Durante a fase de transição do Mercosul (1991-1994), eu me preocupava com a questão da conformação futura do bloco, especulando sobre as instituições permanentes, pós-1994.
Parece que não se avançou muito desde então.
Em todo caso, reproduzo o meu texto de 1993, no qual refleti debates mantidos pelo Itamaraty sobre o assunto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3/12/2019
A INSTITUCIONALIDADE FUTURA DO
MERCOSUL:
Primeiras Aproximações
Paulo Roberto de Almeida
Editor do Boletim de Integração Latino-Americana
Boletim de Integração
Latino-Americana
(Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18)
Relação de Trabalhos nº 343
Relação de Publicados nº 131
À medida em que se aproxima o final do período de
transição fixado pelo Tratado de Assunção, o debate sobre a futura conformação
institucional do MERCOSUL começa a atrair a atenção de crescente número de
estudiosos e observadores, para não falar dos próprios negociadores da
integração subregional, em primeiro lugar os diplomatas e outros altos
funcionários das chancelarias do países membros, que são estatutariamente as
responsáveis pela coordenação política desse processo.
O Calendário Institucional do MERCOSUL
Essa preocupação com a institucionalidade futura do
MERCOSUL decorre, em primeiro lugar, de razões eminentemente práticas. Com
efeito, o Tratado de Assunção afirma em seu Artigo 18: “Antes do
estabelecimento do Mercado Comum, a 31 de dezembro de 1994, os Estados Partes
convocarão uma reunião extraordinária com o objetivo de determinar a estrutura
institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, assim
como as atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de
decisões”.
Já em previsão dessa obrigação, os países membros tinham
estabelecido, desde junho de 1992, um calendário tentativo para preparar os
documentos de trabalho que servirão de base a essa reunião extraordinária,
presumivelmente uma conferência de plenipotenciários que deverá concluir-se
pela assinatura de novos instrumentos diplomáticos regulando a administração e o
funcionamento do MERCOSUL a partir de 1º de janeiro de 1995.
Assim, no capítulo institucional do cronograma de
medidas que deverão ser adotadas antes de 31 de dezembro de 1994 com vistas a
assegurar o pleno cumprimento dos objetivos estabelecidos no Tratado de
Assunção para o período de transição, mais comumente conhecido como “Cronograma
de Las Leñas”, foram estabelecidos alguns prazos tentativos para a
implementação de ações correspondentes nos campos da estrutura institucional
definitiva dos órgãos do MERCOSUL, de suas atribuições específicas e do
mecanismo de tomada de decisões.
Resumidamente, os prazos são os seguintes:
Junho 93: análise do desenho institucional do MERCOSUL
posterior ao período de transição;
Dezembro 93: análise das atribuições específicas de seus
órgãos, do mecanismo de tomada de decisões e continuação da análise do desenho
institucional em matéria legislativa, executiva e judicial do MERCOSUL
“definitivo”;
Março 94: determinação das instituições, definição das
atribuições específicas dos órgãos e do mecanismo de tomada de decisões
posteriores ao período de transição;
Maio 94: encaminhamento ao Grupo Mercado Comum das três
séries de definições para “avaliação e instrumentação”.
Por sua vez, segundo o Cronograma de Las Leñas, o início
da preparação da reunião extraordinária está fixado para dezembro de 1993,
devendo a reunião realizar-se previsivelmente no segundo semestre de 1994. Para
preparar adequadamente essa reunião diplomática, sobretudo do ponto de vista
substantivo, isto é, a elaboração dos documentos negociadores que serão
finalizados pelas mais altas autoridades políticas dos países membros, o Grupo
Mercado Comum decidiu criar, em sua IXª reunião (Assunção, abril de 1993), um
Grupo ad hoc encarregado de tratar dos temas institucionais, reportando-se
diretamente ao GMC.
