experiências superficiais que já foram. Tornam-se a força motriz por trás da busca de liberdade de cada personagem.


Histórias de Amor no Novo Milênio

Preço R$ 104,90 (400 págs.); R$ 73,40 (ebook)

Autoria Can Xue

Editora Fósforo

Tradução Verena Veludo Papacidero

Foto: A escritora chinesa Can Xue, autora de 'Histórias de Amor no Novo Milênio' - Chen Xiaozhen/Divulgação.

FSP 19.09.2025

sábado, 30 de agosto de 2025

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos

CHRISTIAN LYNCH

FSP 26.08.2023


[RESUMO] José Murilo de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no Brasil.

*

José Murilo de Carvalho foi um dos mais influentes acadêmicos de sua geração. No campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Tendo se doutorado na Universidade Stanford (EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL).


Para quem o conhecia, chamava a atenção o contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva, especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo regional.


Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da "mineirice", havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou "República" a cujo serviço se devotaria.


Ele acreditava que os males do Brasil decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por excelência da intelectualidade mineira.


Para bem servir à república como intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.


Eles todos haviam na mocidade embarcado no sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na moldura oligárquica do tempo anterior.


A marcha ascensional para patamares superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas energias na revisitação do processo de formação do Estado e da sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.


Quem admira José Murilo como historiador deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.


O tema por excelência da ciência social mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.


Já então ele questionava a eficácia do marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.


Na primeira parte da tese, "A Construção da Ordem", José Murilo argumentava que, diversamente das elites da América hispânica, as do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido a seu maior grau de homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um projeto de Estado reformista e autoritário.


Na segunda parte, "Teatro de Sombras", ele revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.


Aqui José Murilo já revelava duas características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições "republicanas".


Sua tese de relativa autonomia do Estado imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção inicial da primeira parte dessa análise, "A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), foi fria.


Em 1978, José Murilo foi convidado por Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.


Nesse tempo, por ele considerado o mais feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em "Os Bestializados" (1987), "A Formação das Almas" (1990) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005).


Trata-se de um tríptico que, depois do díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investigava a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.


Em "Os Bestializados", José Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do regime republicano, desenvolvendo o conceito de "estadania" para designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo desde que subordinado e encaixado na métrica de "civilizado".


Em "A Formação das Almas", ele apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.


Já "Forças Armadas e Política no Brasil" se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.


Tais reflexões caíam como uma luva à época do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância para além da forma puramente eleitoral.


José Murilo fez assim da denúncia do nosso déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal, lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais recentes, como "Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860" (2018).


Para José Murilo, o governante mais republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou uma biografia: "Ser ou Não Ser" (2007). Depois do impeachment de Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a insuficiência da República.


Em debate realizado à época no salão nobre do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em meio a toda aquela "pompa republicana". A polêmica da época levaria este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.


"Cidadania no Brasil: O Longo Caminho" (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la. Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.


A exposição objetiva e clara dessa hipótese, entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as graduações de ciências humanas.


Paralelamente, como complemento de seus livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira, como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.


Os mais importantes, talvez, tenham sido os dois textos dedicados a Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto, "resgatar do inferno".


José Murilo concluiu sua conversão pública para "historiador" ao se tornar titular do programa de história da UFRJ, em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.


Por meio do projeto Caminhos da Política no Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias coletâneas, como "Linguagens e Fronteiras do Poder" (2011).


Uma mudança importante no período foi a maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no livro "Guerra Literária" (2014), o convenceram de que, ao contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve considerável participação popular, não sendo restrita às elites.


Nos últimos tempos, porém, a fé republicana de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita aliada ao militarismo.


A história de sua mocidade parecia se repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha udenista que denunciara o "mar de lama" resultara no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.


Nos últimos anos, José Murilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado, reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado lhe parecia que tudo tinha sido inútil.


Em "O Pecado Original da República" (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981: "Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos".


A missão do homem José Murilo de Carvalho, mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários o Brasil continua precisando para se republicanizar.


