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quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O Livro Negro do Comunismo no Brasil, de Gustavo Marques, em debate no dia 11/12, no IHG-DF

Tenho o prazer de anunciar o lançamento em Brasília deste livro de meu colega e amigo Gustavo Henrique Marques Bezerra:

no quadro de uma palestra com dois outros autores, Hugo Studart, e eu mesmo, como anunciado no banner abaixo:

Reproduzo meu prefácio ao livro de Gustavo Marques: 



O passado de uma ilusão que ainda não passou: o comunismo no Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Prefácio a livro de Gustavo Marques:
O livro negro do comunismo no Brasil: mitos e falácias da esquerda brasileira
(Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019)


A primeira parte, de um total de sete, com incontáveis capítulos e seções, deste livro de Gustavo Marques começa, em seu título, por uma alusão ao famoso livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Laffont/Calmann-Lévy, 1995), que foi objeto, possivelmente, da mais longa resenha de um livro que eu elaborei, dentre dezenas, centenas de outras resenhas, grandes e pequenas, ao longo de uma vida quase toda ela feita nos livros, pelos livros, para os livros e assoberbada por livros (não sei quantos tenho). Foram exatamente 22 páginas, que, obviamente, trataram não apenas dessa obra de Furet, mas praticamente da história da ideia comunista ao longo do século XX, ao estilo dos longos review-articles que eu sempre li, e admiro, na New York Review of Books, uma das poucas publicações esquerdistas americanas que mantém um alto nível intelectual.
Por sorte, eu era, à época da redação, editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional, que então acolheu, em 20 páginas, essa extensa resenha em seu número de janeiro-junho de 1995; sim, no mesmo ano da publicação do livro, que eu devorei e imediatamente resenhei, na edição original em francês. O livro deve ter sido publicado no Brasil, mas ignoro seu sucesso editorial, se é que teve, entre nós, na medida em que, como revela desde a sua introdução Gustavo Marques, quase toda a literatura sobre a esquerda comunista no Brasil é de esquerda, portanto dotada de um inevitável viés ideológico. Por isso mesmo, esse extensíssimo livro de Marques vem preencher, segundo a expressão abusada, uma grande lacuna na literatura dessa área, pois raramente se vê, em nossas editoras e livrarias, um livro-verdade sobre a tragédia do comunismo no Brasil e no mundo; os de viés negativo, ou simplesmente verdadeiro, são, ainda, uma raríssima raridade, com perdão pela redundância.
O título desde logo evoca outra obra importante, que já teve edição entre nós, mas não me lembro de ter lido, salvo num artigo de Roberto Campos, resenhas sérias, focado que sou na publicação de todo tipo de literatura nas ciências humanas e sociais: O Livro Negro do Comunismo: crimes, terror, repressão, de Stéphane Courtois e colaboradores (1997), publicado no Brasil pela Bertrand (1999). Esse livro trata do comunismo no mundo, com capítulos regionais ou nacionais (exceto o Brasil), mas o grosso do tratamento está obviamente reservado às nações que, infelizmente, sofreram décadas sob esse regime, fonte de uma mortandade muitas vezes superior à dos regimes fascistas, ou direitistas, embora ambos fenômenos sejam praticamente similares em seus métodos e procedimentos voltados para a eliminação não apenas de dissidentes, mas de seus próprios acólitos e servidores. O Brasil é um capítulo menor na volumetria das vítimas, mas certamente figura entre os mais importantes países a abrigar a ideia comunista, no sentido da dominação ideológica a que se refere François Furet em seu brilhante ensaio de história de uma ideia, a mais poderosa em um século dominado por ideologias, mas que ainda insiste em se manter um princípio aceitável em nossos dias.
De fato, com exceção de alguns poucos autores e pesquisadores – como Stanley Hilton, por exemplo – a maior parte da literatura séria (quero dizer, aquela que não é simplesmente opinativa ou ideológica, pois os há, na direita) sobre o comunismo no Brasil mantém uma postura senão simpática, pelo menos neutra, em relação ao maior desafio enfrentado por nosso país em sua trajetória política, desde aos anos 1920 até a atualidade. Cabe reconhecer, efetivamente, que a ideia comunista constituiu, não só no Brasil, mas no mundo todo, o maior desafio ao desenvolvimento natural das economias de mercado e dos regimes políticos democráticos em progressiva ascensão em todas as regiões, continentes, países, sociedades. Quando digo “desenvolvimento natural” é porque acredito que, na ausência desse poderoso contendor, as democracias de mercado teriam predominado mais precocemente, e de forma mais abrangente, do que o fizeram desde o final do século XIX até nossos dias. Cabe desenvolver esse ponto.