Mesa redonda no Itamaraty
Para ajudar a preparar a posição brasileira a ser
discutida nessa instância técnica de trabalho e, ulteriormente, nas reuniões
diplomáticas que se seguirão, o Itamaraty, como coordenador brasileiro do
processo de integração convidou, em meados de maio último, uma dezena de
estudiosos e especialistas que, a título individual, puderam debater amplamente
a estrutura institucional atual e futura do MERCOSUL. 1 Sob a direção do
Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, e do Embaixador
Rubens Antonio Barbosa, Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração,
Econômicos e de Comércio Exterior e Coordenador da Seção brasileira do GMC, os
participantes da mesa redonda dedicaram-se a um intenso intercâmbio de opiniões
e de argumentos fundamentados sobre os diferentes aspectos institucionais dos
processos de integração, em sua dimensão comparada, e sobre a estrutura ideal
ou possível que poderia adotar o MERCOSUL.
O debate frutífero que então se travou foi balizado, mas
não limitado, por algumas questões básicas que necessitam ser respondidas
previamente à formulação de sugestões formais sobre a estrutura institucional
definitiva dos órgãos de administração do MERCOSUL e seu processo decisório.
Essas perguntas, entre outras subjacentes, foram nomeadamente as seguintes:
1) Interessa ou não ao Brasil a existência, a partir de
1995, de instituições definitivas supranacionais ?;
2) Em caso positivo, quais seriam essas instituições e
qual o seu grau de supranacionalidade ? Sua competência seria decisória,
propositiva, ou apenas consultiva ?;
3) Em caso negativo, é do interesse do Brasil que todos
os órgãos do MERCOSUL sejam de caráter intergovernamental ou alguns deles
deveriam dispor de relativa independência em relações aos Estado membros ?;
4) Deverá necessariamente o Tratado de Assunção ser
substituído por um novo Tratado ou poderá ele ser modificado por instrumentos
jurídicos negociados pelos quatro governos e aprovados pelos respectivos
Parlamentos nacionais ?, e
5) Quais os tipos de processo decisório interessam ao
Brasil no âmbito do MERCOSUL ? Quais suas modalidades rationae materiae:
unanimidade (veto); maioria simples; maioria qualificada ? Neste último caso,
que tipo de maioria qualificada ?
Muitas outras questões afloraram no decorrer dos
debates, não apenas derivadas das acima citadas, mas em especial preocupações
vinculadas ao processo de revisão da Constituição brasileira — a ser conduzido
depois de 5 de outubro de 1993, de conformidade com o Artigo 3º das Disposições
Transitórias — e que oferece uma chance à sociedade brasileira de adequar o
Estado e as normas regulatórias da atividade econômica aos novos requisitos do
processo de integração subregional e da inserção internacional. As notas que se
seguem não têm a intenção de coligir todas as opiniões emitidas por cada um dos
participantes, mas tão somente oferecer um apanhado de argumentos e de
proposições que, sem representar a opinião do Ministério das Relações
Exteriores ou do Governo brasileiro sobre a questão, podem contribuir para a
intensificação do debate nacional sobre a institucionalização futura do
MERCOSUL e aportar assim elementos de juizo para a formulação preliminar de uma
posição negociadora sobre o desenvolvimento institucional do processo de
integração subregional.
A Institucionalidade do MERCOSUL
Em que pese a complexidade das tarefas que ainda restam
a ser cumpridas para a consecução dos objetivos fixados no Tratado de Assunção,
os participantes reconheceram a utilidade e a conveniência de se assegurar uma
conformação institucional que sirva para consolidar e fazer avançar os
compromissos assumidos pelos Estados Partes em março de 1991, nomeadamente os
de uma zona de livre comércio e de uma união aduaneira, pressupostos
necessários e irrecusáveis do Mercado Comum do Sul. A continuidade do
desenvolvimento institucional do MERCOSUL oferece, assim, um dos elementos de
garantia de que aqueles objetivos não sofrerão retrocesso. Aliás, a própria
implementação prática do Mercado Comum — hoje fortemente sustentada pela
vontade política das máximas autoridades de cada um dos países membros — se
encontrará singularmente reforçada se, ao lado da coordenação
intergovernamental já assegurada, se puder avançar na concreção de um mínimo de
supranacionalidade nesse processo.
