OPINIÃO
Brasil
vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista
País precisa retomar
diálogo para evitar radicalismos e reencontrar equilíbrio, afirmam autores
Folha de São Paulo, Ilustríssima, domingo
1//12/2019
Lula foi solto e mobilizou
o debate político nas últimas semanas. Em tempos conturbados na América Latina,
havia a possibilidade de um discurso pacificador que convidasse ao diálogo.
Afinal, quando eleito presidente pela primeira vez, em 2002, depois de seguidas
derrotas, optou pela cautela na economia e pela negociação na política.
Em vez disso, resgatou
frases de efeito dos tempos em que tratava a política como disputa sindical. O
paraíso está logo ali, desde que se derrotem os inimigos, afirmou com a
veemência dos mercadores de ilusões.
O ex-presidente preferiu a
bravata, e não foi a primeira vez. Extasiado pelo sucesso de seu primeiro
mandato conservador na política econômica, Lula resgatou a promessa populista
que desconsidera as restrições para distribuir favores a grupos organizados,
aos movimentos sociais aos setores empresariais.
Em tempos de vacas gordas,
seu segundo mandato (2007-10) retomou os planos mirabolantes de desenvolvimento
da ditadura militar, acreditando que a disseminação dos subsídios e proteções
ao investimento local resultaria em crescimento sustentado.
Na América Latina, o populismo se caracteriza pela
retórica dominada por referências a inimigos que devem ser derrotados. Há
interesses escusos da elite e de forças externas, que exploram o país em meio a
uma agenda de dominação.
Esse discurso procura congregar grupos diversos da sociedade, por vezes
antagônicos, enfatizando o inimigo comum a ser combatido. Podem ser a agenda
neoliberal e o imperialismo americano, para os mais à esquerda; ou o comunismo
e seus países de origem, para os mais à direita.
No caso do petismo, há os vínculos do partido com as ditaduras de
esquerda do continente. Há o apoio ao governo venezuelano responsável pela
maior crise humanitária no continente (15% da população já emigrou), além de
eventos obscuros, como a devolução dos dois boxeadores cubanos que buscaram
asilo no Brasil ou a defesa veemente do italiano Cesare Battisti.
Quando esses eventos são lembrados, moderados ligados ao PT afirmam que
se trata de “discurso para a militância”, de retórica sem muita importância.
Discordamos. Parece ilustrar um sentimento genuinamente autoritário presente no
partido. Se não for esse o caso, resta a pergunta: então mentir vale?
Frente a esses sinais autoritários, a figura sóbria de Fernando Haddad
defendendo a social-democracia da Suécia não é convincente.
A outra face do populismo é o desprezo pelas
evidências sobre o impacto das propostas econômicas.
Ambos os extremos populistas, à esquerda e à direita, supõem que os problemas
se resumem a um conflito distributivo: de um lado, a imensa maioria da
sociedade, oprimida; de outro, os inimigos exploradores. Por essa razão, para
os líderes populistas interessa apenas a hegemonia na política e a
implementação de medidas que protejam os interesses imediatos de seus
apoiadores.
Uma característica importante dessa retórica
é avaliar a política pública apenas pelos objetivos, sendo irrelevante discutir
seus custos e eficácia. Em 2003, alguns economistas alertaram que a política do
primeiro emprego fracassaria. A reação foi declarar que os críticos eram contra
proteger os mais jovens.
Perón, um dos pais do populismo latino, certa vez escreveu ao então presidente
do Chile, Carlos Ibáñez:
“Meu caro amigo: dê ao povo tudo o que for
possível. Quando lhe parecer que você está dando muito, dê mais. Você verá o
resultado. Todos irão apavorá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas
tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia, que todos
temem tanto porque ninguém a entende”.
A má notícia é que os ganhos se revelam
fugazes, e a conta chega em meio a desastres econômicos. A economia não é tão
elástica assim. Perón inaugurou as décadas de decadência da economia argentina,
e o governo Lula desperdiçou talvez a melhor oportunidade de desenvolvimento
sustentado do país.
Lula livre falou contra a reforma da
Previdência. Cometeu o erro crasso de afirmar que o projeto aprovado neste ano
era a implantação do modelo chileno por capitalização. Falou contra as reformas
em geral, entre as quais a trabalhista. Certamente, rejeita a administrativa.
Como todo populista latino-americano, Lula defende os
interesses dos grupos organizados, sem mencionar seus efeitos colaterais sobre
o restante da população, como obter surtos de expansão da atividade e do
emprego à custa de comprometer o crescimento sustentado do país. Trocam-se
alguns anos de expansão moderada da economia por uma década de retrocesso.
