O cientista político franco-italiano Giuliano Da Empoli pesquisa a relação entre as redes sociais e a ascensão ininterrupta da extrema direita populista no mundo.
Para ele, esse movimento – que no Brasil é liderado pelo presidente Jair Bolsonaro – é fruto de uma mistura entre intuição e cálculo. A intuição é parte da habilidade política desses novos líderes. O cálculo é parte do trabalho do que o autor chama de “engenheiros do caos” – nome dado por ele aos especialistas em transformar algoritmos em votos.
O tema foi exposto por Da Empoli em seu livro mais recente, cujo título é auto-explicativo: “
Os engenheiros do caos: Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”, disponível em português, no Brasil, pela editora Vestígio.
No livro, Da Empoli mostra como a lógica do engajamento nas redes se sobrepôs à do engajamento político tradicional. Nas redes, o motor do engajamento é o susto, o medo, o escândalo e a superexcitação permanentes, não importando se o conteúdo que circula é verdadeiro ou falso.
Na política, o engajamento costumava ocorrer por um longo caminho de militância e busca de consensos. Esse caminho, diz ele, foi ultrapassado por uma lógica que demanda da política a mesma resposta satisfatória, imediata e narcisista que qualquer aplicativo promete hoje em dia. Os “engenheiros do caos” perceberam essa mudança e tomaram as rédeas do processo, em benefício da extrema direita populista atual.
Nesta entrevista, concedida ao
Nexo por telefone, no dia 2 de dezembro, Da Empoli – que já foi conselheiro político do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi e hoje dirige o centro de estudos
Volta – falou sobre o trabalho desses “engenheiros do caos” no mundo e particularmente no Brasil atual.
Como os estrategistas dos atuais partidos populistas de extrema direita manipulam e se beneficiam da circulação de emoções negativas nas redes sociais, como raiva, ressentimento e desconfiança do eleitorado?
Giuliano Da Empoli Os engenheiro do caos, como eu os chamo no livro, são personagens que importaram para a política a lógica das grandes plataformas de internet. O Google, o Facebook e o Youtube têm no engajamento de seus usuários o principal parâmetro de sucesso. Esses engenheiros políticos funcionam da mesma forma – eles vão utilizar todos os conteúdos possíveis para conseguir o engajamento de seu próprio público.
Nessa empreitada, esses engenheiros analisam em detalhe as opiniões e preferências de seus apoiadores, aos quais eles não têm nenhuma obrigação de oferecer conteúdos coerentes. Nesse mundo do engajamento, a superexcitação é mais importante que todo o resto. Não importa se existem contradições entre o que é dito hoje e o que será dito amanhã ou entre o que é dito a um grupo de apoiadores e a outro grupo de apoiadores. O que importa é gerar o máximo de super excitação possível e, com isso, o máximo de engajamento. Essa é a nova lógica política.
O Partido 5 Estrelas criou na Itália uma plataforma online para medir em tempo real a opinião de seus simpatizantes. Tempos atrás, esse seria um sonho tornado realidade para qualquer defensor da democracia direta, inclusive à esquerda. Mas o sr. desconfia do método. Quais são suas críticas?
Giuliano da Empoli Há duas questões aqui. Uma é a questão específica do 5 Estrelas. A outra é a situação em geral. O 5 Estrelas diz ter criado uma plataforma digital para a participação direta, em intermediários, de seus apoiadores. Mas a verdade não é bem essa.
Antes disso, o Partido Pirata [criado na Suécia em 2006] tinha esse mesmo objetivo. A diferença é que o Partido Pirata tinha uma plataforma aberta, open source, no qual lidava com as opiniões de seus simpatizantes. O sistema desenvolvido pelo 5 Estrelas, ao contrário disso, é completamente opaco. Eles desenvolveram uma plataforma que é administrada por uma empresa privada. Isso é feito com possibilidades enormes de manipulação dos dados e com uma total falta de transparência.
Mas há ainda um segundo ponto sobre o qual eu gostaria de falar, um ponto mais geral em relação a essa ideia da democracia direta digital. Eu acho que esses instrumentos podem melhorar a democracia. Eu penso que a democracia representativa vai evoluir para levar em conta as novas tecnologias e as novas ferramentas. Acho que isso corresponde a uma necessidade real. A questão que vem depois disso é: a democracia representativa pode ser substituída por um sistema completamente digital e que governe a si mesmo? Francamente, eu acho que não.
O sr. diz no livro que o eleitorado espera hoje da política as mesmas respostas rápidas e eficazes encontradas em aplicativos como Uber e iFood. Essa é uma aspiração negativa, criticável? Por quê?
Giuliano da Empoli Não é necessariamente negativa, mas a rapidez com que a demanda dos consumidores é satisfeita hoje em todos os campos comerciais está em contraste radical com a lentidão dos processos democráticos, e sobretudo da democracia representativa, que é baseada na ideia dos processos lentos para gerar compromissos, para conseguir consensos e grandes maiorias. Então, há uma verdadeira diferença hoje entre os hábitos dos consumidores em todas as áreas e os ritos e procedimentos da democracia representativa.