JOSÉ MURILO DE CARVALHO


Vida


Nasceu em 1939. Formado em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi professor nas duas instituições, assim como, no Brasil, na UFRJ e, no exterior, em Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de Letras (ABL). Morreu em 13 de agosto, aos 83 anos

Principais livros

"A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), "Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República Que não Foi" (1987), "Teatro de Sombras: a Política Imperial" (1988), "A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil" (1990), "A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho" (2001), "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005), "D. Pedro 2º: Ser ou Não Ser" (2007)

Foto: O historiador José Murilo de Carvalho na biblioteca de sua casa, no Rio - Raquel Cunha-25.mai.19/Folhapress


domingo, 10 de agosto de 2025

Mangabeira por Muniz Sodré (FSP)

Um diagnóstico com brilho de pirita

 Muniz Sodré

FOLHA DE S PAULO , 09.ago.2025 às 14h35


Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha em Harvard deve ser levado, acriticamente, a sério. 

É o que vem à mente após a leitura de um texto do renomado professor de filosofia e teoria social daquela universidade, Roberto Mangabeira Unger, brasileiro-americano. 

Ele compartilha o bom senso já generalizado de que o Brasil precisa deslocar-se do fornecimento de commodities físicas para o de serviços de conhecimento. Nisso é fundamental universidade de alto nível.

Até aí, reluz o argumento. 

Em seguida, porém, sustenta que entrave para o nível desejado é a dificuldade brasileira na contratação de professores estrangeiros. 

Ninguém duvida da importância da diversidade de cérebros, nem minimiza os desestímulos paralisantes de verbas e burocracia. 

Mas, para quem chefiou por duas vezes uma Secretaria de Assuntos Estratégicos, é surpreendente desconhecer a excelência das instituições nacionais que combinam ensino, pesquisa e extensão. Cabe especular se, no exercício daquelas funções, alguma vez se cogitou definir universidade como recurso estratégico.

Ninguém é titular em Harvard à toa. Ainda mais quando referendado por pensadores como Jürgen Habermas e Richard Rorty, luminares da elite acadêmica internacional. Entre nós, Unger pertence à linhagem baiana dos Mangabeira, berço de políticos e juristas importantes. A seu avô, Otávio Mangabeira, então governador da Bahia, atribui-se a boutade jurídico-política "o povo é uma massa falida".

Autor complexo, Unger presta-se mais à compreensão nos escritos programáticos, fonte provável de suas intervenções e relacionamentos ao longo de décadas com políticos brasileiros. Centraliza a discussão de alternativas às formas institucionais que regem a sociedade, sempre guiado pelo pressuposto filosófico de um "infinito corporificado no finito humano". 

Ou seja, o homem como algo mais do que o fechamento societário lhe permite ser.

Presume-se que esse tipo de discurso, atrativo a iniciados em filosofia, possa render discussões sedutoras na távola redonda dos scholars e, mesmo, de artistas. 

Deriva de uma linha dos "studia humanitatis" oitocentistas, em que se valorizavam a civilidade iluminista e o homem de letras, entendido como sujeito de uma autoridade ideológica análoga a do sábio ou a do herói cívico. Era a perspectiva do escocês Thomas Carlyle, expoente da reacionária historiografia romântica na Inglaterra.

O pensamento programático de Unger persegue a busca política de um herói, um homem de qualidades. Seria o caminho para elevar o nível universitário, rumo à competitividade em serviços. 

Mas ele é taxativo: Lula não é líder sério, ideal seria alguém parecido a Prudente de Morais: histórico ponto de ascensão das oligarquias agrárias, o exterminador de Canudos. 

Diagnóstico estranho, coincidente com a agressão americana, para quem aceitou posições nos governos de Lula e Dilma, numa espécie de ministério de ideias fora do lugar.

O diagnóstico mais se ofusca ao esquecer que a política de chantagem/humilhação de Trump, incubadora de antiuniversidades, não poupa a instituição do professor Unger. 

Filosoficamente preocupado com a abstrata libertação do homem, ele não enxerga o momento de resistência ao milicianismo imperial. 

Diz, porém, José Sócrates, ex-premiê português: "A Europa aceitou a humilhação, o Brasil enfrentou-a". E o New York Times: "Talvez não exista um líder mundial desafiando o presidente Trump com tanta veemência quanto Lula".


domingo, 3 de agosto de 2025

Trump está vencendo? - Samuel Pessoa (FSP)

 Samuel Pessôa

Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia 


Trump está vencendo? 