Entre os anos de 2003 e 2010, o Brasil cresceu, segundo dados do FMI,
4,0%, ante 4,1% do restante da América Latina e 4,2% da economia mundial.
Enquanto isso, os demais países emergentes cresciam a taxas bem mais elevadas.
De 2011 até 2014, o Brasil ficou para trás. A taxa média de crescimento
da economia mundial caiu para 3,6%, bem próxima da média do restante da América
Latina. No caso do Brasil, porém, o crescimento anual médio caiu para 2,2%
nesse período, com tendência de queda. A renda aumentou apenas 0,5% em 2014, na
transição para uma das mais severas recessões da nossa história.
Os sinais de perda de dinamismo de nossa economia são bem anteriores ao
agravamento da crise em 2015. Entre 2010 e 2014 a lucratividade das empresas
negociadas na Bovespa e das principais empresas de capital fechado, segundo
levantamento do Cemec (Centro de Estudo de Mercado de Capitais) conduzido pelo
professor Carlos Rocca, caiu de 5,3% do PIB para 1,2% em meio à queda da
produtividade.
A política para desenvolver a indústria naval, a terceira tentativa em
60 anos, funcionou? Foi eficaz a agenda do PT de transferir mais de R$ 500
bilhões ao BNDES para fomentar a concessão de crédito direcionado com subsídio?
Deu certo estimular a construção de inúmeras refinarias de petróleo pelo
Brasil, sem que a proposta atendesse a critérios mínimos de viabilidade
econômica?
A mudança do marco regulatório do petróleo e o atraso de cinco anos nos
leilões do pré-sal atenderam aos interesses nacionais? As políticas de
desoneração tiveram sucesso? Foi benéfico para o país ter rejeitado o ajuste
fiscal estrutural proposto por Antonio Palocci em 2005? A política de conteúdo
nacional resultou em desenvolvimento?
Gostaríamos imensamente que Lula respondesse a essas perguntas em seus
próximos pronunciamentos.
Melhor ainda seria se Lula e seus assessores descrevessem que políticas
adotadas desde 2009 foram bem-sucedidas. Quais empresas apoiadas pelo seu
governo continuam produzindo eficientemente ou estão isentas de escândalos de
corrupção?
Não se trata de descartar de antemão a necessidade de intervenção
estatal em várias circunstâncias; afinal, muitos países desenvolvidos se
beneficiaram de políticas públicas durante a crise de 2008. Trata-se apenas de
reconhecer que os instrumentos e políticas adotados pelo petismo fracassaram, revelando
erro de diagnóstico ou falta de técnica.
Serão precisos muitos anos para corrigir as imensas decisões de produção
fracassadas do petismo, dos estaleiros ineficientes aos estádios de futebol
vazios, das empresas pouco competitivas beneficiadas pela proteção oficial aos
projetos de logística que prometiam muito e entregam pouco.
Nos últimos anos, as lideranças do PT inventaram uma narrativa sobre a
história recente. A economia vinha bem, porém Dilma cometeu pequenos erros ao
atender à agenda Fiesp de intervenções setoriais, como no setor elétrico, e ao
conceder desonerações a setores selecionados. Aécio não aceitou o resultado
eleitoral e estimulou as pautas-bomba. A Operação Lava Jato e seu impacto sobre
a construção civil, em conjunto com o “austericídio” de Joaquim Levy,
completaram o serviço. O
resultado foi a maior crise dos últimos 120 anos.
Essa narrativa responsabiliza terceiros pela crise e
tenta salvar o populismo de esquerda. Afirma que o intervencionismo petista não
foi ineficaz nem custou centenas de bilhões de reais ao Tesouro. A crise da
Petrobras não seria o resultado de suas dificuldades financeiras (a dívida
ficou cinco vezes maior do que a geração de caixa), mas da Lava Jato. Ainda, a
queda do investimento público não teria decorrido do esgotamento dos recursos
do Tesouro Nacional ou dos bancos públicos.
De acordo com essa narrativa, não há desequilíbrio no Estado brasileiro.
Um coronel da PM pode se aposentar aos 50 anos de idade, com proventos
vitalícios de R$ 30 mil mensais. Funcionários do setor privado podem parar de
trabalhar com menos de 55 anos de idade e acumular aposentadoria com pensão. Os
professores da rede pública podem se aposentar após 25 anos de serviço com
remuneração integral.
Entre os anos de 2003 e 2015, o governo dobrou a despesa por aluno do
ensino fundamental, descontada a inflação. O Brasil atualmente gasta bem mais
com educação que outros países emergentes, porém temos resultados
constrangedores nos exames internacionais de aprendizado no ensino médio.
