Fomos surpreendidos, na última sexta-feira do ano (27/12), com uma declaração do chanceler, feita obviamente em tom defensivo, elogiando a sua (bem, isso é um exagero) política externa (que seria, segundo ele, a do povo brasileiro) e criticando a imprensa (sempre essa malvada, sempre do contra) pelas acusações inverídicas e malévolas contra as orientações diplomáticas do governo, e suas incontáveis vitórias.
Teve até uma tentativa de "popularizar" o panegírico apelando a uma linguagem de futebol.
Dizem, mas nem sempre é verdade, que elogio em boca própria é vitupério. Pode ser, mas vamos dizer que o chanceler descreveu o que, segundo ele, são conquistas da diplomacia desse governo.
O problema é que a descrição é incompleta e pouco verídica, segundo este jornalista que é um fino observador da política externa brasileira, não pelas declarações grandiosas que seus representantes fazem da própria, mas na prática das ações e omissões do governo.
Dou a palavra ao jornalista, como é hábito deste blog, que sempre reporta o que encontra de interessante, a favor e contra, para melhor debatermos a questão.
Não esquecer que da última vez que fiz isso, fui exonerado sumariamente do IPRI.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29/12/2010
O
gol (contra) do chanceler brasileiro
Jamil Chade
UOL Notícias,
29/12/2019
O chanceler Ernesto
Araújo, no pseudo-balanço de suas conquistas em 2019 publicado na noite de
sábado, atacou a imprensa e garantiu que a credibilidade do país pelo mundo
avançou sob sua gestão. Além disso, voltou a assegurar que sua diplomacia não era
ideológica....
Numa estratégia mais
que conhecida entre demagogos, ele negou a realidade...
Declaração de Ernesto Araújo
(no Itamaraty):
Ministro Ernesto Araújo faz balanço da política externa brasileira em 2019
Ao longo do ano, tive
acesso a mais de uma dezena de telegramas confidenciais. Alguns com sua própria
assinatura. E as instruções mostram que sua política externa é essencialmente
ideológica, com raros traços de realismo impostos por militares e exportadores
agrícolas nacionais. Também percorri, como faço há quase 20 anos, os corredores
da ONU, OMC, OMS, OIT e tantos outros organismos de forma quase diária. E,
nesses fóruns internacionais, passamos ao longo dos últimos doze meses de alvos
de chacota a motivo de uma imensa preocupação.
O que era "divertido"
no início do ano se transformou em um pesadelo para governos que, por décadas,
viram o Itamaraty como referência.
Mas a realidade é que,
no seu balanço do ano, ele não citou que seu ministério se recusou a dar à
imprensa por dias os detalhes do tratado assinado com a UE, enquanto repetia
que o acordo era "histórico". Dias depois, descobriu-se que as cotas
negociadas para as exportações brasileiras eram inferiores aos patamares
considerados como "mínimos" por antigos governos brasileiros.
Ex-negociadores sem
qualquer relação com o governo Lula ou Dilma comentaram ao descobrir os
detalhes: "entregamos tudo". Meses depois, foi a vez de a própria UE
indicar em um encontro que havia levado muito mais que cedido na negociação com
o Brasil.
Tampouco ele explicou
que a assinatura do tratado não significa sua ratificação. Assustados diante da
postura do Brasil em temas climáticos, dezenas de deputados pela Europa
alertaram não vão dar o sinal verde ao tratado comercial nas atuais condições.
Até mesmo aqueles que defendem o acordo chamaram a política ambiental de
Bolsonaro de "abominável...
Com os EUA, Ernesto
comemorou que um telefonema de Bolsonaro à Trump derrubou a tentativa de os EUA
impor uma sobretaxa ao aço brasileiro. Mas ele não contou que seu governo levou
um susto quando acordou e leu o Tweet de Trump com o anúncio de que taxaria o
Brasil. Um aliado faz ameaças pelas redes sociais, sem antes avisar o parceiro?
Por semanas, a mera
ameaça da Casa Branca levou o setor siderúrgico nacional a ver uma suspensão de
todos os novos contratos com clientes americanos.
O que ele comemora é
algo que não deveria nem mesmo ocorrer. Mas, ainda assim, o conteúdo do
telefonema continua sem a devida transparência. Os americanos pediram algo em
troca de retirar a ameaça? Houve uma negociação ou uma futura promessa?\
Ernesto tampouco
explicou como decidiu abrir o mercado do trigo para o produto americano, em
detrimento dos produtores argentinos, nossos aliados no Mercosul.