Para caminhar nessa direção foi indicada, antes de mais
nada, a necessidade de se cumprir com o estipulado no Artigo 18 do Tratado de
Assunção, que objetiva à conformação da “estrutura institucional definitiva dos
órgãos de administração do Mercado Comum”. O próprio avanço do processo de
integração contribui para uma racionalidade superior e um disciplinamento das
políticas macroeconômicas nacionais, dando-lhes um marco de gestão
tendencialmente estável e funcionalmente harmônico. O MERCOSUL passou a
propiciar, às empresas privadas nacionais e multinacionais, um horizonte de
planejamento e de investimento produtivo de razoáveis dimensões econômicas, num
momento em que a formação de blocos regionais apresenta-se como uma estratégia
política de peso no atual processo de reorganização do sistema multilateral de
comércio.
Inversamente, uma eventual opção pelo “congelamento”
institucional da nova área de integração poderia resultar na perda da
credibilidade internacional já alcançada pelo MERCOSUL — não só junto a
entidades congêneres existentes e em formação (CEE, Grupo Andino, NAFTA), mas
também junto a outros importantes parceiros internacionais (Estados Unidos,
Japão) e organismos e foros especializados de tipo econômico (BID, GATT etc.) —
com a consequente diminuição da capacidade de barganha política adquirida pelo
MERCOSUL nessas instâncias. O processo de integração também passou a
representar, e não só para o Brasil, um elemento estimulador de algumas formas
de planejamento macroeconômico e da liberalização econômica, com a dinamização
consequente de movimentos que poderão no futuro vir a contribuir para o
aperfeiçoamento da competitividade tecnológica e da modernização industrial.
Supranacional ou intergovernamental ?
No que se refere ao caráter das instituições
definitivas, se intergovernamental ou supranacional, foi lembrado o importante
papel histórico e mesmo a funcionalidade estrutural que instituições desse
último tipo tiveram em outros processos de integração, em especial o europeu,
no sentido de se assegurar o funcionamento adequado das diversas disposições
que regem um mercado comum (defesa da concorrência, coordenação das políticas
macroeconômicas, setoriais e de comércio exterior, interpretação comum das
normas comunitárias etc.). Nossos parceiros mais importantes no processo de
integração parecem igualmente encarar como natural e necessária essa transição
para a supranacionalidade. O atual Embaixador da Argentina no Brasil, Alieto
Guadagni, quando ainda ocupava o cargo de Secretário de Relações Econômicas
Internacionais na Chancelaria argentina escreveu que “con toda seguridad [las]
instituciones definitivas habrán de ser más fuertes que las actuales,
incorporando asimismo algun ingrediente de supranacionalidad. Parece muy
dificil imaginar que las instituciones actuales puedan sobrevivir más allá del
periodo de transición pues las mismas carecen de la entidad suficiente para
llevar a sus últimas consecuencias un proyecto de Mercado Común”. 2
Quanto ao seu grau de supranacionalidade, exprimiu-se o
argumento de que essa supranacionalidade está implícita na lógica do processo
de integração e já se encontra presente, por exemplo, no sistema provisório de
solução de controvérsias, que prevê a aceitação pelos Estados Partes do
Protocolo de Brasília de laudos arbitrais formulados por juízes independentes.
Ainda assim, esse grau de “cessão de soberania” não pode eludir as condições
efetivas em que se realiza o processo de integração no Cone Sul, marcado por
avanços reais no programa de liberação comercial, algumas dificuldades para o
estabelecimento da tarifa externa comum e uma baixa propensão à coordenação das
políticas macroeconômicas e setoriais.
A esse respeito, o Ministro Sérgio Florêncio, Chefe do Departamento
de Integração do MRE e coordenador alterno da Seção brasileira do GMC, formulou
uma série de perguntas que apresentam alto grau de pertinência para um adequado
encaminhamento do debate. Aqueles que equacionam os avanços no processo de
integração à construção da supranacionalidade não deixam de ter sua dose de
razão, em função dos resultados aparentemente bem sucedidos do exemplo europeu.
