ENTREVISTA COM EX-MINISTRO REZEK
A meu ver esclarece em detalhes o que realmente aconteceu com a Lavajato.
O establishment político, associado ao poder econômico, reagiu com força e sede de vingança.
Francisco Resek foi também Presidente do TSE e Juiz na Corte Penal Internacional de Haia.
Entrevista:
O SUPREMO TAMBÉM TEM CULPA
Revista Crusoé, 17/09/2021
Na manhã do primeiro domingo de agosto, Francisco Rezek recebeu um chamado de Luís Roberto Barroso enquanto descansava em sua casa de campo no sul de Minas Gerais. Barroso queria que o ex- ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral assinasse uma carta rebatendo as acusações de fraude nas urnas eletrônicas feitas por Jair Bolsonaro. A ideia era que todos aqueles que dirigiram o TSE, desde a Constituição de 1988 – Rezek presidiu o tribunal de 1989 a 1990 –, subscrevessem o documento para demonstrar o quão descabidos eram os questionamentos do presidente da República. O ex-ministro, que também foi juiz da Corte Penal Internacional de Haia, não hesitou em aderir.
Aos 77 anos, Rezek é um crítico ácido dos arroubos antidemocráticos de Bolsonaro. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de enxergar nem de falar das decisões polêmicas e dos excessos cometidos pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos tempos. Como exemplos, ele cita a abertura do inquérito do fim do mundo e a guinada da corte em relação à Operação Lava Jato, que ajudou a enterrar investigações importantes. “O Supremo não se tornou vulnerável por culpa exclusivamente alheia”, diz nesta entrevista a Crusoé.
Para o ex-ministro, nomeado duas vezes para o STF (primeiro em 1983, por João Figueiredo, e depois em 1992, por Fernando Collor, depois de ter deixado a corte para assumir o cargo de chanceler), a “patologia mais sórdida” que o Brasil enfrenta hoje é a reação do establishment político às ações anticorrupção levadas a cabo pela Lava Jato – um processo que tem contado com importantes contribuições da Suprema Corte. “A corrupção não quer apenas a impunidade, ela quer se vingar daqueles que tentaram puni-la”, afirma. Eis a entrevista.
O STF e o TSE têm respondido à altura aos ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro?
As reações me pareceram imaculadas. O discurso do presidente do Supremo, Luiz Fux, na abertura daquela sessão imediatamente posterior aos desaforos proferidos do presidente da República, foi perfeito. Tão perfeito quanto e mais completo na sua didática foi o que disse o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que também repudiou a fala do presidente da República. O problema é que é muito difícil convencer quem se obstina em não ser convencido pelo bom motivo de que realmente não acredita naquilo que está dizendo. Eu não creio que Jair Bolsonaro desconfie realmente da segurança do processo eleitoral. Esse é um discurso marcado pela má-fé, pela malícia. E esse parece ser um instituto de sobrevivência dele. Provavelmente, as premonições do presidente do que vai acontecer com ele nas urnas nas eleições de 2022 não são muito otimistas e, por conta disso, ele quer armar um palanque de desafio ao sistema eleitoral brasileiro, que é um dos mais seguros e aplaudidos do planeta. Ninguém que saiba das coisas ignora esse fato. Por isso que se desenha em mim essa interrogação: essas pessoas que bradavam pelo voto impresso e auditável nas ruas no Sete de Setembro e desconjuravam a urna eletrônica são realmente estúpidas ou elas compartilham a má-fé do presidente da República? É a única dúvida que eu tenho.
Muitas pessoas que foram aos atos em apoio ao presidente Bolsonaro falavam em defesa da “liberdade” e contra a “ditadura do Supremo”. De alguma forma, as decisões do Supremo alimentaram esse discurso e insuflaram essas manifestações bolsonaristas?
O Supremo não se tornou vulnerável por culpa exclusivamente alheia. Isso seguramente tem a ver com a falta de unanimidade na tomada de decisões. Quando me perguntaram há dois anos sobre a abertura daquele inquérito relativo às fake news, chamado por alguns de inquérito do fim do mundo, eu disse que foi uma ideia infeliz e que estava seguro de que seus autores, o presidente do Supremo à época (Dias Toffoli) e o ministro relator (Alexandre de Moraes), estavam convencidos disso. Mas é muito difícil voltar atrás em certos cenários e níveis de autoridade. E é difícil para o colegiado desautorizar seus dois integrantes, embora não tenha sido uma decisão unânime. O decano Marco Aurélio Mello se opôs firmemente à abertura desse inquérito nos termos que ele foi instaurado. E esse é o discurso de uma ala até moderada, sensata, dos partidários do presidente da República. O general Mourão se referiu a isso. Ele acha que esse inquérito, sem a iniciativa do Ministério Público, não poderia ter sido aberto. À luz do que se vê no regimento interno do Supremo, ele (o inquérito) é defensável, mas não é a melhor das ideias. Resumindo, não foi uma decisão feliz e ela tem sido a causa das maiores provocações, dos maiores desafios que se fazem hoje ao Supremo, dentro da racionalidade. Já a questão da urna eletrônica é totalmente irracional.