Das três grandes ideias que nasceram de cérebros vindos do século XIX, Marx, Freud e Einstein, o marxismo prático (isto é, o comunismo), o freudismo aplicado (na psicanálise) e a teoria da relatividade (que constituiu o mais poderoso complemento da física newtoniana), junto com a teoria darwiniana da seleção natural, todas elas dotadas de imenso potencial revolucionário em relação às teorias e crenças predominantes até o final daquele século, foi o marxismo que ofereceu a maior, a mais extensa, a mais profunda contestação à evolução natural das sociedades humanas constituídas sob a forma de sistemas econômicos de mercado, em sistemas políticos representativos, em sistemas culturais dotados de abertura de espírito, na linha do que vinha sendo construído pelo Iluminismo, e que ainda persiste, embora enfraquecido como um poderoso contendor ideológico das sociedades abertas, em seu sentido popperiano.
Com efeito, a abolição dos mercados e da propriedade privada, através de uma organização social da produção baseada na apropriação coletiva (mais exatamente estatal) dos meios de produção, a supressão da democracia representativa (vulgarmente apodada de “burguesa”) em favor de uma “ditadura do proletariado” (de fato, a ditadura do partido único ou, comumente, de um tirano) e a substituição da liberdade de pensamento, de organização e de expressão pelas diretrizes vindas de cima, emanadas desse mesmo partido clarividente e protetor, constituíram – e de certa forma ainda constituem – a mais importante negação de uma tradição liberal que vinha sendo construída duramente nas lutas democráticas dos séculos XVIII e XIX, por meio de propostas políticas, sociais e econômicas emanadas de filósofos iluministas e por estadistas dotados de valores e princípios compatíveis com os atributos dos regimes abertos que estavam se firmando paralelamente à consolidação do capitalismo, uma das formas (mas não a única, como nos ensina Fernand Braudel) da economia de mercado em expansão desde a primeira globalização, na era dos descobrimentos. A segunda globalização, durante a belle époque europeia, ainda tinha reforçado os impulsos mais importantes do iluminismo filosófico (com a disseminação de princípios de direitos humanos verdadeiramente universais, presentes nos movimentos abolicionistas e contra a tortura nos processos judiciais), do liberalismo político (representado pelas reformas tendentes à ampliação das franquias eleitorais, até chegar, já no século XX, ao voto feminino) e do livre comércio no plano econômico, que deveria consolidar e estender os tentáculos das democracias de mercado até os mais distantes cantos do planeta.
Tudo isso veio a termo com a Grande Guerra e, na sua imediata sequência, com o surgimento dos irmãos siameses do fascismo e do bolchevismo. O primeiro produziu o “Estado total”, impondo, segundo Mussolini, “nada fora do Estado, nada contra o Estado”, o que aliás se encaixava perfeitamente na concepção totalitária de Lênin e de Stalin. O segundo fez algo que nem o fascismo ousou fazer: aboliu a sinalização de preços pelo mercado, colocando em seu lugar burocratas do planejamento centralizado, encarregados de substituir a lei maior da economia, a do equilíbrio entre a oferta e a procura, por preços administrados. Como sinalizou imediatamente após a decretação do socialismo na Rússia bolchevique o economista austríaco e ex-socialista Ludwig von Mises, em seu panfleto O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), foi o equivalente econômico de fazer um elefante voar, ao eliminar a possibilidade de uma avaliação realista da raridade relativa dos bens disponíveis para o processo produtivo.
Na verdade, o elefante voou, durante mais ou menos setenta anos, mas à custa de um novo escravismo que, na era contemporânea, não teve paralelos, em sua dimensão, ao que se conhecia nas sociedades antigas. A historiadora Anne Applebaum, autora de uma famosa história do Gulag – citada neste livro – diz que este chegou a representar parte significativa do PIB soviético, sobretudo nos setores da infraestrutura, indústrias florestais, mineração, trabalhos penosos em geral. Essa mesma escravidão continua a existir na Coreia do Norte e em Cuba, os dois únicos redutos que preservam os últimos resquícios do stalinismo econômico (e político) do planeta. Todo ano, por ocasião da safra de açúcar, os cubanos repetem a piada, ao serem convocados compulsoriamente (à falta de equipamentos mecânicos ou combustível) para a colheita manual: “La participación es voluntaria, pero la voluntad es obligatoria.”
