Uma nota pessoal sobre mais uma postura vergonhosa de nossa diplomacia
Paulo Roberto de Almeida
O governo é grotescamente bolsonarista, e o Itamaraty precisa dar tratos à bola para se equilibrar numa patética isenção em face do conflito na Ucrânia, selvagemente atacada pelo autocrata Putin, que desrespeitou várias vezes os espírito e a letra da Carta das Nações Unidas.
Tanto a nota do Itamaraty quanto a declaração do representante junto às Nações Unidas, feita em sessão do CS, são também grotescas, ao deixar de registrar FATOS e ao deixar de condenar AÇÕES CONTRÁRIAS ao Direito Internacional.
O chefe de Estado de um país membro permanente do CSNU declara que resolveu reconhecer a “independência” de duas províncias que ele mesmo armou e sustentou e que na sequência envia tropas numa suposta “missão de paz” está cometendo violações ao Direito Internacional, como já tinha sido o caso da invasão da Crimeia, em 2014, sobre a qual o governo Dilma, em nome do Brasil, silenciou.
O mesmo ocorre atualmente: a nota e a declaração são vergonhosas pelo que silenciam e escondem: a mentira, a agressão, o caráter inaceitável dos FATOS perpetrados contra um PRINCÍPIO fundamental da política externa e da diplomacia brasileiras, e que já tinha sido proclamado em 1907, por Rui Barbosa, na segunda conferência internacional da paz da Haia: a IGUALDADE SOBERANA DOS ESTADOS.
A Rússia viola seguidamente esse princípio, mas o governo bolsonarista e o Itamaraty também o violam, ao não reconhecer a sua VIOLAÇÃO neste caso, por quem é o agressor. O contorcionismo verbal dessas peças vergonhosas é grotesco, como sempre foi grotesco o desgoverno atual, ao renegar nossas mais caras tradições diplomáticas e os valores e princípios de nossa anterior política externa, assim como da própria Constituição.
Para que não se diga que não existem precedentes a essa ruptura inaceitável do Direito Internacional, vou citar apenas um, entre vários outros, por parte de um governo que também quebrou nossas mais sólidas tradições diplomáticas: em 2006, quando a Bolívia de Morales rasgou um tratado bilateral solenemente firmado entre o Brasil e a Bolívia e um acordo legal entre aquele governo e a Petrobras, e mandou TROPAS para ocupar instalações legitimas da empresa naquele país, o governo Lula — não o Itamaraty — emitiu uma nota vergonhosa respaldando aquelas ações ilegais do governo boliviano e se colocando numa posição de subserviência em face da ilegalidade (da qual ele já tinha conhecimento prévio, ou seja, tratou-se de um “traição à pátria”, como poderiam dizer os militares).
Sinto vergonha, como diplomata brasileiro, por essas rupturas inaceitáveis por parte de dois governos do Brasil, em 2006 e em 2022, de nossas mais caras tradições diplomáticas, a do respeito ao Direito Internacional e ao princípio Pacta sunt servanda, a inviolabilidade dos tratados entre Estados soberanos, o que a Bolívia perpetrou lá atrás contra o Brasil e o que a Rússia de Putin perpetra agora contra a Ucrânia, contra a Carta da ONU e contra toda a comunidade internacional.
Esse não é o Itamaraty ao qual servi durante toda a minha carreira. À época da primeira violação aqui mencionada, em 2006, eu também denunciei a atitude pusilânime (na verdade traidora) do governo Lula, e enfrentei um longo ostracismo na carreira por parte de todos os governos do PT, mas nunca me intimidei. Da mesma forma denuncio hoje a postura vergonhosa do desgoverno atual e, infelizmente, a da diplomacia brasileira.
Certos princípios e valores não são indiferentes à minha consciência de cidadão e diplomata, como sua violação não pode passar impunemente pela minha avaliação desses episódios.
Deixo registrada minha inconformidade com tal situação, assim como já o fiz no passado, aqui relembrado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/02/2022
“NOTA À IMPRENSA [MRE] Nº 28
Situação na Ucrânia
Publicado em 22/02/2022 10h31
Diante da situação criada em torno do status das autoproclamadas entidades estatais do Donetsk e do Luhansk, o Brasil reafirma a necessidade de buscar uma solução negociada, com base nos Acordos de Minsk, e que leve em consideração os legítimos interesses de segurança da Rússia e da Ucrânia e a necessidade de respeitar os princípios da Carta das Nações Unidas. Apela a todas as partes envolvidas para que evitem uma escalada de violência e que estabeleçam, no mais breve prazo, canais de diálogo capazes de encaminhar de forma pacífica a situação no terreno.
Declaração do Representante Permanente Embaixador Ronaldo Costa Filho no Debate do Conselho de Segurança da Nações Unidas sobre a Questão da Ucrânia- 21 de fevereiro de 2022:
“Senhor Presidente,
Quando esta Organização foi criada, em 1945, confiou ao Conselho de Segurança a responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais. A tensão dentro e ao redor da Ucrânia está-se agravando diariamente – na verdade, a cada hora –, tornando esta citação habitual da Carta de extraordinária importância e relevância.
Todos sabemos como a situação tornou-se crítica. O Brasil vem acompanhando os últimos acontecimentos com extrema preocupação. Nas atuais circunstâncias, nós, neste Conselho, em representação da comunidade internacional, devemos reiterar os apelos à imediata desescalada e nosso firme compromisso de apoiar os esforços políticos e diplomáticos para criar as condições para uma solução pacífica para esta crise.
O sistema de segurança coletiva das Nações Unidas baseia-se, em última análise, no pilar do direito internacional. Este, por sua vez, está assentado em princípios fundamentais consagrados na Carta: a igualdade soberana e a integridade territorial dos Estados-Membros; a restrição no uso ou na ameaça de uso da força; e a solução pacífica de controvérsias. No entanto, nosso pilar e nossos princípios não produzirão resultados a menos que as preocupações legítimas de todas as partes sejam levadas em consideração, e a menos que haja pleno respeito pela Carta e pelos compromissos existentes, como os Acordos de Minsk.
Nesse sentido, renovamos nosso apelo a todas as partes interessadas para que mantenham o diálogo com espírito de abertura, compreensão, flexibilidade e senso de urgência para encontrar caminhos para uma paz duradoura na Ucrânia e em toda a região. Um primeiro objetivo inescapável é obter um cessar-fogo imediato, com a retirada abrangente de tropas e equipamentos militares no terreno. Tal desengajamento militar será um passo importante para construir confiança entre as partes, fortalecer a diplomacia e buscar uma solução sustentável para a crise. Acreditamos firmemente que este Conselho deve cumprir sua responsabilidade central de ajudar as partes a se engajarem em um diálogo significativo e eficaz para alcançar uma solução que aborde efetivamente as preocupações de segurança na região. Não nos enganemos: no final das contas, estamos falando sobre a vida de homens, mulheres e crianças inocentes no terreno.
Muito obrigado.”
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