A seu ver, quais instrumentos podem ser utilizados para conter os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro?
Acredito que nem a procuradora-geral da República da época (Raquel Dodge) nem o atual (Augusto Aras) jamais teriam se recusado a abrir o inquérito, jamais teriam sido insensíveis se o Supremo comunicasse o que estava acontecendo, se dissesse o sentimento da corte em relação à gravidade da propagação de fake news, para, assim, seguir do modo mais ortodoxo possível o figurino, e não ficasse como uma iniciativa de juízes que, como diz hoje o observador crítico, investigam, acusam e julgam. É uma confusão entre os três papéis, que naturalmente são da polícia, do Ministério Público e da judicatura. O mecanismo é um só, é curial, é aquele que a ordem jurídica prescreve, independentemente do que diz um dispositivo avulso do regimento interno do Supremo, de modo a autorizar isso como algo defensável. Aquilo que é defensável não é necessariamente o melhor. Há caminhos melhores do que aquele que é simplesmente defensável.
Depois dos ataques ao STF no Sete de Setembro, o presidente recuou com a divulgação de uma carta à nação. O sr. acredita em um cenário de pacificação?
Eu sou menos pessimista do que vários analistas que têm falado sobre a carta. Sempre me impressionou o fato de que o presidente da República, além de pessoas absolutamente desqualificadas que o cercam no cotidiano, tem também pessoas qualificadas para aconselhá-lo. Acredito que essas pessoas têm tentado aconselhá-lo desde que ele tomou posse, mas infelizmente ele não as ouve, prefere ouvir aquilo que há de mais desqualificado. A iniciativa dele de procurar o conselho do ex-presidente Michel Temer, que é um jurista respeitado, um político habilidoso, já me pareceu a mais louvável possível. A carta é bem concebida e quero acreditar que alguma coisa muda. Não é mudança radical. Não se transforma, da noite para o dia, Jair Bolsonaro em Franklin Roosevelt, que também teve um histórico de oposição à Suprema Corte americana, mas administrou isso com sabedoria exemplar. Até mesmo a réplica de Bolsonaro aos seus apoiadores mais fanáticos, que deram um grito de protesto à carta, me pareceu mais equilibrada do que as manifestações anteriores dele. Acredito que o instinto de sobrevivência fala alto. Imagino que, depois do Sete de Setembro, alguns dos conselheiros dele devem ter lhe falado com muita franqueza: “Não se articula um golpe de estado no Brasil de hoje. Se essa é a ideia, não vai dar certo. Se não é a ideia, trate de se compor porque, do contrário, o impeachment é inevitável”. Acho que a sombra do impeachment falou alto.
O sr. acredita que o recuo diminui a possibilidade de impeachment?
Acho que se ele provocar, pode ter que sair pelo impeachment. Mas se ele minimamente se compuser, vai até o final de seu mandato e acredito que tentará governar, que é o que não tem feito. Ele não foi eleito para animar multidões na Avenida Paulista ou na Praça dos Três Poderes. Tem faltado governo, administração da crise sanitária, da educação e da crise econômica que acompanha tudo isso.
Há um receio de que uma eventual derrota do presidente em 2022 provoque tumulto semelhante ou pior do que o que ocorreu com a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, após a derrota do ex-presidente Donald Trump.
Não vejo isso como uma possibilidade. Será uma eleição muito equilibrada. Se crescer a terceira via e, eventualmente, Jair Bolsonaro for derrotado já no primeiro turno, ou mesmo no segundo, creio que nada possa ser feito fora das linhas mestras da Constituição para a manutenção do poder. A ideia de golpe, que já hoje eu descarto por inteiro, seria mais esdrúxula e impraticável depois dos resultados das urnas.
No Congresso, fala-se em crime de responsabilidade e até em denunciar Jair Bolsonaro ao tribunal internacional do qual o sr. já foi juiz, por crime contra a Humanidade em razão dos erros na condução do combate à pandemia. Dos crimes imputados ao presidente, quais podem realmente levá-lo a algum tipo de punição?