Mas, a supranacionalidade, na integração de países dotados de pesos econômicos
tão díspares e de estruturas socioeconômicas diferenciadas, tampouco deixa de
colocar problemas à boa marcha do processo. A alternativa à supranacionalidade
é a continuidade do esquema interestatal atual, no qual o Brasil parece deter
maior margem de manobra. Por outro lado, há que se questionar o timing da
institucionalização supranacional, em função das assimetrias remanescentes e
das políticas divergentes entre os países membros. Nesse sentido, acelerar o
processo não significaria eventualmente contribuir para o seu insucesso ?
De que tipo de instituições necessita o MERCOSUL ?
Muito embora se tenha sublinhado a necessidade de inovar
institucionalmente, e mesmo de se procurar definir órgãos de administração mais
conformes às reais necessidades do processo de integração no Cone Sul, também
se reconheceu que, nesse terreno, parece difícil fugir ao “modelo europeu” de
institucionalidade. Ainda que a arquitetura interna no MERCOSUL possa ser
bastante diferente da complexa edificação institucional da CEE, basicamente não
se pode escapar às funções essenciais a todo processo integracionista: a)
comando político intergovernamental; b) execução técnica de tipo comunitário;
c) controle, fiscalização e apelo de tipo arbitral ou judicial e d)
representação e participação societária de tipo parlamentar ou por delegação
setorial.
Em outros termos, a institucionalidade mínima requerida
em processos desse tipo comanda a definição e o estabelecimento dos seguintes
tipos de instituições comuns:
1) um órgão superior de caráter intergovernamental, detendo
o essencial do processo decisório, em forma ponderada;
2) um outro órgão, de tipo executivo, caracterizado por
uma supranacionalidade estritamente necessária a seus fins de proposição de
decisões e de controle da implementação de medidas;
3) uma instância de vigilância e apelo, tipo Corte
Arbitral, e
4) um foro consultivo com ampla participação da
sociedade.
Esse modelo quadripartite, involuntariamente calcado no
exemplo europeu — que não foi, todavia, o adotado no caso do Grupo Andino —
poderia portanto ser desdobrado, em sua máxima extensão, numa estrutura
institucional compreendendo os seguintes órgãos e funções:
a) um Conselho, de natureza política, com representação
paritária dos países membros, mas provido de um sistema de tomada de decisões
refletindo o peso específico de cada um deles no esquema integracionista;
b) uma Comissão, de caráter supranacional, ou seja, um
órgão executivo dotado de poderes e atribuições propriamente comunitárias, e
não mais simplesmente intergovernamentais;
c) um Tribunal de Justiça ou Corte de Arbitragem, que
funcionaria não só como instância de solução de controvérsias entre os países
membros e seus agentes econômicos, mas também como foro constitucional e
instância de controle e de apelo e cujos laudos teriam aplicabilidade direta
nos Estados Partes; e
d) um Parlamento comunitário, com poderes consultivos e
de representação (mas não legislativos) e provavelmente constituído, numa
primeira fase, por via indireta, isto é, a partir dos legislativos nacionais,
e, numa fase ulterior, por via eletiva direta;
e) um Comitê Consultivo, de natureza econômica e social.
Ainda assim, esse “modelo básico”, de tipo europeu,
talvez vá muito além do que os requerimentos do MERCOSUL, em sua fase atual e
mesmo futura, parecem exigir e, por isso, se poderia pensar numa estrutura
menos elaborada, na qual, ao lado de um Conselho (e, eventualmente, de um Grupo
intergovernamental, que atuaria como foro de representantes permanentes), se
teria uma Autoridade comunitária reduzida à sua expressão mais simples (um
Comissário ou uma pequena Comissão de 3 ou 5 membros), com poderes
propositivos, e uma Corte Arbitral dotada de funções de apelo e de controle. A
Comissão Parlamentar continuaria existindo, durante certo tempo, no seu formato
e responsabilidade atuais.