Agora, é ruim que haja uma exigência de parte dos eleitores em relação ao output e à rapidez dos processos democráticos? Eu penso que é natural e é justo. Mas é um problema colocar a democracia no mesmo plano que uma aplicativo de telefone no qual a rapidez imediata é um elemento chave, assim como a satisfação imediata do ego e do narcisismo do consumidor. E é esse o problema que o movimento nacional-populista e que os engenheiros do caos sabem explorar muito bem.
As autoridades do atual governo brasileiro mantém nas redes sociais um clima permanente de susto, sobressalto, com anúncios inesperados, comentários chocantes e elogios à ditadura. Em que medida isso corresponde a uma comunicação espontânea e em que medida demonstra uma estratégia encontrada em outros governos populistas do mundo?
Giuliano da Empoli Há as duas coisas. Em geral, onde vimos a emergência desse tipo de movimento, há um animal político ou muitos animais políticos, como Donald Trump nos EUA, Matteo Salvini na Itália e Bolsonaro no Brasil, que são pessoas com uma tendência natural a se comportar dessa maneira.
Em seguida, eles se unem ao que eu chamo de engenheiros do caos. É a entrada em cena dos estrategistas, das plataformas, da tecnologia e da ideologia, que são muito mais sofisticados e que aplicam essa estratégia da superexcitação, do escândalo, mesmo das notícias falsas, das campanhas de desinformação, de maneira consciente e estratégica, porque é um método que funcionou bem, de maneira surpreendente, em muitos contextos. É um método que justamente busca criar o máximo de engajamento possível nas redes e que põe em crise a mídia tradicional e a mídia de massa, que são ultrapassadas e exploradas por esse movimento. Aí há certamente uma estratégia. Eu nem diria que é uma estratégia internacional, mas há um mimetismo internacional no qual esses atores copiam uns aos outros. Isso, com certeza.
Como a esquerda usa essas mesmas ferramentas tecnológicas? Essa corrente populista se manifesta em outros nichos ideológicos?
Giuliano da Empoli É preciso dizer que a nova política feita de análise de dados e da utilização massiva da internet e das redes sociais é algo introduzido sobretudo pelo progressismo e especialmente pela campanha de Barack Obama de 2008 e aperfeiçoado em seguida pela campanha do mesmo Obama em 2012, que usou muito de tecnologia de dados.
Depois, o movimento populista de direita tomou a liderança e, não contentes em usar essa tecnologia, subverteu completamente sua utilização. Trump, em 2016, por exemplo, despachou informações precisas para eleitores de Bernie Sanders dizendo que Hillary Clinton estava corrompida, que era uma candidata corrupta. Para as mulheres jovens, foram despachadas mensagens falando do escândalo sexual do marido de Hillary [o ex-presidente Bill Clinton]. Para os negros, foram despachadas informações que diziam que Hillary era contra questões raciais. Houve, portanto, uma exploração específica dessa tecnologia pelos populistas, mas hoje todo mundo joga o jogo das redes.
Qual sua percepção sobre Bolsonaro?
Giuliano da Empoli O Brasil é hoje um dos laboratórios políticos dessa nova forma de fazer política. Ele é um político que bagunçou valores tradicionais da política. Por exemplo: antes, se um membro do governo dissesse algo que não fosse verdadeiro, isso provocaria a queda do governo em questão. Hoje, Bolsonaro, assim como Trump e Salvini, faz uso de fake news e provocação para, em primeiro lugar, poder fixar a própria agenda. Como isso funciona? Mesmo para corrigi-lo, mesmo para se indignar, nós somos forçados a falar daquilo que ele quer que nós falemos. Isso é fixar uma agenda.
Em segundo lugar, com isso, ele demonstra sua liderança porque ele não entra na realidade das estatísticas, na realidade das coisas tais como elas são. Ele permanece no papel de um líder voluntarista mesmo contra a realidade.
Em terceiro lugar, ele realiza a promessa mais importante de todos os populistas, que é a promessa da punição das elites. Cada vez que Bolsonaro diz uma coisa, e que há indignação dos intelectuais, dos jornais, da esquerda, Bolsonaro, como todos os outros líderes populistas, realiza sua promessa principal, que não é a luta contra a criminalidade nem a arrumação econômica, mas a punição das velhas elites corruptas, que são consideradas responsáveis por uma situação que os apoiadores dele não aguentam mais.
Pode parecer um fenômeno um pouco absurdo, mas há forças muito profundas por trás de um movimento como esse. E é muito difícil de combatê-lo porque, além do mais, como Salvini e como Trump, Bolsonaro realizou algo que só [Joseph] Goebbels [ministro da Propaganda Nazista] tinha realizado – e eu não estou dizendo que Bolsonaro é igual aos nazistas: a ideia de que a instituição reforça a propaganda. Então, se você usa a instituição para difundir fake news, publicar imagens violentas e chocantes, você multiplica sua força porque você empresta à propaganda a força da instituição. Isso se transforma numa máquina muito poderosa. Estamos vendo isso nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro.
João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris
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