É impressionante a fluidez do texto constitucional quando fala dos crimes de responsabilidade do presidente da República. Isso leva a
uma conclusão que parece meio cínica, mas é profundamente verdadeira e que é ilustrada na História do Brasil pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor e da ex-presidente Dilma Rousseff: crime de responsabilidade é aquilo que o Congresso Nacional decide ser crime de responsabilidade. Essa é a definição mais honesta, de modo que as pessoas falam que o impeachment se impõe porque ele já incorreu nesse ou naquele crime de responsabilidade. Isso é um discurso político de discutível consistência jurídica, porque a linguagem da Constituição que define os crimes de responsabilidade do presidente da República é de uma plasticidade tal que nos autoriza essa conclusão, tão estranha, mas tão verdadeira. Fora disso, toda busca de soluções técnicas à luz da linha literal do direito é uma busca inglória. Não é por aí que vamos encontrar a solução do problema.
E quais são as chances reais de ir adiante uma acusação contra Bolsonaro na Corte de Haia?
Nenhuma. A competência do Tribunal Penal Internacional é complementar. Pressupõe que a Justiça do país de origem do acusado não pode ou não quer exercer sua competência primária. Assim, a aceitação da denúncia, seja qual for sua origem, com a instauração do processo pelo tribunal internacional significaria, mais que qualquer outra coisa, uma declaração de falência da Justiça e, mais genericamente, das instituições do Brasil.
Como o sr. enxerga a crise institucional que o país passou a viver a partir dos sucessivos ataques do presidente Jair Bolsonaro contra integrantes do Supremo?
Já faz alguns anos que nós acompanhamos a fratura que atingiu o país, essa divisão radical entre os extremos, que são muito atuantes, muito loquazes. Tradicionalmente, a esquerda brasileira é particularmente ativa, enquanto a direita poucas vezes se fez ouvir de modo tão transparente, tão assumido, nas últimas décadas. As
nossas lembranças da direita remontam há mais de meio século, no surgimento do integralismo, à sombra das ditaduras fascistas da Europa na época. Hoje, a extrema-direita se assumiu como tal, ocupou seu espaço e revelou-se tão loquaz, tão agressiva e capaz de usar e abusar de métodos mais virulentos até do que aqueles que a extrema-esquerda vinha utilizando. Essa fratura do país é marcada pelo confronto entre as duas extremidades, cada uma com, no máximo, 20% de apoio da sociedade brasileira. O que se pergunta é: onde estão os 60% que parecem não estar dispostos a conviver com isso?
Por que essa expressiva maioria do eleitorado brasileiro não foi às ruas no último dia 12 de setembro?
Por quê?
Porque os sentimentos nessa expressiva maioria são menos exacerbados do que nos extremos. Além disso, os representantes políticos desse grupo, possíveis presidenciáveis, estão em uma fase de concorrência, de forma respeitosa, como Ciro Gomes e o governador João Doria. É difícil vislumbrar por agora o desfecho da definição de um rosto representativo da terceira via. É curioso que os institutos de pesquisa não perguntam quem se situa em uma posição de rejeição simultânea a Lula e a Bolsonaro. Acredito que, se essa pergunta fosse feita, aqueles que rejeitam seriam maioria entre os entrevistados. O 12 de setembro era um dia sem bandeira e um dia sem bandeira dificilmente reúne multidões em qualquer praça ou avenida.
A bandeira levantada, segundo os organizadores, foi a da defesa da democracia.
Esse é o ponto. Todos se definem como defensores da democracia. Mesmo a esquerda radical hoje não pode ser identificada como adversária da democracia. Só a extrema-direita assumiu essa bandeira. A ojeriza pelos valores democráticos só foi revelada até agora pela extrema-direita. De qualquer maneira, a esquerda não
quis aderir. O lulopetismo tradicional, que para mim é mais fisiológico do que ideológico, e também a esquerda radical, não se sentiram à vontade para ir às ruas no último domingo, visto que, entre outros alvos da manifestação, estava o repúdio ao binômio Bolsonaro-Lula. E a ausência daqueles que realmente repudiam o binômio se explica pelo fato de que não é todo mundo que se anima a ir à rua em defesa dessa abstração que é a democracia.
Quem pode ser esse candidato?