Em todo caso, é possível que, realisticamente, se tenha
de continuar operando, durante algum tempo após o período definido como de
transição no Tratado, com base no atual formato intergovernamental, que poderíamos
chamar de “modelo BENELUX”. A passagem para o “modelo da CEE” — não a do Ato Único
e muito menos a dos acordos de Maastricht, mas tão simplesmente a do Tratado de
Roma de 1957 — se daria numa fase ulterior, quando se tivessem cumprido
plenamente as metas econômicas e os objetivos políticos da união aduaneira.
Como bem lembrou o Professor Vicente Marotta Rangel,
titular de Direito Internacional Público da FDUSP e ex-Consultor Jurídico do
Itamaraty, a formulação do Artigo 18 do Tratado de Assunção deixa certa margem
à interpretação criativa: “estrutura institucional definitiva” não quer
necessariamente dizer que os novos “órgãos de administração do Mercado Comum”
tenham de ser implantados de forma imediata e começar a funcionar desde 1º de
janeiro de 1995. O futuro Tratado, ou um Protocolo ao atual, poderia prever a
implementação calendarizada — ou cumpridos determinados condicionantes a
um salto de etapa — das instituições permanentes do Mercado Comum.
Essa trouvaille
do Prof. Rangel não deixaria, por certo, de receber o aplauso dos que estão
hoje legitimamente preocupados com as fortes limitações de caráter
político-institucional e as ainda maiores incertezas de tipo econômico do atual
processo de integração. Essa implementação escalonada e gradual do capítulo
institucional do Mercado Comum do Sul reverteria, assim, em dispor de um
MERCOSUL comunitário “virtual” — no sentido informático da palavra — embutido
no MERCOSUL “real” do modelo BENELUX. Em todo caso, não há porque adotar-se um
modelo prêt-à-porter ou então procurar o “produto adequado” no supermercado da
integração latino-americana, mas sim modelar a vestimenta institucional do
MERCOSUL em função de suas reais dimensões e das necessidades do processo
empírico.
Como também não deixou de sublinhar o Professor Luiz
Olavo Baptista, da mesma Faculdade, o Tratado fala de “órgãos de
administração”, o que lhes daria um estrito caráter de gestão do processo de
integração e não obrigatoriamente o papel de liderança política que
instituições supranacionais, ou pelo menos comuns, têm em outras áreas. Luiz
Olavo lembrou ainda o caráter ibérico de nossas formações sociais e estatais, o
que dificultaria sobremaneira qualquer pretensão a ter um processo de tipo
europeu, com total independência da burocracia “comunitária”. Mas, não se pode
pretender tampouco eludir algum tipo de controle parlamentar desse processo.
Resumindo essa parte do debate, o Ministro Sérgio
Florêncio apontou as qualificações do Artigo 18: a reunião extraordinária ali
prevista destina-se a determinar os órgãos definitivos do Mercado Comum, mas
não sua implantação imediata; esses órgãos são de administração e não
necessariamente de direção política e, ao se falar em “órgãos de
administração”, pensou-se mais na gestão dos assuntos correntes típicos de uma
zona de livre-comércio, que era o horizonte de trabalho dos “constituintes” do
Tratado de Assunção, do que na complexa direção de uma estrutura comunitária
acabada.
Caso não se implemente, de imediato, a
supranacionalidade explícita no “modelo da CEE”, poder-se-ia, ainda assim, constituir
órgãos subordinados dotados de relativa independência em relação aos Estados
membros. Em todo caso, pode-se pensar num Secretariado Executivo, dotado de
atribuições precisas no que concerne a implementação dos objetivos de completa
liberalização de comércio, bem como num Conselho Superior das Aduanas, no
estilo BENELUX, de caráter intergovernamental, mas dotado de capacidade de
iniciativa, com vistas a cumprir os requisitos necessários ao funcionamento de
uma união aduaneira.