Para o velho populismo, no entanto, nenhuma reforma na gestão pública é
necessária. Basta tributar os mais ricos e teremos recursos para tudo. Hugo
Chávez, com petróleo acima de US$ 100, deixou como herança um país bem pior do
que recebera. Não faltavam recursos, faltava racionalidade e sobrava populismo.
Vale lembrar que o período do presidente Lula se iniciou com forte
ajuste fiscal e uma agenda extensa de reformas liberais. No seu primeiro ano de
governo, houve aumento da meta de superávit primário e da taxa de juros para
equilibrar as contas públicas e controlar a inflação. Foi encaminhada ao
Congresso a reforma da Previdência dos servidores públicos, em meio a diversas
medidas para aperfeiçoar o mercado privado de crédito.
A política econômica ortodoxa do primeiro governo Lula
foi bem-sucedida em reduzir a inflação e em retomar o crescimento econômico,
além de ter se beneficiado da expansão do comércio mundial.
O sucesso do governo, no entanto, resultou em escolhas trágicas.
A retomada do crescimento permitiu a volta do populismo e dos delírios
de grandeza. A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, reagiu
violentamente à proposta de controle dos gastos públicos, que aumentavam bem
mais do que a renda. “Gasto é vida”, disse a ministra, apoiada pelo presidente.
Nos anos seguintes, a gestão Lula retomou a agenda desenvolvimentista do
governo Geisel (1974-79), revelando uma perturbadora semelhança entre as
políticas econômicas da direita e a da esquerda. Ambos acreditaram que a
disseminação de estímulos à produção local conduziria ao crescimento econômico
sustentado. Ambos legaram um país com contas públicas desorganizadas e uma
crise econômica anunciada.
Todos os grandes projetos iniciados pelo segundo governo Lula
fracassaram. Ele passou o bastão para Dilma, deixando como herança obras de
infraestrutura caras, muitas vezes inoperantes, e empresas ineficientes, em
meio a um impressionante desperdício de recursos públicos. Nada diferente do
que ocorrera com os delírios do período militar.
Esse populismo e seus resultados catastróficos foram o que terminou por
fortalecer a extrema direita, que não hesita em justificar a truculência do
AI-5 como reação aceitável frente a manifestações democráticas.
Para agravar, existe uma imensa parte da elite brasileira beneficiada pelos
favores oficiais, mas que acredita ser parte da classe média de um país rico,
apenas desigual.
O excesso de discricionariedade da política econômica favorece empresas
que se beneficiam de regimes tributários especiais, além de entidades privadas
que recebem recursos compulsoriamente arrecadados da sociedade, como o Sistema
S.
A imensa desigualdade de oportunidades no país explica
o apoio da parte importante da população ao discurso populista. Famílias com
crianças sem acesso a serviços públicos essenciais, como saneamento ou educação
fundamental, produzem novas gerações à margem da sociedade formal.
As periferias das grandes cidades, com jovens que não estudam nem
trabalham, que optam pelo crime ou engravidam precocemente, revelam a fonte da
tragédia que alimenta discursos oportunistas e violentos.
A imensa pobreza no Brasil tem muitas causas, mas a principal, segundo a
evidência disponível, é a falta de acesso das novas gerações ao cuidado na
primeira infância e à educação fundamental de qualidade, que garanta o
aprendizado em português e matemática. Sem a aquisição dessas competências, os
resultados são baixa produtividade e pouca mobilidade social.
A direita se revela indignada com os equívocos da social-democracia; no
entanto parece ignorar o desastre de um país que descuida das novas gerações.
Numa nação com tamanha desigualdade de oportunidades, não deve surpreender o
apelo persistente da velha retórica.
O discurso da extrema direita contra as escolhas individuais e a
liberdade de expressão acaba por conferir legitimidade à oposição raivosa da
esquerda, que alega se preocupar com os mais pobres e a solidez da democracia.
Essa direita é filha do populismo irresponsável patrocinado pelo PT, porém, com
sua insensibilidade e brutalidade, acaba por favorecer o renascimento da
esquerda autoritária.
A arrumação do desastre produzido pelo petismo, de um lado, e pelo
primarismo de certa direita que rejeita a ciência, de outro, requer a opção
pelo diálogo e o reconhecimento dos nossos problemas. Temos um Estado caro em
meio a um país pobre. Três horas do dia de trabalho de um brasileiro são
apropriadas pelo poder público, boa parte usada para pagar servidores ou
distribuir as incontáveis meias-entradas da nossa sociedade.
Podemos continuar nessa trajetória disfuncional, em que os muitos
setores organizados disputam as benesses do poder público. Ou podemos optar por
outro caminho, que permita a retomada do crescimento sustentado com
solidariedade social.
Essa agenda passa pela reforma do Estado e pela reconstrução do centro
progressista. Sem maior eficiência do poder público na provisão dos serviços de
saúde, educação e segurança, além do cuidado com a imensa população das
periferias urbanas, não avançaremos em direção à maior igualdade de
oportunidade.
