A iniciativa de aceitar a imposição da Rússia teria que partir da Ucrânia
Em nome do "anti-imperialismo", o governo Lula escolhe o papel de amigo
menor da China, oferecendo suas credenciais democráticas para conferir
legitimidade à iniciativa diplomática de Xi Jinping
Demétrio Magnoli
Folha de S. Paulo, 21/09/2024
"O Brasil quer estar com a China, com a Índia, com os EUA, com a
Venezuela, com a Argentina... Com todo mundo, de forma soberana,
respeitável. Porque nós não aceitamos ser menores do que ninguém'.
Parte do desejo de Lula, expresso na formatura dos diplomatas, será
realizado na cúpula dos Brics, em outubro. Xi Jinping e Putin articulam
uma nova expansão do bloco, com o ingresso da Venezuela - e, de quebra,
da Nicarágua. Os Brics tornam-se caixa de ressonância da China, enquanto
o Brasil conforma-se com uma posição "menor" no seu interior.
"Nós queremos paz, não queremos guerra", proclamou Lula diante da mesma
plateia, referindo-se à guerra na Ucrânia. Foi a senha para anunciar uma
reunião patrocinada por Brasil e China, às margens da Assembleia-Geral
da ONU, com o fim de divulgar um plano de paz sino-brasileiro às nações
convidadas, do chamado Sul Global. Na forma delineada pela proposta, a
paz interessa à Rússia, não à Ucrânia, e premia a guerra de agressão.
O plano não menciona, nem mesmo retoricamente, o conceito de soberania
territorial ou as fronteiras ucranianas de 1991 reconhecidas pela Rússia
no tratado de 1994. Como registrou Zelenski, seus pressupostos
autorizariam a anexação dos territórios ucranianos ocupados pelas forças
russas no momento de um cessar-fogo. Não foi por outro motivo que o
Brasil, assim como a China, boicotou a conferência de paz realizada em
junho, na Suíça, que operou com base nas normas do direito
internacional.
Algum dia, a guerra terminará. Talvez, por falta de alternativa
realista, a Ucrânia venha a ser obrigada a ceder territórios. Mas a
iniciativa de aceitar a imposição imperial teria que partir do governo
ucraniano, nunca de terceiros países. O plano sino-brasileiro
representa, de fato, uma operação diplomática destina- da a reforçar a
posição russa.
Os objetivos de Putin não se limitam à anexação do Donbass e do Sul
ucranianos. A invasão foi deflagrada para, além disso, converter o país
vizinho em Estado vassalo, nos moldes da Belarus. O Kremlin pretende
inserir a Ucrânia na jaula do "mundo russo" (Russkiy Mir).
O plano sino-brasileiro contempla tal ambição, por meio de uma senha
discursiva facilmente decifrável, que rejeita a "divisão do mundo em
grupos políticos ou econômicos isolados". A paz que pregam China e
Brasil proíbe a Ucrânia de, como qualquer Estado soberano, ingressar
numa união político-econômica (União Europeia) e numa aliança militar
(OTAN). Obviamente não haveria objeção a um futuro ingresso forçado na
Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), a aliança militar
comandada por Moscou.
O Brasil tem motivos geopolíticos e econômicos para praticar uma
neutralidade ativa, evitando alinhamento a um dos polos da rivalidade
global EUA-China. Contudo, em nome do "anti-imperialismo", o governo
Lula escolhe o papel de amigo menor da China, oferecendo suas
credenciais democráticas para conferir legitimidade à iniciativa
diplomática de Xi Jinping.
A alegação "anti-imperialista" tem pernas curtas. Trump esclareceu que,
de volta à Casa Branca, em purraria a Ucrânia a uma "paz chinesa"
recebeu em troca um cumprimento de Putin. Nessa hipótese o Brasil
estaria "com todo mundo" como deseja Lula, mas de modo pouco
"respeitável".