É difícil imaginar o que seria essa terceira via. Eu penso, por exemplo, em Sergio Moro, uma das figuras mais notáveis do Brasil contemporâneo. O governo Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal e a própria força do destino impuseram o exílio político a que ele está hoje submetido. Se fosse ele a terceira via, como é da preferência de tantos brasileiros, a esquerda não aceitaria jamais, por causa do que foi a Lava Jato. A corrupção não quer apenas a impunidade, ela quer se vingar daqueles que tentaram puni-la. É esse o quadro, a patologia mais sórdida que enfrentamos neste momento. Dessa parte do eleitorado brasileiro que crucificou a Operação Lava Jato, que humilhou seus juízes e procuradores, nós nunca teríamos simpatia e muito menos apoio à candidatura de alguém como Sergio Moro. Dos outros representantes da terceira via, Ciro Gomes, por exemplo, embora não seja um súdito de Lula, é muito identificado com uma esquerda mais radical até do que o próprio lulopetismo. São inúmeras as forças de direita ou até mesmo de centro que não aceitariam Ciro Gomes como terceira via. Ouço, às vezes, pessoas dizendo que o governador de São Paulo, João Doria, outro possível candidato da terceira via, nunca pareceu ser um mau administrador e não tem outros defeitos que o inscrevam em nenhum capítulo do Código Penal, mas que não simpatizam com o estilo dele. O problema não está nas antinomias graves, mas na falta de sintonia. Tem quem não simpatize com o governador do Rio Grande do Sul
(Eduardo Leite) por sua opção pessoal (ele se declarou gay), que não deveria interferir numa República como a nossa. Além das rejeições fundadas em algo inabalável, como a rejeição da esquerda a Sergio Moro, ou da direita a Ciro Gomes, existem rejeições supérfluas, cosméticas.
O sr. acredita em uma unidade no centro, uma candidatura única da terceira via na eleição presidencial de 2022?
Acredito numa unidade suficiente para levar esse rosto da terceira via ao segundo turno. Se ela for para o segundo turno, seja contra Bolsonaro, seja contra Lula, ela vencerá, sem nenhuma dificuldade.
O sr. disse que os corruptos no Brasil não querem apenas a impunidade, mas a vingança daqueles que tentaram puni-los. Boa parte das decisões que beneficiaram denunciados e condenados por corrupção veio do Supremo. Qual o papel da corte nessa vingança?
Eu acho que aquela decisão da Segunda Turma que fez implodir a Operação Lava Jato foi uma das mais infelizes da história do tribunal.
O sr. se refere à decisão sobre a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos do ex-presidente Lula?
Exato. O tribunal parece não ter avaliado as consequências daquilo que estava fazendo. Há quase dois anos, eu ponderei que, se em qualquer uma das grandes democracias do mundo, nós invadirmos criminosamente a correspondência privada entre juízes e procuradores, entre juízes e advogados, entre psicólogos e clientes, entre cônjuges, enfim, em qualquer status da sociedade, e levarmos isso ao público, não há limites para o tamanho do estrago que isso poderia causar. É exatamente por isso que em todas as grandes democracias o papel do hacker, do criminoso que invade a correspondência privada alheia, é reprovável e é punido por lei.
Parece que só aqui, entre nós, resolveu-se fazer do criminoso que é hacker um herói nacional, porque em determinado momento ele atendia às conveniências de certa parte da sociedade política brasileira, porque em determinado momento o produto do hacker servia para tentar destruir um processo penal que foi levado a termo com a mais absoluta correição e com a bênção dos tribunais regionais e tribunais superiores, entre eles o Supremo Tribunal Federal. Essa decisão da Segunda Turma acabou por desautorizar decisões de turmas e do plenário dentro do próprio contexto da Lava Jato.
Antes dessa, houve outras decisões contra a Lava Jato e os órgãos de investigação.
Sim. Esse não foi o único dos erros acontecidos dentro do Supremo nos últimos anos, mas foi o mais deplorável, porque ali Sergio Moro foi julgado e condenado sem defesa, por maioria apertadíssima. Aliás, todos os erros que o Supremo cometeu ao longo da sua história foram em decisões tomadas por 6 a 5 ou, dentro das turmas, por 3 a 2. Felizmente, o Supremo quando corrige mais tarde seus próprios erros o faz quase sempre por unanimidade. E depois dessa calamidade que foi a decisão da Segunda Turma, parece que a própria turma estava empenhada em que o plenário não pudesse rever aquilo. Como é que se pode tomar uma decisão tão grave como aquela, em que se condenou um magistrado à execração pública, não só à nulidade do que ele fez, sem direito de defesa, com a voz de apenas três pessoas na turma?