A reforma administrativa é essencial para essa agenda. Novos aumentos da
carga tributária não resultarão em melhoria da qualidade da educação
fundamental, caso não se alterem a estrutura de incentivos dos servidores
públicos e os instrumentos de gestão, como reconhecer os melhores servidores
públicos com maior remuneração.
A política pública deve ser avaliada por seus resultados. A criação de
municípios desde a redemocratização melhorou o acesso a políticas públicas em
regiões antes não atendidas? Os alunos passaram a aprender mais? A saúde da
população melhorou?
Não basta, porém, corrigir os graves desvios do setor
público. É necessário também que a economia volte a crescer.
Nos últimos 35 anos, a produtividade do trabalho no Brasil cresceu 0,5%
ao ano, bem menos que na economia americana, a mais rica do mundo,
afastando-nos ainda mais da fronteira do desenvolvimento, da qual, em tese,
deveríamos estar nos aproximando, como tem ocorrido com tantos países
emergentes.
A melhoria da educação contribui para aumentar a produtividade. A agenda
para a retomada do crescimento inclui ainda a redução das distorções
tributárias. As decisões de investimento devem ser motivadas pela sua rentabilidade
para a sociedade, não por benefícios decorrentes do menor pagamento de
impostos.
A abertura da economia ao comércio exterior permitiria o maior acesso a
bens de capital mais eficientes ou a insumos mais baratos, contribuindo para o
aumento da produção e da renda.
A desigualdade é tão profunda em nossa sociedade, no entanto, que não
bastam políticas de igualdade de oportunidade e de aumento da produtividade. É
necessário que o poder público intervenha, reduzindo a inequidade de renda
entre os adultos por meio da progressividade dos impostos. Essa agenda, além de
reduzir a desigualdade, ajuda a dotar o Estado de orçamento para financiar suas
ações.
O caminho aqui é
escorregadio. A retórica populista afirma que os ricos pagam pouco imposto,
afinal dividendos são isentos de tributação. Não é bem assim. Lucros são
tributados da mesma forma que salários. A sutileza decorre da nossa escolha por
um modelo mais prático de arrecadação: tributar a geração de renda na fonte, na
pessoa jurídica. Isso vale tanto para os trabalhadores quanto para os
acionistas, que recebem salários e lucros já descontados os tributos devidos.
Nos últimos anos, diversos
países têm optado por reduzir a cobrança de impostos sobre os lucros nas
empresas, aumentando, por outro lado, a tributação na distribuição de
dividendos. A conta, porém, deve considerar o total do imposto pago pelo lucro,
quando gerado pela empresa, e do quanto é pago pelo acionista ao receber o
dividendo.
As maiores distorções na
tributação se encontram nas empresas que optam pelos regimes tributários
especiais, Simples e lucro presumido, que, tudo considerado, pagam bem menos
tributos que assalariados ou acionistas das empresas tributadas pelo lucro real.
O populismo dá voltas. Na
Argentina, os descendentes de Perón herdarão uma economia em recessão, inflação
de 60% ao ano e déficit primário de 1% do PIB. Néstor e Cristina Kirchner
desorganizaram a economia que Eduardo Duhalde havia arrumado. A desconstrução
foi lenta, pois as condições eram favoráveis, com o aumento no preço das
commodities e uma economia que partia do fundo do poço da mais profunda
recessão do século 20.
Mauricio Macri optou por
não enfrentar os problemas, enganou a turma do mercado financeiro e agora passa
o bastão de uma economia em crise severa. A conta ficou para o peronismo, que
terá de enfrentar o dilema entre fazer o ajuste ou assistir à volta da
hiperinflação.
No Brasil, tangenciamos o
abismo nesta década. Lula solto recupera a sua velha retórica populista. Num
país em que radicais de esquerda e de direita se alimentam mutuamente, existe a
opção pelo resgate da agenda social-democrata, que procura equilibrar os
benefícios de uma economia de mercado com políticas públicas que cuidem dos
mais vulneráveis.
Podemos continuar a repetir
compulsivamente a retórica populista do passado ou optar pelo diálogo,
reconhecendo erros e aprendendo com a experiência.
Paulo Hartung, economista, foi por duas
vezes governador do Espírito Santo (2003-11 e 2015-19).
Marcos Lisboa, presidente do Insper e
colunista da Folha, foi secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda (2003-05).
Samuel Pessôa, doutor em economia pela
USP, pesquisador do Ibre da FGV e sócio da Julius Bär Family Office, é
colunista da Folha.
Ilustração de André
Stefanini, artista gráfico e ilustrador.
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