Por outro lado, como enfatizou o Professor Werter Faria,
Presidente da Associação Brasileira de Estudos da Integração (Porto Alegre,
RS), se se quer avançar na direção de um mercado comum, seria importante ir
criando jurisprudência comunitária em matéria de liberalização de mercados e
defesa da concorrência, para o que se afigura como absolutamente indispensável
um Tribunal Arbitral dotado de um mínimo de supranacionalidade e, de
preferência, um Tribunal de Justiça com poderes de controle e de fiscalização
sobre as ações dos Estados membros. No exemplo europeu, lembrou o Prof. Werter,
a construção do mercado comum foi praticamente a obra — não solitária, mas
pelo menos substancial — da Corte de Luxemburgo, com suas incontáveis ações de
controle da legalidade dos atos dos países membros da CEE e seu papel
fundamental na eliminação das barreiras não-tarifárias (normas técnicas,
medidas sanitárias etc.) que os Estados passaram a erigir no lugar dos recém
derrubados direitos aduaneiros.
Novo Tratado ou modificação do atual ?
A maioria dos participantes da mesa redonda, com a
solitária exceção deste articulista, manifestou-se em favor da continuidade do
atual instrumento básico do MERCOSUL, com a introdução das modificações que se
fizerem necessárias para cumprir o articulado do Artigo 18 e as demais
exigências de uma plena união aduaneira, com a possível definição de novas
normas contratuais no terreno das políticas setoriais (industrial, agrícola
etc.) ou macroeconômicas (fiscal, tributária, defesa da concorrência etc.).
O Tratado de Assunção, como uma espécie de “Carta
constitucional” da nova área de integração, é suficientemente flexível para
abrigar as necessidades atuais e futuras dos países membros na construção do
espaço econômico comum. Assim, ele deveria ser escoimado de seus elementos
provisórios, modificado em todas aquelas seções que já não mais corresponderem
aos novos requisitos da integração em sua fase de consolidação comunitária e
continuar a apresentar esse caráter maleável que o qualifica como instrumento
adequado da integração sub-regional.
Para argumentar contrariamente à necessidade de um novo
Tratado de integração no Cone Sul, o Ministro Sérgio Florêncio fez uma série de
ponderações que merecem registro. Em primeiro lugar, um segundo instrumento
geraria inevitavelmente um efeito comparativo com o primeiro e todas as
comparações costumam ter o seu lado negativo. A complementação do atual
Tratado, e não sua substituição integral, permitiria pontualizar o foco
das discussões mais importantes para a continuidade do processo negociador e
evitar, em consequência, o inferno jurídico que uma abertura de todos os pontos
poderia suscitar. Em termos contratuais práticos, o Tratado de Assunção deriva
basicamente do programa estabelecido pela Ata de Buenos Aires e pelo ACE-14 e,
portanto, não deveria desviar-se de seu eixo original. Por fim, o próprio
exemplo europeu ilustra a continuidade básica institucional ali seguida: todos
os instrumentos que complementaram e aperfeiçoaram o mercado comum tiveram o
formato de emendas, modificações ou adições aos Tratados da CECA de 1951 ou aos
de Roma de 1957 (CEE e Euratom), notadamente o Ato Único de 1986 e o Tratado da
União Europeia aprovado em Maastricht.
Note-se que a sugestão de se proceder à substituição do
atual Tratado prendia-se à percepção de que a modificação de seus termos, em
especial no que concerne à estrutura do processo decisório, poderia gerar
alguma resistência por parte de certos setores em determinados países,
particularmente nos meios parlamentares, mas tal preocupação não foi julgada
relevante para justificar todo o trabalho de se empreender uma negociação de um
novo instrumento diplomático. Como observado pelo Ministro Renato Marques,
Secretário de Comércio Exterior do MICT, a opção pela regra do consenso,
constante do atual Tratado, era lógica e necessária, uma vez que se dava início
a um processo, necessariamente intergovernamental, de construção embrionária de
um espaço econômico comum. Na fase seguinte, de consolidação comunitária,
quando se afirmam os critérios da supranacionalidade, é natural que sejam
mudadas as regras de funcionamento institucional da área de integração.
