Em 2006, eu segui atentadamente os assuntos da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia. Reproduzo abaixo o que fiz naquele momento.
Da minha lista de trabalhos originais:
1594. “Anotações em torno de duas notas pouco notáveis”, Brasília, 2-4 maio 2006, 4 p. Comentários aos termos da Nota do Governo Brasileiro sobre a nacionalização dos recursos de hidrocarbonetos pelo governo da Bolívia (2/05/06) e da Declaração dos presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela (Puerto Iguazú, 4/05/2006).
O conteúdo do que postei na ocasião:
Anotações em torno de duas notas pouco notáveis
Comentários colocados na lista Diplomatizando:
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2-4 maio 2006, 4 p.
Nota do Governo Brasileiro sobre a nacionalização dos recursos de hidrocarbonetos pelo governo da Bolívia
Nota do Palácio do Planalto: 2 de maio de 06
"1. O gasoduto Bolívia-Brasil está em funcionamento há sete anos, como resultado das negociações empreendidas por sucessivos governos há mais de cinquenta anos.
COMENT.: Que notável concessão à “pré-história” deste governo! Mas, para não dizer que todo o projeto da exploração dos recursos energéticos da Bolívia e do gasoduto foi obra do governo FHC, se faz remontar a história aos famosos “acordos de Roboré”, do final dos anos 1950, que não resultaram em nada naquela ocasião. Trata-se de uma tática do tipo stalinista: não podendo eliminar totalmente a história passada, se estende a origem de fatos contemporâneos a tempos imemoriais...
2. A decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização, é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania. O Brasil, como manda a sua constituição, exerce pleno controle sobre as riquezas de seu subsolo.
COMENT.: Bela lição de soberania, mas em juridiquês pouco sofisticado, com o grande problema de que a soberania não pertence exatamente ao governo boliviano, e sim é inerente a qualquer Estado, enquanto entidade representativa de um país membro da comunidade internacional.
3. O governo brasileiro agirá com firmeza e tranquilidade em todos os foros, no sentido de preservar os interesses da Petrobras e levará adiante as negociações necessárias para garantir o relacionamento equilibrado e mutuamente proveitoso para os dois países.
COMENT.: Os interesses não são apenas os da Petrobrás, pois a exploração do petróleo e do gás bolivianos foi objeto de acordos governamentais, isto é, internacionais, e sua implementação interessa ao Brasil, como cliente comercial, e não apenas à Petrobrás. Faltou definir quais são esses foros, sobre os quais parece persistir certas dúvidas. O fato de se ter de utilizar a palavra “tranquilidade” talvez seja um “lapso freudiano”, revelador de quão intranquilo está o governo brasileiro.
4. O governo brasileiro esclarece, finalmente, que o abastecimento de gás natural para o seu mercado está assegurado pela vontade política de ambos os países, conforme reiterou o presidente Evo Morales em conversa telefônica com o presidente Lula e, igualmente, dispositivos contratuais amparados no Direito Constitucional. Na mesma ocasião, foi esclarecido que o tema preço do gás será resolvido por meio de negociações bilaterais.
COMENT.: “Vontade política” é a palavra mais usada, abusada e conspurcada num certo vocabulário do poder, de qualquer poder e deste em particular. A “vontade política” do presidente boliviano é a de continuar fornecendo todo o gás de que o Brasil necessitar desde que ele conceda pagar os preços impostos pelo “parceiro” boliviano. Faltou esclarecer de qual “direito constitucional” se está tratando: cada país tem o seu e o nosso, por exemplo, reconhece a “função social da propriedade” (o que é meio caminho andado para a expropriação pura e simples, pois um fazendeiro ecologista não tem o direito de comprar grandes extensões de terra para deixá-las entregue à natureza). Cada país tem o seu direito constitucional, e isso é inerente à soberania de cada um: o da Bolívia não parece ser muito estável, ou imune a mudanças repentinas...
5. Os presidentes deverão encontrar-se nos próximos dias para aprofundar questões de relacionamento Bolívia e Brasil e da segurança energética da América do Sul".