Republicano tem conseguido fechar acordos comerciais favoráveis a ele 

Trump tem fechado acordos em que os Estados Unidosimpõem uma tarifa de importação e a contraparte não tarifa os americanos. Foi assim com o Japão e com a União Europeia. É necessário sabermos os detalhes dos acordos, as letras miúdas, mas tudo sugere que há, sim, certa assimetria. Somente com a China parece não haver essa discrepância.

Esse desfecho não é surpreendente. Pela escala da economia americana e por ter um déficit estrutural, a perda de bem-estar resultante de uma guerra comercial é menor para os EUA.

As simulações sugerem que, em uma guerra comercial aberta —todos contra todos—, as perdas dos EUA são bem menores do que as dos demais países. Os EUA perdem em bem-estar o equivalente a 1% do consumo. A América do Sul perde 3%, e a Europa, de 7,5% a 10%. A China perde de 13% a 20%.

Os autores do estudo, publicado no volume 4 (de 2014) do Handbook of International Economics, consideram, em suas simulações, a América do Norte conjuntamente. O estudo é rico o suficiente para considerar competição imperfeita e a existência de cadeias globais de valores, além de heterogeneidade entre as empresas dentro de um mesmo país.

O ponto importante a reter é que os EUA têm um maior poder de barganha. E o está exercendo. É essa a explicação para os acordos com o Japão e a União Europeia.

O maior poder de barganha, no entanto, parece que não tem funcionado para a China. Também esperado. O poder de barganha segue da perda de bem-estar em caso de guerra tarifária aberta. Ora, perda de bem-estar é uma ameaça crível entre democracias. Não é o caso chinês. Xi não terá de enfrentar eleições nos próximos anos. Merkel já havia incorrido no mesmo erro com Putin: vínculos comerciais não moderam ditadores.

Trump também tem sido bem-sucedido em seu empenho em desvalorizar o dólar. A ver os efeitos de longo prazo que colherá. Mas em um primeiro momento ajuda na competitividade da economia, um dos seus objetivos mais importantes.

Então podemos afirmar que Trump está ganhando? Penso que não. Há sinais de que a desaceleração chegou. O crescimento da economia americana no primeiro semestre foi de 0,6%, ou 1,2% se anualizarmos a taxa. A economia antes de Trump crescia a 2,5% a 3%.

Parte da desaceleração é fruto da política monetária que finalmente parece bater na demanda. O crescimento do consumo no primeiro semestre foi de somente 1%, já considerando a taxa anualizada. Antes de Trump, rodava em média a 3%.

De qualquer forma, o choque inflacionário fruto da política tarifária, que começa a aparecer nas estatísticas —de março a junho a inflação ao consumidor acumulada em 12 meses cresceu 0,3 ponto percentual—, atrasará e reduzirá a intensidade do ciclo de queda de juros. 

Mas o mais importante é que a trumponomics, em prazos maiores, matará a força do crescimento americano das últimas décadas. A taxa de crescimento da produtividade, maior do que na Europa, deverá cair como consequência da desglobalização induzida por Trump. O ataque às universidades somente agravará a longo prazo o desempenho da produtividade americana.

Para a esquerda brasileira, parece-me que sobram duas lições. A primeira é que ninguém ganha quando o presidente da República ataca diretamente o presidente do Banco Central.

Em segundo lugar, vale lembrar todo o ruído e a campanha contra a globalização capitaneada pela esquerda nas últimas décadas. Tanto se pediu que apareceu um líder empenhado em realizar o desejo da esquerda brasileira. Não parece ser positivo para o Brasil ou para o mundo.

 

A deterioração fiscal da economia brasileira - Roberto Campos Neto (FSP)

 Roberto Campos Neto

Economista, foi presidente do Banco Central do Brasil por seis anos. É vice-chairman do Nubank e mestre em economia pela universidade UCLA 


Desafios de uma nova ordem global 

Vislumbramos uma equação insustentável: mais dívida, juros mais elevados, alta da desigualdade, maior necessidade de recursos e pouca capacidade de elevar impostos 

O mundo está em transformação. Como observador atento, ocupando uma posição privilegiada no Banco Central do Brasil ao longo dos últimos seis anos, identifiquei tendências que moldarão o equilíbrio global e que, frequentemente, escapam a debates mais aprofundados. Nos perdemos no debate de curto prazo: tarifasdólar, polarização política etc. Mas o problema é mais profundo: uma equação econômica e social insustentável. Neste artigo, mais generalista, abordo algumas dessas forças. Nos próximos, mergulharemos em mais detalhes.