Quando e por que o Supremo deu essa guinada contra a Lava Jato?
Antes dessa decisão da Segunda Turma (refere-se à decisão que declarou Moro parcial), nada me pareceu caracterizar um ponto de inflexão. Aquele, sim, foi o ponto de inflexão. Antes não era nada pessoal. Passou a ser naquele momento. Foi com essa decisão dos habeas corpus de Lula da Silva que as águas se dividiram, que começou a destruição da Operação Lava Jato. Me pareceu de uma transparência solar naquela sessão um ressentimento profundo contra o juiz Moro, contra o procurador (Deltan) Dallagnol. Esses dois personagens foram execrados sem direito de defesa em sessão onde a Segunda Turma julgava um habeas corpus em favor de Lula. Ou seja, não estava em julgamento o juiz ou o procurador da República, mas quem foi julgado ali foram o juiz Sergio Moro e o procurador Dallagnol. Por isso que eu digo: antes não era nada pessoal, depois desse dia a coisa foi desenganadamente personalizada. E eles não esconderam isso.
Embora até hoje o Supremo não tenha decidido sobre a validade das mensagens hackeadas como prova, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski as utilizaram no julgamento da parcialidade de Moro como “reforço argumentativo”. Qual sua opinião sobre isso?
Independentemente daquilo que a lei abona e daquilo que ela proíbe na dinâmica das provas, acho que não é eticamente indefensável você admitir a prova hackeada em favor de um réu em processo penal. A prova é ilícita, mas demonstra que fulano de tal, acusado de determinado crime, é inocente. Não foi nada disso que aconteceu nesse caso. A prova hackeada não dizia nada sobre culpa ou inocência de Lula. A prova hackeada dizia que houve apenas uma comunicação entre juiz e procurador que, para a maioria dos membros da Segunda Turma, pareceu uma maneira incorreta de proceder. Ou seja, a prova hackeada não foi utilizada para defender nenhum réu, foi usada para fazer do juiz e do procurador réus, que ali se julgavam e condenavam sem defesa. Isso me parece impalatável dentro do Estado de Direito. Insisto: nada que o hacker jogou na mesa do Supremo demonstrava a inocência de nenhum réu, Lula ou qualquer outro, apenas demonstrava que houve comunicações entre juiz e procurador que a turma decidiu considerar obscenas. E por conta disso salvam a cara do réu e transformam em réus o juiz e o procurador, que são imediatamente condenados.
Essa concentração de decisões importantes nas turmas ou até mesmo em um único ministro, por meio de liminar, tem sido bastante criticada por juristas e até por quem integrava a corte até havia pouco, como o ex-ministro Marco Aurélio Mello. Esse fenômeno se agravou nos últimos anos?
O Supremo sempre foi um arquipélago, isso já dizíamos quando entrei no tribunal. As pessoas são diferentes na sua própria formação, na visão de mundo, na metodologia de trabalho. Alguns dizem em 600 páginas o que outros dizem em seis páginas. Mas o que hoje me impressiona é que seja um arquipélago de onze monocracias por causa das decisões monocráticas que são tomadas e que nós outrora chamávamos de decisões singulares, que os ministros tomavam em coisas de menor importância. Hoje, decisões da maior gravidade são tomadas monocraticamente. E não é fácil o colegiado desautorizar a decisão monocrática de um dos seus membros. Esse é um problema sério. O Supremo seria muito menos vulnerável às críticas que hoje sofre se ele atuasse mais como um colegiado minimamente uniforme. Na corte internacional de Haia, que eu integrei por nove anos, nós éramos 15 criaturas de origens tão diferentes, de cultura jurídica tão diferentes, e todos os casos mais dramáticos, como o do muro da Palestina, o da pena de morte nos Estados Unidos, os conflitos de fronteira, foram decididos por unanimidade ou quase unanimidade. Isso dava às decisões da corte de Haia uma fortaleza. Era difícil ao estado soberano que ficava vencido repudiar essa decisão.
Por que o sr. não acredita na possibilidade de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no TSE?
Isso também foi cogitado no caso da ex-presidente Dilma Rousseff. A Justiça Eleitoral empanaria sua própria segurança jurídica dando guarida a um processo como esse, porque ela estaria dizendo que, se essa eleição deve ser anulada com a destituição da chapa eleita, é porque ela própria, Justiça Eleitoral, não funcionou. Isso não existe. Esse caminho não será tomado agora de maneira nenhuma.
(Revista Crusoé, 17/09/2021)
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