COMENT.: Por enquanto não precisaria ir tão longe e cuidar da segurança energética de todo o continente: bastaria cuidar só da nossa, hoje comprometido com a dependência do gás boliviano, já integrado à nossa matriz energética. Se ainda vamos integrar outras fontes a essa matriz, será preciso treinar um batalhão de doutores em direito constitucional sul-americano...
2 de maio de 2006
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Declaração dos Presidentes Kirchner, Morales, Lula e Chávez
(Puerto Iguazú, 04/05/2006)
Nota nº 276 - 04/06/2006
Distribuição 22 e 23
Declaração dos Presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela
Os Presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela, reunidos em Puerto Iguazú, destacaram que a integração energética é um elemento essencial da integração regional em benefício de seus povos.
COMENT.: Não era preciso uma reunião de presidentes para dizer uma banalidade desse tipo.
Nesse contexto, os Presidentes coincidiram na necessidade de preservar e garantir o abastecimento de gás, favorecendo um desenvolvimento equilibrado nos países produtores e e consumidores.
COMENT.: Não se diz quem abastece quem, nem o que precisa ser feito para que garantias sejam oferecidas, o que significa, implicitamente, que tais garantias não existem. Desenvolvimento equilibrado é uma expressão genérica que não reflete a condição naturalmente assimétrica das partes envolvidas nesse tipo de relação: uma é produtora-fornecedora de um insumo valioso, a outra é consumidora cativa até o limite do custo-oportunidade, quando deve medir o interesse de fornecimentos alternativos.
Da mesma forma, destacaram que a discussão sobre os preços do gás deve dar-se num marco racional e equitativo que viabilize os empreendimentos.
COMENT.: Esses preços já tinham sido fixados em contrato, que incluem cláusulas de revisão de preços e permitem, portanto, uma discussão “racional”. O que se está prepondo aqui, implicitamente, é uma nova discussão, negando, portanto, as discussões anteriores. A unilateralidade do posicionamento não foi sequer mencionada.
Nesse espírito, coincidiram no aprofundamento dos diálogos bilaterais para resolver questões pendentes.
COMENT.: Bilateralidade foi tudo o que não ocorreu nesse encontro, como personagens estranhos ao problema sendo chamados para discutir questões estritamente bilaterais.
Por outra parte, expressaram sua vontade de trabalhar para o aprofundamento do MERCOSUL e para a consolidação da integração sul-americana. Nesse sentido, ratificaram sua decisão de avançar no projeto do gasoduto do sul.
COMENT.: A referência ao Mercosul é totalmente desnecessária, pois ele não estava e não está em causa na relação estritamente bilateral de fornecimento de gás boliviano ao Brasil. Uma declaração comprometedora como essa, “avançar no projeto do gasoduto do sul”, sem que se disponha de estudos técnicos sobre a quantidade e disponibilidade de gás venezuelano para fornecimento aos países da região e sobre o preço final desse gás na porta do consumidor, é algo arriscado, do ponto de vista técnico, político, econômico e diplomático, uma vez que o gasoduto em questão só seria viável se atendesse uma série de requisitos preliminares que ainda permanecem obscuros. Avançar sobre decisões que precisam ainda ser ponderadas pode ser extremamente irresponsável.
Coincidiram na importância da unidade da região no diálogo com outros países e regiões e, nesse contexto, mencionaram a relevância do diálogo MERCOSUL-União Européia.
COMENT.: Uma coisa não tem nada a ver com a outra e, de toda forma, quatro presidentes não podem falar por toda a região, sem que os demais tenham sido consultados.
Por último, os Presidentes acordaram fomentar investimentos conjuntos a fim de favorecer o desenvolvimento integral da Bolívia.
COMENT.: O desenvolvimento da Bolívia interessa prioritariamente ao seu povo e aos seus dirigentes, cabendo-lhes, ou não, solicitar cooperação externa na medida de suas necessidades. A menos que os investimentos referidos sejam estatais, os presidentes apenas podem afirmar que vão esforçar-se por gerar um ambiente de negócios favorável aos investimentos produtivos de uma forma geral. Investimentos, por definição, sempre são setoriais, e não podem contribuir ao “desenvolvimento integral” de nenhum país. Os presidentes extrapolaram quanto às suas possibilidades reais.
Puerto Iguazú, 4 de maio de 2006.
COMENT.: Nada a comentar…
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