Durante muito tempo, nos acostumamos à ideia de que dívida pública crescente não era um problema. O fiscal seria um tema para outras gerações. A narrativa dominante sustentava que o crescimento econômico seria estruturalmente baixo, os juros baixos por muito tempo, e a inflação, controlada.

A pandemia, no entanto, alterou drasticamente esse panorama. Assistimos à maior coordenação global de políticas fiscal e monetária já registrada, com a dívida mundial em relação ao PIB crescendo aproximadamente 15 p.p. (pontos percentuais). Desde 2019, a dívida das economias emergentes cresceu 20 p.p.. A inflação global, por sua vez, disparou e, na maioria dos países, não apresenta sinais de retorno aos níveis pré-pandêmicos. Essa percepção é reforçada quando se analisa as taxas de juros de longo prazo.

Aproximadamente 65% da dívida soberana global —concentrada em Japão, Estados Unidos e Europa— enfrenta hoje custos de rolagem muito maiores, devido ao aumento combinado do estoque de dívida e das taxas de juros. Esse movimento drena recursos de outras partes do mundo, especialmente de economias emergentes e pobres.

Embora tenhamos sido eficazes na coordenação de esforços fiscais e monetários durante a pandemia, a retirada dessas medidas revelou-se muito menos eficiente. Os programas de transferência de renda, por exemplo, aumentaram globalmente entre 1,5 e 2 p.p. do PIB durante a crise, e permanecem com volumes muito superiores aos níveis pré-pandêmicos. Recordo uma discussão entre banqueiros centrais numa tarde fria no FMI, onde se debateu que esses programas deveriam seguir a "regra dos 3 Ts": deveriam ser temporários, direcionados (targeted) e sob medida (tailored). Hoje, é evidente que a maioria desses princípios foi negligenciada.

Diante de tudo isso, o fiscal se tornou um tema premente. Virtualmente, todos os países apresentam atualmente déficits em suas contas públicas. Segundo o FMI, o grupo das economias avançadas apresenta uma média de déficit primário de 2% do PIB, enquanto as economias emergentes, de 3,8%. Gastos discricionários em diversos países, incluindo o Brasil, encontram-se severamente pressionados em orçamentos cada vez mais restritivos.

Diante da dificuldade de muitos países em equilibrar suas contas públicas, ajustes fiscais têm sido propostos e implementados, mas, na maioria dos casos, os ajustes priorizaram o aumento da receita em detrimento da contenção de despesas. Mais preocupante ainda, grande parte dos novos tributos incide sobre estoques de riqueza ou sobre empresas, sobrecarregando o capital e comprometendo a produtividade de longo prazo.

Outro fator crítico é o envelhecimento populacional, que pressiona os orçamentos de seguridade social, reduz a produtividade e afeta diversas áreas da economia. Projeções para os próximos 15 anos indicam que quase todo o crescimento populacional estará concentrado em nações mais pobres, enquanto a maioria dos países desenvolvidos enfrentará declínio populacional.

A esse cenário, soma-se a crescente instabilidade geopolítica, com impactos diretos nas cadeias globais de suprimento e nos gastos militares. Além disso, a transição energética, essencial para o futuro, enfrenta dificuldades para sair do papel. Todos esses elementos demandam enormes recursos.

Assim, vislumbramos um futuro com mais dívida, juros mais elevados, aumento da desigualdade, e maior necessidade de recursos para maiores despesas com defesa, investimentos robustos na transição energética, custos elevados para reestruturar cadeias de suprimento e encargos sociais crescentes devido ao envelhecimento populacional. A previsão do FMI é que a dívida global, que representava 84% do PIB em 2019, alcance 100% em 2030.