Ele não contou que,
depois de descobrir uma carta de Pompeo para a OCDE em que não incluía o Brasil
entre os países que a Casa Branca queria vez na entidade, o governo foi pedir
explicações aos EUA pela atitude. Nas horas seguintes à revelação, os
americanos garantiram nas redes sociais que continuavam a apoiar a adesão do
Brasil ao clube dos ricos. Mas jamais mandaram uma nova carta para a OCDE para
"corrigir" o texto assinado por Pompeo. Na diplomacia, o que ainda
conta é a correspondência oficial.
O chanceler não contou
no vídeo que um de seus melhores embaixadores teve sua eleição vetada pela
Índia para presidir uma negociação na OMC. O motivo: os indianos acusavam o
Brasil de ter abandonado os interesses dos países emergentes ao aceitar as
imposições americanas na OMC.
Ernesto também se
esqueceu de dizer que nossas relações com Israel estão baseadas em uma aliança
com um primeiro-ministro indiciado por corrupção. Tampouco mencionou em seu
balanço do ano que apostou em Macri. E perdeu. Que apostou em Salvini. E
perdeu. Que menosprezou Greta. Mas o gol nem teve tempo de ser comemorado. No
contra-ataque, a pirralha foi eleita a pessoa do ano. Ele não contou que seu
chefe ofendeu líderes estrangeiros, suas esposas e seus pais assassinados.
Ernesto não contou que
sua aliança na Europa é com o governo que é acusado de abandonar a democracia,
silenciar a imprensa e acabar com a independência do Judiciário.
Valores brasileiros?
Bom saber.
Em seu balanço, o
chefe da diplomacia de Bolsonaro (parece até paradoxo) não mencionou que a OIT
chegou a colocar o Brasil na lista suja dos países suspeitos de violar leis
trabalhistas. Tampouco aparece uma referência ao fato de ter sido 37 vezes
denunciado na ONU por violações de direitos humanos. Sem contar o processo que
eventualmente pode sofrer no Tribunal Penal Internacional.
Mais recentemente, o
sub-Comitê contra a Tortura da ONU chegou à conclusão que o Brasil viola seus
compromissos internacionais no combate à tortura. Mas, claro, para um governo
que elogia Pinochet, tal conclusão deve até ser considerada como um golaço.
Até hoje, não sabemos
por qual motivo somos amigos da ditadura saudita. Ou por qual motivo
felicitamos num comunicado de imprensa a eleição da Mauritânia para o Conselho
de Direitos Humanos da ONU. Na Mauritânia, mulheres vão para prisão por
adultério e a lei permite a pena de morte em alguns casos contra homossexuais.
Ele também não disse
que o projeto de mudança da embaixada para Jerusalém viola resoluções do
Conselho de Segurança da ONU. Para 2020, ele não mencionou que vamos sediar uma
reunião promovida pelos EUA e rejeitada por grande parte dos principais atores
por ser considerada como uma ofensiva anti-Teerã.
Quando foi eleito ao
Conselho de Direitos Humanos, Ernesto não contou que barganhou votos e que a
vitória não teve qualquer relação com direitos humanos. Ah, e não contou que
fez campanha contra uma candidatura da Costa Rica para tentar frear os
venezuelanos na ONU. Claro, o risco era de que os centro-americanos roubassem
os votos do Brasil.
Ficou ainda devendo
uma resposta ao STF, que lhe cobrou transparência e a entrega das instruções
que ele enviou aos diplomatas sobre questões de gênero. Tampouco contou que
suas propostas de modificação de textos de resoluções sobre mulheres foram
amplamente derrubadas em reuniões em que eu estive presente.
Quando Ernesto pede em
seu vídeo que se acredite apenas na versão oficial e que o público deixe de ler
a imprensa, ele está dizendo: não verifiquem os detalhes, não descubram o que
dizem os telegramas confidenciais, não busquem saber o que ocorreu nos
bastidores.
Fiquem na
arquibancada. Queremos torcida. Não queremos cidadãos.
VAR? Impossível diante
da qualidade da filmagem.
Enfim, se queremos
falar de um balanço de política externa e o papel da imprensa, vamos deixar as
comparações do futebol de lado. Não apenas a realidade é mais complexa. Mas
recorrer a isso é subestimar a inteligência dos cidadãos e até uma ofensa ao
futebol.
Em um ano no comando
do Itamaraty, Ernesto de fato reposicionou o Brasil no mundo. Mas, desta
vez....Opa, opa.. calma lá...mais um gol da Alemanha.
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