O processo decisório no MERCOSUL
Trata-se de um dos elementos mais importantes no debate
político intra-MERCOSUL, com repercussões sobre a formulação e implementação de
políticas e decisões comuns nos mais diversos campos, notadamente nos campos da
defesa da concorrência e de restrição às práticas desleais de comércio.
Sem cair no jogo de palavras, houve consenso, entre os
participantes, de que a atual regra do consenso deve ser substituída através da
adoção de um processo qualificado de tomada de decisões, provavelmente sob a
forma de um “decision-making mix”, ou seja, operar uma combinação de mecanismos
decisionais na qual:
a) determinadas decisões requeiram a unanimidade, como
as de tipo constitucional, por exemplo: mudança do Tratado, interesse nacional
relevante etc.;
b) outras uma maioria simples, como aquelas decorrentes
de medidas rotineiras: convocatória de órgãos e reuniões;
c) outras ainda uma maioria qualificada, ou seja aquelas
que visam propriamente a uma tomada de ação nos campos político e econômico.
A experiência das Comunidades Europeias, com a adoção
evolutiva de diversas instâncias e sistemas decisionais, oferece, nesse
terreno, um modelo e um laboratório avançado sobre o funcionamento dos diversos
mecanismos possíveis de tomada de decisão. No MERCOSUL, igualmente, se terá de
operar com base num sistema de votação ponderada, que deverá atribuir um número
diferenciado de pontos aos países membros, segundo os princípios da equidade e
da justiça, mas também da importância relativa do aporte efetivo de cada um
deles ao espaço econômico comum.
A integração e a revisão constitucional brasileira
A mesa redonda não se ocupou especificamente dessa
questão, mas caberia talvez lembrar, a título meramente informativo, a
oportunidade que se abre para o Brasil no segundo semestre de 1993. A Carta
Constitucional brasileira de 5 de outubro de 1988, ao trazer inscrita em suas
disposições transitórias a perspectiva de sua revisão, oferece a possibilidade
de uma adaptação de diversos dispositivos constitucionais aos requerimentos
políticos da integração regional e a de uma oportuna readequação dos
instrumentos de intervenção do Estado às exigências dos processos de inserção
econômica internacional e de liberalização comunitária. É sobretudo no campo
econômico — Títulos sobre a organização do Estado e a Ordem Econômica — que a
Constituição pode revelar-se como relativamente disfuncional para o pleno cumprimento
dos objetivos listados no Artigo 1 do Tratado de Assunção, particularmente a
livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos no território econômico
comum aos quatro países membros. O capítulo econômico da Constituição, por
exemplo, naquelas seções que consagram monopólios constitucionais ou
tratamentos favorecidos para empresas brasileiras de capital nacional, poderia
ser repensado com vistas a possibilitar, plena e concretamente, a implementação
de uma interdependência ativa entre as economias do quatro países membros, que
é disso que trata um mercado comum. Em não sendo isso possível, caberia revisar
o parágrafo integracionista (Artigo 4, par. único), de forma a dar-lhe
preeminência sobre as demais disposições de caráter particular e afirmar
claramente o objetivo integracionista regional, além de seu mero efeito
declaratório.
Se bem que, como alertou o Deputado Nelson Jobim, não se
pode esperar uma revisão radical de toda a Constituição, alguns dispositivos
poderiam ser modificados de forma a facilitar o estabelecimento da
interdependência acima referida. De um modo geral, pode-se pensar na introdução
de um artigo tratando da aplicabilidade direta no direito interno de normas e
tratados internacionais, bem como de dispositivos que resultem na aceitação
inconteste de decisões, resoluções e laudos de órgãos supranacionais, de
caráter político (Conselho e Comissão) ou jurídico (Tribunal do MERCOSUL).