Essa equação é, claramente, insustentável. E o modelo atual começa a ser questionado. Teremos uma nova ordem global? As preocupações recentes com a trajetória da dívida pública nos Estados Unidos e as tensões observadas nas curvas de juros de longo prazo em alguns países levantam sérias indagações. Entre elas, destacam-se: o impacto do chamado "trumpenomics" no cenário global; a crescente vulnerabilidade dos países mais pobres e o agravamento da desigualdade; a necessidade de reinventar o modelo econômico europeu; os desafios da trajetória de dívida no Japão, com juros longos mais altos; e as implicações do crescente domínio da China em mercados estratégicos.

Como vemos, há mais perguntas do que respostas. Uma certeza, porém, emerge: o debate fiscal ganhará centralidade, e o modelo de Estado assistencialista em seu formato extremo terá que ser repensado. Será necessário equilibrar as demandas sociais com equilíbrio fiscal. Sem uma estratégia para equilibrar a dívida global e promover políticas que expandam a oferta e elevem a produtividade, caminhamos para uma crise global de dívida.

recente orçamento aprovado nos Estados Unidos, longe de ser motivo de celebração, marca o primeiro capítulo dessa narrativa. Para as economias emergentes, como o Brasil, é imperativo adotar políticas de ajuste fiscal e preparar-se para um ambiente mais volátil. Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.

 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Crise de 2008 e tarifaço de 2025: lições da história - Felipe Salto e Roberto Giannetti da Fonseca (FSP)

