Demétrio Magnoli
Sociólogo e doutor em geografia humana
Ruínas da ponte chinesa
Por Demétrio Magnoli
Folha de S. Paulo, 21/02/2022 • 00:00
‘Esta foi a semana que mudou o mundo’, disse Richard Nixon em Xangai, em fevereiro de 1972, numa referência direta ao livro-reportagem “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, sobre a Revolução Russa de 1917. Nas declarações, logo após a assinatura do Comunicado conjunto, o presidente dos EUA anunciou a construção de uma ponte imaginária “através de 16 mil milhas e 22 anos de hostilidades”. A ponte ajudou a encerrar a Guerra Fria e abriu caminho à integração da China ao mundo, mas não ficou em pé para celebrar seu aniversário de 50 anos.
Sem o encontro histórico de Nixon com Mao Tsé-tung, não é fácil enxergar a transição chinesa do fracassado modelo estatista à “economia socialista de mercado” que começou em 1979, sob Deng Xiaoping. Sem o Comunicado de Xangai, base da aproximação geopolítica entre China e EUA, quem sabe quanto tempo ainda viveria a URSS?
A reviravolta de 1972, fruto da iminente derrota no Vietnã e do gênio intelectual de Henry Kissinger, realmente “mudou o mundo”. Ironicamente, as duas potências engajam-se, atualmente, numa espécie de Guerra Fria 2.0, e a China alardeia uma parceria estratégica, política e militar com a Rússia.
“Não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”, explicou Deng, anunciando o advento da liberdade para as mercadorias e os capitais. A China pós-maoista, porém, nunca aceitou a extensão da liberdade a seus próprios cidadãos, como foi comprovado pelo esmagamento dos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989, e pelas reformas regressivas de Xi Jinping, um quarto de século depois.
A China da Olimpíada de 2008 não é a dos Jogos de Inverno de 2022. Na primeira, delineava-se a marcha rumo a um sistema autoritário moderado, capaz de tolerar espaços restritos de liberdades públicas e individuais. A segunda aboliu os direitos de Hong Kong, ameaça invadir a república democrática de Taiwan e arrasa a sociedade e a cultura dos uigures em Xinjiang. Contudo a implosão da ponte com os EUA não deve ser atribuída à brutal reafirmação do sistema totalitário.
O giro estratégico de Washington começou com Obama, acentuou-se com Trump e ossificou-se com Biden. Hoje, o paradigma de uma rivalidade estrutural com a China tornou-se consenso bipartidário. Mas a China de Xi Jinping não é pior, politicamente, que a miserável nação maoista de meio século atrás. A Guerra Fria 2.0 decorre, essencialmente, da percepção americana de uma ameaça fundamental à hegemonia alcançada no final da Guerra Fria original.
O elemento estratégico-militar da resposta de Washington à ascensão chinesa tem as cores da política de contenção aplicada contra a antiga URSS: a criação do Aukus, aliança trilateral com Reino Unido e Austrália, e a parceria privilegiada com a Índia. O elemento econômico deriva de uma concepção oposta: no lugar do estímulo ao internacionalismo (Plano Marshall, União Europeia), o recuo às trincheiras do nacionalismo.
De Trump a Biden, os EUA engajaram-se na formulação de políticas industriais protecionistas e numa guerra de atrito contra os avanços tecnológicos chineses (5G, inteligência artificial). É um caso típico da “armadilha de Tucídides”, descrita pelo historiador da Guerra do Peloponeso. A potência tradicional enxerga sua posição desafiada por uma potência emergente e tenta restringi-la. Como resultado, adota uma atitude defensiva, calcificando o sistema internacional em torno de seus interesses nacionais.
Na Guerra Fria original, a estratégia dos EUA baseava-se na noção de que a URSS era uma potência assentada em alicerces de barro. Na Guerra Fria 2.0, os EUA operam sob a ilusão da irresistível ascensão chinesa. O diagnóstico desfoca a paisagem, ocultando as fragilidades do competidor: uma crise demográfica de longo curso, as hemorragias internas no sistema financeiro, a desaceleração econômica, as tensões sociais que se acumulam, as fissuras crônicas no sistema de poder político.
Ninguém celebrará o aniversário da visita de Nixon. Da ponte que serviu aos interesses dos EUA, da China e do mundo, resta apenas um monte de ruínas.
Por Demétrio Magnoli
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