Impossível cobrir com toda a riqueza de detalhes o imenso painel que Gustavo Marques traça do comunismo, tal como ele existiu na prática no Brasil a partir dos anos 1920 (depois do período inicial de dominação anarquista sobre o movimento operário). O autor leu praticamente tudo o que se escreveu e se publicou de relevante sobre o universo teórico e prático do comunismo no Brasil ao longo do século decorrido desde as primeiras agitações políticas, passando pela intervenção dos agentes brasileiros e estrangeiros do movimento, chegando aos dias que correm. Como em várias outras trajetórias nacionais, o comunismo brasileiro registra o itinerário de uma parábola: um início lento, um arranque em meados do século XX e um lento declínio até o seu quase desaparecimento nas contestações práticas que ele pretendeu oferecer ao “capitalismo realmente existente”, mas sem que se lograsse a eliminação de todos os “resíduos mentais” da ideia comunista entre nós.
O marxismo no Brasil não produziu grandes contribuições teóricas à doutrina, enquanto elaboração filosófica ou teoria social (como no caso da Escola de Frankfurt, por exemplo). Dois de seus representantes, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, produziram contrafações da doutrina ainda na era do stalinismo triunfante ou declinante e que não deixaram sequer algum resquício de contribuição ao campo. A melhor análise do marxismo ocidental foi feita em um livro homônimo por um pensador liberal, o diplomata José Guilherme Merquior, que aliás dialogou de forma inteligente com os poucos marxistas não sectários da comunidade acadêmica.
O marxismo prático, isto é, o comunismo, ao contrário de suas pretensões, não contribuiu em praticamente nada para os avanços econômicos, sociais e políticos da classe que pensava representar, mais bem contemplada por concessões populistas de um ditador ou de presidentes abertos à “inclusão social” das massas trabalhadoras. Do lado inverso, liderado por um militar positivista convertido a uma versão especialmente vulgar do marxismo, o movimento comunista deu exemplos negativos de tentativa de tomada violenta do poder, empurrado pela miopia da III Internacional (1935), adotando depois uma reiterada postura de apoio às mais execráveis ditaduras do século XX, aliás até hoje, como revelado no caso da tragédia venezuelana, cuja ditadura de natureza fascista é apoiada pelos partidos brasileiros que se acreditam de esquerda.
Em vista de tantas frustrações, tantos equívocos, tantos crimes cometidos, tantas ilusões alimentadas em milhões de jovens (e menos jovens) ao longo do último século, parece até inacreditável que o comunismo tenha sobrevivido aos golpes de martelo da realidade. De certa forma, ele só não colapsou de vez porque os cursos de humanidades continuam a alimentar um fluxo contínuo de professores, jornalistas, sindicalistas (em grande medida de funcionários públicos), ativistas de movimentos sociais e outros seres deslocados do mundo real, vivendo nas fímbrias do mercado, ou diretamente a serviço do Estado, ao abrigo do qual eles repartem entre si recursos que extraem da parte ativa da sociedade (empresários e trabalhadores do setor privado), numa espécie de redoma infensa aos dados e informações do sistema produtivo de mercado. Gustavo Marques traz aqui a sua contribuição única na literatura especializada brasileira a uma história que ele estima ser, com razão, “ainda mal contada”.
O autor atribui essas deficiências da bibliografia à má qualidade da literatura anticomunista no Brasil; ou seja: se a esquerda deformou a verdade histórica, a direita tampouco soube compor estudos sólidos sobre essa grande ilusão que ainda persiste. De fato, mesmo se o anticomunismo é a doutrina oficial do Estado brasileiro desde 1935, os estudiosos não comunistas do fenômeno não conseguiram construir uma obra que lograsse escapar do anticomunismo primário, do reacionarismo antidemocrático e das mesmas simplificações que já conhecemos do lado da literatura de baixa qualidade produzida pela esquerda e pelos simpatizantes do marxismo.
Ao cabo de uma leitura talvez extenuante, mas sumamente enriquecedora, não é possível emergir deste livro com a antiga impressão geral de que a esquerda sempre foi, e continuaria sendo, “moralmente superior” à direita, por defender ideais supostamente nobres e elevados. Ao contrário, o comunismo, no Brasil como no resto do mundo, foi devastador não só para as consciências, mas também para qualquer objetivo prático de desenvolvimento material e de progresso espiritual da sociedade. Em uma palavra, seus projetos de engenharia social foram, aqui e em todos os lugares, apenas criminosos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de março de 2019

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