 Crise de 2008 e tarifaço de 2025: lições da história

Felipe Salto e Roberto Giannetti da Fonseca*
Colunista do UOL
FSP, 28/07/2025

A tarifa de 50% que se anuncia sobre as exportações brasileiras para os Estados Unidos coloca em risco a liquidez financeira de milhares de empresas exportadoras brasileiras de diversos setores da economia. O financiamento à exportação é um instrumento fundamental para garantir a liquidez destas empresas que empregam direta e indiretamente milhões de brasileiros. A boa situação do balanço de pagamentos do Brasil, notadamente, o elevado nível de reservas, dá suporte à tempestiva construção de boas estratégias para preservar as empresas exportadoras e seus empregos.
Os chamados Adiantamentos de Contratos de Câmbio (ACC) permitem antecipar receitas de vendas externas, garantindo às empresas exportadoras capital de giro para sustentar seus processos produtivos e compromissos que estão para vencer.
Na crise financeira de 2008, a maior desde 1929, o Banco Central atuou para ampliar a oferta de crédito aos exportadores brasileiros através deste canal. As instituições financeiras brasileiras tiveram acesso a um maior volume de dólares no mercado interbancário, a partir de leilões de reservas internacionais promovidos pelo Banco Central do Brasil com direito de recompra.
O Banco Central usa esse mecanismo para guarnecer o sistema financeiro. Para ter claro, o exportador firma um contrato de câmbio com o banco, a uma taxa (R$/US$) predeterminada, comprometendo-se a exportar bens no valor equivalente ao valor financiado e a saldar a dívida no prazo máximo de 180 dias a partir da entrada dos recursos oriundos das exportações.
O papel da autoridade monetária, por sua vez, não é o de emprestar diretamente às empresas, mas sim neste caso específico de oferecer maior liquidez às instituições financeiras, por meio de leilões, tendo como lastro os contratos de ACC. Ao realizar os leilões de reservas internacionais, o Banco Central promove a liquidez necessária para que os bancos brasileiros estendam o prazo de vencimento dos ACC que estão para vencer para os exportadores de 180 para 360 dias, de uma forma inteligente e com baixo custo.
Neste momento, às vésperas do início da nova política tarifária dos EUA em relação ao Brasil, crescem os riscos de problemas de financeiros para as empresas exportadoras brasileiras, cujo capital de giro vai ficar impactado nos estoques de produtos finais e de matérias-primas na cadeia produtiva afetada. Essas empresas em breve poderão estar inadimplentes junto aos bancos e fornecedores, atrasando salários e o recolhimento de tributos, e até demitindo em massa seus funcionários. O alongamento de prazos, o refinanciamento e o aumento da oferta de ACC podem pavimentar um caminho natural e seguro, dando fôlego a estas empresas até que se possível resolva-se satisfatoriamente este imbróglio tarifário. A exemplo do que já se fez em 2008 em crise de liquidez internacional, caberá ao Banco Central atuar novamente através desse mecanismo.
Segundo a Tabela 13 ("Movimento de Câmbio Contratado") da base de "Indicadores Econômicos Selecionados" do Banco Central, os ACC corresponderam a US$ 33,2 bilhões em 2024. A média anual para o período 2014-2023 foi de US$ 31,6 bilhões. De 1º de janeiro a 18 de julho de 2025, foram US$ 18,3 bilhões.
As intervenções da autoridade monetária no mercado de câmbio por meio de linhas com recompra totalizaram US$ 15 bilhões em 2024. Em 2025, até o dia 18 de julho, US$ 100 milhões, liquidamente. O nível de reservas internacionais, por sua vez, está em US$ 345,7 bilhões, conforme posição coletada na mesma data.
A saber, as reservas haviam diminuído de US$ 355 bilhões para US$ 329,7 bilhões, entre 2023 e 2024, sobretudo pelos movimentos ocorridos no final do ano passado. A necessidade de maior intervenção no mercado de câmbio deu-se pela volatilidade do dólar associada ao quadro externo e, em menor grau, às apreensões quanto à política fiscal doméstica.
Em qualquer métrica adotada, da menos à mais conservadora, esse patamar de reservas internacionais exibido pelo Brasil é considerado relativamente elevado. Ele é suficiente para sustentar, por exemplo, quase 16 meses de importações, se tomarmos os dados fechados de 2024, quando o país importou US$ 262,4 bilhões.
É preciso reconhecer que houve uma piora rápida do déficit em transações correntes, de US$ 17,6 bilhões para US$ 32,8 bilhões, entre o primeiro semestre de 2024 e o mesmo período do ano corrente, reflexo do aumento de importações. Mas os investimentos externos diretos seguem robustos. Passaram de US$ 37,8 bilhões para US$ 33,8 bilhões no mesmo período. Ainda cobrem, como se vê, todo o déficit externo.
Esse quadro geral das contas externas avaliza uma atuação precisa, intensa e bem calibrada da autoridade monetária para guarnecer o mercado e sustentar o financiamento aos exportadores. Independentemente dos desdobramentos do novo tarifaço, esse mecanismo precisa estar pronto para ser acionado a qualquer momento.
As negociações entre brasileiros e americanos começaram bem. A combinação de grupos importantes e representativos do empresariado com a eficiente diplomacia permanente do Itamaraty e a liderança do ministro e vice-presidente Geraldo Alckmin poderá render bons frutos. Não será rápido, vale dizer, mas nos parece inescapável.
Nossos maiores aliados são os empresários e os consumidores americanos. A falta de produtos de boa qualidade aos quais estão habituados, o aumento repentino dos preços e a perda de bem-estar vão pressionar o governo americano ao diálogo com o Brasil.
Até lá, entendemos que não há pacote fiscal ou socorro a empresas brasileiras a ser precipitadamente engendrado. Cabe destacar que não se trata de subsidiar as exportações brasileiras por qualquer outro mecanismo, já que não se trata de caso de competitividade sistêmica, mas sim de liquidez financeira temporária. Ademais, não há qualquer espaço para isso. A mais óbvia atuação do poder público deve partir do Banco Central, na linha proposta neste artigo, amparado nos técnicos da instituição e à luz da exitosa experiência de 2008, guardadas as proporções.

*Roberto Giannetti da Fonseca, economista e empresário, ex-Secretário Executivo da CAMEX (governo FHC)

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros - Drauzio Varella (FSP)

O impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros

Vivemos num país com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo

Drauzio Varella

FSP, 18.jun.2025

Se a justificativa que você encontra para condenar o Bolsa Família é a de uma platitude do tipo "está errado distribuir o peixe, o certo é ensinar a pescar", preste atenção. O Foreign, Commonwealth & Development Office e o Medical Research Council, órgãos do governo britânico, e a instituição filantrópica Wellcome Trust, organizações da maior respeitabilidade, patrocinaram um estudo que acaba de ser publicado na prestigiosa revista médica The Lancet.

Nele, foi avaliado o impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros nos 20 anos que se passaram desde a sua criação, em 2004.