A questão da discriminação dos atos internacionais que
necessitam de apreciação parlamentar também poderia ser considerada durante a
revisão constitucional. Grosso modo, quais decisões ou resoluções dos órgãos do
MERCOSUL dependeriam de aprovação legislativa, mantida a processualística atual
dos atos internacionais ? Segundo a própria Constituição, todos os “tratados,
acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos
ao patrimônio nacional” (Artigo 49, I), mas, adicionalmente aos “tratados”
estrito senso, todas aquelas decisões dos órgãos comunitários do MERCOSUL que,
não só acarretem compromissos gravosos, mas que também impliquem na mudança
eventual de dispositivos constitucionais ou de leis aprovadas pelo Parlamento
brasileiro.
No quadro de uma mudança eventual da Constituição, o
Congresso poderia perder o papel meramente referendador de atos internacionais
negociados e firmados pelo Executivo, que ele tem hoje, para assumir uma
postura mais participativa. Em todo caso, como observou o Deputado Jobim, que
tipo de vincularidade teriam decisões emanadas do Conselho de Ministros do
MERCOSUL e qual seria seu caráter obrigatório para o Brasil na ausência de
explícita aprovação parlamentar ?
As próximas
etapas do debate
Sem pretender chegar a conclusões ou orientações
definitivas para a marcha ulterior do debate, os participantes da mesa redonda,
pela voz do Emb. Rubens Barbosa, exprimiram o desejo que o rico intercâmbio de
ideias travado no Itamaraty pudesse continuar em etapas futuras do trabalho de
elaboração institucional do MERCOSUL. Recomendou-se a propósito que se procurasse
estreitar a colaboração com o Instituto Latino-Americano de São Paulo que, sob
a direção do ex-Governador Franco Montoro, vem impulsionando suas atividades em
diversos campos de interesse relevante para o processo do MERCOSUL, em especial
no estudo das dimensões jurídicas da integração.
Alguns dos participantes prontificaram-se a encaminhar
contribuições tópicas sobre alguns dos pontos em debate, como é o caso, por
exemplo, das instituições de caráter judicial, procedendo-se, mais tarde, à
coordenação dos diversos “papers” na própria Subsecretaria-Geral de Assuntos de
Integração do Itamaraty. Acordou-se igualmente solicitar a algumas entidades
patronais (FIESP/CNI) estudos específicos sobre temas econômico-comerciais,
como seria o do funcionamento das regras de origem para a fase ulterior ao
período de transição, ou a órgãos como o CADE algum trabalho sobre a defesa da
concorrência no âmbito comunitário.
De uma forma geral, as intervenções foram marcadas pelo
caráter realista dos argumentos desenvolvidos pelos participantes, todos
preocupados em fazer avançar a integração no MERCOSUL atendendo-se, contudo, ao
necessário gradualismo institucional e à flexibilidade política desse processo.
Seguindo o tradicional aforismo popular, poder-se-ia dizer que, no caso do
MERCOSUL também, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
_____________________
1. Participaram desse encontro o Secretário-Geral das
Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, que presidiu a primeira
parte da reunião, o Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e
de Comércio Exterior, Emb. Rubens Antonio Barbosa, que coordenou os trabalhos,
e as seguintes personalidades e especialistas independentes, ademais de
funcionários do Itamaraty: Deputado Nelson Jobim, Emb. Luiz Augusto Souto
Maior, (....).
2. Cf. Alieto Guadagni, “MERCOSUR: una herramienta de
desarrollo”, in El Mercado Comun del Sur (Buenos Aires, Centro de Economia
Internacional, Secretaria de Relaciones Económicas Internacionales, MREC,
1992), pp. 27-28.
______________
[Brasília, 2ª: 21.05.93]
[Relação de Trabalhos nº 343]
Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.
343. “A Institucionalidade Futura do
Mercosul: Primeiras Aproximações”, Brasília: 21 maio 1993, 14 pp. Artigo
consolidando os debates da mesa redonda realizada em 17.05.93 no Itamaraty.
Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: nº 9,
Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.
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