Atualmente, o programa atinge mais de 20 milhões de famílias e cerca de 55 milhões de pessoas

Estudos anteriores tinham demonstrado que o programa reduzira em 18% a mortalidade total das mulheres, além de diminuir a mortalidade infantil, a materna e os óbitos por causas específicas como HIV, Aids e tuberculose, especificamente entre as pessoas mais vulneráveis.

Não havia, porém, avaliação de sua relação com o número de internações hospitalares e com a mortalidade geral por faixa etária. A publicação da Lancet mostra, pela primeira vez, um estudo com abrangência analítica adequada para avaliar o impacto do Bolsa Família na mortalidade e nas hospitalizações em três grupos etários: abaixo de cinco anos, de cinco a 69 anos e com 70 anos ou mais.

Os principais achados foram:

1) Nos 20 anos analisados, a mortalidade geral dos beneficiários caiu 18%, queda que ocorreu em todas as faixas etárias.

2) Nesse período, o programa evitou 8,2 milhões de internações hospitalares e 713 mil mortes, em números arredondados.

3) A mortalidade infantil diminuiu 33%. Ou seja, de cada três mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorreriam sem o Bolsa Família, uma foi evitada.

4) A hospitalização de mulheres e homens com 70 anos ou mais caiu pela metade.

Interpretação da famosa e icônica fotografia dos soldados americanos fincando a bandeira dos Estados Unidos no topo da ilha de Iwo Jima depois de tomá-la (a fotografia mais famosa da segunda guerra mundial). Nesta ilustração, os soldados foram substituídos por médicos, enfermeiros e faxineiros e a bandeira é a do SUS. o solo é formado por escombros e vemos ao longe uma paisagem verde

Libero/Folhapress

O Bolsa Família é considerado pelas organizações internacionais um programa de transferência de renda condicional, uma vez que impõe a observância de contrapartidas para ter acesso a ele: frequência das crianças na escola, manter em dia a caderneta de vacinações e as consultas do pré-natal.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou com três "C" os principais desafios socioeconômicos impostos a diversos países nos últimos anos: Covid, clima e conflitos. A conjunção desses fatores adversos provocou aumento da pobreza e piora dos indicadores educacionais na maior parte do mundo.

O aumento da dívida pública consequente a esses agravos levou à adoção de medidas de austeridade fiscal, com cortes de orçamento que reduziram investimentos em medidas de proteção social e de acesso aos cuidados com a saúde pelo mundo inteiro.

Em 2024, o investimento no Bolsa Família foi de R$ 218,5 bilhões. Cada beneficiário custa, em média, aos cofres do governo federal, aproximadamente R$ 684.

Convenhamos que não é um custo proibitivo: ao todo, representa apenas 0,4% do PIB brasileiro. Por outro lado, cada R$ 1 investido faz girar R$ 2,40 no consumo dessas famílias.

É difícil calcular quanto o SUS economizou com as internações evitadas no decorrer desses 20 anos. Além da inflação no período, os valores médios pagos por internação são muito variáveis. As diárias hospitalares vão de R$ 300 a R$ 800, no caso dos problemas clínicos mais simples, e de R$ 5.000 a mais de R$ 15 mil nos casos de alta complexidade.

De qualquer forma, o dinheiro economizado com internações e os ganhos de produtividade dos que não precisaram ir para o hospital e dos que não perderam a vida têm de ser descontados do investimento anual do programa.

Existem os que se queixam de que o programa gera acomodação dos beneficiários, que deixam de trabalhar para viver das benesses do governo. É provável que seja verdade, mas vamos atacar essa questão somente quando soubermos quantificá-los.

Quantos são? Onde vivem? Quais são as características socioeconômicas desse grupo específico?

Enquanto não formos capazes de obter dados confiáveis, ficaremos discutindo opiniões sem base em evidências, conversas de redes sociais e palpites de botequim que não ajudam em nada.

Vivemos num país com recursos naturais invejáveis para o resto do mundo, grande número de profissionais bem treinados, alguns dos quais com pós-graduação nas melhores universidades do Brasil e do mundo, mas ao mesmo tempo com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo

Um país em que o 1% mais rico da população ganha 39,2 vezes o que ganham os 40% mais pobres, segundo o IBGE, nunca estará entre os mais desenvolvidos nem terá paz nas ruas.

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...